Título: Saberes e práticas na doença de Alzheimer: uma relação entre memória e velhice Nome: Daniela Moreno Feriani Linha de pesquisa: Envelhecimento e relação entre gerações RESUMO Denominada “mal do século”, “peste negra”, “epidemia silenciosa”, a doença de Alzheimer (DA) tem despertado um crescente interesse, não só por parte do campo médico (neurologistas, epidemiológicos, psicólogos, psiquiatras, geriatras), mas também, mais recentemente, da mídia e de pesquisadores das ciências humanas e sociais que vem se dedicando aos estudos sobre doença e saúde. A pesquisa aqui proposta, com base em referenciais teóricos da Antropologia Médica, pretende analisar a constituição desta doença numa preocupação social de modo a compreender como o entrecruzamento de saberes e práticas provindos de diferentes setores implicam em maneiras de pensar e lidar com o mal. A partir de uma metodologia qualitativa, com pesquisa de campo na Associação Brasileira de Alzheimer - ABRAz, realização de entrevistas e observação de comportamentos de enfermos e de seus familiares em situações diversas, interessa apreender a dinâmica da negociação dos diferentes saberes, estratégias e práticas pelos agentes nela envolvidos, como médicos, profissionais da saúde, enfermos e familiares, levando em conta marcadores sociais como gênero, classe e idade no modo de perceber, viver e tratar a doença. Acredito poder contribuir, assim, para uma maior compreensão das condições que possibilitam o gerenciamento social das doenças no mundo contemporâneo, os significados que a posse da memória aciona e as implicações que a doença de Alzheimer tem na patologização da velhice. “As doenças (...) se revestem de um caráter quase ‘totêmico’: são sobretudo ‘boas para pensar’” (Sérgio Carrara) 1) INTRODUÇÃO Denominada “mal do século”, “peste negra”, “epidemia silenciosa”1, a doença de Alzheimer (DA) tem despertado um crescente interesse, não só por parte do campo médico (neurologistas, epidemiológicos, psicólogos, psiquiatras, geriatras), mas também, mais recentemente, da mídia e de pesquisadores das ciências humanas e sociais que vem se dedicando aos estudos sobre doença e saúde. Por ser um fenômeno recente – o primeiro caso diagnosticado data de 1906, mas só em 1910 se dá um nome para a doença -, a DA está envolta em uma aura nebulosa, já que suas causas ainda são desconhecidas, havendo muitas hipóteses 1 Nomes encontrados em textos lidos em WWW.alzheimermed.com.br. Site do dr. Norton Sayeg, médico especialista em Geriatria e Gerontologia desde 1984 e presidente Fundador da Associação Brasileira de Alzheimer e Idosos de Alta Dependência (ABRAz), em 1989. 1 mas poucos dados concretos e comprovados, o que leva a uma diversidade de saberes, estratégias e práticas quanto aos significados, diagnósticos, tratamentos e fatores de risco da doença2. Forma-se, com isso, um campo de disputas em torno da patologia – discursos provindos de diferentes setores, como epidemiológico, gerontológico, psiquiátrico, neurológico, midiático, familiar -, mobilizando diferentes agentes na tentativa de lidar com o que vem se denominando “a época do Alzheimer”. Estudar como se dá a constituição desse campo em torno da doença, levando em conta o embate e a negociação entre os diferentes saberes, práticas e atores na tentativa de neutralizar uma ameaça, contribui para um maior entendimento das condições que possibilitaram o surgimento da doença de Alzheimer como “a doença do século XXI”. Segundo dados da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), a DA atinge 36 milhões de pessoas no mundo, sendo 1 milhão e duzentos mil no Brasil – 220 mil somente no Estado de São Paulo -, com incidência de 100 mil novos casos por ano no país (IBGE, 2000). A estimativa é que dez a quinze por cento dos brasileiros com mais de sessenta e cinco anos de idade sofrerão da doença, sendo o percentual em torno de cinqüenta para pessoas com mais de oitenta anos3. Ainda de acordo com dados da ABRAz, estudos realizados pela Universidade John Hopkins (EUA) concluem que até o ano 2050 cerca de 115 milhões de pessoas desenvolverão a doença4. Segundo a ABRAz, a doença de Alzheimer é a forma mais comum de demência, correspondendo entre 50 a 70% dos casos, sendo considerada uma patologia cerebral crônica, por ser incurável, e progressiva, levando a uma perda contínua de memória, de julgamento e do raciocínio intelectual, desorientação no tempo e no espaço, depressão, apatia e agressividade, tornando a pessoa cada vez mais dependente de um cuidador, já que não mais consegue realizar atividades básicas do dia-a-dia, como tomar banho, vestir-se, alimentar-se, etc. Tendo em vista a dificuldade do diagnóstico, a escassez de informações e o stress do portador e, principalmente, do cuidador5, a ABRAz surge com o intuito de fornecer suporte e 2 O próprio diagnóstico da doença é problemático, só podendo chegar a uma maior confiabilidade após o exame necroscópico do cérebro do indivíduo. Alguns indivíduos podem desenvolver a doença de Alzheimer sem nunca serem diagnosticados, por exemplo. Outros podem ter a doença mas não desenvolverem os sintomas. 3 Apesar de pesquisas indicarem a relação entre a DA e o envelhecimento, há casos de pacientes com 40 anos, sendo que o primeiro caso, diagnosticado por Alois Alzheimer, em 1906, foi de uma mulher com 51 anos. Existem relatos não documentados de DA aos 28 anos de idade (WWW.alzheimermed.com.br) 4 Nos Estados Unidos já são, atualmente, quatro milhões de doentes, o que gera um gasto aproximado de cem bilhões de dólares por ano, sendo noventa bilhões gastos exclusivamente pelas famílias dos portadores de Alzheimer e 10 bilhões subsidiados pelo governo. Setenta por cento dos pacientes recebem cuidados em suas próprias casas, podendo a doença se arrastar por até vinte anos (SAYEG, 2007, WWW.alzheimermed.com.br). 