Dissertao mestrado

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RAQUEL GRELLET PEREIRA BERNARDI
CONTRATO DE COMPRA E VENDA COMO TÍTULO PARA A TRANSMISSÃO DA
PROPRIEDADE MOBILIÁRIA
Dissertação
Examinadora
apresentada
da
Pontifícia
à
Banca
Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Direito, área de concentração Direito Civil
Comparado, sob a orientação da Profa. Dra.
Maria Helena Diniz.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2006
Banca Examinadora:
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
DEDICATÓRIA
A meus pais Ismar e Cibele, pela base de toda a
minha formação.
A meus irmãos Simone e Fábio, pela convivência
que, hoje rara em razão da distância, legou
lembranças eternas de bons momentos.
A meu sobrinho Alex, por ter ensinado a pessoas
que pensavam que já sabiam tudo uma nova forma
de amar.
A meus avós Virgínia e Gabriel (in memorian),
Julieta (in memorian) e Lauro, pelos ensinamentos
de toda uma vida.
A Renato, por ser muito mais do que marido, meu
companheiro de todos os momentos.
III
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Maria Helena Diniz, como
pessoa e como professora, pela oportunidade de
convivência e por todos os seus ensinamentos, de
direito e de vida.
Ao Dr. Oswaldo (in memorian) e à Dona Zezé, pela
prova irrefutável, durante a convivência aos sábados
no Instituto Internacional de Direito, de que a família
continua a ser a base de tudo.
Às Faculdades Integradas de Ourinhos, na pessoa
de seu diretor, Professor Doutor José Marta Filho,
pelo incentivo ao aperfeiçoamento de seu corpo
docente.
Ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na
pessoa do então Presidente, Desembargador Sérgio
Augusto Nigro Conceição, pela autorização para a
freqüência às aulas do curso de pós-graduação.
IV
“Já foi dito muito bem que a natureza se repete e que só o
homem inova e se transcende. É a essa atividade inovadora,
capaz de instaurar formas novas de ser e de viver, que
chamamos de espírito. O ponto de partida não é, como se vê,
uma hipótese artificial, mas verificação irrecusável de que o
homem adicionou e continua adicionando algo ao meramente
dado. A natureza de hoje não é a mesma de um, dois, ou três
mil anos atrás, porque o mundo circundante foi adaptado à
feição do homem. O homem, servindo-se das leis naturais,
que são instrumentos ideais, erigiu um segundo mundo sobre
o mundo dado: é o mundo histórico, o mundo cultural, só
possível por ser o homem um ser espiritual, isto é, um ente
livre dotado de poder de síntese, que lhe permite compor
formas novas e estruturas inéditas, reunindo em unidades de
sentido, sempre renovadas e nunca exauríveis, os elementos
particulares e dispersos da experiência”.
(Miguel Reale. Filosofia do Direito. 19ª ed. São Paulo: Saraiva,
2002, p. 205)
V
RESUMO
O estudo que segue foi realizado com o objetivo de situar o contrato
de compra e venda como título ou negócio causal para a transmissão da
propriedade mobiliária no Brasil, tendo como fundamento a eficácia obrigacional
conferida ao referido contrato pelo sistema de direito brasileiro.
Partiu-se da análise introdutória e resumida da propriedade,
consideradas a propriedade no direito romano e no direito brasileiro, e estudou-se o
objeto da propriedade a partir da classificação dos bens em imóveis e móveis.
Foram estudados os modos considerados universais para a
aquisição da propriedade mobiliária e a tradição.
Os sistemas de direito estrangeiros de transmissão da propriedade
mobiliária foram abordados sob a ótica do reconhecimento do contrato de compra e
venda exclusivamente como título para a transmissão da propriedade mobiliária,
exigido ainda o modo de aquisição consistente na tradição, ou do reconhecimento
da eficácia translativa da propriedade mobiliária ao próprio contrato de compra e
venda. Foram identificados traços peculiares dos sistemas estrangeiros e analisadas
situações específicas cujas soluções são semelhantes às do sistema brasileiro.
Estudou-se o contrato de compra e venda e a sua eficácia
obrigacional ou real nos sistemas de direito estrangeiros, bem como a eficácia
obrigacional do contrato de compra e venda no sistema de direito brasileiro, com as
conseqüências decorrentes.
A final, foram analisadas situações concretas em que a garantia da
efetividade da prestação jurisdicional decorre da identificação do contrato de compra
e venda como título e da tradição como modo de transmissão da propriedade
mobiliária.
VI
ABSTRACT
The following study was done with the aim of placing sale contract as
the title that functions as the basis for the passing of personal property in Brazil,
considering the obligational power the Brazilian law system confers to given contract.
It started from an introductory and resumed analysis of property,
considered property in Roman law and property in Brazilian law, and studied the
object of property, considered the classification in real property and personal
property.
It was searched the modus aquisitionis said universal for the
acquisition or the passing of personal property, as well as delivery.
The foreigner law systems for passing of personal property were
analyzed under the consideration of recognizing sale contract exclusively as the title
for the passing of personal property, the modus aquisitionis being also demanded, or
recognizing the power of passing of property to sale contract itself. There were
identified the peculiar characteristics of the foreigner systems and there were
analyzed specific situations in which responses of the foreigner systems are similar
to the Brazilian system responses themselves.
In progression, it was studied the sale contract and its obligational or
real power under the foreigner law systems, such as the obligational power of sale
contract under the Brazilian law system, each one with their own consequences.
Finally, there were analyzed concrete situations in which the
effectiveness of judgement is granted for the identification of sale contract as the title
and of delivery as the modus aquisitionis for the passing of personal property.
VII
SUMÁRIO
Prefácio......................................................................................................................XI
Capítulo 1 – Propriedade mobiliária...........................................................................01
1.1 – Patrimônio....................................................................................01
1.2 – Propriedade..................................................................................03
1.2.1 – Propriedade no direito romano.........................................04
1.2.2 – Propriedade no direito brasileiro.......................................07
1.2.2.1 – Definição e caracteres.......................................07
1.2.2.2 – Espécies de propriedade...................................11
1.3 – Propriedade e domínio.................................................................13
1.4 – Coisa e bem.................................................................................15
1.5 – Bens imóveis e bens móveis........................................................17
Capítulo 2 – Modos de aquisição da propriedade mobiliária.....................................26
2.1
–
Modos
universais
de
aquisição
da
propriedade
mobiliária....................................................................................................................27
2.1.1 – Usucapião................................................................27
2.1.2 – Ocupação.................................................................29
2.1.3 – Especificação...........................................................31
2.1.4 – Confusão, comistão e adjunção...............................32
2.1.5 – Casamento...............................................................33
2.1.6 – Sucessão.................................................................34
2.2 – Tradição.........................................................................................35
2.2.1 – Definição e requisitos.......................................................35
2.2.2 – Espécies de tradição........................................................38
2.2.2.1 – Tradição real........................................................39
2.2.2.2 – Tradição simbólica...............................................41
VIII
2.2.2.3 – Tradição ficta........................................................43
2.2.2.3.1 – Constituto possessório......................43
2.2.2.3.2 – Cessão de direito de restituição........46
2.2.2.3.3 – Traditio brevi manu............................47
2.2.2.3.4 – Outras hipóteses de tradição ficta.....48
Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da propriedade mobiliária.................................50
3.1 – Sistema romano...........................................................................51
3.2 – Sistema alemão...........................................................................61
3.3 – Sistema francês...........................................................................66
3.4 – Sistema inglês.............................................................................73
3.5 – Sistema brasileiro........................................................................76
3.6 – Paralelo entre direito estrangeiro e o sistema brasileiro..............80
Capítulo 4 – Contrato de compra e venda de bem móvel.........................................88
4.1 – Definição de contrato...................................................................88
4.2 – Requisitos de validade.................................................................90
4.3 – Princípios orientadores................................................................92
4.4 – Definição de contrato de compra e venda...................................93
4.5 – Aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bem
móvel.........................................................................................................................94
Capítulo 5 – Contrato de compra e venda de bem móvel nos sistemas de direito
estrangeiros................................................................................................................99
5.1 – Sistema romano..........................................................................99
5.2 – Sistema alemão.........................................................................107
5.3 – Sistema francês.........................................................................110
5.4 – Sistema inglês...........................................................................114
IX
Capítulo 6 – Contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito
brasileiro...................................................................................................................127
6.1 – Eficácia e conseqüências .........................................................127
6.2 – Questões específicas decorrentes da eficácia obrigacional do
contrato de compra e venda de bem móvel no direito brasileiro..............................153
6.2.1 – Transmissibilidade da propriedade mobiliária pela
tradição independentemente do pagamento do preço.............................................153
6.2.2 – Intransmissibilidade da propriedade mobiliária mediante
o pagamento do preço em caso de não efetivação da tradição...............................156
6.2.3 – Questões processuais.................................................157
– Conclusões............................................................................................................171
– Bibliografia.............................................................................................................179
X
PREFÁCIO
O presente trabalho decorreu da constatação da dificuldade da
aplicação da teoria referente à transmissão da propriedade mobiliária tendo como
título ou negócio jurídico causal o contrato de compra e venda e como modo de
aquisição a tradição.
Trata-se de tema conexo tanto com o direito das obrigações (Livro I
da Parte Especial do Código Civil) quanto com o direito das coisas (Livro III da Parte
Especial do Código Civil). Ao direito das obrigações porque nesse Livro se situa o
contrato de compra e venda, com características específicas quanto ao seu
aperfeiçoamento e à sua eficácia; ao direito das coisas porque o contrato constitui
exclusivamente a causa da transmissão da propriedade mobiliária, exigindo-se
cumulativamente o modo – a tradição, prevista no Livro III – para que a propriedade
mobiliária seja efetivamente transferida do vendedor ao comprador.
O estudo individualizado e estanque do contrato de compra e venda
de bem móvel e dos modos de transmissão da propriedade mobiliária enseja grande
dificuldade para a compreensão conjunta dos institutos e para a sua aplicação
também necessariamente conjunta aos casos concretos.
No dia-a-dia acadêmico, é comum e rotineira a surpresa
manifestada pelos alunos ao serem confrontados com a regra do artigo 481 do
Código Civil, que estabelece que por meio do contrato de compra e venda o
vendedor não transfere a propriedade do bem, mas exclusivamente se obriga a
transferi-la, bem como ao serem informados de que o pagamento do preço não
transmite a propriedade do bem do vendedor ao comprador e de que, por outro lado,
a entrega do bem pelo vendedor ao comprador enseja a transferência da
XI
propriedade do bem do primeiro ao segundo independentemente do pagamento do
preço.
A mesma surpresa se verifica quando aos acadêmicos é enunciada
a regra do artigo 1226 do Código Civil, que prescreve que os direitos reais sobre
bens móveis constituídos ou transmitidos por atos entre vivos somente são
adquiridos com a tradição, bem como a regra do artigo 1267, também do Código
Civil, que estabelece que a propriedade mobiliária não é transferida pelos negócios
jurídicos antes da tradição.
No dia-a-dia forense, acumulam-se os indeferimentos de petições
iniciais de ações cautelares – pretensamente satisfativas – de busca e apreensão de
bens móveis cuja propriedade foi validamente transferida pelo vendedor ao
comprador por meio da tradição, tendo como negócio jurídico causal o contrato de
compra e venda.
Sob o fundamento de que a propriedade imobiliária foi, durante
séculos, e continua sendo a verdadeira prova de riqueza e o alicerce do poder, a
transmissão da propriedade mobiliária tendo como negócio jurídico causal o contrato
de compra e venda e como modo de aquisição a tradição despertou e ainda
desperta pouco interesse dos juristas e dos profissionais do Direito no Brasil.
