Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas: aproximando agendas e agentes 23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP) As configurações do Estado na teoria democrática contemporânea Joscimar Souza Silva Programa de Pós-graduação em Ciência Política – PPG-Pol Universidade Federal de São Carlos – UFSCar As configurações do Estado na teoria democrática contemporânea Joscimar Souza Silva Resumo O papel do Estado é um aspecto essencial na produção da teoria política. Nos autores contratualistas, especialmente em Hobbes, Locke e Rousseau, há um esforço claro em responder à pergunta quanto à finalidade do Estado, para então construir os fundamentos das ações do Estado e a forma que se configurará essas ações. Nesse texto procuro de maneira introdutória identificar e refletir sobre o papel do Estado na teoria política contemporânea, com foco nas obras de Jürgen Habermas, John Rawls e Amartya Sen. Apresento como considerações gerais sobre o tema que, o Estado tende a ser empoderado a fim de se posicionar enquanto agente de promoção de cooperação social, emanando condições de justiça, sendo receptivo às demandas do mundo da vida e promovendo desenvolvimento. Palavras-chave: Teoria política, Estado, contrato social, democracia. Introdução O papel do Estado é um aspecto essencial na produção da teoria política, por isso, é freqüente questionar qual o fim do Estado para assim entender qual papel esse Estado irá desempenhar. Nos autores contratualistas, especialmente em Hobbes, Locke e Rousseau, há um esforço claro em responder à pergunta quanto à finalidade do Estado, para então construir os fundamentos das ações do Estado e a forma que se configurará essas ações. Nesse texto, procuro identificar e refletir de maneira introdutória sobre o papel do Estado na teoria política contemporânea, com foco nas obras de Jürgen Habermas, John Rawls e Amartya Sen. Muitos pontos são elencados sobre a produção de análises habermasianas, especialmente sobre a teoria da ação comunicativa, a democracia, a esfera pública e os públicos. Elenco na primeira parte deste texto algumas análises sobre a produção teórica de Habermas, especialmente nos tópicos sobre a estrutura do Estado em diferentes textos, especialmente a partir de Mudança estrutural da esfera pública e Três modelos normativos de democracia. As obras de Rawls, especialmente Uma teoria da justiça apresenta uma nova forma de repensar a sociedade e as configurações da sociedade para um contrato social. O Estado se constitui enquanto um ente empoderado, com capacidade para regular algumas relações sociais. Sobre as configurações de uma teoria da justiça na estrutura do Estado levanto algumas reflexões na segunda parte deste texto. Na terceira parte, propus-me a abordar as obras de Amartya Sen, que apresentam um resgate ao papel da liberdade nas sociedades contemporâneas. Na concepção apresentada nas obras de Sen, assim como nas de Rawls, o Estado seria um ente empoderado com capacidade de gerenciar os aspectos da liberdade – assim como a justiça em Rawls – para uma sociedade mais desenvolvida. Buscarei assim, tecer algumas considerações introdutórias sobre essas três reflexões de grande fôlego da Teoria Política Contemporânea, buscando clarear um pouco as minhas próprias indagações sobre o papel do Estado. Na parte final do texto apresento algumas considerações de cunho mais geral sobre os aspectos trabalhados no decorrer do texto, e nesse momento espero conseguir apenas finalizar o que expus no texto, não me detendo no “Plenário” em exposições já feitas nas “comissões” da casa legislativa. Concepções de Estado no contratualismo clássico Um dos marcos da produção na teoria social e especialmente na teoria política é o século XV. A virada desse século com os prenúncios do iluminismo, da enxurrada de racionalidade, de novas configurações na vida social e a efervescência econômica e sócio-política que confluíram numa guinada na história do mundo ocidental. Para a Teoria Política, um dos marcos fundantes da modernidade política é o Contrato Social. Muitas são as obras da Filosofia Política que lidam diretamente com esse tema, que, por ser tão importante, ainda hoje se configura como elemento estabelecedor fundamental das democracias contemporâneas. O Contrato Social, enquanto cerne das instituições contemporâneas, cumpre o essencial papel de dar a essência legitimadora do Estado moderno. Todos os Estados ocidentais da modernidade adotam de alguma forma, ao menos os padrões mínimos de um Contrato Social. Contudo, faz-se importante destacar que, não há uma única concepção