5 Sobre as mudanças provocadas nas relações familiares, os conflitos e os diferentes significados do cuidar do ponto de vista do cuidador – pessoa que assume a árdua tarefa de cuidar do doente -, ver Santos, Sílvia Maria Azevedo dos & Rifiotis, Theóphilos (2006); Alvarez, A.M (2001); Caldas, C.P. (2002); Luders, S. L.A & 2 apoio aos familiares, bem como informações específicas sobre a DA – não se trata, porém, de uma associação médica. Criada em 1991 por um grupo de familiares, profissionais médicos e não médicos, a ABRAz tem, atualmente, 22 regionais no Brasil, em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas, Limeira, Alagoas, Recife, Acre, Goiás, Maranhão, Espírito Santo, etc. A associação, sem fins lucrativos, conta com profissionais da área de saúde e de outras áreas de humanas e sociais, bem como voluntários, os quais, juntamente com os familiares e portadores da doença, formam os grupos de apoio, abertos ao público, que oferecem palestras, atividades recreativas, folhetos e livros informativos e dão a oportunidade do familiar/cuidador e do paciente falar sobre a experiência com a doença, expressando suas emoções. As reuniões acontecem de 1 a 2 vezes por semana, em locais como hospitais, escolas, bibliotecas e igrejas. A ABRAz também tem como objetivo representar os interesses das pessoas com demência junto aos governos federal, estadual e municipais. Uma reivindicação da entidade foi promulgar o dia 21 de setembro como dia mundial da doença de Alzheimer6. A data, nesse ano, foi celebrada em 22 Estados, “com programação especial de caráter educativo, defesa dos direitos, dignidade e respeito às pessoas com a doença de Alzheimer, familiares e cuidadores”, segundo as palavras da associação7. Em 2010, a ABRAz-SP escolheu o tema “Alzheimer: é tempo de agir!”, a fim de conscientizar a população sobre a importância de se conhecer mais a doença. Como se vê, a doença de Alzheimer mobiliza uma série de discursos, saberes, estratégias e práticas vindas de diferentes setores sociais. Com a discussão bibliográfica a seguir, veremos mais claramente os contornos do embate e da negociação desses setores na tentativa de dar uma inteligibilidade ao que é definido como uma patologia. Storani, M.S.B. (1996); Mendes, P.M. (1998); Neri, A.L. & Sommerhalder, C. (2001); Santos, S.M.A (2003); Savonotti, B.H.R.A (2000); Sommerhalder, C. (2001); Yuaso, D. (2000) 6 Outra conquista foi a promulgação da portaria 703, em abril de 2002, pelo Ministério da Saúde, o qual “institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa de Assistência aos portadores da doença de Alzheimer” (art. 1). Define ainda que “o programa instituído será desenvolvido de forma articulada pelo Ministério da Saúde e pelas Secretarias de Saúde dos estados, do Distrito Federal e dos municípios em cooperação com as respectivas Redes Estaduais de Assistência à Saúde do Idoso e seus Centros de Referência em Assistência à Saúde do Idoso” (art.2). Também de acordo com a portaria, os medicamentos usados durante o tratamento da doença serão entregues gratuitamente aos pacientes. 7 Dentre as atividades promovidas segundo a programação do site da ABRAz (WWW.abraz.com.br), temos: alongamento com educadores físicos, caminhada no parque, apresentação de coral e de dança por um grupo de idosos, lanche da tarde e palestras com temas como alimentação, sexualidade, direitos da pessoa idosa, memória, finitude e terminalidade, saúde do cuidador, depressão, stress, alterações de comportamento, prevenção, higiene bucal, internação, distúrbio do sono, incontinência urinária e fecal, qualidade de vida, adaptação ambiental, fisioterapia, aspectos sociais da DA e a relação com o envelhecimento, manobras facilitadoras para o dia-a-dia, cuidados diários, etc. 3 2) JUSTIFICATIVA, OBJETIVOS E DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA 2.1) Antropologia e saúde/doença O tema da saúde/doença tem despertado um interesse crescente por parte dos antropólogos, sociólogos e historiadores. Ao analisar a produção intelectual das ciências sociais e humanas em saúde, de 1997 a 2007, Canesqui (2010) aponta para a expansão da produção acadêmica nesse tópico, com concentração de 50% dos textos em assuntos como política e instituições de saúde (32,5%) e saúde e doença (18,5%)8. Sobre a produção antropológica no tema da saúde/doença no Brasil, Canesqui (2003) mostra uma forte expansão e amadurecimento da mesma na década de 1990, tendo como principal questão a influência da doença na constituição da identidade e do corpo do enfermo. Apesar do crescente interesse das ciências sociais e humanas no tema saúde/doença, Canesqui (2007) aponta para uma escassez de estudos socioantropológicos nacionais sobre adoecidos crônicos, o que, segundo a autora, faz-se ainda mais urgente tendo em vista a progressiva importância epidemiológica das doenças crônicas diante do envelhecimento da população e do aumento da expectativa de vida. A lacuna é ainda maior quando se trata de estudos sobre doenças crônicas não transmissíveis, as quais, segundo Lessa (2004), correspondem a 60% das doenças crônicas no Brasil. Além disso, Canesqui (2007) mostra uma tendência de não se levar em conta o ponto de vista dos adoecidos. A categoria “doença crônica” é uma construção do saber biomédico, mas que transborda esse campo, podendo ser tanto apropriada quanto reinterpretada pelos enfermos e suas famílias de acordo com o contexto cultural no qual estão inseridos. Dessa forma, a doença não pode ser tomada como uma entidade ou um dado, sendo uma experiência culturalmente construída, na qual há uma diversidade de modelos explicativos e semânticos que mudam de um grupo social para outro ou, dentro de um mesmo grupo social, de uma situação a