Fundamenta-se ainda a ausência de interesse específico pela
transmissão da propriedade mobiliária pela tradição, tendo como causa o contrato de
compra e venda, na constatação de que a circulação de riquezas mediante a
celebração de contratos de compra e venda de bens móveis esteve, durante muito
tempo, restrita às próprias comunidades, onde as regras para a solução dos conflitos
eventualmente decorrentes de seu descumprimento eram ditadas pelos costumes do
lugar.
XII
A disseminação da informação alterou o panorama atual. A
celebração de contratos por meio eletrônicos e virtuais tornou a negociação entre
estranhos uma constante.
Se, por um lado, essa prática facilitou a circulação de bens e a
transferência de riquezas, por outro lado tornou mais provável o descumprimento
das obrigações pelos contratantes e mais importante o conhecimento técnico-jurídico
visando à solução dos problemas decorrentes.
A determinação do momento do aperfeiçoamento do contrato de
compra e venda de bem móvel e o delineamento de sua eficácia obrigacional geram
conseqüências importantes às hipóteses de descumprimento da obrigação de
pagamento pelo comprador e de descumprimento da obrigação de entrega do bem
móvel pelo vendedor.
Com a finalidade de compilar as teorias a respeito da eficácia do
contrato de compra e venda de bem móvel e as teorias a respeito dos sistemas de
transmissão da propriedade mobiliária, bem como de identificar a teoria aceita no
Brasil a respeito dos temas, o presente trabalho foi desenvolvido na tentativa de
contribuir para o estudo contextualizado da transmissão da propriedade mobiliária
tendo como causa o contrato de compra e venda e como modo a tradição.
Afirmamos a importância do estudo do tema tanto para o leigo, que
tem aplicadas a si conseqüências nem sempre esperadas, em razão do
desconhecimento dos institutos, como para o jurista, a quem incumbe o estudo
aprofundado do direito visando à descoberta de novos caminhos a serem trilhados
na busca de soluções adequadas à incessante evolução das relações sociais.
São Paulo, agosto de 2006.
Raquel Grellet Pereira Bernardi
XIII
Capítulo 1 – Propriedade mobiliária
1.1 – Patrimônio
De acordo com a teoria clássica ou subjetiva, o patrimônio é a
representação econômica de uma pessoa, e não uma soma de bens considerados
concretamente. Ou seja, o patrimônio é uma universalidade abstrata, integrada pelo
ativo,
consubstanciado
nos
bens
e
direitos,
bem
como
pelo
passivo,
consubstanciado nas obrigações e dívidas. De acordo com a referida teoria, o
patrimônio é uma emanação da personalidade no plano econômico e se conserva
durante toda a vida da pessoa, ainda que os bens sejam substituídos, aumentados
ou diminuídos 1 . “El sujeto no puede liberarse de su patrimônio; puede enajenar
partes y hasta todos los elementos que lo integran en un momento dado, pero lo que
el adquirente recibe no es el patrimonio del enajenante sino la suma de los derechos
que le correspondían en el momento de efectuarse la transferência” 2 .
A teoria moderna – também chamada realista ou da afetação – nega
a unidade e a indivisibilidade do patrimônio e justifica a coesão dos elementos
integrantes de uma universalidade de direitos pela sua destinação comum. De
acordo com essa teoria, patrimônio é o conjunto de bens coesos pela afetação a um
fim econômico determinado. Mediante tal definição, admite-se a existência de um
patrimônio geral, em que os elementos se unem pela relação subjetiva com a
pessoa, e de patrimônios especiais, em que a unidade resulta objetivamente do fim
1
C. Aubry e C. Rau. Cours de droit civil français. 6eme ed. Paris: Éditions Techniques S.A., 1935.
Tome Neuf, p. 253.
2
Andreas Von Tuhr. Derecho civil. Teoria general del derecho civil aleman. Buenos Aires: Editorial
Depalma, 1946. Volumen I1, p. 394.
1
ao qual foi destacado. 3 “El patrimonio especial puede pertencer a una persona,
aparte su otro patrimonio general, como sucede com los bienes reservados que la
mujer casada tiene junto a la dote aportada al matrimonio, o com los bienes
aportados a una empresa comercial con independencia del patrimonio personal del
que los aporta, y puede pertenecer a una pluralidad de titulares, por lo general em el
concepto de una unión de coproprietarios en ‘mano común’, como sucede con el
patrimonio de una sociedad o com los bienes comunes de la sociedad conyugal” 4 .
Para Caio Mário da Silva Pereira, o patrimônio, abrangendo o
conjunto das relações jurídicas, é realmente uno e indivisível, “porque em qualquer
circunstância, ainda que se procure teoricamente destacar mais de um acervo ativopassivo de valores jurídicos, sempre há de exprimir a noção de patrimônio a idéia de
conjunto, de reunião, e esta, segundo a própria razão natural, é una” 5 . O doutrinador
também explica que as hipóteses que a teoria moderna pretende sejam entendidas
como de divisibilidade do patrimônio – como os casos de regime de bens da
comunhão parcial e de falência – nada mais são do que acervos de bens distintos
pela sua origem ou pela sua destinação, dentro do mesmo patrimônio, sendo este
uno e indivisível 6 .
Sílvio de Salvo Venosa corrobora tal afirmação e sustenta que o
patrimônio “perdura unido à pessoa durante toda a sua existência e é uno, ou seja,
3
Orlando Gomes. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1996, p. 178.
4
Paulo Oertmann. Introducción al derecho civil. Buenos Aires: Editorial Labor, sem indicação de data,
p. 151.
5
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de direito civil – Introdução ao direito civil. Teoria geral de
direito civil. 20ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. Volume I, p. 394-395.
6
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Teoria geral, cit., p. 394-395.
2
há um único patrimônio para cada pessoa” 7 .
Para Silvio Rodrigues, mediante referência a Sylvio M. Marcondes
Machado, “o patrimônio é formado pelo conjunto de relações ativas e passivas, e
esse vínculo entre os direitos e as obrigações do titular, constituído por força de lei,
infunde ao patrimônio o caráter de universalidade de direito” 8 .
A noção de patrimônio tem relevância, considerado o princípio
segundo o qual o patrimônio do devedor responde pelas suas obrigações, nas quais
se incluem as decorrentes do contrato de compra e venda de bem móvel, título a
partir do qual se estudará a transmissão da propriedade mobiliária.
1.2 – Propriedade
A propriedade tem sido objeto de estudo das mais diversas áreas do
conhecimento humano ao longo dos tempos e não admite um conceito inflexível e
estanque. Afirma Caio Mário da Silva Pereira: “Muito erra o profissional que põe os
olhos no direito positivo e supõe que os lineamentos legais do instituto constituem a
cristalização dos princípios em termos permanentes, ou que o estágio atual da
propriedade é a derradeira, definitiva fase de seu desenvolvimento. Ao revés, evolve
sempre, modifica-se ao sabor das injunções econômicas, políticas, sociais e
religiosas.” 9
Embora não exista consenso a respeito das formas originárias da
7
Sílvio de Salvo Venosa. Direitos reais. 4ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. Volume 5, p. 184.
8
Silvio Rodrigues. Direito civil: parte geral. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996. Volume 1, p. 111.
9
Caio Mário da Silva. Direitos reais. 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. Volume IV, p. 81.
3
propriedade 10 , admite-se que é do direito romano a origem da propriedade individual
como a conhecemos na atualidade 11 .
1.2.1 – Propriedade no direito romano
Há discussão quanto à existência de uma propriedade coletiva da
gens sobre um determinado território nas origens de Roma 12 .
Mas se admite que tenha existido a propriedade privada do
paterfamilias, a qual, com a morte deste, era transmitida aos seus herdeiros, bem
como a propriedade coletiva das terras conquistadas, as quais eram distribuídas
pelo Estado aos particulares ou passavam à propriedade do paterfamilias mediante
a posse continuada durante dois anos 13 .
São referidas quatro espécies de propriedade: propriedade quiritária,
propriedade pretoriana ou bonitária, propriedade provincial e propriedade peregrina.
A propriedade quiritária 14 (ius quiritium) era exclusiva dos cidadãos
10
Vandick L. da Nóbrega discorre a respeito das duas correntes a respeito da origem da propriedade:
“Fustel de Coulanges admitia a propriedade individual desde os tempos primitivos, havendo mantido
célebre polêmica com Paul Viollet, que defendia a tese da apropriação coletiva do solo” (Compêndio
de direito romano. 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1971. Volume II, p. 58).
11
Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de direito civil: direito das coisas. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Livraria Freitas Bastos, 1962. Volume VI, p. 233; Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro:
direito das coisas. 20ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. 4º volume, p. 109; Caio Mário da Silva
Pereira. Direitos reais, cit., p. 82.
12
Sílvio A. B. Meira afirma que a existência dessa espécie de propriedade não pôde ser demonstrada
e que não houve sinais de loteamentos periódicos ou de partilha entre as famílias que compunham a
gens (Instituições de direito romano. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1968, p. 216).
13
Ebert Chamoun. Instituições de direito romano. Rio de Janeiro: Edição Revista Forense, 1951, p.
220; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 216.
14
De acordo com Sílvio A. B. Meira, o antigo direito romano somente admitia essa espécie de
propriedade – dominium ex jure Quiritium –, que era protegida por uma ação civil in rem, a
reivindicatio. Também conforme o doutrinador, primitivamente a propriedade quiritária era apenas o
ager romanus, e foi estendida às terras do Tibur e à costa do Latium pela Lei das XII Tábuas, e
posteriormente estendida a toda à Itália por uma série de outras leis (Instituições, cit., p. 215 e 217).
4
romanos 15 e a única reconhecida pelo ius civile. Aplicava-se apenas às coisas
romanas e somente podia ser transmitida por uma das modalidades admitidas pelos
romanos 16 .
A propriedade pretoriana ou bonitária teve como origem a permissão
do pretor para que alguém que não tivesse direito reconhecido à propriedade
quiritária conservasse uma determinada coisa no seu patrimônio. Tratando-se de res
mancipi, a propriedade quiritária somente se transferia pela mancipatio ou pela in
iure cessio. Se nenhuma dessas modalidades fosse obedecida na alienação da res
mancipi, a propriedade quiritária não era transferida, ou seja, o adquirente não se
tornava proprietário ex iure Quiritium, embora houvesse pago o preço. Nesse caso, o
pretor reconhecia a validade da alienação feita em desacordo com as formalidades e
o adquirente se tornava proprietário pretoriano 17 .
Com o tempo, surgiram outras hipóteses de aquisição da
propriedade pretoriana ou bonitária 18 .
Por meio da posse prolongada e da utilização do instituto da
usucapião, a propriedade pretoriana podia se tornar quiritária, razão pela qual – a
15
Vandick L. da Nóbrega afirma que a propriedade quiritária era excepcionalmente permitida a um
peregrino, desde que por um tratado lhe fosse permitido possuir bens romanos (Compêndio, cit.,
p. 64).
16
Tratando-se de res mancipi, a propriedade quiritária deveria ser transmitida por um dos processos
solenes de aquisição, que eram a mancipatio ou a in iure cessio. Tratando-se de res nec manicipi, a
simples traditio ensejava a propriedade quiritária. Conferir o item 3.1.
17
Ebert Chamoun leciona que a propriedade pretoriana nasceu da iniciativa do pretor com a
finalidade de corrigir a rigidez do ius civile (Instituições, cit., p. 221).