sobre os fins do Contrato Social e, em conseqüência, uma reflexão uníssona sobre o papel do Estado no Contrato. Três destacadas obras expressam sobre o Contrato com visões divergentes. Esses três autores divergem, entre outros aspectos, sobre qual o papel do Estado nesse Contrato. Divergir sobre o papel do Estado no Contrato Social não representa uma questão de pedantismo acadêmico. É importante salientar que as divergentes posições sobre o papel do Estado no Contrato Social indicam possíveis trajetos pelos quais podia caminhar grande parte da população mundial, ou, dependendo do alcance, direcionaria toda a população do planeta. Três importantes autores, essencialmente em três importantes obras, apresentaram ao mundo, especialmente o Ocidental, três opções de Estado que culminariam em escolher algumas trilhas a percorrer. Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau expuseram três desenhos diferentes de Estado, vislumbrando três sociedades resultantes dessas configurações de Estado. A concepção hobbesiana de Estado contempla um estado forte, um leviatã, com extremas capacidades. Com condições de influir em quase tudo, resguardando aos cidadãos após o contrato social apenas uma liberdade negativa, ou seja, a garantia da não violação por parte dos concidadãos, pois o Estado é o único legítimo detentor do poder de violência. O Estado precisa ser forte, pois o homem é essencialmente mau e o Estado forte é o único capaz de controlar a violência entre o povo. O Estado encarna o poder que transferimos a ele através do Contrato Social. Como não há predisposição humana para a sociabilidade, ou seja, os homens são naturalmente maus, o estado de natureza – anterior ao contrato – é um estado de guerra de todos contra todos. A única solução é transferir o nosso direito de guerra para o Estado, evitando assim a guerra de todos contra todos existente no estado de natureza. Assim sendo, no Contrato Social os homens transferem seu poder para as instituições do Estado leviatã. Assim, fica o Estado empoderado para gerir os conflitos humanos, evitando a violência de homem contra homem, pois o único detentor da violência é o Estado. Esse Estado forte é concebido por Hobbes enquanto a solução dos conflitos humanos, com o objetivo de proporcionar um estado de paz; ele não parte de uma comunidade, mas de uma guerra de homens contra homem, por isso sua principal função é retirar dos indivíduos o domínio da violência, transferindo-a ao Estado. Nessa concepção, o bem coletivo só pode existir se houver um poder coercitivo com espadas, um ente detentor do poder de violência legítima. A concepção lockeana de Estado contempla os princípios liberais clássicos e uma estrutura oposta à hobbesiana. Além da liberdade positiva, o Estado concebido por Locke, garantiria liberdades mínimas, a exemplo das liberdades de ir e vir, liberdades de culto, proteção da propriedade privada, apresentando assim, uma estrutura de Estado mais diminuta, que não pode cercear as liberdades por “razões de Estado”, como em Hobbes. John Locke se referia a um governo civil, mais frágil e com um amplo controle da sociedade civil, pois a liberdade era na concepção lockeana a essência da soberania política, delegada por todos os cidadãos ao Parlamento. Além disso, o Estado de proposição lockeana é um estado fraco. A proteção da propriedade privada, do exercício de culto e liberdade de expressão até contra o Estado estabelecem uma relação de sujeitos empoderados ante o Estado, sendo este impossibilitado de interferir nas relações privadas dos cidadãos. Para Locke, um Estado empoderado seria um risco à liberdade dos cidadãos, portanto, os cidadãos precisam de garantias liberais, contra outros cidadãos e mesmo contra interesses manifestos via instituições do Estado. Além da concepção estatista de Hobbes e da concepção liberal de Locke, temos a concepção republicana de Rousseau. Em pleno século XVII já alguém bradava que o poder político não emanava do soberano, mas do povo. Num contexto sociocultural em que era apregoado por toda parte que o rei era, se não o próprio representante de Deus na terra, ao menos era um escolhido pelo Todo-poderoso para reinar sobre os homens, Rousseau já defendia que a política é algo eminentemente humano, concordando assim com o que já havia sido apregoado anteriormente por Maquiavel (2010). Rousseau faz uma crítica profunda ao domínio real, critica os abusos do poder ao afirmar que os homens concedem o seu direito de administrar ao soberano, mas não concede o domínio sobre eles (Rousseau, 2008: 38). Para o exercício da soberania, o autor