O Neo-tribalismo e a Crítica à Civilização

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O neo-tribalismo e a crítica à civilização
Janos Biro1
2011
Em O tempo das tribos, o sociólogo francês Michel Maffesoli fala sobre o tribalismo
pós-moderno ou neo-tribalismo, relacionando-o ao declínio do individualismo na sociedade
de massas. Maffesoli considera que há um retorno do arcaico na pós-modernidade, usando o
termo “arcaísmo juvenil”. A força que move o neo-tribalismo contemporâneo não é um poder
instituído, mas uma “potência societal” que precede e fundamenta o poder. Este movimento
não pode ser assimilado pelo princípio do logos, mas somente pelo princípio do eros, que não
está submetido à razão e sim à corporeidade.
Nos tempos atuais há uma saturação e uma superação do princípio de
individualização. O tribalismo é um fenômeno cultural, e não apenas político, econômico e
social. Nas palavras do autor, é uma “verdadeira revolução espiritual. Revolução dos
sentimentos que ressalta a alegria da vida primitiva, da vida nativa” (MAFFESOLI, 2000, p.
6). Ao invés de progresso, o autor usa o termo “ingresso”, que representa um eterno retorno
em espiral de valores arcaicos acomodados ao desenvolvimento tecnológico. Ingressar sem
progredir significa um constante “entrar”, sem direção e sem objetivo específico.
Neste ponto, há uma valorização das manifestações lúdicas como fontes de vitalidade
e dinamismo para a sociedade de massas. “Pode-se localizar esse vitalismo nas efervescências
musicais, mas pode-se, igualmente, observá-lo na criatividade publicitária, na anomia sexual,
no retorno à natureza, no ecologismo ambiente, na exacerbação do pêlo, da pele, dos humores
e dos odores, em suma, em tudo o que lembra o animal no humano. A vida se torna
selvagem!” (MAFFESOLI, 2000, p. 8). As estruturas verticais (hierarquia autoritária) deixam
de ser suficientes, passamos a pensar em termos de estruturas horizontais (igualdade e
participação).
Maffesoli também usa o conceito de “criança eterna” para caracterizar o indivíduo
pós-moderno. A criança eterna é fiel ao “mundo como ele é”, mas isso não significa aceitar o
status quo. O civilizado que se satura de civilidade precisa resgatar a selvageria para
continuar escavando novas fontes de vida e alimentar uma sociedade morta-viva 2. A barbárie
nega e ao mesmo tempo fomenta a “dialética não-teleológica” da civilização.
Segundo Charles Fourier, o homem necessita do prazer para não morrer de tédio. A
cidade não deve ser um lugar monótono, mas ao contrário, deve ser um lugar estimulante e
plural. As “pequenas hordas” de marginais e deliquentes dão vida à cidade, mesmo que
agindo de forma anômica. Isto porque a cidade ideal não deve ser regulada pela moralidade,
mas sim pelas paixões. Nisso consistia a crítica à civilização de Fourier: os indivíduos
deveriam ter a liberdade de formar associações indefinidas, o que se aproxima do conceito de
força societal de Maffesoli. Contraditoriamente, Maffesoli vê no cristianismo primitivo um
modelo de humanismo, dizendo que o ideal de “comunhão dos santos” é o verdadeiro ethos
da civilização. A rede de computadores, as relações abertas e os diversos tipos de
solidariedade representam o novo espírito do tempo (zeitgeist) civilizado.
O afeto liberado das rédeas da moralidade e da racionalidade passa a ser organizado
numa “nebulosa afetiva” que reflete uma “união em pontilhado”. A polis é complementada
1
2
Bacharel em filosofia e mestrando em sociologia pela UFG. E-mail: [email protected]
Ver Sociedade morta-viva: http://umanovacultura.blogspot.com/2009/09/sociedade-morta-viva.html
pela tíade (bacanal), Apolo por Dionísio e a função pela disfunção. A anomia é integrada no
ideal de cinestesia social. O desenvolvimento do individualismo levou à necessidade de
perder-se a si mesmo no outro. É aí que entra a busca pela sociabilidade comunitária ao invés
de mera sociedade comum. “O tribalismo lembra, empiricamente, a importância do
sentimento de pertencimento, a um lugar, a um grupo, como fundamento essencial de toda
vida social” (MAFFESOLI, 2000, p. 11), e ao mesmo tempo, o poder de atratividade dos
grupos nos faz transitar constantemente de um para outro, de acordo com a situação 3.
O poder de atração da comunidade se deve ao que o autor chama de “instinto de
imitação” ou “pulsões gregárias”, que eventualmente nos impelem para “histerias coletivas”
ou para as formas “contemplativas”. Vemos a crescente importância das “redes de
influência”. O jogo político se aproxima cada vez mais dos jogos em rede: os políticos se
unem em clãs que já não são separados por grandes diferenças ideológicas. “O processo tribal
tem contaminado o conjunto das instituições sociais” (MAFFESOLI, 2000, p. 14). Segundo o
autor, as “redes de redes” não são boas nem ruins, devemos perceber que já estamos
enredados nelas até o pescoço. O mundo começa a se organizar como um grande conjunto de
falastérios.
Podemos chamar isso de “politeísmo axiológico” (a aceitação de múltiplos valores ao
mesmo tempo), de estrutura holomórfica, de lógica inconsistente ou de organização fractal.
Esses conceitos são tomados como base do pensamento e da ação e devem ser aceitos por si
sós. Na “ambiência erótica da vida social”, o indivíduo sofre a ação quando acredita estar
agindo por si mesmo. Temos uma “sociedade fusional”, onde as distinções são fundidas sem
que disso resulte uma unidade definida. É “tudo junto e misturado”. Os sistemas teóricos
ocidentais chegaram ao limite. Agora vivemos sob a regência da paixão comunitária.
Libertários como Hakin Bey e Bob Black irão se aproximar dessa perspectiva para criticar a
sociedade industrial e defender a união da humanidade numa comunidade mágica ou lúdica.
O autor também usa o conceito de “participação mágica”: um modo de participação
que não pode ser plenamente racionalizado, e que se dá na relação com os outros (tribalismo),
com o mundo (magia) e com a natureza (ecologia). A identidade é considerada como uma
prisão, um “enclausuramento na fortaleza do próprio espírito”, e o imperativo passa a ser a
“perda de si” e a “sede de infinito”. O dinamismo do devir só pode ser vivido de modo préindividual, e por isso retornamos ao conceito de inconsciente coletivo em oposição ao de
sujeito. Essa perspectiva indica o fim do primado do indivíduo. Agora retornamos ao destino
comunitário das interações multidirecionais, à harmonia dos diferentes e à efervescência que
quebra as regras e que nos excita a “continuar vivendo”. Para o autor, a conclusão é que “a
vida continua”, “não devemos desprezar quase nada” (Leibniz) e não podemos negar a
realidade do tribalismo, que está aí, para o bem ou para o mal.
Em resumo, essa “crítica à civilização” pode ser caracterizada como uma defesa a um
outro modo de ser civilizado, que integra os contrários e dá novo dinamismo a um processo
civilizatório desgastado pelo seu próprio sucesso.
Referência:
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. Declínio do individualismo nas sociedades de
massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
3
Para um exemplo ilustrativo dessa dinâmica, experimente jogar um game independente bastante simples e curto
chamado Love (http://infoblarg.blogspot.com/2010/12/love.html).
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