outra, o que possibilita uma gama de estratégias e negociações entre os indivíduos envolvidos na experiência da doença (médicos, profissionais de saúde, enfermos, familiares). Um exemplo interessante para pensar como a noção de doença surge e é interpretada culturalmente é a obesidade. Se o corpo gordo já foi visto como belo e saudável, principalmente em relação às mulheres, na Renascença, hoje é alvo de preconceitos e intervenções por não mais estar de acordo com o padrão ocidental de beleza e saúde. Ao reconstituir as representações do corpo obeso entre os judeus, Gilman (2004) mostra os diferentes significados em torno da obesidade até a constituição da mesma como deficiência e patologia na modernidade. Yoshino (2007) mostra como a obesidade se tornou uma epidemia em várias partes do mundo, refletindo profundas mudanças na sociedade e nos padrões de 8 As doenças estudadas foram: hanseníase, tuberculose, sífilis, AIDS, poliomelite, cólera, gripe espanhola, doença mental, malária, doença de Chagas, varíola e raiva humana. 4 comportamento, nas recentes décadas. Ao fazer uma leitura socioantropológica do corpo e da corpulência, o autor chama a atenção para o paradoxo entre os valores estéticos e morais que cultuam a magreza ao lado do modismo da “boa forma”, do horror à velhice e à gordura, e o forte apelo das indústrias alimentícias que expandem o consumo dos alimentos calóricos, contribuindo para o aumento do sobrepeso e da obesidade. O modelo biomédico, ao tornar a obesidade uma doença, promove intervenções nos excessos através de medidas como dietas, cirurgias e remédios. Gilman (2004) mostra como a obesidade entre os judeus era um sinal de falta de autodisciplina, um pecado e uma punição por uma vida de excessos (comida gordurosa, sedentarismo, incesto, endogamia), estando associada a diabetes. Segundo o autor, é daí que vem a relação, desde o século XIX, entre obesidade e diabetes, esta última sendo considerada, em 1920, uma “doença judaica”, o que ia de encontro com o anti-semitismo da época. A associação entre doença e estilo de vida leva a um conjunto de intervenções sobre os hábitos dos judeus, principalmente em relação às práticas de casamento. Se hoje a diabetes deixa de ser uma doença judaica, a relação com a obesidade permanece e outras marcas sociais se fazem ouvir como, por exemplo, o gênero. Gilman (2004) mostra que, no final do século XIX, a gordura se torna uma questão das mulheres, sendo o corpo judeu transformado no corpo da mulher judia. O marcador de gênero também está presente na análise de Pittman (1999). Ao analisar o discurso de homens e mulheres diabéticos e hipertensos, na Argentina, a autora mostra que, para as mulheres, a origem da enfermidade está associada a uma situação social que lhes impede de suprir as necessidades básicas do grupo familiar. Já para os homens, a situação social relevante é a falta de trabalho. Os diferentes significados dados por homens e mulheres em relação a doença interferem nas identidades dos mesmos enquanto enfermos, nas práticas de autocuidado e na qualidade da atenção que recebem das instituições de saúde. Interessada em apreender como a experiência da diabetes orienta os cuidados do corpo, a redefinição de estilos de vida e a constituição da identidade dos enfermos, Lopes (2010) mostra, através de etnografia em uma associação de diabéticos na cidade de São Paulo, como homens e mulheres interpretam diferentemente a experiência ou, nas palavras da autora, “o processo de tornar-se diabético”. As mulheres, ensinadas a cuidar do outro (filhos, marido e outros familiares), encontram dificuldade na prática do autocuidado exigida pelo tratamento, tomando-a como obstáculo na dedicação à família. Os homens, por sua vez, contam com a ajuda de terceiros – esposas, principalmente – na tarefa do cuidar de si. Outros estudos que mostram como o gênero influencia na percepção da doença são de Canesqui (2007) e de Oliveira (1998). No primeiro caso, a autora, além de mostrar as regularidades e diferenças nas explicações sobre a hipertensão no Sudeste e no Nordeste do 5 Brasil, aponta para uma singularidade no discurso das mulheres, as quais atribuem a enfermidade a causas externas, tomando-a como um acúmulo de excessos (sangue, emoções, nervosismo, preocupações e conflitos) que necessitam “explodir” ou sair, trazendo reflexos sobre o movimento do sangue e órgãos como coração, cabeça e rins. Oliveira (1998), por sua vez, estuda a experiência da hanseníase a partir do ponto de vista das mulheres e dos homens enfermos, encontrando explicações diferentes para a mesma, com diferentes implicações para o diagnóstico e a forma do tratamento. As mulheres, mais preocupadas com a aparência corporal e com as deformidades físicas que a doença pode acarretar, ocultam a doença e se sentem insatisfeitas com a perda do status na família, embora tendam a aceitar mais facilmente o diagnóstico médico e busquem na religião as soluções alternativas para se livrarem do “castigo” que julgam merecer. Já os homens relutam em aceitar o diagnóstico e as conseqüências da doença para as atividades ligadas à sobrevivência. Doenças como a AIDS também carregam um forte estigma e um discurso religioso de condenação dos comportamentos transgressores, usando a doença como símbolo do castigo divino (Ribeiro, 1990; Fernandes, 1990). A AIDS também se articula com a sociedade e a cultura, evocando simbolicamente a morte, o sexo, o contágio, a acusação, a culpa e a encarnação do mal no imaginário ocidental (Birman, 1994). Os diferentes significados em torno da doença contribuem para mostrar os limites das estratégias, conceitos e modelos que ancoram as intervenções médico-sanitárias (Corrêa, 1994; Loyola, 1994), o que possibilita manobras e ressignificações do discurso médico por parte