invoca a vontade geral, único instrumento capaz de gerar o bem comum (Rousseau, 2008: 42). A soberania é para Rousseau o poder que é dirigido pela vontade geral (2008: 49), cujo legítimo representante é a Assembleia. Rousseau também nos forneceu outros instrumentos. Rousseau foi além de Maquiavel ao afirmar que o poder “emana do povo”, produzindo nisso, através da sua conceituação do contrato social, que os homens tinham inicialmente no contrato social um padrão de igualdade, igualdade essa que era uma das garantias do contrato. Se em Maquiavel, os homens eram objetos de manipulação de alguns homens ou de apenas um soberano, em Rousseau o povo, ainda que não seja efetivamente o soberano, é o motivo que dá existência ao soberano. Só existe o soberano por causa de um povo e não o contrário. Assim sendo, a legislação é para Rousseau o que dinamiza e expressa a vontade do corpo político. Para que uma lei seja boa ela deve ter como base a vontade geral, sendo esta expressa na ação do legislador, sendo assim a função do legislador se compõe de algo muito complexo e para a produção de leis perfeitas, haveria “necessidade de deuses para dar leis aos homens” (Rousseau, 2008: 61). A democracia, como na sua acepção, é algo para uma população de deuses, não de homens, pois o governo democrático é perfeito demais a estes, conforme afirma Rousseau (2008: 94). Além disso, o autor critica as análises que afirmam que o regime democrático só é possível aos pequenos países. Essa última discussão a que penetrou Rousseau ainda é muito atual, especialmente quando falamos em modelos alternativos ou híbridos, especialmente quanto ao quesito participação no atual sistema representativo em que se baseiam as experiências democráticas modernas. Assim sendo, tendo exposto três clássicas concepções de Estado dentro do Contrato Social, disserto a seguir sobre algumas idéias desenvolvidas pelos autores centrais desta reflexão: Rawls, Habermas e Sen. Em alguns momentos do texto, além das obras centrais analisadas – Uma teoria da justiça, Três modelos normativos de democracia e Desenvolvimento como liberdade – utilizo também de outras obras dos autores principais e também de textos de outros autores referentes às temáticas e às obras principais. Uma teoria da justiça como equidade e o papel do Estado Na obra Uma teoria da justiça, John Rawls (2005)1 apresenta uma teoria da justiça como equidade. Justiça, nos termos apresentados por Rawls, corresponde a equidade, pois, sendo o igualitarismo extremo quase impossível, ou mesmo se possível comporia se um risco social que geraria uma obnubilação das diferenças intrínsecas entre seres humanos, o mais adequado é referir-se a equidade. Por equidade compreende-se a minimização das diferenças de capacidades de ação social, de acesso a bens e serviços, etc. (Rawls, 2005) Rawls argumenta “que a maneira pela qual podemos entender a justiça é perguntando a nós mesmos com quais princípios concordaríamos em uma situação inicial de igualdade” (Rawls apud Sandel, 2011: 177). Rawls propõe que de um contrato hipotético em que se superponha uma situação hipotética de igualdade inicial, poderiam surgir dois princípios essenciais da justiça: 1) oferecer as mesmas liberdades básicas a todos os cidadãos; 2) condensaria a possibilidade de equidade social e econômica, sendo que este não se refere a uma igualdade na distribuição de renda, mas um sistema que é capaz de permitir apenas desigualdades socio-econômicas que possam beneficiar os menos favorecidos, tratando assim com desigualdade os desiguais. John Rawls (2005) propõe fazer uma releitura do Contrato Social. Nas palavras do autor: “o que tentei fazer é uma generalização e levar a um grau maior de abstração a teoria tradicional do Contrato Social apresentada por Locke, Rousseau e Kant” (Rawls, 1981: 22). A fim de checar in loco as ideias de Rawls, Sandel nos expõe a uma reflexão sobre os contratos reais e nesses 1 Duas versões de Uma teoria da justiça foram utilizadas na composição desse texto, a primeira da editora Martins Fontes (2005) e a segunda, mais antiga, especialmente nas citações, uma versão mais antiga da editora da Universidade de Brasília (1981). Esse fato ocorreu por dificuldade de acesso à versão mais antiga (1981) da qual tinha retirado anteriormente alguns excertos do texto. casos afirma que, “o consentimento deve ser respeitado, embora não seja a única coisa que importe para a justiça” (Sandel, 2011: 181), e que a voluntariedade do acordo não garante que esse contrato seja justo e produzam efetivamente benefícios ao menos parcialmente equânimes (Sandel, 2011: 183). Apesar de ser classificada como “igualitária” a teoria da justiça defendida por Rawls, podemos advertir que a teoria de Rawls não se dá à defesa do igualitarismo extremado. Como também afirma Sandel, a teoria de Rawls busca propõe igualdade estimulando os bem-dotados a desenvolver e exercitar suas aptidões, compreendendo porém, que as recompensas que tais aptidões acumulam no mercado pertencem à comunidade como um todo. Não criemos obstáculos para os melhores corredores; deixemos que corram e façam o melhor que puderem. Apenas reconheçamos, de antemão, que os prêmios não pertençam somente a eles, mas devem ser compartilhados com aqueles que não tem os mesmos dotes.” (Sandel, 2011: 194)2. Na análise proposta por Rawls (1971), o sujeito fundamental da justiça é a estrutura básica da sociedade. Grosso modo, podemos afirmar que o autor 2 Apesar de ter apresentado a teoria da justiça de Rawls a partir do texto de Sandel, é importante destacar que esses dois autores se diferenciam quanto a pontos de aplicação e quanto ao próprio tipo de exercício de justiça. Enquanto Rawls trabalha com a ideia de justiça como equidade concebida teoricamente, Sandel busca extravasar isso a casos práticos na decisão individual sobre quais valores de justiça praticar no cotidiano, o que leva este autor a buscar referenciais teóricos deslocados dos contextos de reflexão sobre a teoria da justiça, a exemplo de Aristóteles. Como uma comparação entre os dois autores extrapolaria os limites dessa discussão, o texto de Sandel (2011) será utilizado apenas nos pontos em que o autor esclarece as posições de Rawls (1971). As ideias de Aristóteles trazidas por Sandel também traz outras concepções e, claro, outros padrões para uma reflexão sobre justiça, entre elas, a de que a política é instrumento para a composição de uma vida boa, formar bons cidadãos, cultivar o bom caráter, no geral, “aprender a viver uma vida boa” (Sandel, 2011: 240). Rawls se contrapõe a Aristóteles, superpondo a concepção de certo sobre o bom para pensar sobre justiça. Enquanto isso, Sandel, contrapondo-se a Rawls, resgata Aristóteles, afirmando que, por mais sedutora que pareça ser a ideia de encontrar princípios neutros de justiça, estes parecem ser equivocados, sendo assim, Sandel insere a teleologia aristotélica nas suas reflexões sobre o conceito de justiça. Ao inserir a análise teleológica como importantes nas concepções de justiça, fica porém, uma dúvida sobre como conciliar tantas concepções morais, especialmente em nossas sociedades complexas, multicurais, multiplurais e multirreligiosas. se refere como estrutura básica da sociedade à maneira como as “principais instituições sociais distribuem os direitos e deveres fundamentais e determina a partilha dos benefícios da cooperação social” (Rawls, 1981: 30). Conforme afirma o autor a justiça deve ser a primeira virtude das instituições sociais e, teorias e instituições não justas devem ser reformuladas ou reconstruídas. Fica claro em Uma teoria da justiça que as instituições sociais como um todo, exercem um papel indispensável na promoção da justiça como equidade. Nas palavras do autor, “tomadas em conjunto, dentro de um esquema, as principais instituições determinam os direitos e os deveres dos homens e suas perspectivas de vida, e o que podem esperar ser dentro da sociedade e a maneira como deverão agir” (Rawls, 1981: 30). O autor apresenta a definição do que é a teoria da justiça como equidade. Segundo ele, esta se compõe de uma teoria de justiça que generalize e eleve o nível de abstração do conceito tradicional de contrato social, ou seja, “o pacto da sociedade é substituído por certo constrangimento processual sobre os desenvolvimentos que deve levar a um acordo inicial sobre princípios de justiça” (Rawls, 1981: 26). Na discussão empreendida por Rawls (1971), as desigualdades só são permissíveis quando elas em última instância favorecem os menos privilegiados, sendo assim classificada como igualitária. Mas uma objeção forte à teoria de Rawls é quanto à discussão sobre meritocracia, pois as teorias que buscam ser igualitárias tendem a, em algum ponto, ferir os ideais libertários e meritocráticos. Rawls (2005) então defende o “princípio da diferença”, afirmando que as teorias libertárias e meritocráticas não levam em consideração as diferenças intrínsecas aos indivíduos, diferenças essas provocada por fatores externos e exteriores ao seu âmbito de ação. Rawls afirma “que até o esforço pode ser produto de uma educação favorável. „Até mesmo a vontade de se esforçar, de tentar e, portanto, de merecer no