18
A aquisição em bloco do patrimônio do falido; a aquisição da herança por determinação do pretor e
não em decorrência da aplicação do ius civile; a aquisição da posse do prédio que ameaçava ruína,
garantida pelo pretor ao vizinho ameaçado no caso de o proprietário não prestar a caução exigida; a
aquisição do escravo que cometia um crime e cujo senhor se recusava a pagar a multa
correspondente (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 222; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p.
65-66; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 218).
5
propriedade pretoriana – era considerada uma propriedade temporária 19 .
A propriedade provincial alcançava os bens localizados em solo
itálico e nas províncias, que não eram inicialmente considerados romanos porque se
encontravam fora de seu território delimitado.
Por meio de uma lei agrária do ano de 111 os bens itálicos foram
equiparados aos romanos e considerados, a partir de então, res mancipi, passíveis
de propriedade ex iure Quiritium 20 .
Os bens provinciais pertenciam ao Estado, mas eram ocupados e
utilizados pelos particulares, que pagavam impostos ao senado nas províncias
senatoriais e ao imperador nas províncias imperiais. A propriedade provincial não
era transmitida pela mancipatio, mas exclusivamente pela traditio. 21
A propriedade peregrina era amparada pelo jus gentium e garantida
àqueles que não eram cidadãos romanos 22 .
Durante a época justinianéia, a propriedade foi unificada para todos
os bens e para todos os cidadãos, em todo o Império Romano 23 .
19
Enquanto não decorrido o prazo para a usucapião, o bem tinha dois proprietários: o alienante
continuava proprietário – quiritário – perante o ius civile, mas conservava apenas o nudum ius
Quiritium, que constituía um título desprovido de qualquer utilidade (Vandick L. da Nóbrega.
Compêndio, cit., p. 65); o adquirente – proprietário pretoriano ou bonitário – exercia todos os direitos
sobre a coisa, inclusive o de percepção dos frutos, mas não podia aliená-la (Sílvio A. B. Meira.
Instituições, cit., p. 218).
20
Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 222.
21
Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 219.
22
O jus civile reconhecia apenas a propriedade quiritária e exclusivamente aos cidadãos romanos.
23
Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 220.
6
1.2.2 – Propriedade no direito brasileiro
1.2.2.1 – Definição e caracteres
Clovis Bevilaqua define propriedade como o poder assegurado pelo
grupo social à utilização dos bens da vida psíquica e moral 24 .
Tito Fulgêncio afirma que propriedade é “o direito que tem uma
pessoa de tirar diretamente de uma coisa toda a sua utilidade jurídica” 25 .
Orlando Gomes, citando Windscheid, leciona que a propriedade
pode ser conceituada à luz dos critérios sintético, analítico e descritivo. Pelo critério
sintético, propriedade é a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a
uma pessoa. Pelo critério analítico, propriedade é o direito de usar, fruir e dispor de
um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. E pelo critério descritivo,
propriedade é o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma
coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei 26 .
Diversas e não consensuais as definições, é consenso que a
propriedade é o direito real por excelência. Daí por que Caio Mário da Silva Pereira
afirma que “a propriedade é o direito subjetivo padrão, dado que confere ao sujeito
toda uma gama de poderes, e encontra na ordem jurídica toda sorte de proteções: a
Constituição Federal o assegura, o Direito Civil o desenvolve, o Direito Processual
oferece as ações defensivas, o Direito Penal pune os atentados contra a
24
Clovis Bevilaqua. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1951. 1º volume,
p. 116.
25
Tito Fulgêncio. Direitos de vizinhança. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1959, p. 7.
26
Orlando Gomes. Direitos reais. 19ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 109.
7
propriedade, o Direito Administrativo disciplina vários dos seus aspectos” 27 .
O legislador brasileiro fez a opção de, em vez de conceituar a
propriedade, descrever de forma analítica os seus elementos constitutivos, ou os
poderes do proprietário (ius utendi, fruendi, abutendi e vindicatio) 28 .
O direito de uso do bem objeto da propriedade consiste na
possibilidade de o bem ser colocado à disposição do seu titular, que lhe pode retirar
todos os serviços, sem alterar-lhe a substância. Ao titular são facultadas as
possibilidades de utilizar o bem em seu próprio proveito ou em proveito de terceiro,
bem como a possibilidade de não usá-lo, mantendo-o inerte 29 .
O direito de fruição “consiste em fazer frutificar a coisa e auferir-lhe
os produtos” 30 , sejam estes os que advêm naturalmente da coisa, como a safra de
laranjas ou a colheita de flores, ou os frutos civis, como o valor dos aluguéis de um
veículo.
O direito de disposição do bem abrange a possibilidade de consumilo, alterá-lo ou transformá-lo em outro bem, assim como abrange a possibilidade de
aliená-lo a qualquer título – como, por exemplo, a partir do título consistente em um
contrato de compra e venda, de permuta ou de doação – e, por fim, até mesmo de
destruí-lo, desde que a destruição não possa ser caracterizada como procedimento
27
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições: direitos reais, cit., p. 115.
28
Código Civil, Art. 1228. “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito
de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”
29
Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 118.
30
Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil: direito das coisas. 37ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. Volume 3, p. 87.
8
anti-social 31 .
O direito de reivindicação consiste na possibilidade de o proprietário
retomar o bem daquele que injustamente a possua ou detenha. Assim, por exemplo,
pode o proprietário locador pleitear a restituição do veículo ao final do contrato de
locação, bem como pode o proprietário do animal, ao final do contrato de prestação
de serviços e mediante o comprovado pagamento, pleitear a restituição do referido
animal contra o profissional que o detém após o encerramento dos trabalhos de
domesticação.
Adotamos a definição analítica do Código Civil, sob o fundamento de
que as demais definições enfatizam uma ou algumas características do direito de
propriedade, mas não permitem a sua consideração integral. Considera-se que a
multiplicidade e a complexidade dos elementos constitutivos da propriedade
impedem o seu delineamento senão pela sua própria análise, a identificar e definir
cada uma das facetas do direito em questão.
Definido o termo propriedade, consideram-se os seus caracteres de
absoluto, exclusivo e perpétuo.
Por absoluto deve-se entender que o direito de propriedade permite
ao seu titular usar o bem e de dispor dele como o quiser, assim como lhe permite a
sua oposição erga omnes. Deve-se ter em conta que o caráter absoluto há de ser
considerado mediante a utilização do bem de acordo com a sua própria utilidade e
com as limitações que impedem, quanto a todos os institutos, o abuso do direito 32 .
31
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições: direitos reais, cit., p. 95. Sílvio da Salvo Venosa afirma
que o termo abutendi, do direito romano, dá a falsa idéia de abuso, de poder ilimitado, razão pela qual
o verbo utilizado pelo Código Civil brasileiro – dispor – é mais adequado (Direitos reais, cit., p. 179180).
32
Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 253.
9
A exclusividade da propriedade decorre do princípio de que um bem
não pode pertencer exclusiva e simultaneamente a mais de uma pessoa 33 . Nesse
sentido, a oponibilidade erga omnes é caracterizada como um atributo do caráter da
exclusividade 34 .
O condomínio não enseja a desconsideração da característica da
exclusividade, considerando-se que cada condômino ou
co-proprietário é,
conjuntamente com os demais, titular do direito de propriedade. O condomínio
implica uma divisão abstrata da propriedade 35 .
Mas a exclusividade comporta modificações, pois é possível o
desmembramento de parcelas da propriedade e a concessão dessas parcelas a
terceiros. É o que se dá no caso do usufruto, em que o nu proprietário mantém o
domínio e a posse indireta do bem, enquanto o usufrutuário mantém a sua posse
direta 36 .
Quanto ao caráter de perpetuidade da propriedade, considera-se
que não há prazo para ser exercida 37 . Ou seja, adquirida a propriedade, esta
subsiste independentemente do seu exercício e, como regra, não pode ser perdida
senão pela vontade do proprietário ou mediante causa extintiva legal 38 .
33
O condomínio ou a co-propriedade não enseja a desconsideração da característica da
exclusividade, considerando-se que cada condômino ou co-proprietário é, conjuntamente com os
demais, titular do direito de propriedade.
34
Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 254.
35
Almachio Diniz. Direito das cousas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1923, p. 94.
36
Art. 1394 do Código Civil. “O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos
frutos”.
37
Almachio Diniz. Direito das cousas, cit., p. 93.
38
Como se dá nos casos de usucapião e de desapropriação.
10
1.2.2.2 – Espécies de propriedade
Reunidos todos os poderes de proprietário em uma única pessoa, a
propriedade é denominada plena. Para que se a reconheça, é preciso que o
proprietário tenha a possibilidade de usar, gozar e dispor da coisa de maneira
absoluta, exclusiva e perpétua, bem como de reivindicá-la de quem quer que
injustamente a detenha.
Mas a propriedade pode ser desmembrada, de forma que alguns
dos poderes que lhe são em princípio inerentes sejam reconhecidos em mãos de
outrem.
Quanto à extensão, a propriedade será limitada nos casos de
constituição de direito real sobre coisa alheia. Instituídos o usufruto, a servidão e a
hipoteca, por exemplo, o nu proprietário, o proprietário do prédio serviente e o
proprietário do imóvel hipotecado têm seus direitos de propriedade restringidos pelos
poderes conferidos aos terceiros mediante a constituição dos ônus referidos.
Além dos casos de direitos reais sobre coisas alheias, também
haverá propriedade limitada no caso de propriedade gravada com cláusula de
inalienabilidade, caso em que o titular da propriedade não poderá dispor livremente
do bem 39 .
Quanto à duração, o caráter de perpetuidade será afastado nos
casos de propriedade resolúvel, que pode ser definida como a que encontra no seu
próprio título constitutivo a razão de sua extinção 40 .
39
Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 125; Silvio Rodrigues. Direito civil: direito das
coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 5, p. 83.
40
Silvio Rodrigues. Direito civil: direito das coisas, cit., p. 83.
11
Trata-se de propriedade sujeita a condição resolutiva ou termo final,
já previstos no título que a constituíra e, portanto, passíveis de conhecimento por
terceiros. 41 Implementada a condição ou advindo o termo, extingue-se, com efeitos
ex tunc, a propriedade constituída sob tais circunstâncias, bem como, em
conseqüência, todos os direitos reais eventuais constituídos na sua vigência. Ou
seja, extinta a propriedade resolúvel, reconhece-se ao proprietário o direito de
reivindicar o bem de quem quer o detenha 42 . São hipóteses de propriedade resolúvel
a propriedade do fiduciário, no fideicomisso 43 , e do comprador, no caso de inclusão
de cláusula especial de retrovenda no contrato de compra e venda de bem imóvel 44 .
A extinção da propriedade também pode se dar por causa
superveniente à sua aquisição e, portanto, alheia ao título 45 , com conseqüências
distintas. Porque se presume que terceiros não tenham conhecimento da
possibilidade, a resolução da propriedade se opera a partir do ato que a determinou,
com efeitos ex nunc. Nesse caso, os direitos constituídos anteriormente à resolução
41
Em se tratando de propriedade mobiliária, o título em que consta a cláusula respectiva deverá ser
registrado junto ao Ofício de Registro de Títulos e Documentos.
42
Código Civil, Art. 1359. “Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do
termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o
proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua
ou detenha.”
43
Código Civil, Art. 1951. “Pode o testador instituir herdeiros ou legatários, estabelecendo que, por
ocasião de sua morte, a herança ou o legado se transmita ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste,
por sua morte, a certo tempo ou sob certa condição, em favor de outrem, que se qualifica de
fideicomissário.”; Art. 1953 do Código Civil. “O fiduciário tem a propriedade da herança ou legado,
mas restrita e resolúvel. Parágrafo único. O fiduciário é obrigado a proceder ao inventário dos bens
gravados, e a prestar caução de restituí-los se o exigir o fideicomissário.”