dos enfermos. Utilizando-se do estudo de caso e do relato oral, Barsaglini (2007) mostra como uma paciente (mulher, negra e diabética) incorpora o discurso médico e as formas de tratamento a partir de uma reinterpretação dos mesmos, elaborando estratégias de ajuste que flexibilizam ou driblam as prescrições médicas centradas na medicação e na dieta. O ciclo de aprendizado no convívio com a enfermidade implica em um entrecruzamento de elementos culturais e sociais, estruturais e subjetivos, materiais e simbólicos por parte da paciente, a qual não assume uma posição de passividade. Mesmo doenças que encontram uma inteligibilidade na genética, tanto por especialistas da área da medicina quanto pelos próprios enfermos, passam pelo crivo da cultura. Cada sociedade tem uma definição do que é biológico/natural. Aquilo que se percebe como biológico é resultado, portanto, de uma visão de mundo, podendo ser incorporado de diferentes maneiras pelos grupos sociais. Segundo Schneider (1980), a própria biologia seria um construto cultural por ser um sistema de símbolos que dizem respeito aos fatos biológicos mas que não são esses fatos. Dessa forma, os fatos tidos como biológicos são transformados, pela atribuição de significado, em construtos culturais. O sangue não é apenas um líquido vital, um dado 6 biológico do corpo humano, mas, em outra medida, é também um código simbólico de conduta9. Ferreira (1998) nos mostra que, mesmo explicando enfermidades como diabetes e alcoolismo através da genética, os Yurok tendem a correlacionar os sintomas físicos das patologias a momentos traumáticos de suas vidas, tais como mudanças de profissão, arranjos de casamento, situação econômica, violência doméstica e perda de algum parente querido. Para a autora, as teorias biogenéticas recebidas pelos agentes de saúde influenciam no modo como os índios se vêem, ao mesmo tempo que trazem implicações para o tratamento dos mesmos: ao dizerem que doenças como diabetes, alcoolismo e câncer “estão no sangue”/ “estão nos corpos” e que, por isso, “não há o que fazer”, os índios se recusam a levar adiante o tratamento oferecido pelos médicos norte-americanos. O(s) significado(s) atribuído(s) à doença tem implicações diretas na maneira como se dá a constituição da identidade do enfermo, como se incorpora e/ou ressignifica o discurso médico e como se encara as formas de tratamento e/ou prevenção decorrentes. A doença vai se constituindo enquanto tal a partir do contexto histórico, político e cultural específico. Períodos de invisibilidade e visibilidade devem ser lidos a partir dessa lógica de adequação ou não a um paradigma dominante da época. Assim, Carrara (1996) mostra como a sífilis se constitui não só como doença, mas como um mal, uma ameaça pública, desencadeando o que o autor chama de uma luta antivenérea no Brasil na passagem do século aos anos 40. Essa luta implica em um conjunto de intervenções sociais, mobilizando uma série de discursos e ações que não só dispunham do destino do doente, mas também de sua família, da sociedade, da raça, da humanidade e da espécie. Sendo incurável, a sífilis passa a ser alvo de práticas preventivas e neutralizadoras do mal, as quais agem sobre certos comportamentos e valores sociais, principalmente referentes à moral sexual, aos direitos e deveres de cada sexo, embaralhando as fronteiras do público e do privado, os direitos e as liberdades individuais. A discussão em torno dos significados da sífilis, das formas de tratamento e de prevenção saem do campo médico e chegam a juriconsultores, legistas, humanistas, religiosos, professores de filosofia e mulheres interessadas em discutir a condição feminina e os papéis sexuais. Eis, portanto, a constituição de um vasto e complexo campo de disputas em torno da doença – a partir do discurso e da iniciativa dos médicos na luta antivenérea, outros discursos, agentes e instituições se voltam em torno da patologia. Carrara, usando a noção de campo de Bourdieu, busca a reconstrução desse campo conjuntural de disputas, explorando não apenas as condições que possibilitaram o seu surgimento, ou seja, a própria emergência, em finais do século XIX, do chamado problema venéreo, mas também os princípios que o estruturavam, as principais clivagens através das quais as diferentes concepções da doença e as conflitantes propostas de 9 Para essa discussão, ver Strathern (1995). 7 intervenção nele presentes podem adquirir certa inteligibilidade a um observador de finais do século XX (p.19) Para o autor, a emergência da sífilis como ameaça pública e a conseqüente luta antivenérea podem ser lidas a partir do processo de estruturação do que Foucault chamou de dispositivo da sexualidade e do que Norbert Elias chamou de processo civilizador. A visibilidade da doença, portanto, está ligada aos paradigmas vigentes na época. A sífilis evoca o imaginário sobre o mal – um mal que assume a forma de doença. Foucault (2005) problematiza a tênua separação entre loucura, doença e mal, mostrando como, para cada contexto, há a predominância de um dos termos ou a co-relação entre eles. Enfocando a loucura, Foucault mostra como sua concepção vai mudando ao longo da história, de acordo com o contexto social, cultural e político, ora vista sob a forma de doença, mal, morte, ausência de moral e ética, até a constituição como patologia pela psiquiatria no final do século XIX. A forma de conceber a loucura implica em uma forma específica de intervir sobre o louco – a mesma relação pode ser feita para a doença: dependendo de seu significado, há formas diferentes de tratamento, prevenção e intervenção. Foucault mostra, por exemplo, como a lepra e a peste acionam modelos explicativos e políticos diferentes, com conseqüências específicas: enquanto a lepra resultou na exclusão e isolamento