sentido geral depende de circunstâncias familiares e sociais mais confortáveis‟” (Rawls apud Sandel, 2011, p. 196). Assim sendo, Rawls (2005) defende uma teoria igualitária baseada no princípio da diferença e em instituições que promovam a equidade considerando o princípio da diferença. Ou seja, um maior grau de igualdade será promovido quando entendemos o outro como parte de nós, que somos diferentes, e que os atributos de uns ajudem a completar o falta em outros e que as instituições formalizem isso, de forma a favorecer os menos privilegiados, aumentando assim os graus de equidade (Rawls, 2005). Para Rawls (1981), “os princípios de justiça social proverão a determinação de direitos e deveres das instituições básicas da sociedade e definem a distribuição necessária para que as instituições promovam um esquema de cooperação social estável e consentido”. (Rawls, 1981: 29). A concepção rawlsiana de justiça apresenta algumas características destacadas pelo autor: a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, teorias e instituições não justas devem ser reformuladas. Ou seja, compreendendo que dentre as instituições sociais apresentadas por Rawls estão inseridas as instituições do Estado, é importante, como foi destacado pelo autor, uma nova configuração nessas instituições caso elas não estejam sendo justas. Além disso, a fim de possibilitar mecanismos institucionais de promoção de justiça como equidade, as instituições políticas precisam estar empoderadas, sendo capazes de propor algumas limitações à sociedade e ao mercado através dos princípios de justiça social, pois “embora uma sociedade seja uma reunião de cooperações com o intuito de se obter vantagens mútuas, esta será marcada por conflitos e por interesses individualizados” (Rawls, 1981: 28). Para que as instituições sociais sejam justas e consolidem uma sociedade mais justa, é necessário que essa sociedade seja regulada por uma compreensão pública do que seja justiça. Essa compreensão comum de justiça possibilita, conforme a compreensão rawlsiana, uma sociedade mais segura e a formação de vínculos associativos mais confiantes (Rawls, 1981). Rawls (1981) critica a falta do sentido de “justiça” nas sociedades contemporâneas. Segundo o autor, um conglomerado muito grande de concepções de justiça é capaz de auxiliar apenas na identificação dos princípios de justiça social, porém não geram uma sociedade mais justa. O ponto central de Uma teoria da justiça está em conceber princípios gerais, dos quais todos concordariam. Neste ponto, o autor exclui as coincidências em princípios de justiça, pois segundo ele, certo grau de coincidência (concordância sobre algum posicionamento como sendo este justo) não é o suficiente para que o objeto dessa coincidência se transforme em um princípio de justiça. A teoria da justiça como equidade de Rawls apresenta algumas características peculiares e diferenciadoras. O conceito de justiça de Rawls não se propõe a ser um conceito universal estando restrito a contextos democráticos (podemos classificar como de experiência democrática liberal). Além disso, a conceituação rawlsiana apresenta justiça enquanto uma categoria moral e não como virtude. Rawls (1981) se baseia no Contrato Social utilizando se da alegoria do contrato, contudo, na elaboração desse contrato, as pessoas se reúnem despidas de suas contingências sociais, tomadas pelo véu da ignorância3. A partir dessa situação hipotética do véu da ignorância, conclui o autor que será acatado apenas dois princípios de justiça: o princípio das liberdades universais e o princípio da diferença. Esses dois princípios seriam garantidores de pluralismo social com respeito aos diversos interesses e seriam promotores de dignidade humana tendo a racionalidade como sua principal expressão. Além disso, esses dois princípios seriam atribuidores de direitos e deveres fundamentais, determinantes de direitos e deveres, e norteadores da divisão de benefícios sociais. Rawls (1981) parece apontar para isso e Sandel (2011) ratifica afirmando que tais princípios de justiça seriam capazes de regular criando enraizamento em todas as formas de cooperação social que, por sua vez, refundarão todos os governos4. A esfera pública e o papel do Estado Em Mudança estrutural da esfera pública, um dos mais destacados textos de Jurgen Habermas, o autor trabalha com a tentativa de reconstruir o conceito de esfera pública no momento histórico. Nesse ponto Habermas trabalha com a perspectiva de apresentar novos significados do conceito de 3 Experimento mental com o intuito de fundar um contrato social hipotético no qual os seres humanos, abstraídos de suas contingências sociais, formulariam os princípios básicos de justiça. 