44
Código Civil, Art. 505. “O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no
prazo máximo de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas
do comprador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização
escrita, ou para a realização de benfeitorias necessárias.”
45
Edson Fachin, atualizador de Orlando Gomes, afirma que a hipótese de extinção da propriedade
fundada em causa superveniente à aquisição não constitui caso de propriedade resolúvel (Orlando
Gomes. Contratos. 21ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 114).
12
da propriedade são válidos e eficazes, o que gera a conclusão de que a transmissão
da propriedade a terceiro de boa-fé é reputada perfeita. É o que se dá na hipótese
de revogação da doação por ingratidão do donatário. Ao doador somente se
reconhece o direito ao próprio objeto da doação se esse bem ainda permanecer na
titularidade do donatário; caso contrário, a revogação ensejará exclusivamente o
direito à indenização pelo valor do bem doado e alienado pelo donatário a terceiro
de boa-fé 46 .
1.3 – Propriedade e domínio
Maria Helena Diniz leciona sobre o sentido etimológico do termo
propriedade e sobre a utilização dos termos propriedade e domínio no sistema de
direito brasileiro: “Para uns o vocábulo vem do latim proprietas, derivado de proprius,
designando o que pertence a uma pessoa. Assim, a propriedade indicaria, numa
acepção ampla, toda relação jurídica de apropriação de um certo bem corpóreo ou
incorpóreo. Outros entendem que o termo propriedade é oriundo de domare,
significando sujeitar ou dominar, correspondendo à idéia de domus, casa, em que o
senhor da casa se denomina dominus. Logo, domínio seria o poder que se exerce
sobre as coisas que lhe estiverem sujeitas. Percebe-se que, no direito romano, a
palavra dominium tinha um sentido mais restrito do que a propriedade, indicando a
primeira tudo que pertencia ao chefe da casa, mesmo que se tratasse de um
46
Código Civil, Art. 557. “Podem ser revogadas por ingratidão as doações: I - se o donatário atentou
contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; II - se cometeu contra ele
ofensa física; III - se o injuriou gravemente ou o caluniou; IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao
doador os alimentos de que este necessitava”; Art. 563. “A revogação por ingratidão não prejudica os
direitos adquiridos por terceiros, nem obriga o donatário a restituir os frutos percebidos antes da
citação válida; mas sujeita-o a pagar os posteriores, e, quando não possa restituir em espécie as
coisas doadas, a indenizá-la pelo meio termo do seu valor.”
13
usufruto, e tendo a segunda uma acepção mais ampla, abrangendo coisas
corpóreas ou incorpóreas. Apesar da distinção que há entre esses dois termos,
emprega-se, comumente, tanto o vocábulo propriedade como domínio para designar
a mesma coisa, uma vez que entre eles não há diferença de conteúdo” 47 .
De Plácido e Silva define propriedade e domínio respectivamente
como gênero e espécie: “Propriedade é o gênero – que compreende o domínio
como espécie –, abrangendo toda sorte de dominialidades, de dominação ou de
senhoria individual sobre coisas corpóreas ou incorpóreas. É o conjunto de direitos
reais e pessoais. Domínio, no entanto, compreende somente os direitos reais, ou
seja, o direito de propriedade encarado somente em relação às coisas materiais ou
corpóreas.” 48
Também ressaltando as concepções de gênero e espécie,
Washington de Barros Monteiro destaca duas acepções do direito de propriedade:
“Num sentido amplo, este recai tanto sobre coisas corpóreas como incorpóreas.
Quando recai exclusivamente sobe coisas corpóreas tem a denominação peculiar de
domínio. A noção de propriedade mostra-se, destarte, mais ampla e mais
compreensiva do que a de domínio. Aquela representa o gênero de que este vem
ser a espécie.” 49
Para Lafayette Rodrigues Pereira, o direito de propriedade, em
sentido genérico, abrange todos os direitos que podem ser reduzidos a valor
pecuniário, e que em sentido estrito tem por objeto direto ou imediato as coisas
corpóreas. Afirma que na última acepção se o reconhece como domínio, definido
47
Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 116.
48
De Plácido e Silva. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1984. Volume I, p. 123.
49
Washington de Barros Monteiro. Curso: direito das coisas, cit., p. 83.
14
este como “o direito real que vincula e legalmente submete ao poder absoluto de
nossa vontade a coisa corpórea, na substância, acidente e acessórios” 50 .
João Franzen de Lima afirma que, embora propriedade e domínio
possam exprimir a mesma idéia, não se pode afirmar tenham o mesmo significado.
“(Q)uando se fala em domínio está-se referindo, de modo geral, aos direitos reais, e
quando se fala em propriedade, refere-se ao conjunto de todos os direitos que a
pessoa exerce sobre as coisas corpóreas e ainda sobre as incorpóreas” 51 .
Considerado o consenso dos doutrinadores quanto à afirmação de
que o termo propriedade se refere tanto a bens corpóreos quanto a bens
incorpóreos, enquanto o termo domínio se refere apenas a bens corpóreos, e tendo
em conta o objetivo do presente trabalho, de estudo da transmissão da propriedade
de bens móveis corpóreos, os termos propriedade e domínio são utilizados como
sinônimos.
1.4 – Coisa e bem
A definição de coisa e de bem enseja ampla discussão entre os
doutrinadores brasileiros, não se podendo afirmar a existência de um consenso a
respeito da definição e da classificação dos termos considerados entre si.
Clóvis Bevilaqua afirma a distinção dos termos, mediante a definição
de bens como “valores materiais ou imateriais que servem de objeto a uma relação
jurídica”. E “(a) palavra coisa, ainda que, sob certas relações, corresponda, na
50
Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1956,
p. 78.
51
João Franzen de Lima. Curso de direito civil brasileiro: contratos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 1961. Volume II. Tomo 2º, p. 88.
15
técnica jurídica, ao termo bem, todavia dele se distingue. Há bens jurídicos, que não
são coisas: a liberdade, a honra, a vida, por exemplo” 52 .
Afirma Sílvio Rodrigues que coisa é o gênero do qual bem é espécie,
sendo que a diferença específica está na circunstância de o bem incluir na sua
compreensão a idéia de utilidade e raridade, ou seja, a idéia de possuir valor
econômico, o que não acontece com a coisa, que pode ser conceituada como tudo o
que existe objetivamente 53 .
Renan Lotufo afirma, diversamente, que “(b)em é gênero do qual
coisa é espécie”, sendo que “as coisas são materiais, têm concretude, enquanto ao
bem é reservada uma idéia mais ampla de objeto da relação jurídica, para designar
também o imaterial, o abstrato” 54 . E adverte que o termo “(b)ens muitas vezes é
utilizado como sinônimo de coisas, mas a palavra bens tem sentido mais amplo, pois
refere-se tanto a coisas como a direitos, e pode chegar a ter o sentido de
patrimônio” 55 .
Caio Mário da Silva Pereira distingue os termos coisas e bens
considerando a materialidade das coisas: “As coisas são materiais ou concretas,
enquanto que se reserva para designar os imateriais ou abstratos o nome bens, em
sentido estrito. Uma casa, um animal de tração são coisas porque concretizados
cada um em uma unidade material e objetiva, distinta de qualquer outra. Um direito
de crédito, uma faculdade, embora defensável ou protegível pelos remédios jurídicos
52
Clovis Bevilaqua. Teoria geral do direito civil. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo,
1955, p. 152.
53
Silvio Rodrigues. Direito civil: parte geral, cit., p. 110.
54
Renan Lotufo. Código Civil comentado: parte geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. Volume 1, p.
197 e 200.
55
Renan Lotufo. Código Civil: parte geral, cit., p. 200.
16
postos à disposição do sujeito em caso de lesão, diz-se com maior precisão, ser um
bem. Sob o aspecto de sua materialidade é que se faz a distinção entre a coisa e o
bem.” 56
Washington
de
Barros
Monteiro
cita
Scuto
para
referir
a
equivocidade dos dois conceitos: “O conceito de coisas corresponde ao de bens,
mas nem sempre há perfeita sincronização entre as duas expressões. Às vezes,
coisas são o gênero e bens, a espécie; outras, estes são o gênero e aquelas, a
espécie; outras, finalmente, são os dois termos usados como sinônimos, havendo
então entre eles coincidência de significação.” 57
Ainda de acordo com Washington de Barros Monteiro, a palavra
coisa pode ser entendida, no sentido vulgar ou genérico, como tudo o que existe fora
ou além do homem e, no sentido jurídico, como tudo quanto seja suscetível de
posse exclusiva pelo homem e economicamente apreciável 58 .
Para os fins do presente trabalho, os termos bens e coisas são
utilizados como sinônimos.
1.5 – Bens imóveis e bens móveis
A classificação dos bens em imóveis e móveis não é consenso entre
os estudiosos do direito romano.
O estudo dos bens no direito romano deve ter como ponto de partida
56
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Teoria geral, cit., p. 401-402.
57
Carmelo Scuto. Instituzioni di diritto privato: Parte generale, volume 1, p. 291 APUD Washington de
Barros Monteiro. Curso: parte geral, cit., p. 168.
58
Washington de Barros Monteiro. Curso: parte geral, cit., p. 169.
17
a distinção entre res mancipi e res nec manicipi. Pode-se dizer que res mancipi são
as coisas do mancipium, enquanto res nec mancipi são as coisas que não são do
mancipium 59 .
O critério para a classificação não levava em conta a circunstância
de a coisa ser imóvel ou móvel, mas sim a sua utilidade 60 . Consideravam-se res
mancipi os bens que eram indispensáveis à manutenção da família e tinham valor
para a organização agrícola da Roma antiga, como os imóveis itálicos, as servidões
de passagem e de aqueduto, os animais de tiro e de carga e os instrumentos de
cultivo
e
transporte.
Todos
os
demais
bens
eram
res
nec
mancipi,
independentemente de serem móveis ou móveis, como o dinheiro, o gado pequeno
e os imóveis provinciais 61 .
As res mancipi obedeciam a uma disciplina própria, especialmente
para fins de alienação, que se dava somente mediante a mancipatio, diversamente
das res nec mancipi, cuja alienação se dava pela traditio, modo mais simples e
rápido (conferir 2.1).
A evolução de Roma, com as conquistas de novos territórios,
ensejou o desenvolvimento da economia individual e capitalista 62 , que passou a
atribuir maior valor aos bens imóveis, que geravam maior garantia de estabilidade.
No lugar da distinção entre res mancipi e res nec manicipi 63 , desenvolveu-se a
divisão entre bens imóveis e móveis, classificados como imóveis os terrenos e os
59
Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 25.
60
Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 142.
61
Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 204; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 141-142. O segundo
doutrinador inclui entre as res mancipi os escravos.
62
Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 205.
63
A distinção foi abolida completamente por Justiniano.
18
edifícios e como móveis todos os demais bens 64 .
Conforme Roberto de Ruggiero, embora a classificação dos bens em
imóveis e móveis tenha sido delineada em Roma nos períodos pós-clássico e
justiniano, o seu valor decisivo somente foi reconhecido por influência do direito
medieval e especialmente do direito feudal, em razão da atribuição de importância
absolutamente preponderante à propriedade fundiária, como elemento essencial da
riqueza e modo de conquista de poderes senhoriais, o que ensejou à propriedade
mobiliária uma posição secundária, justificada pelas condições econômicas da
sociedade da época em que, ainda não desenvolvidas as indústrias e sendo limitada
a produção de metais preciosos, as grandes riquezas não podiam, como regra, ser
constituídas por valores mobiliários 65 .