dos doentes, a peste desencadeou formas disciplinares de controle dos mesmos. Desaparecidas a lepra e a peste, as estruturas explicativas acionadas por elas permanecerão, deslocando o mal para outros atores. “Pobres, vagabundos, presidiários, ‘cabeças alienadas’ assumirão o papel abandonado pelo lazarento...” (p.6). A loucura – e a doença – ganha, assim, uma conotação moral, recaindo o mal em atores que estão a margem da sociedade – além dos citados acima, temos bêbados, avaros, devassos, delatores. Foucault mostra como, mesmo após a constituição da psiquiatria como ciência e saber específico que acredita falar da loucura apenas em sua objetividade patológica, a conotação moral e ética permanece, colocando, simbolicamente, em uma mesma prisão, os loucos e os doentes. A partir da psiquiatria, a loucura passa a ser uma doença do cérebro e passa a se constituir na relação médico-paciente. Esse mal – agora sob a forma de doença – passa a colocar a materialidade da alma em questão, questionando sobre a relação entre mente e corpo. A loucura passa, então, a ser oposta à razão, vista a partir da negatividade – a demência sendo a principal representante dessa nova concepção. Para Foucault, a demência é, dentre todas as doenças do espírito, a que permanece mais próxima da essência da loucura. Mas da loucura em geral, da loucura experimentada em tudo aquilo que pode ter de negativo: desordem, decomposição do pensamento, erro, ilusão, não-razão e não-verdade. (...) Ela não tem sintomas propriamente ditos, é antes a possibilidade aberta de todos os sintomas possíveis da loucura (p.252/253). 8 Vale a pena continuar a citação de Foucault para apreendermos o imaginário simbólico e médico sobre a demência, já que, como veremos, esta é um elemento importante para se pensar a doença de Alzheimer. Todas as possibilidades de metamorfoses patológicas são convocadas ao redor do fenômeno da demência a fim de fornecer, para esta, explicações virtuais. A demência não organiza suas causas, ela não as localiza, não especifica suas qualidades segundo a figura de seus sintomas. Ela é o efeito universal de toda alteração possível. (...) A demência é tudo o que pode haver de desatinado na sábia mecânica do cérebro, das fibras e dos espíritos. Mas, num tal nível de abstração, o conceito médico não se elabora: está demasiado distante de seu objeto, articula-se em dicotomias puramente lógicas, desliza na direção de virtualidades, não trabalha de modo efetivo. A demência, enquanto experiência médica, não se cristaliza. (...) Percorre-se todo o domínio da patologia a fim de se encontrar as causas e uma explicação para a demência, mas a figura sintomática sempre tarda a aparecer – as observações acumulam-se, as cadeias causais se esticam, mas é em vão que se procura o perfil próprio da doença. (...) A demência é a forma empírica, a mais geral e a mais negativa ao mesmo tempo, do desatino – a não-razão como presença percebida que ela tem de concreto, mas que não permite que determine o que tem de positivo (254-257). A negatividade em torno da demência como não-razão, não-verdade, desatino e a dificuldade de localizar suas causas e sintomas fazem dela uma patologia que se impõe como desafio para a prática clínica. De etiologia desconhecida mas envolta no imaginário da loucura, a demência põe em questão os limites do discurso e do tratamento médicos, abrindo espaço para que outros discursos e outras práticas tentem dar conta de sua aura nebulosa e misteriosa. Isso nos possibilita problematizar o saber médico, tomando-o como um objeto de pesquisa e reflexão antropológica. 2.2) Alzheimer, memória e velhice Como vimos com a discussão bibliográfica acima, as doenças se revestem de diferentes significados, o que possibilita diferentes formas de intervenção provindas de diferentes campos disciplinares e atores sociais. A doença de Alzheimer está envolta em muitas das conotações, estratégias e interdisciplinaridades que os estudos sobre saúde e doença nos mostram. Assim, considerada como o “mal do século”, traz todas as implicações que Carrara (1996) discute quando se trata de neutralizar uma ameaça pública, acionando um conjunto de intervenções e uma série de discursos e práticas que transbordam o campo médico. Se a sífilis pôde ser lida a partir da tríade ciência, sexo e política, a partir do contexto do dispositivo disciplinar da sexualidade e do processo civilizador, a doença de Alzheimer parece evocar as simbologias em torno da loucura/demência, memória e velhice, em uma época marcada, de um lado, por um bombardeio e acúmulo de informações através de dispositivos tecnológicos e, de outro, por um empobrecimento da memória a partir de noções como “fim da história” ou “declínio da experiência”. 9 A partir da idéia de Harvey da passagem da modernidade para a pós-modernidade, nos anos 80, Leibing (2000) aponta a falta de memória como um dos grandes sinais dos “novos tempos” através da proclamação de um “fim da história”. Na psiquiatria, isso pode ser visto no surgimento de novos conceitos, como o “transtorno de personalidade múltipla”, para casos de abuso sexual, e o “transtorno de estresse pós-traumático”, para experiências de guerra. Para a autora, a doença de Alzheimer é mais um exemplo de uma forma do esquecimento patológico mas que, diferentemente dos outros dois, não tem, de acordo com o entendimento psiquiátrico, uma etiologia social, mas orgânica, além da perda da memória ser progressiva e irrecuperável. Na tentativa de apreender o intercâmbio entre biologia e cultura, Leibing se propõe a pensar o contexto histórico que possibilitou a emergência da doença de Alzheimer como o “mal do século”, refletindo sobre o significado da memória nas sociedades pós-modernas. Partindo de uma análise histórica sobre a doença, a autora mostra