4 Rawls foi mais cauteloso em apregoar esse ponto, não demonstrando muito claramente uma proposta tão universalista. Uma leitura mais atenta a “Uma teoria da justiça” parece demonstrar uma proposta aos problemas do mundo ocidental, não conseguindo absorver especificidades do mundo oriental. esfera pública, partindo do princípio de que a vida política é um ambiente em construção. Em Habermas a esfera pública é mais que um ambiente de reação às políticas emanadas do Estado, mas é também capacitada para agir politicamente e produzir políticas (Habermas, 2003). Para Habermas a política é a construção de mundos viáveis em realidades não dadas. Dessa forma, a perspectiva habermasiana incorpora um elemento transformador à essência da política. A política é, dessa forma, um poder com capacidade de transformar realidades sociais e uma das principais provas disso é a passagem de uma sociedade estamental para uma sociedade moderna. Habermas apresenta então a necessidade de reconstrução de um mundo de idéias que sejam realizáveis, afirmando até mesmo que a teoria crítica deve ser realizável, não podendo se limitar ao mundo das idéias (Habermas, 2002). Habermas incorpora em seus textos elementos teóricos de cunho liberal e republicano, e busca solucionar algumas limitações no desenvolvimento dessas correntes de pensamento. Segundo o autor, a concepção liberal relaciona-se com interesses e compromissos particulares enquanto a concepção republicana está presa ao entendimento de padrões éticos. Habermas não nega a existência de uma razão instrumental, ao mesmo tempo em que toma a liberdade como um pressuposto, pois, pessoas livres de constrangimentos teriam capacidade argumentativa (Habermas, 2002). Na percepção habermasiana sobre a contemporaneidade, em nossas sociedades complexas, só é viável uma democracia de tenha como base a teoria da comunicação (Habermas, 1997). A capacidade argumentativa é essencial na Teoria do agir comunicativo habermasiano. O público é constituído de agentes que necessitam ter essa capacidade para participar dos fluxos informacionais da esfera pública. O princípio habermasiano de que há um sistema que age infiltrando os seus padrões no mundo da vida, e que esse fluxo deve ser invertido, ou seja, o entendimento de que o mundo da vida precisa influir no sistema é essencial aqui. Assim sendo, um público com pessoas livres seriam capazes de imprimir suas demandas no sistema político e econômico. A teoria discursiva se propõe a ser o modelo ideal, pois integra elementos republicanos e liberais num conceito idealizado de para processos deliberativos. Os processos democráticos deliberativos dão potencialidades argumentativas mais amplas gerando resultados mais equitativos e até mesmo com grau maior de racionalidade (Habermas, 2001). Um dos pontos de grande relevância da mudança nos fluxos entre o mundo da vida e o sistema é o restabelecimento de vínculos de legitimidade às instituições. Com o cerceamento das liberdades, os públicos perdem capacidade argumentativa, além de que, a interpretação habermasiana afirma que na modernidade o mundo da vida está sendo colonizado pelo sistema. Ou seja, uma racionalidade sistêmica está sendo imposta às relações interpessoais e interferindo nas práticas dialógicas. Sendo assim, é necessário reativar o público dando possibilidades de ação livre no mundo da vida, pois neste ambiente é que se encontra o potencial de transformação de realidades sociais. O Estado parece algo alheio em alguns textos habermasianos, pois alguns parecem demonstrar que as mudanças nas relações entre o mundo da vida e o sistema dependem apenas de alterações no cenário do mundo da vida que influenciariam alterações no sistema. Contudo, algumas interpretações habermasianas têm indicado a necessidade de uma alteração no sistema a fim de que esse se torne mais sensível às demandas do mundo da vida 5. Este modelo de Estado sensível às demandas do mundo da vida, presente em autores participacionistas e deliberacionistas, necessita de uma ação propositiva do Estado. A abertura de espaços de participação e deliberação pública necessita que primeiro o Estado se proponha a ser um Estado aberto às demandas dos cidadãos. Dessa forma, a estrutura políticoinstitucional, as normas jurídicas e os padrões de tomada de decisão necessitam ser revistos (Avritzer, 2008; Begalli et al, 2011; Brasil, 2011; Habermas, 1997a; Habermas, 1997b; Pateman, 1992). Avritzer (2008), assim como Habermas (2002) propõe que