San Tiago Dantas fundamenta a razão pela qual a propriedade
imobiliária teve e continua a ter tratamento diferenciado nos diversos sistemas de
direito: “Não é porque as coisas móveis sejam menos preciosas que as imóveis, pois
considerado o seu valor pecuniário, móveis há de mais alto preço que os mais
valiosos imóveis. Porém, o direito atende, nesse caso, à estabilidade da fortuna
imobiliária. É que os bens imóveis não desaparecem, constituem um fundo estável
do patrimônio, são mais fáceis de fiscalizar e tutelar. Não se poderia, por exemplo,
pensar, com êxito, num registro para propriedade móvel e, quando, por exemplo,
estamos tratando de bens de órgãos, de bens de pessoas que não podem defender
por si próprias o seu patrimônio, o natural é que pensemos em lhes imobilizar a
fortuna, para pô-la ao abrigo das dilapidações. De sorte que o regime da
64
De acordo com Ebert Chamoun, foi criada uma categoria própria para os escravos e os animais,
classificados como res se moventes (Instituições, cit., p. 205).
65
Roberto de Ruggiero. Instituições de direito civil. Campinas: Bookseller, 2005. Volume II, p. 426.
19
propriedade imobiliária não pode deixar de ser cercado de tutela especial, de
recursos defensivos que dão a estes bens uma situação à parte no quadro das
coisas” 66 .
Os bens imóveis podem ser classificados em quatro categorias: os
imóveis por natureza, os imóveis por acessão física, industrial ou artificial, os imóveis
por acessão intelectual e os imóveis por determinação legal.
Primordialmente, apenas o solo poderia ser classificado como bem
imóvel por natureza, já que a sua conversão em móvel somente seria possível
mediante a modificação de sua substância. Mas o legislador ampliou o conceito e
incluiu os acessórios e as adjacências naturais, as árvores, os frutos pendentes, o
espaço aéreo e o subsolo 67 .
As árvores e tudo o mais que adere ao terreno somente
permanecem imóveis porque normalmente se lhe ligam, e é exatamente essa
normalidade que se considera para fins da classificação estendida da forma como é
reconhecida 68 .
Quanto ao subsolo, embora seja classificado como bem imóvel
passível de propriedade privada, recebe tratamento especial e a sua exploração
depende de autorização da União, já que as riquezas minerais nele encontradas são
66
San Tiago Dantas. Programa de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001. Volume
I, p. 187. José Cretella Júnior afirma que a classificação romana dos bens em res mancipi e res nec
mancipi tinha critério econômico, bem como que no direito brasileiro antigo também se fazia uma
distinção fundada no mesmo critério econômico, mas entre os bens imóveis, mais valiosos, e os bem
móveis, menos valiosos (Curso de direito romano. 24ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p.
110).
67
Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 21ª ed. São Paulo:
Editora Saraiva, 2004. 1º volume, p. 300.
68
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria Geral, cit., p. 416.
20
de propriedade desta 69 .
Os imóveis por acessão física compreendem tudo o quanto se
incorpora permanentemente ao solo, de modo que não se possa retirar sem
destruição, modificação, fratura ou dano. A acessão pode se dar independentemente
do consentimento ou intervenção de pessoas, como ocorre nos casos do artigo
1.248, incisos I a IV, do Código Civil
70
, ou mediante a intervenção humana, no caso
do inciso V do mesmo dispositivo legal 71 . Não são incluídas nessa classe de bens as
construções ligeiras, estas consideradas aquelas que se destinam a posterior
remoção ou retirada, como as barracas de feira, os pavilhões de circos e os parques
de diversões, que são presos ao chão por estacas, mas que para a própria
continuidade de sua utilização normal devem ser retirados e conduzidos para outro
local 72 .
Os imóveis por acessão intelectual são os bens móveis mantidos
pelo proprietário, de forma duradoura e intencional, na exploração industrial, no
aformoseamento ou na comodidade do imóvel. Diversamente do que se dá na
69
Constituição Federal, “Artigo 20: São bens da União: (...) IX - os recursos minerais, inclusive os do
subsolo. Artigo 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de
energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou
aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da
lavra. § 1º. A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se
refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da
União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que
tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas
quando essas atividades se desenvolverem em faixa da fronteira ou terras indígenas. § 2º. É
assegurada participação ao proprietário do solo nos resultados da lavra, na forma e no valor que
dispuser a lei. § 3º. A autorização de pesquisa será sempre por prazo determinado, e as autorizações
e concessões previstas neste artigo não poderão ser cedidas ou transferidas, total ou parcialmente,
sem prévia anuência do poder concedente. § 4º. Não dependerá de autorização ou concessão o
aproveitamento do potencial de energia renovável de capacidade reduzida”.
70
Código Civil, Artigo 1.248. “A acessão pode dar-se: I - por formação de ilhas; II - por aluvião; III por avulsão; IV - por abandono de álveo; (...)”.
71
Código Civil, Artigo 1.248 “A acessão pode dar-se: “V - por plantações ou construções”.
72
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria geral, cit., p. 416-7.
21
acessão física, no caso da acessão intelectual não se dá uma adesão material do
bem móvel ao imóvel, mas sim o estabelecimento de um vínculo meramente
subjetivo. Ainda, porque a consideração de um bem móvel como bem imóvel ocorre
como um artifício da mente humana, o caráter imóvel não é definitivo, ou seja, a
mesma vontade humana que considerou o bem móvel como imóvel pode retorná-lo
a todo tempo à sua mobilidade natural.
Enquanto Serpa Lopes afirma que, para que se dê a acessão
intelectual, é preciso que se trate de coisa móvel de propriedade do proprietário do
imóvel 73 , Caio Mário da Silva Pereira afirma que tal premissa não se aplica ao direito
brasileiro, verificando-se a acessão mesmo quando os proprietários são diferentes,
hipótese em que se opera a perda da propriedade móvel em favor do proprietário do
imóvel, com direito a indenização pelo valor da coisa móvel imobilizada sempre que
o responsável pela imobilização estiver de boa-fé e sem nenhum direito em caso
contrário 74 .
Por fim, são imóveis por determinação legal os direitos reais sobre
imóveis (usufruto, uso, habitação, enfiteuse, anticrese e servidão predial) e as ações
que os asseguram, bem como o direito à sucessão aberta, ainda que a herança seja
formada exclusivamente por bens móveis.
Quanto aos bens móveis, são classificados em três categorias: os
móveis por natureza, os móveis para os efeitos legais – ou por determinação legal –
e os móveis por antecipação.
Os bens móveis por natureza são definidos pelo artigo 82 do Código
73
Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de direito civil: parte geral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria
Freitas Bastos, 1962. Volume I, p. 361-2.
74
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria geral, cit., p. 418.
22
Civil: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por
força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”.
Entre os bens móveis por natureza, os bens móveis propriamente
ditos são as coisas inanimadas que podem ser removidas por força alheia sem a
alteração de sua substância e de sua destinação econômico-social 75 .
A possibilidade de remoção por força alheia sem alteração da
destinação econômico-social do bem móvel enseja a classificação, como móvel,
de uma casa pré-fabricada, enquanto à mostra para comercialização e
mesmo durante o seu transporte até o local em que será adaptada na fundação
construída pelo adquirente. Apenas após o assentamento adquirirá natureza de
imóvel, pois somente então passará a ter nova destinação econômico-social, a
habitação 76 .
Também são classificados como bens móveis por natureza os
animais, como semoventes, ou seja, bens que se movem de um local para outro por
movimentos próprios.
O artigo 83 do Código Civil trata dos bens móveis para os efeitos
legais – ou por determinação legal – ao referir “I - as energias que tenham valor
econômico; II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes;
III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações”.
Quanto
às
energias
que
tenham
valor
econômico,
a
sua
75
Os navios e aeronaves são bens móveis por natureza, mas podem ser imobilizados para fins de
hipoteca, que é direito real de garantia sobre imóveis (artigo 1473, incisos VI e VII, do Código Civil). O
parágrafo único do dispositivo legal remete a regulamentação da matéria a lei especial, que, no caso
da hipoteca de aeronaves, é o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7565/86), artigos 138 a 147.
76
Renan Lotufo. Código Civil: parte geral, cit., p. 217.
23
classificação como bem móvel constituiu inovação do Código Civil de 2002 77 ,
embora desde 1940 exista manifestação da Comissão elaboradora do Código Penal
equiparando-a a coisa móvel para os fins da previsão do artigo 155, parágrafo 3º, do
Código Penal 78 . De acordo com o texto, “(t)oda energia economicamente utilizável e
suscetível de incidir no poder de disposição material e exclusiva e um indivíduo,
pode ser incluída, mesmo do ponto de vista técnico, entre as coisas móveis, a cuja
regulamentação jurídica, portanto, deve ficar sujeita” 79 .
Os direitos reais sobre objetos móveis (inciso II) abrangem tanto os
direitos reais sobre coisa própria (como a propriedade) e alheia (como o usufruto),
como os direitos reais de garantia (como o penhor e a hipoteca), além das ações
correspondentes a tais direitos.
Entre os direitos pessoais de caráter patrimonial (inciso III) 80 , estão
as quotas de capital ou ações que o indivíduo tenha em sociedade de qualquer
natureza (simples, em nome coletivo ou por quotas de responsabilidade limitada, em
comandita, anônima ou cooperativa), os títulos patrimoniais de associações e os
títulos de crédito 81 .
São também bens móveis para os efeitos legais (ou por
77
O Código Civil de 2002 excluiu da previsão da classificação dos bens móveis por determinação
legal os direitos de autor, que foram regulamentados pela Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.
78
“Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”.
79
Francisco Campos. Exposição de motivos da Parte Especial do Código Penal, DJU de 31 de
dezembro de 1940.
80
Caio Mário da Silva Pereira sustenta que o termo direitos pessoais constitui terminologia superada
e inadequada, e que o termo correto a ser utilizado pelo Código Civil seria direitos de crédito de
caráter patrimonial (Instituições. Teoria geral, cit., p. 425).
81
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria geral, cit., p. 425.
24
determinação legal) os direitos autorais (artigo 3º da Lei n.º 9.610/98 82 ) e os direitos
decorrentes da propriedade industrial (artigo 5º da Lei n.º 9.279/96 83 ).
Para os fins do presente trabalho, são considerados exclusivamente
os bens móveis por natureza.
82
Art. 3º. “Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis”.
83
Art. 5º. “Consideram-se bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de propriedade industrial”.
25
Capítulo 2 – Modos de aquisição da propriedade mobiliária
Os modos de aquisição da propriedade mobiliária, à exceção da
tradição, não ensejam grandes controvérsias nos diversos sistemas de direito. Como
regra geral, são reconhecidos a partir do direito romano e apresentam a mesma
definição e as mesmas características fundamentais.
Para fins de apresentação 84 como segue, serão considerados
inicialmente os modos de aquisição da propriedade mobiliária reconhecidos pelo
84
A classificação considerada principal quanto aos modos de aquisição da propriedade mobiliária os
diferencia entre modos de aquisição da propriedade móvel originários e derivados. Essa distinção tem
por fundamento a existência ou inexistência de relação entre os sujeitos de direito precedente e
conseqüente (Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 161). Darcy Bessone afirma que a aquisição é
considerada originária nos casos em que o adquirente é o primeiro proprietário, ou seja, nos casos
em que o direito de propriedade nasce da primeira aquisição (Darcy Bessone. Direitos reais. 2ª ed.