que, da descoberta, em 1906, aos dias atuais, houve períodos de invisibilidade e visibilidade da mesma, os quais devem ser compreendidos a partir dos paradigmas dominantes em cada época. Assim, o período de “redescoberta” da doença de Alzheimer, a partir dos anos 80, está ligado a uma preocupação com a memória, a partir do mesmo período. Além disso, a visibilidade pública da doença surge em um momento em que o paradigma da psiquiatria se torna organicista (ou cognitivo – a doença como perda da capacidade de cognição), em contraposição ao paradigma holista dos anos 20 aos 60. Desse modo, Leibing afirma que o aumento dos casos de Alzheimer não pode ser explicado apenas pelo envelhecimento da população, mas que a doença é uma “criança de seu tempo”, para usar uma expressão da autora. Em outras palavras, tem algo no contexto atual - nos “tempos pós-modernos”- que pode explicar a emergência e visibilidade da doença. Da descoberta até hoje, a doença de Alzheimer passou por diferentes interpretações. Se hoje é vista a partir de uma base biológica, tomando-a como uma patologia no cérebro, Leibing mostra que não foi assim que Alois Alzheimer viu a doença, em 1906, com a descoberta do primeiro caso. Para o médico, a base biológica, os fatores físicos eram fatores secundários a outros desconhecidos. Com a influência da psicanálise, nos anos 60, havia uma visão mais ampla sobre a doença, a qual envolvia a pessoa como um todo e não somente um processo patológico do cérebro. Fatores psicológicos e sociais como stress, personalidade pré-mórbida (pessoas rígidas e dependentes) e preguiça se somaram aos fatores biológicos. Com o decorrer dos anos, porém, a relação entre patologia e história de vida deixa de ser central, tomando a doença por sua base biológica, indo de encontro, segundo Leibing, ao contexto histórico atual de uma perda de historicidade e ao paradigma dominante da psiquiatria. Ao olhar para o contexto histórico, Leibing nos mostra que, apesar da doença de Alzheimer estar presente em todas as sociedades do mundo, há grandes diferenças entre elas. Enquanto no Nigéria é quase ausente, no Brasil há 1 milhão de casos e nos Estados Unidos, 4 10 milhões. Para além de uma explicação demográfica, esses dados indicam diferentes maneiras de lidar com a doença, as quais, por sua vez, resultam de diferentes maneiras de lidar com a velhice. Há uma relação entre como a sociedade vê os velhos e a capacidade de memória dos mesmos. Dessa forma, em sociedades que tem uma visão negativa sobre a velhice, tomando-a como um declínio cognitivo e banindo-a dos espaços públicos, os velhos demonstram uma menor capacidade para a memória em relação aqueles que vivem em sociedades onde a velhice é valorizada como sinal de sabedoria e respeito à tradição, como, por exemplo, na China e no Japão. As sociedades podem ser pensadas, assim, como benignas ou malignas para determinadas doenças. A doença de Alzheimer resultaria, de acordo com a autora, dos tempos modernos em crise com sua memória – a memória sendo pensada, a partir de Douglas (2007), como um dispositivo que determina o que pode e o que não pode ser lembrado10. Vendo a doença de Alzheimer a partir do contexto, Leibing (1999) mostra diferenças no modo de percepção da doença por parte dos familiares. Ao entrevistar os parentes dos enfermos, no Brasil e nos Estados Unidos, a autora percebe que, enquanto as narrativas brasileiras passam por elementos mais subversivos, as norte-americanas parecem legitimar a ordem social existente. Os parentes brasileiros tendem a relacionar a doença com a história de vida da pessoa a partir de situações como stress, desgaste físico e mental em função de uma vida de muito trabalho, pobreza e perdas significativas, podendo levar a um questionamento das condições sócio-econômicas que fizeram do doente uma vítima da sociedade, ou a um desabafo do tipo “que vida é essa?”. Já nos Estados Unidos, a pessoa, através da doença, que é vista como “algo”, “uma semente que cresce”, desencadeia um processo para um estado de nãopessoa, já que a doença passa a determinar os seus atos e sentimentos, explicando certas atitudes “estranhas” por parte do doente (como, por exemplo, o relato da filha de Rita Hayworth, atriz que se tornou símbolo de beleza, juventude e glamour hollywoodiano e que é diagnosticada com Alzheimer, que aciona a doença para explicar as escolhas erradas da mãe na hora de fazer amizades). Para além do modelo relacional (a doença ligada à história de vida do doente), Leibing mostra que, no Brasil, também há, nas narrativas dos parentes, o modelo biomédico de ver a doença como algo genético. Tais modelos são acionados por famílias e situações diferentes: a explicação relacional dá conta dos casos de pessoas que tiveram uma vida difícil, dura, desgastante; já para as pessoas que tiveram uma vida feliz, a explicação genética teve um peso maior. A autora, porém, argumenta no sentido de uma tendência do modelo relacional ser coberto por uma visão mais mecanicista (modelo biomédico) devido a um maior conhecimento sobre a doença de Alzheimer. 10 Para uma discussão sobre a dimensão política, cultural e histórica das noções de tempo e memória, ver Taussig, Michael (1993); Bosi, Ecléa (1994); Bresciani, Stella & Nexara, Márcia (orgs) (2004). 