o Estado adote um sistema de tomada de decisão sobre políticas que seja compartilhado com a sociedade civil e outros autores também têm trabalhado nessa perspectiva. Segundo Avritzer, o processo de decisão sobre políticas não deve ser realizado apenas no fluxo do Estado para a sociedade (de cima para 5 Ver por exemplo Avritzer (2000; 2008) e Begalli et al (2011). baixo), mas que o Estado também estivesse aberto às demandas da sociedade e compartilhando os espaços de tomada de decisão sobre políticas (Avritzer, 2008). Begalli et al (2011) discute as configurações do Estado democrático de direito a partir da proposta de democracia deliberativa habbermasiana e aponta o fortalecimento das instituições públicas e até mesmo o aumento da legitimidade dessas instituições a partir da abertura para incorporação das demandas da sociedade civil. Além disso, há um documento que reflete as alterações institucionais do Brasil e os espaços de participação e deliberação da sociedade civil os quais tem seus princípios norteadores nas idéias de Habermas (2002) e, entre outros Pateman (1992), que introduz a discussão sobre participação na teoria política (Brasil 2011). O Estado de desenvolvimento a partir das condições de liberdade Amartya Sen, economista de formação, busca pensar o desenvolvimento para além do âmbito econômico, pensando o desenvolvimento social (Sen, 1992). Para isso o autor parte do pressuposto que crescimento econômico não é o mesmo que desenvolvimento, contudo o crescimento econômico é uma das características importantes do processo de desenvolvimento. O autor parte da situação atual afirmando que temos pontos positivos e negativos nas sociedades contemporâneas. Entre os pontos positivos uma grande abundância, governos democráticos e até participativos, direitos humanos e algum grau de liberdade política, esperança de vida elevada, além de ampla interação entre diferentes regiões do planeta. Sen aponta também os pontos negativos, segundo ele o não cerceamento da pobreza e de necessidades elementares ainda insatisfeitas, a fome e a subnutrição, a violação das liberdades básicas e das liberdades políticas, desigualdades de gênero, ameaças à sustentabilidade ambiental, econômica e social ainda são entraves ao desenvolvimento (Sem, 1992; Sen, 2000). As condições negativas das sociedades contemporâneas precisam ser superadas para o exercício do desenvolvimento. Amartya Sen identifica a ação individual como essencial a essa superação, contudo, para que isso ocorra é necessária a promoção da liberdade de ação, liberdade entendida aqui enquanto capacidades. Ou seja, a liberdade como conceituada por Sen se compõe das oportunidades sociais, políticas e econômicas. Agentes sociais livres e agenciamentos sociais se complementam na promoção de desenvolvimento (Sen, 2000). A expansão da liberdade é o fim e, ao mesmo tempo, o meio para a promoção do desenvolvimento. As liberdades são de diversos tipos, compreendendo econômicas, as liberdades liberdades fundamentais políticas, como oportunidades as sociais, oportunidades garantias de transparência e previdência social. Essas liberdades fundamentais têm um papel na promoção de outros tipos de liberdade, a exemplo das liberdades econômicas e políticas que reforçam se mutuamente, além das oportunidades sociais de educação e saúde que, conforme Amartya Sen (2000) estimula novas iniciativas para superar privações e complementam oportunidades individuais de participação nas esferas política e econômica. A liberdade é então o principal objeto indutor do desenvolvimento, o qual pode ser entendido enquanto um processo de ampliação das liberdades reais de que uma pessoa pode desfrutar. As instituições do Estado não são dispositivos mecânicos do desenvolvimento. O Estado sozinho não é capaz de promover o desenvolvimento, pois ele está condicionado a valores e prioridades e pelos frutos de articulações e participação resultantes dos espaços abertos ao público. Ou seja, o grupo social é fundamental nesse contexto, não descartando, contudo a fundamental, porém não única contribuição das instituições. Em Desenvolvimento como liberdade, Amartya Sen apresenta uma concepção de que as instituições do Estado são fundamentais ao desenvolvimento, porém não o suficiente. Contudo, nessa concepção de desenvolvimento, o Estado é o principal ente promotor e sentinela dessas garantias de liberdade, já que tais garantias são o principal instrumento para a promoção do desenvolvimento enquanto expansão de capacidades (Sen, 1993). O investimento em capital humano depende do Estado. Enquanto o setor privado é