Associação Brasileira de Antropologia, Caixa Postal 04491, Brasília

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Brasília, 19 de dezembro de 2012.
Ofício nº 105/2012/ABA/PRES
À Profª
Roselane Neckel
Reitora
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
Assunto: Parecer
Acessibilidade.
do
Comitê
Deficiência
e
Prezada Profª,
Vimos através deste ofício encaminhar o Parecer do Comitê Deficiência e Acessibilidade
em relação a denúncia de que Luiza Groisman, estudante de Biblioteconomia da Universidade
Federal de Santa Catarina e pessoa com doença rara, diagnosticada com a Síndrome de PraderWilli (SPW), estaria tendo seus direitos violados na referida universidade.
Na expectativa de contar com vossa atenção, subscrevemo-nos
Atenciosamente,
Bela Feldman-Bianco
Presidente
Associação Brasileira de Antropologia
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Tel/Fax: (61) 3307-3754 – E-mail: [email protected] – Site: www.abant.org.br
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA
COMITÊ DEFICIÊNCIA E ACESSIBILIDADE
Solicitante:
Gelci Galera
Assunto:
Ensino Superior
Encaminhado para:
Adriana Dias, Anahi Guedes de Mello e Debora
Diniz
Ensino Superior, Inclusão na Universidade,
Ementa:
Acessibilidade
DOS FATOS
O Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
recebeu a denúncia de que Luiza Groisman, estudante de Biblioteconomia da Universidade
Federal de Santa Catarina e pessoa com doença rara, diagnosticada com a Síndrome de PraderWilli (SPW), estaria tendo seus direitos violados na referida universidade. A aluna apresenta
necessidades educacionais especiais e não tem recebido por parte da UFSC as necessárias
adaptações para desempenhar seus estudos em igualdade de condições com os demais colegas,
desde a sua aprovação no vestibular de 2010.
Antes mesmo do semestre se iniciar, os pais de Luiza entraram em contato com a
coordenação do respectivo curso e com o Comitê de Acessibilidade da UFSC. Porém, as
tratativas para inserir a estudante no ambiente educacional de forma adequada não surtiram
efeitos. Posteriormente, a UFSC passou a exigir informações sobre a interdição bem como laudos
médicos detalhados e assinados por profissionais da área médica, inclusive de psiquiatra, a fim de
sustentar a pertinência de Luiza em frequentar o curso noturno de Biblioteconomia da UFSC,
chegando a questionar até mesmo “(...) a real capacidade de Luiza de dar conta do que a
formação em Biblioteconomia exige” (fls. 264 do Ofício nº 059/2012), como se o fato da aluna
ter sido aprovada no vestibular não fosse suficiente para atestar sua aptidão em cursar o referido
curso. Desse modo, passaram a exigir de Luiza informações que não são exigidas dos estudantes
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sem deficiência. Para subsidiar esta e outras exigências, extraíram cópias do caderno de Luiza,
sem seu pleno consentimento.
Cumpre destacar que a Síndrome de Prader-Willi é um doença rara, de etiologia genética,
que pode afetar crianças independentemente do sexo, raça/etnia ou condição social. Seus
principais sintomas são caracterizados por uma baixa estatura, comprometimento cognitivo,
desenvolvimento sexual incompleto, baixa tonicidade
muscular e grande dificuldade em
controlar a dieta. Como em toda doença rara, cada pessoa apresenta os sintomas de uma maneira
muito específica, não havendo de forma alguma um padrão único em que se possa garantir um
diagnóstico 100% perfeito. Luiza tem o peso sob controle e é a primeira estudante universitária
com SPW da América Latina. Tudo leva a crer que ela tem totais condições de desenvolver seus
estudos, desde que a UFSC não imponha nem estabeleça barreiras metodológicas, instrumentais,
pedagógicas e atitudinais.
DAS VIOLAÇÕES DE DIREITOS
Em resposta às diligências solicitadas pelo Comitê de Acessibilidade da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), constante no Ofício nº 059/2012, o Comitê de Deficiência e
Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem, através desta, manifestar
sua surpresa e preocupação com o desconhecimento dos atuais estudos sobre a temática da
deficiência e as violações de direitos humanos cometidos pela UFSC.