11 Apesar do mérito de sua análise em levar em consideração os diferentes significados da doença a partir dos contextos históricos e culturais, Leibing, a meu ver, toma o discurso médico como um dado. Ao vê-lo como “mecanicista”, não percebe que ele próprio assume outras facetas, seja por uma dinâmica interna, seja por influências externas, como a entrada de outros discursos – sociais, psiquiátricos, filosóficos – na discussão dessa patologia. O discurso médico não pode ser visto apenas sob a ótica biologizante da genética. Um exemplo importante disso é a notícia recém publicada no site da ABRAz, de julho de 2011, que mostra os resultados de um estudo feito por médicos e cientistas da Universidade da Califórnia, em São Francisco, que apontam sete medidas para prevenir a doença de Alzheimer. São elas: não fumar, ter uma dieta saudável, prevenir o diabetes, controlar a pressão arterial, combater a depressão, fazer mais atividades físicas e aumentar o nível de educação. De acordo com a pesquisa, a metade dos casos da doença no mundo se devem a falta destas medidas de saúde e basta uma redução de 25% nos sete fatores de risco para evitar até 3 milhões de casos. Ainda de acordo com a pesquisa, o fator que parece causar a maior porcentagem de casos da doença é o baixo nível educacional (19%), seguido pelo tabagismo (14%), falta de atividade física (13%), depressão (11%), hipertensão na meia idade (5%), obesidade na meia idade (5%) e diabetes (2%). Isso aponta para mudanças no estilo de vida como forma de prevenir a doença, o que pode ser lido dentro de um movimento de crescente autoresponsabilização do indivíduo por sua saúde, o qual se torna alvo de estratégias para identificar, tratar e administrar grupos ou localidades considerados em situações de risco (Featherstone, 1991; Rose, 2001; Debert, 1999). É importante, portanto, observar como outros discursos, estratégias e práticas entram em conexão com o campo médico e como se dá a negociação entre esses diferentes saberes, tanto por parte dos profissionais de saúde, quanto por parte dos doentes e familiares. Ao analisar a constituição de um campo de disputas em torno da doença de Alzheimer, pretendo estar atenta a esses entrecruzamentos e como as interferências de um saber no outro implicam em diferentes maneiras de pensar e lidar com a doença. Quando Alois Alzheimer diagnosticou o primeiro caso em uma mulher de 51 anos11, mostrou que a demência não era somente parte do processo de envelhecimento, mas uma patologia específica. A dificuldade, porém, em separar o normal e o patológico para se pensar o processo de envelhecimento permanece, o que nos leva a refletir sobre o que a senilidade pode estar se tornando (Leibing & Cohen, 2006). Na tentativa de explorar a demência a partir de vários ângulos (histórico, psicológico, filosófico, cultural), os autores organizaram uma coletânea que mostra, apesar das singularidades das pesquisas e dos textos reunidos, uma 11 O primeiro sintoma tido como indicador da doença foi o ciúme exagerado do marido. Isso pode nos levar a pensar nas configurações de gênero em torno da doença – tanto por parte dos médicos, quanto do ponto de vista dos enfermos e familiares. 12 tendência da prática clínica moderna de articular senilidade e demência – e se perguntam sobre o que está acontecendo para essa co-relação fazer sentido. Segundo Cohen, na Europa, a demência enquanto loucura e desordem estaria substituindo a noção de senilidade como elemento central para se pensar a modernidade. Os autores da coletânea se propõem a pensar nas conseqüências disso para o entendimento da velhice, com implicações no diagnóstico e tratamento da saúde mental do idoso. O século XX, ao colocar a histeria e a senilidade como desordens da memória, passa a ver a demência como um processo natural do envelhecimento. A biologização da senilidade seria, segundo Cohen, uma das dinâmicas da “época do Alzheimer”, mas sem excluir outras narrativas possíveis, tais como as centradas em aspectos comportamentais, hábitos e estilos de vida. Em artigo nessa coletânea, Leibing mostra o crescimento no enfoque da personalidade (personhood) como uma das exigências da indústria farmacêutica, uma vez que a genética tem sido menos produtiva para o cuidado farmacêutico, o que leva a uma proliferação de lugares e projetos de intervenção sobre a doença de Alzheimer. Os textos reunidos na coletânea tratam, sobretudo, de pesquisas realizadas na Europa e Estados Unidos, havendo apenas um texto sobre o Brasil, de Annette Leibing, e um sobre o Japão, de John W. Traphagan. Cohen chama a atenção para a necessidade de contribuições de autores de outros países, como Brasil, Canadá, Inglaterra, Índia. Segundo o autor, abordar a senilidade a partir das ciências humanas abre a possibilidade de vê-la não apenas do ponto de vista do cuidado e tratamento das pessoas dementadas, mas como forma de entender criticamente os significados atribuídos à razão, memória, envelhecimento, medicina e estilo de vida. A senilidade é alvo de discursos contraditórios mas coexistentes: de um lado, a velhice como patologia e declínio cognitivo e físico; de outro, a possibilidade de uma velhice bemsucedida, saudável, que opera uma negação da própria velhice - e daí o surgimento de uma nova nomenclatura, como terceira idade - a partir de toda uma indústria voltada para o antienvelhecimento, com dietas, remédios e exercícios, sendo pautada por uma eterna juventude – o ser jovem como valor buscado e desejado (Debert, 1999). Para Helman (1994), a medicalização da velhice em sociedades ocidentais está ligada à valorização, na era da informação, das funções cognitivas, como raciocínio, memória e cálculo. Isso leva a uma desvalorização dos idosos, sobretudo se eles sofrem de alguma forma de perda da memória ou disfunção cognitiva, patologizando muitos dos sinais que fazem parte do processo de envelhecimento, segundo o autor. Esta atitude contrasta com a de muitas outras culturas em que a demência não é vista como um problema de saúde pública, mas como uma parte esperada ou ao menos compreensível do envelhecimento. Como exemplo, o autor diz que, na China, uma certa quantidade de “ infantilização” nos muito idosos é vista como uma 13 condição a ser tolerada e não como algo anormal e que exija tratamento