promotor do crescimento econômico a partir principalmente de investimento em capital físico, cabe ao Estado o investimento em capacidades, ou seja, o investimento em capital humano. Assim sendo, nos investimentos em educação, promoção do bem-estar e distribuição de renda há a necessidade da atuação estatal. Dessa forma, as instituições políticas são revalorizadas e empoderadas para atuarem na promoção de desenvolvimento humano. Além disso, para esse desafio de novo modelo de desenvolvimento faz-se necessária as capacitações coletivas e a capacitação das instituições. Considerações Diante do exposto anteriormente pudemos considerar algumas tendências do modelo de Estado que se tem as marcas na teoria política contemporânea, especialmente em John Rawls, Jürgen Habermas e Amartya Sen. Os três autores citados têm como marca principal uma conceituação mais ampliada de democracia, ou seja, suas produções teóricas distanciam-se dos conceitos minimalistas e altamente procedimentais de democracia para um modelo mais ampliado, onde a democracia contempla equidade, espaços de deliberação pública e ampliação das capacidades. Para que essas condições se tornem reais em um contexto de democracia liberal são necessárias algumas alterações de cunho institucional. As instituições políticas serão agentes de ampla capacidade de promoção de equidade, garantindo menores proporções de desigualdade; sendo acessíveis às demandas do mundo da vida, ou seja, não limitando a tomada de decisão governamental aos representantes eleitos ou à burocracia governamental, além da promoção de liberdade enquanto ampliação das capacidades, atos que contempla dar aos cidadãos capacidades e possibilidades de escolha com equidade, respeito às diferenças e liberdades fundamentais. A reestruturação do desenho do Estado, contudo, não está limitada às fronteiras do Estado-nação. Como apontava Habermas, as instituições do Estado sofrem os controles das organizações internacionais, pois vivemos em um mundo cada vez mais complexo e com demandas cada vez mais globalizantes (Habermas, 1995). Para a efetividade da justiça como equidade as instituições sociais e políticas precisarão ser remodeladas a fim de promoverem padrões sociais de justiça que não restrinjam as liberdades, mas que também não permita limitações de cerceamento das condições sociais e econômicas mínimas para a participação na sociedade. Nessa mesma linha, Amartya Sen apresenta que o Estado deve prover as capacidades, ou seja, as possibilidades de escolha, nas quais concentram o exercício livre das decisões. Dessa forma, qual a forma que esse Estado assumirá. Habermas propõe um Estado sensível às demandas sociais, Rawls e Sen propõem um Estado que promovam a justiça como equidade e valorize as liberdades individuais. O modelo de Estado senvível à sociedade como nos propõe Habermas, nos remete ao Estado liberal de John Locke e ao Estado republicano de Rousseau, contudo um Estado que consiga resolver os problemas sociais de justiça e condições de liberdade como as propostas por Rawls e Sen, parecem remeternos a um Estado mais forte, conduzindo-nos ao modelo hobbesiano6, um Estado que dentro do Contrato Social consiga impor alguns controles sobre os instintos do homem e alguns controles à racionalidade do mercado aos negócios públicos. A tênue linha que parece separar cada um desses diferentes aspectos das propostas contemporâneas dos autores da teoria política e os traços delineadores que promovem uma semelhança entre essas teorias e as clássicas teorias do Contrato Social precisam ser melhor estudadas. Uma compreensão mais detalhada desses aspectos e dos rumos possíveis que darão traços delineadores ao Estado podem facilitar a compreensão do Estado que estamos produzindo, das condições de equidade, liberdade e se nossas instituições democráticas têm os antídotos contra os possíveis vícios dos que alcançam o poder, buscando evitar problemas quase insolúveis como as desigualdades na representação democrática e a qualidade da tomada de decisão. Referências AVRITZER, L. Teoria democrática e deliberação pública. Lua Nova, São Paulo, n. 50, 2000, p. 25 – 46. 6 Um bom exemplo disso é a análise de Barra (2009) sobre a forma de tomada de decisão sobre a implantação da internet como mecanismo de e-gestão, e-governo e e-democracia no Estado brasileiro. ________. Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a variação da participação no Brasil democrático. Opinião Pública, Campinas, v. 14, n. 1, junho 2008, p. 43 – 64. BARRA, M. C. O leviatã eletrônico. 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