Mencionamos aqui especialmente as demandas feitas pelo Comitê de Acessibilidade da
UFSC nas fls. 263 e 264 do referido ofício:
“Processo de interdição [grifo nosso] de Luiza e as responsabilidades, do ponto de vista legal,
da família e da instituição”; e
“Laudos detalhados [grifo nosso] dos profissionais da área da saúde que acompanham a
estudante: médico, psiquiatra, profissionais do Centro de Reabilitação e outros que a estejam
acompanhando no momento, considerando as características da síndrome em relação ao que
está sendo proposto pela família. Ou seja, que esses profissionais (especialmente o médico e o
psiquiatra) sustentem a pertinência [grifo nosso] de Luiza frequentar um curso noturno,
considerando os episódios constantes de adormecimento, em muitas vezes, durante todas as
aulas; a pertinência de cursar todas as disciplinas do semestre [grifo nosso], situação assumida
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e defendida pela família em detrimento das orientações dadas pelos responsáveis pelo
acompanhamento na Universidade; a capacidade de autonomia [grifo nosso] para os
deslocamentos, especialmente da Universidade para casa, tendo em vista as informações
prestadas pela família de ela correr riscos em função da compulsão alimentar; descrição da real
capacidade [grifo nosso] de Luiza de dar conta do que a formação em biblioteconomia exige
(capacidade de concentração, abstração, retenção de informações). Também é necessária a
disponibilização de contato desses profissionais com a instituição de ensino. Da mesma forma,
disponilização de relatório detalhado da Avaliação feita no Núcleo Desenvolver – HU (p. 16) e
das escolas onde Luiza estudou. (...)”.
Consideramos que as exigências por informações sobre a interdição e os laudos médicos
de Luiza, com o claro intuito de atestar a capacidade da estudante em frequentar o curso de
graduação em Biblioteconomia da UFSC, constituem-se em uma afronta aos seus direitos,
configurando-se em clara discriminação por deficiência, haja vista que Luiza ingressou, como
qualquer outro aluno ou aluna, na UFSC através da aprovação via vestibular. Ou seja, tratar Luiza
(e qualquer pessoa com deficiência) como incapaz fere a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência1 da o Brasil é signatário. Esta concepção, bastante antiga neste campo, é
aquela oriunda do campo da biomedicina, que via até recentemente a deficiência como uma
patologia cujo resultado seria a “incapacitação” social e muitas vezes também intelectual e de
autonomia pessoal dos sujeitos com deficiência. Os recentes estudos sobre o tema definem como
capacitismo a forma como pessoas com deficiência são tratadas como “incapazes”, aproximando
as demandas dos movimentos de pessoas com deficiência a outras discriminações sociais como o
racismo e o machismo.
Ainda sobre o pedido para avaliar as circunstâncias da suposta inaptidão das pessoas com
deficiência ao exercício dos atos da vida civil, ou melhor, no caso, da “interdição” de Luiza
Groisman, lembramos que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por ter
status de Emenda Constitucional está acima do próprio Código de Processo Civil Brasileiro. A
questão da interdição de pessoas com deficiência é citada no Art. 12 da referida Convenção, que
trata do “reconhecimento igual perante a lei”:
1
BRASIL. Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Diário
Oficial da União, Brasília-DF, 10 jul. 2008b, seção 1, edição 131, p. 1. Disponível em:
<http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/99423>. Acesso em: 21 nov. 2012.
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“1. Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito de
ser reconhecidas em todos os lugares como pessoas perante a lei; 2. Os
Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de
capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em
todos os aspectos da vida; 3. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas
para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio de que necessitarem
no exercício de sua capacidade legal; 4. Os Estados Partes assegurarão que
todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam
salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade
com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas
assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem
os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de
interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às
circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam
submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente,
independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que
tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa; e 5. Os Estados Partes,
sujeitos ao disposto neste Artigo, tomarão todas as medidas apropriadas e
efetivas para assegurar às pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou
herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a
empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e
assegurarão que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente
destituídas de seus bens.”