médico. Na Índia, a demência senil é menos freqüente ou menos severa, quer devido a menor longevidade ou porque há maior tolerância com os idosos dementados do que no Ocidente. Cohen (1995), ao estudar o envelhecimento na Índia, mostra que lá a senilidade não é percebida como uma patologia individual e sim o resultado do declínio da família tradicional devido à urbanização, modernidade e ocidentalização dos costumes. Isso se diferencia, segundo o autor, da concepção ocidental do Alzheimer como uma doença biológica. A medicalização ou patologização da velhice pode ser lida dentro de um contexto de produção de saberes, estratégias e práticas voltadas para uma velhice bem sucedida e saudável. Os discursos sobre a senilidade, aparentemente contraditórios, acabam por se complementar e participar de uma mesma lógica – a criação de um modelo ideal para a velhice. Tudo o que foge desse modelo – como, por exemplo, o declínio cognitivo ou a falta de memória - passa a ser patológico. Assim Cohen (1998) sugere explicar a epidemia da doença de Alzheimer no Ocidente – os casos de demência seriam os casos que fogem dos modelos ideais de velhice. A discussão bibliográfica nos mostra o quão complexa é a experiência da doença. Todo o processo de lidar com a doença - o diagnóstico, o significado atribuído a ela, as formas de tratamento e prevenção – passa por diferentes saberes, tais como biologia, medicina, antropologia, filosofia, história. O discurso médico se conecta, portanto, com outros na tentativa de transformar a doença em um problema social que requer investimentos específicos. Como vimos, a transformação da doença em problema social também envolve os interesses da indústria farmacêutica, a criação de associações, a definição de estilos de vida e formas de consumo. Pretende-se apreender a conexão que é criada entre esses diferentes saberes, interesses e agências para lidar com a nova doença do século, tentando pensar as implicações para os significados de doença, velhice e memória. 3) PLANO DE TRABALHO E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS A pesquisa aqui proposta pretende analisar a constituição da doença de Alzheimer numa preocupação social a partir da conexão do campo médico com outros campos que fazem dessa doença o mal de um século. Isso envolve não apenas saberes disciplinares (medicina, biologia, antropologia, filosofia, história) mas também uma série de intervenções e estratégias na tentativa de neutralizar essa ameaça, como políticas públicas, indústria farmacêutica, organizações não governamentais, como a ABRAz, formas de consumo e estilos de vida, além de definições do que seja a boa velhice e o bom funcionamento da memória. Pretende-se compreender o entrecruzamento desses saberes e práticas e a negociação dos mesmos pelos agentes envolvidos na experiência da doença, como os enfermos, familiares, cuidadores e profissionais de saúde, levando em conta marcadores sociais como gênero, classe e idade no 14 modo de viver e perceber a doença. Acredito poder fornecer elementos para a compreensão do Alzheimer como o “mal do século” e as implicações que isso vem tendo para o entendimento e gerenciamento da velhice. Para isso, as estratégias de pesquisa, as formas de análise dos resultados e os procedimentos metodológicos propostos são: - Levantamento e leitura bibliográfica da produção das ciências sociais e humanas sobre temas referentes a saúde/doença, memória, envelhecimento, demência e Alzheimer, com ênfase especial nos trabalhos na área de Antropologia Médica. - Levantamento e análise da produção técnica sobre demência e Alzheimer, tais como manuais clínicos, livros didáticos, em particular material de divulgação para leigos e, eventualmente, diagnósticos e laudos médicos - Etnografia na ABRAz – Associação Brasileira de Alzheimer -, no Estado de São Paulo, com a observação e acompanhamento das atividades desenvolvidas pelos grupos de apoio, bem como a realização de entrevistas com os profissionais de saúde, os enfermos e os familiares. Além disso, pretende-se elaborar um banco de dados sobre o perfil dos enfermos e familiares participantes dos grupos de apoio. Interessa observar como eles incorporam e/ou ressignificam o discurso e as práticas dos profissionais de saúde, bem como se dá o processo de inserção em um grupo de apoio e as formas de transitar através das atividades e espaços propostos pela ABRAz - Acompanhamento dos enfermos e familiares a consultas médicas a fim de apreender como se dá a relação médico-paciente e as negociações dos saberes e práticas associados a doença entre os diferentes atores envolvidos. Realização de entrevistas com os médicos e pacientes/familiares. - Acompanhamento de consultas a geriatras e/ou neurologistas para verificar o momento do diagnóstico – o discurso médico, a reação de pacientes e familiares, a negociação na relação médico-paciente. Realização de entrevistas com os médicos e pacientes/familiares. - Acompanhamento de congressos nacionais e internacionais sobre doença de Alzheimer. 15 4) CRONOGRAMA As atividades de pesquisa e os procedimentos metodológicos serão executados de acordo com o seguinte cronograma: ATIVIDADES / SEMESTRES 1 2 3 4 5 6 Levantamento, leitura e análise da bibliografia X X X X X X Levantamento, leitura e análise da produção técnica X X X X X X Pesquisa de campo na ABRAz X X X X X X X Realização de entrevistas Análise dos dados coletados na pesquisa de campo e nas entrevistas Acompanhamento de consultas médicas Redação do texto final da tese X X X X X X 5) BIBLIOGRAFIA - Alvarez, A. M. 2001. Tendo que Cuidar: a vivência do idoso e de sua família cuidadora no processo de cuidar e ser cuidado em contexto domiciliar. Tese Doutorado em Filosofia da Enfermagem. 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