São Paulo: Editora Saraiva, 1996, p. 164). Carlos Alberto da Mota Pinto define a aquisição originária
como o fato jurídico que faz surgir, na pessoa do adquirente, um direito de propriedade ex novo,
independentemente de ter existido domínio anterior sobre a coisa ou apesar de ter existido esse
domínio (Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria geral do direito civil. 3ª ed. Lisboa: Coimbra Editora,
1985, p. 360.). Miguel Maria de Serpa Lopes define a aquisição originária como aquela que surge “no
titular do domínio sem que para ela tenha concorrido qualquer outro fator de transmissão que não o
próprio fato considerado legalmente como apto a transmitir o domínio. Na aquisição originária, o
domínio nasce, por assim dizer, sem qualquer relação de paternidade, sem qualquer vínculo de
parentesco com o passado” (Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 506).
Maria Helena Diniz acrescenta que na aquisição originária não existe qualquer ato volitivo de
transmissão da propriedade (Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 304). Por sua vez,
diz-se que a aquisição é derivada nos casos em que o direito deriva de um proprietário anterior.
Considera-se a coisa em função de seu dono atual, ou seja, tem-se em conta a titularidade do
domínio em relação a outra pessoa que já era proprietária dessa mesma coisa e que transmitiu a
propriedade ao adquirente então considerado (Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos
reais, cit., p. 116). No Brasil, são considerados modos de aquisição da propriedade mobiliária
originários a usucapião, com a consignação da posição divergente de Caio Mário da Silva Pereira
(conferir nota 86), e a ocupação. E são considerados modos de aquisição da propriedade mobiliária
derivados a especificação, a confusão, a comistão e a adjunção, o casamento, a sucessão e a
tradição. Além da classificação dos modos de aquisição da propriedade mobiliária em originários e
derivados, há diversas outras classificações, como a que leva em conta a distinção dos bens,
classificados em modos de aquisição peculiares aos bens móveis, peculiares aos bens imóveis e
comuns aos bens móveis e imóveis; a que leva em conta a individualização dos bens, classificados
em modos de aquisição a título singular e a título universal; e a que leva em consideração as
circunstâncias da transmissão, classificados em modos aquisição inter vivos e causa mortis. A
respeito das diversas classificações, conferir: Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Rio de
Janeiro: Editora Borsoi, 1956, p. 25-294. Tomo XV; Orlando Gomes. Direitos Reais, cit., p. 159-162;
Maria Helena Diniz. Curso – Direito das Coisas, cit., p. 132-133; Caio Mário da Silva Pereira.
Instituições – Direitos Reais, cit., p. 115-119; Silvio Rodrigues. Direito Civil: Direito das Coisas, cit., p.
92-93.
26
sistema de direito brasileiro e pelos sistemas de direito estrangeiros 85 , com as
referências legislativas pertinentes ao sistema nacional.
A tradição será estudada à parte, por se tratar de modo de aquisição
exigido por alguns sistemas de direito e rejeitado por outros, o que a converte no
grande diferencial a ser considerado para fins de aquisição da propriedade
mobiliária.
2.1 – Modos universais de aquisição da propriedade mobiliária
2.1.1 – Usucapião
Usucapião 86 é “a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo
decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em
lei” 87 . O fundamento do instituto consiste em “emprestar juridicidade a situações de
fato que se alongaram no tempo” 88 .
São requisitos da usucapião a posse e o tempo.
85
Por sistemas de direito estrangeiros devem ser entendidos os sistemas de direito vigentes alemão,
francês e inglês, além do sistema romano.
86
A título de consignação, quanto à classificação dos modos de aquisição da propriedade mobiliária
originários e derivados, Caio Mário da Silva Pereira diverge da grande maioria dos doutrinadores
brasileiros e afirma que a usucapião constitui modo de aquisição derivada da propriedade, “porque é
modalidade aquisitiva que pressupõe a perda do domínio por outrem, em benefício do usucapiente”,
ou seja, considerada “a circunstância de ser a aquisição por usucapião relacionada com outra pessoa
que já era proprietária da mesma coisa, e que perde a titularidade da relação jurídica dominial em
proveito do adquirente, conclui-se ser ele uma forma de aquisição derivada” (Instituições – Direitos
reais, cit., p. 138). Mas o doutrinador faz a ressalva de que não há dúvida de que falta ao instituto a
circunstância da transmissão voluntária, que está presente ordinariamente nos modos de aquisição
derivada. Essa posição não encontra ressonância na parcela majoritária dos doutrinadores
brasileiros, que classifica a usucapião como modo originário de aquisição da propriedade. A respeito:
Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 506; Maria Helena Diniz. Curso: direito
das coisas, cit., p. 132); Silvio Rodrigues. Direito Civil:direito das coisas, cit., p. 93.
87
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 138.
88
Silvio Rodrigues. Direito civil: direito das coisas, cit., p. 193.
27
Quanto à posse, não se exige seja exercida durante todo o período
pela mesma pessoa, mas, para ser considerada ad usucapionem, há de ser
contínua, pacífica e incontestada durante todo o período estipulado. Ou seja, exigese que essas características sejam reconhecidas em relação a cada um dos
possuidores e a cada um dos períodos a serem considerados. Por fim, a posse há
de ser exercida com a intenção de dono.
Por sua vez, o tempo necessário para usucapir configura problema
de política legislativa, que se resolve de forma distinta nos diversos sistemas
jurídicos e pode inclusive variar com o tempo no mesmo sistema jurídico 89 .
No sistema brasileiro, quanto aos bens móveis, configura-se a
usucapião ordinária no caso de posse com animus domini, ininterrupta e sem
oposição, durante três anos, exigidos ainda, nesse caso, o justo titulo e a boa-fé 90 . E
se verifica a usucapião extraordinária no caso de posse com animus domini,
ininterrupta e sem oposição, durante cinco anos, no último caso independentemente
do justo título e da boa-fé 91 .
Por fim, é preciso que o bem a ser considerado seja suscetível de
aquisição por usucapião, o que exclui da incidência do instituto os bens que estão
fora do comércio pela sua própria natureza e os bens públicos 92 .
89
Quanto aos bens imóveis, conferir os artigos 550 e 551 do Código Civil de 1.916 e os artigos 1238
e 1242 do Código Civil de 2002.
90
Artigo 1260 do Código Civil.
91
Artigo 1261 do Código Civil.
92
Artigo 183, parágrafo 3º, da Constituição Federal.
28
2.1.2 – Ocupação
A ocupação 93 é “o ato pelo qual alguém se apodera de coisa móvel
ou semovente, sem dono, por não ter sido ainda apropriada, ou por ter sido
abandonada, não sendo essa apropriação defesa por lei” 94 . Constitui modo originário
de aquisição de bem móvel, que consiste na tomada de posse de coisa sem dono,
com a intenção de tornar-se seu proprietário. Ocupar significa assenhorear-se de
coisa sem dono, ou porque nunca foi apropriada (res nullius) ou porque foi
abandonada por seu proprietário (res derelicta) 95 .
A ocupação apresenta três formas distintas.
A primeira delas é a ocupação propriamente dita, que tem por objeto
seres vivos – por meio da caça e da pesca, disciplinadas por leis especiais, como a
Lei n.º 5.197/67 (Proteção à fauna) e o Decreto-lei n.º 221/67 (Proteção à pesca) –
e coisas inanimadas.
A ocupação pela caça 96 se efetiva pela apreensão do animal
abatido. Para que o caçador adquira a propriedade do animal, é preciso que tenha
obtido do proprietário do terreno o consentimento para caçar. Inexistente a
autorização, a propriedade do animal caçado será do proprietário do terreno e o
caçador ainda terá de indenizá-lo pelos eventuais danos causados.
93
Código Civil, Art. 1263. “Quem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a
propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei”.
94
Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 207.
95
Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 200.
96
Eduardo Espínola afirma que o direito de caçar caracteriza direito subjetivo público, sujeito a
regulamentação especial. Sob esse aspecto, o estudo do direito à caça pertence ao ramo do Direito
Administrativo (Posse, propriedade, compropriedade ou condomínio, direitos autorais. Campinas:
Bookseller, 2002, p. 186).
29
Quanto à pesca, pertence ao pescador o peixe que pescar, mas
desde que tenha a autorização do proprietário das águas em que realiza a pesca,
sob pena de perder, assim como na caça não autorizada, ao proprietário das águas
o que pescar e ainda ficar obrigado a lhe ressarcir eventuais danos.
As coisas abandonadas também são suscetíveis de apropriação,
mediante a consignação de que coisa abandonada não se confunde com coisa
perdida 97 .
O abandono, no mais das vezes, resulta das circunstâncias que o
induzem. “Não se requer, na caracterização do abandono, uma declaração expressa
do dono. Basta que o propósito se infira inequívoco do seu comportamento em
relação à coisa, como as que são deixadas em locais públicos, em terrenos baldios,
e mesmo em lugares policiados ou fechados” 98 .
Por fim, a terceira forma de ocupação é a achada, que caracteriza
espécie de ocupação incidente no tesouro 99 . Tesouro é o depósito antigo de moeda
ou coisas preciosas, enterrado ou oculto, de cujo dono não se tenha memória. O
97
A descoberta, prevista nos artigos 1.233 a 1.237 do Código Civil, é o achado de coisa que foi
perdida por seu dono. O Código Civil de 1.916 lhe atribuía a denominação invenção e seu regramento
constava de subtítulo da seção da ocupação. O Código Civil de 2002 passou a regular a descoberta
em seção própria, no capítulo da propriedade em geral. Não se trata, de fato, propriamente de modo
de aquisição da propriedade móvel, porque o descobridor, de regra, não adquire a propriedade do
bem encontrado, mas sim deve devolvê-lo a seu proprietário ou possuidor e, caso não o encontre,
deve entregá-lo à autoridade competente. Encontrado o proprietário da coisa, o descobridor tem
direito a uma recompensa, denominada achádego, acrescida dos valores gastos com a conservação
– e o transporte, se o caso – da coisa. O proprietário fica obrigado ao pagamento desses valores,
mas pode exonerar-se dessa obrigação mediante o abandono da coisa. Nesse caso, o descobridor
lhe adquire a propriedade. Não encontrado o proprietário e decorridos sessenta dias da publicação de
editais, pela autoridade competente, informando a descoberta, a coisa deverá ser vendida em hasta
pública e, deduzidas as despesas com os atos praticados e a recompensa do descobridor, o valor
restante pertencerá ao Município onde foi descoberto. Tratando-se de objeto de pequeno valor, o
Município poderá abandonar a coisa em favor de quem a achou. Essa é a segunda e última hipótese
em que o descobridor se torna proprietário da coisa descoberta, com a ressalva de que nas duas
situações houve o abandono da coisa pelo proprietário (no primeiro caso o proprietário primitivo e no
segundo caso o Município que lhe adquirira a propriedade).
98
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 160.
99
Artigos 1264 a 1266 do Código Civil.
30
tesouro achado pelo proprietário do terreno, intencional ou casualmente, pertencelhe com exclusividade. O tesouro encontrado por quem o procure mediante ordem
do proprietário do terreno também pertence com exclusividade ao próprio
proprietário do terreno. Ainda, o tesouro localizado por quem intencionalmente o
procure sem ordem do proprietário do terreno pertence também com exclusividade
ao proprietário do terreno, considerada, nesse caso, a invasão da propriedade alheia
pelo pesquisador. E o tesouro encontrado casualmente por alguém que não o
proprietário do terreno pertencerá ao proprietário e ao descobridor, dividido em
partes iguais.