Desde esta perspectiva, observa-se que o Art.12, ao adotar medidas de salvaguardas,
NÃO admite mais as interdições judiciais, qualquer que seja o seu tipo. Noutras palavras, a
absoluta suprime completamente a capacidade civil da pessoa, e a relativa, parcialmente, sob
pena de tratamento desigual e indigno às pessoas com deficiência. Assim, esse artigo confere e
garante capacidade legal às pessoas com deficiência e impõe aos Estados-Parte, entre outras, a
obrigação de prover todos os apoios que permitam a autonomia e o desejo da própria pessoa,
agora não mais tratada de forma diferente perante a lei e os atos públicos da vida.
Neste sentido, aceitar a demanda do Comitê de Acessibilidade da UFSC por laudos
médicos e informações sobre a “interdição” para sustentar a pertinência da capacidade de Luiza
em gerir sua própria vida, mesmo o de cursar Biblioteconomia, adequando-a à
corponormatividade, é tanto um erro teórico quanto uma grave violação de direitos humanos, pois
estaríamos tratando como “incapazes” os sujeitos com deficiência para os quais a supracitada
Convenção reconhece sua autonomia. Ou seja, ao exigir laudos médicos e qualquer informação
sobre sua interdição, o Comitê de Acessibilidade da UFSC recolocou as pessoas com deficiência,
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simbolicamente e com extrema violência, no campo de representação no qual elas justamente
estão se distanciando ao se reconhecerem enquanto cidadãs em busca de seus direitos. Assim,
seguir as exigências desse Comitê no que diz respeito à capacidade de Luiza seria, portanto, agir
de forma incoerente tanto no aspecto jurídico-legal quanto em relação ao aspecto político no que
diz respeito à capacidade legal das pessoas com deficiência.
Ainda, de acordo com o Art. 5 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência deve-se priorizar o combate à discriminação e privilegiar e garantir à pessoa com
deficiência a igualdade legal, provendo-lhe as necessárias adaptações pedagógicas e/ou de
acessibilidade. Ou seja, garantir autonomia, oportunidade, convivência e inclusão à pessoa com
deficiência, como afirma o Plano Viver SEM LIMITES2 do governo federal em suas palavraschave. Estas palavras não foram escolhidas por acaso, e também não estão nesta ordem sem um
motivo: é na autonomia, na visão de que a pessoa com deficiência deve ser vista como pessoa,
como sujeito de direitos humanos, um ser humano completo, maior, inteiro, SEM LIMITES,
capaz e que se acessar oportunidades e conviver em igualdade de condições com os demais
através das necessárias adaptações, será incluído na sociedade como estudante, trabalhador e
cidadão, que o grande plano do governo federal se fundamenta.
Além disso, os pais de Luiza nos informaram o contrário: que a aluna tem sido impedida
de frequentar monitorias tem sido alimentada sem a anuência dos pais, teve o caderno copiado
também sem a sua anuência, a sonolência (característica da SPW) é tida como desinteresse e não
como parte das características da síndrome de Prader-Willi, o que demonstra total descaso com os
reais desejos de Luiza. Em suma, ao Comitê de Deficiência e Acessibilidade da Associação
Brasileira de Antropologia parece que os responsáveis pelo caso na UFSC tomaram certas
medidas para excluir a aluna, não para incluí-la.
Esperamos ter esclarecido sobre as implicações éticas, políticas e pedagógicas de nosso
encaminhamento e colocamo-nos à disposição para outros esclarecimentos que se fizerem
necessários. A orientação do Comitê de Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de
Antropologia é que a a UFSC retome imediatamente o diálogo com a família, sem exigir
2
BRASIL - Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência –Viver sem Limite. Brasília: Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República, 2011.
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qualquer tipo de intervenção médica, a fim de
permitir que a aluna possa desenvolver
plenamente sua formação universitária e da forma como deve, convivendo com seus colegas e
inclusa.
É o parecer.
Comitê de Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia – ABA.
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