2.1.3 – Especificação
Especificação 100 é “a transformação definitiva da matéria-prima em
espécie nova, mediante o trabalho ou indústria do especificador” 101 e ocorre quando
uma “coisa móvel pertencente a alguém é transformada em espécie nova pelo
trabalho de outrem” 102 . O que, na especificação, gera o direito é o trabalho criador,
que transforma a matéria informe em obras de arte, da ciência ou de utilidade para a
vida social. E essa criação se verifica, de modo claro, quando, na tela, que não é
sua, o artista pinta um belo quadro; ou do mármore alheio o escultor faz uma
estátua; ou no papel, de outrem, o escritor data a ciência ou a literatura com um
produto de valor intelectual. Para a sociedade e para a civilização, a matéria utilizada
perde todo o interesse, que se volve para a forma nova, que a inteligência fez
100
Artigos 1269 a 1271 do Código Civil.
101
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 166.
102
Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 204.
31
surgir 103 .
A espécie nova será do especificador se a matéria era sua, ainda
que só em parte, e não se puder restituí-la à forma anterior. Se a matéria não
pertencer ao especificador e não se puder restituí-la à forma anterior, a espécie nova
pertencerá ao especificador de boa-fé. E, se o especificador agiu de má-fé, a
espécie nova pertencerá ao dono da matéria, ainda que seja possível a restituição à
forma anterior.
Em qualquer caso, ainda que constatada a má-fé do especificador, a
obra de arte lhe pertencerá se o seu valor exceder consideravelmente o valor da
matéria-prima. E, também em qualquer caso, os prejudicados deverão ser
indenizados, à exceção do especificador de má-fé, quando a obra de arte
não exceder consideravelmente o valor da matéria-prima e for irredutível a
especificação.
2.1.4 – Confusão, comistão e adjunção 104
A confusão, como forma de aquisição da propriedade móvel, é a
mistura de coisas líquidas pertencentes a diferentes donos, sem que se possam
separar. A comistão é a mistura de coisas sólidas ou secas, nas mesmas condições.
A adjunção é a justaposição de uma coisa a outra, de tal modo que não possam ser
separadas sem deterioração.
103
Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 222.
104
As previsões legais a respeito da confusão, da comistão e da adjudicação constam dos artigos
1272 a 1274 do Código Civil.
32
Nas três hipóteses, é preciso que não se produza coisa nova, pois
nesse caso haveria especificação.
Se as coisas pertencem a donos diversos e foram misturadas sem o
consentimento deles, continuam a lhes pertencer, desde que seja possível separar a
matéria-prima sem deterioração. Se não for possível a separação ou se esta exigir
dispêndio excessivo, o todo subsistirá indiviso. Nesse caso, a espécie nova
pertencerá aos donos da matéria-prima, cada qual com o seu quinhão proporcional
ao valor do seu material. Se uma das coisas puder ser considerada principal em
relação às outras, o seu proprietário terá o domínio da espécie nova, com a
obrigação de indenizar os demais.
Todas as previsões têm por fundamento a boa-fé do causador da
mistura das coisas. Em caso de má-fé, caberá ao proprietário que não deu causa ao
novo estado das coisas o domínio sobre o todo, pagando o valor proporcional do
que não é seu, ou, alternativamente, renunciar à coisa que lhe pertence, mediante
indenização.
2.1.5 – Casamento 105
No Brasil, o casamento realizado sob o regime de bens da
comunhão universal enseja a aquisição, por cada um dos cônjuges, da meação de
todos os bens móveis – e imóveis – de propriedade do outro cônjuge, à exceção das
105
O casamento não é reconhecido como modo de aquisição da propriedade mobiliária por todos os
sistemas de direito.
33
hipóteses legalmente previstas 106 .
A aquisição da propriedade – da meação – dos bens, nesse caso,
independe da tradição, visto que decorre da solenidade inerente ao próprio ato do
casamento 107 .
O casamento e os temas adjacentes são objeto de estudo específico
em matéria própria 108 e não são considerados para a finalidade do presente
trabalho.
2.1.6 – Sucessão
O Brasil adotou um sistema singular de transmissão causa mortis 109 ,
diverso do sistema romano, que exigia a aceitação dos herdeiros e a apreensão
material dos bens da herança, e do sistema germânico, em que apenas os herdeiros
legítimos – e não os testamentários – adquirem a propriedade dos bens da herança
106
Art. 1667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e
futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte; Art. 1668. São
excluídos da comunhão: I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os
sub-rogados em seu lugar; II - os bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro
fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva; III - as dívidas anteriores ao casamento,
salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum; IV - as
doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade; V Os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659 (Art. 1659. Excluem-se da comunhão: V - os bens
de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; VI - os proventos do trabalho pessoal de cada
cônjuge; VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes).
107
A menção à dispensa da tradição se refere à tradição real, com a consignação de que a aquisição
da propriedade móvel por meio do casamento realizado sob o regime da comunhão universal se
enquadra na hipótese de tradição jurídica ou ficta. O casamento realizado sob o regime da comunhão
parcial, da separação legal ou convencional e da participação final nos aquestos não apresenta
utilidade prática para o presente estudo, já que a aquisição da meação da propriedade de um dos
cônjuges somente será possível após o casamento e nas hipóteses legais, razão pela qual afasta o
casamento, em si, como modo de aquisição da propriedade.
108
Livro IV- Do Direito de Família (artigos 1511 a 1783 do Código Civil).
109
A sucessão, assim como o casamento, enquadra-se na hipótese de aquisição da propriedade
móvel por meio da tradição ficta (conferir 2.2.2.3).
34
mediante a morte de seu autor.
Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery afirmam que o sistema
brasileiro uniu as vantagens dos sistemas romano e germânico para incluir os
herdeiros testamentários na regra da transmissão ipso iure da herança; admitir que
há transferência tanto da posse direta quanto da indireta; admitir que a transferência
automática da posse ao herdeiro é ficção jurídica, pois não depende nem da
apreensão física da coisa, nem do conhecimento do herdeiro de que ostenta essa
condição para aperfeiçoar-se a transmissão; admitir que a transmissão se dá no
momento da morte, independentemente da aceitação da herança pelo herdeiro;
admitir que não existe herança sem dono, razão de ser da transferência imediata e
automática da herança aos herdeiros, no momento da morte do de cujus 110 .
O fundamento do sistema brasileiro de transmissão causa mortis da
propriedade está previsto no artigo 1784 do Código Civil (“Aberta a sucessão, a
herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”) e o
estudo específico da matéria tem lugar no Livro respectivo 111 .
2.2 – Tradição
2.2.1 – Definição e requisitos
Sem prejuízo de outras definições possíveis para finalidades
diversas, a definição aqui desenvolvida tem por objetivo específico o estudo da
tradição como modo de transferência da propriedade mobiliária do vendedor ao
110
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil anotado. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2003, p. 778.
111
Livro V – Do Direito das Sucessões (artigos 1784 a 2022 do Código Civil).
35
comprador.
Nesses termos, tradição é “a expressão empregada para designar o
ato que consuma o contrato, no momento em que a coisa se desliga do domínio do
vendedor, para incorporar-se ao patrimônio do comprador” 112 . É o ato em virtude do
qual o direito obrigacional, que resulta do negócio jurídico realizado entre vivos,
transforma-se em direito real, e consiste na entrega do bem alienado a quem o
adquiriu” 113 , transformando a inicial declaração translatícia de vontade em direito
real 114 .
A tradição não gera o domínio, mas sim o pressupõe existente e
limita-se a transferi-lo de uma pessoa a outra 115 .
Para que a tradição produza o efeito da transferência da
propriedade, diversos requisitos devem ser preenchidos.
Quanto ao alienante e ao adquirente, exige-se, inicialmente, a sua
capacidade, como de regra para a prática de qualquer ato da vida civil, nos termos
do artigo 104, inciso I, do Código Civil 116 .
112
J. M. de Carvalho Santos. Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Livraria Freitas
Bastos, 1961. Volume XVI, p. 43.
113
Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 225.
114
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 170.
115
Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 131; Almachio Diniz. Direito das cousas,
cit., p. 166.
116
“Apelação cível – Ação anulatória de ato jurídico – (...) É válida a venda de bem imóvel pelo
ascendente a descendente, após ratificado expressamente o ato, através de escritura pública de
aditamento firmada pelos demais herdeiros e, após atingida a maioridade, pelo herdeiro relativamente
incapaz” (Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina – Apelação Cível n.º 2005.016957-4 –
Origem: Joinville – 3ª Câmara de Direito Civil – Relator: Des. Wilson Augusto do Nascimento – J.
25.11.2005).
36
Ainda quanto ao alienante, exige-se a sua titularidade em relação ao
bem alienado mediante determinado título e por meio da tradição 117 . A hipótese será
sanada se o alienante, que não era proprietário do bem à data da tradição, adquirirlhe posteriormente a propriedade, desde que constatada a boa-fé do adquirente.
Nesse caso, a aquisição posterior revalida a transferência feita e a tradição opera os
seus efeitos jurídicos retroativamente, desde o momento de sua ocorrência 118 .
Para a efetividade da transmissão da propriedade mobiliária pela
tradição também se exige o acordo de vontades. Ou seja, no caso da tradição que
tem como título o contrato de compra e venda, exige-se que o tradens entregue o
bem com a intenção de transferir a sua propriedade e sem a pretensão de
devolução, como se daria nos casos de tradição que tivesse como título um contrato
de locação, de comodato ou de depósito; e que o accipiens receba o bem com a
intenção de adquirir a sua propriedade.
A manifestação de vontade das partes deve decorrer de um ato
jurídico válido, que configura a (justa) causa – titulus adquirendi – da tradição.
117
Código Civil, Art. 1268. “Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade,
exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em
circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar
dono”. A propósito: “Apelação cível – Ação declaratória c.c. indenização por perdas e danos e lucros
cessantes – Ônus da prova – Venda por quem não é proprietário – Recurso improvido – No
ordenamento jurídico brasileiro existe uma regra geral dominante no sistema probatório, qual seja, à
parte que alega a existência de determinado fato para dele derivar a existência de algum direito
incumbe o ônus de demonstrar sua existência. O Código de Processo Civil, em seu artigo 333, afirma
que o ônus da prova cabe ao autor relativamente ao fato constitutivo de seu direito, e ao réu, em
relação à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Sendo o
documento do Detran prova relativa de propriedade do veículo, tal presunção deve ser refutada por
outras provas idôneas, que demonstrassem ter a parte recorrente adquirido o veículo de quem de
direito (o proprietário). A tradição do veículo, por si só, não pode oferecer prova firme e segura de
venda do veículo à parte recorrente, que demonstrou ter efetuado pagamento a terceiras pessoas,
não provando que tais pessoas integraram a cadeia dominical do veículo objetivado. Nos termos do
artigo 622 do CC/1916, feita por quem não seja proprietário, a tradição não alheia a propriedade.
Recurso improvido” (Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul – Apelação Cível n.º
2004.004126-8/0000-00 – Origem: Campo Grande – 3ª Turma Cível – Relator: Des. Oswaldo
Rodrigues de Melo – J. 20.12.2004).
118
Nos termos do artigo 1268, parágrafo 1º, do Código Civil.
37
“Qualquer ato nullo que sirva de titulo à tradição, é bastante para que não se
transfira absolutamente o domínio pela tradição. Assim, quem não for proprietário
não alheiou a propriedade das cousas móveis entregues a outrem por tradição, que
é a entrega com ânimo de transferir o domínio” 119 .
Por fim, exige-se a imissão do adquirente na posse do bem, o que
caracteriza a tradição real, sem prejuízo das exceções expressamente previstas,
consistentes na tradição simbólica e na tradição ficta.
2.2.2 – Espécies de tradição
Há três espécies de tradição referidas pela doutrina: tradição real,
tradição simbólica e tradição ficta 120 .
119
Almachio Diniz. Direito das cousas, cit., p. 167. Prevê o artigo 1.268, parágrafo 2º, do Código Civil:
“Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo”. Nesse
sentido: “Compra e venda – (...) É da tradição de nosso direito, que vem desde as Ordenações
Manuelinas, proibir a venda de ascendente a descendente, sem o consentimento dos demais,
considerada nenhuma e de nenhum efeito jurídico, para se evitar enganos e demandas em função de
dissimular doações inoficiosa e prejudiciais aos outros descendentes. Idêntica a conseqüência
jurídica. Seja a venda direta, seja a venda por interposta pessoa, porque aquilo que a lei veda fazer
pelos meios diretos, veda, igualmente, que se faça pelos meios indiretos, pois, do contrário, seria o
mesmo que não proibir. O negócio, simuladamente feito por interposta pessoa, está vinculado ao
negócio real, não podendo ser apreciado em separado, se é inquinado de ofensivo à norma do artigo
1.1132. Não há de se processar uma ação anulatória fundada m simulação contra a interposta
pessoa: para em seguida ser pleiteada a declaração de nulidade do negócio jurídico proibido. Numa
ou noutra situação a venda é nula e prescreve no prazo de vinte anos contados da data do ato,
consoante previsto na Súmula 494 do Supremo Tribunal Federal. E sendo nulo o ato descabe a
invocação da usucapião ordinária por faltar-lhe os requisitos do justo título e da boa-fé” (Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 77.980-4 – Origem: Franca – 9ª Câmara de
Direito Privado – Relator: Ruiter Oliva – J. 22.06.99 – V.U.); “Reivindicatória julgada procedente,
porque a autora demonstrara ser proprietária do lote possuído pelos réus – Alegação de prescrição
rejeitada, em face da prova. Tradição reputada inoperante, porque se baseara em titulo nulo”
(Supremo Tribunal Federal – RE n.º 48211 – 2ª Turma – Relator Antônio Villas Boas – J. 01/08/1961).
120
Lafayette Rodrigues Pereira, J. M. Carvalho Santos e Jefferson Daibert referem a tradição nua
(nuda traditio) e a definem como a simples entrega da coisa, desacompanhada da intenção de
transferir o domínio, como a conduta que se verifica no comodato, pelo comodante, no depósito, pelo
depositante, e na locação, pelo locador (respectivamente Direito das coisas., cit., p. 131; Código Civil
brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1961. Volume VIII, p. 276; e Direito das
coisas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1979, p. 289).
38
2.2.2.1 – Tradição real
A tradição real é o modo mais comum de transmissão da
propriedade mobiliária e consiste no ato material da entrega da coisa ao adquirente,
ou seja, na transferência da coisa de mão a mão, passando do antigo ao novo
proprietário 121 . A tradição real – fundada no título translativo consistente em um
contrato de compra e venda – enseja a perda da propriedade pelo alienante. Nesse
sentido: “Compra e venda – Bem móvel – Entrega do veiculo não obstante sem
provisão de fundos o segundo cheque dado em pagamento – Perda da propriedade
do bem consumada (artigo 620 do Código Civil), independentemente de assinatura
no documento de transferência – Reintegração de posse improcedente, sendo certo
reconhecer-se o pedido desconstitutivo do documento de trânsito porque
evidenciada a falsificação – Recurso parcialmente provido para esse fim” (Primeiro
Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0480230-0 – Origem:
Sumaré – 5ª Câmara – Relator: Juiz Nivaldo Balzano – J. 29/09/1993 – V.U).
Também se considera real a tradição operada por terceiro que, por
ordem do alienante, entregue a coisa ao adquirente ou à pessoa que este
designar 122 .
Efetivada a tradição real – fundada no título consistente em um
contrato de compra e venda –, a propriedade do bem móvel é transmitida
independentemente de quaisquer outros atos de natureza administrativa, como no
caso de veículo automotor, cujo registro junto ao Departamento de Trânsito tem
121
Washington de Barros Monteiro afirma que a tradição real era conhecia do direito romano como
traditio longa manu e significava a entrega efetiva ao accipiens, diretamente ou em sua residência,
mediante ordem (Curso: direito das coisas, cit., p. 201).
122
Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 226.
39
caráter administrativo e desvinculado da transmissão da propriedade: “(...). A
exigência administrativa de registro de veículos no Departamento de Trânsito visa o
controle e a fiscalização de trânsito, não se constituindo em modo de aquisição, que
se opera pela tradição. A autorização de transferência de veículo para essa
finalidade assinada em branco equivale à outorga de mandato ao portador para o
seu preenchimento. Não comprovada a falsidade da assinatura, não se segue que a
morte do vendedor em data anterior, àquela que consta da referida autorização
assinada em branco implica na inexistência do negócio de compra e venda”
(Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Embargos Infringentes n.º 45.057-4 –
Origem: Vargem Grande do Sul – 9ª Câmara de Direito Privado – Relator: Ruiter
Oliva – 19.05.98 – M. V.) 123 .
Embora a entrega efetiva da coisa seja o modo mais comum de
transmissão da propriedade mobiliária, são reconhecidas outras espécies de
tradição, as quais, identificadas, ensejam a mesma conseqüência, ou seja, efetivam
a transmissão da propriedade mobiliária.
Vale a consignação, entretanto, de que as espécies de tradição que
não se efetivam pela entrega material do bem não podem ser caracterizadas como
hipóteses de ausência de tradição, mas sim devem ser consideradas como
situações específicas que, por previsão expressa, são tidas como tradição,
123
A confirmar a regra de que a transmissão da propriedade mobiliária se dá com a tradição, julgado
em que se decidiu que a convenção entre as partes, não seguida pela tradição, não enseja a
transmissão da propriedade: “VEÍCULO – Compra e venda - Assinatura do termo de autorização para
transferência do bem – Assinante, entretanto, que não figurou como alienante do bem, não podendo,
assim, responder pela não concretização do negócio, ante a ausência de tradição, junto ao
comprador – Ausência, ademais, de provas de que teria o assinante agido com má-fé ou de que teria
o alienante do veículo agido em seu nome – Ação improcedente – Recurso não provido. A
transferência de propriedade de bem móvel somente se perfaz pela tradição. A simples convenção
entre as partes interessadas não é suficiente para a aquisição da propriedade” (Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 12.420-4 – Origem: São José dos Campos – 1ª Câmara de
Direito Privado – Relator: Guimarães e Souza - 13.08.96 - V. U.).
40
dispensado exclusivamente o ato material da entrega.
2.2.2.2 – Tradição simbólica
A
tradição
simbólica
se
verifica
no
ato
representativo
da
transferência da coisa 124 .
A primeira hipótese se dá nos casos em que é entregue ao
adquirente não a própria coisa, mas algo que a represente, como a chave de um
veículo, a demonstrar que a propriedade deste está sendo transferida 125 .
Afirma Pietro Bonfante: “Simbólica si disse nel médio evo la
consegna delle chiave, di cui non è che um ulteriore progresso la odierna consegna
dei titoli rappresentativi” 126 .
Também se verifica a tradição simbólica quando um determinado ato
praticado pelas partes comprova a sua intenção de transmissão da propriedade. A
propósito: “A inscrição do recibo de compra de automóvel no registro público
dispensa a tradição, ou vale como tradição, simbólica, para o efeito de transmitir o
domínio ao comprador. Pode este, em conseqüência, reclamar a imissão na posse,
com fundamento no Código de Processo Civil, artigos 381, I, e 382 (Código de
124
“Concordata – Penhor mercantil – Bens fungíveis e consumíveis – Tradição simbólica –
Admissibilidade – Penhor mercantil. Bens fungíveis e consumíveis. Tradição simbólica. Art. 274 do
Código Comercial. Ainda que se cuide de bens fungíveis e consumíveis, é admissível a tradição
simbólica no penhor mercantil. Recurso Especial conhecido e provido" (STJ – Resp 147.898 – RS –
4ª T. – Relator: Min. Barros Monteiro – DJU 09.12.2003 – p. 290).
125
“Cominatória – Obrigação de dar - Transferência de direitos possessórios – Impossibilidade de
preceito cominatório – Súmula 500 do STF – Entrega da chave e outorga da escritura que
caracterizam, respectivamente, a forma simbólica e definitiva do cumprimento da obrigação de dar Transferência, entretanto, que se perfaz pela mera tradição – Carência decretada – Recurso não
provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 188.770-2 – Origem:
Caraguatatuba – Relator: Torres de Carvalho – 21.05.92).
126
“Simbólica se dizia na idade média a entrega da chave, da qual não é senão um progresso
posterior a entrega do título representativo” (Instituzioni, cit., p. 237).
41
Processo Civil de 1939)” (Supremo Tribunal Federal – RE n.º 51952 – 1ª Turma –
Relator: Ministro Victor Nunes – J. 17/05/1963) 127 .
Para que a tradição simbólica seja considerada como tal, é
imprescindível que se revista dos mesmos requisitos necessários à caracterização
da tradição real. Isso significa que somente se a verifica se o bem cuja propriedade
foi transmitida pela tradição simbólica estiver na posse do adquirente, não se a
reconhecendo se o bem estiver na posse de terceiro, já que nesse caso não se pode
falar em transmissão, ainda que simbólica, a quem não teve e não tem a posse do
bem 128 .
Espécie de tradição simbólica é a traditio longa manu, “in cui
l’oggetto non é consegnato proprieamente, ma indicato e messo a disposizione
dell’adquirente” 129 . A sua origem é do direito romano, com utilização indicada no
caso de alienação de imóveis de grandes dimensões, as quais não era possível ou
não era comum percorrer 130 .
127
Jefferson Daibert afirma que a transcrição do título aquisitivo no registro imobiliário, para fins de
aquisição da propriedade imobiliária, caracteriza a tradição simbólica (Dos contratos. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 1980, p. 181).
128
“Embargos de terceiro – Ilegitimidade ‘ad causam’ – Transmissão simbólica da posse ‘per
instrumentum’ que só equivale à tradição real quando o tradente estiver na posse da coisa e esta não
for possuída por terceiro – Hipótese na qual o imóvel foi adquirido pelo marido da apelada quando na
posse dos apelantes – Ação ajuizada por quem não possuía a qualidade de terceiro – Exame da
doutrina e da jurisprudência – Carência reconhecida – Recurso provido” (Primeiro Tribunal de Alçada
Civil de São Paulo – Apelação n.º 0570474-1 – Origem: Itapecerica da Serra – 9ª Câmara – Relator:
Armindo Freire Mármora – J. 19/03/1996 – V.U.).
129
“em que o objeto não é entregue propriamente, mas indicado e posto à disposição do adquirente”
(Pietro Bonfante. Instituzioni, cit., p. 237-238).
130
Sílvio de Salvo Venosa. Direitos Reais, cit., p. 254.
42
2.2.2.3 – Tradição ficta
Na tradição jurídica ou ficta, a transmissão da propriedade mobiliária
se opera por força de uma norma jurídica, sem que se efetive a entrega material da
coisa alienada. Verifica-se nas hipóteses do artigo 1.267, parágrafo único, do Código
Civil 131 , ou seja, nos casos de constituto possessório, de cessão de direito à
restituição da coisa que se encontra em poder de terceiro e de traditio brevi manu,
sem prejuízo das demais hipóteses legais.
2.2.2.3.1 – Constituto possessório
O constituto possessório é o modo de transmissão da propriedade
por meio do qual o proprietário, que aliena um bem de sua propriedade, mantém a
posse desse bem, a partir de então alieno nomine.
Ou seja, aquele que possuía e tinha o domínio do bem passa, por
convenção, a possuí-lo sem domínio, em razão da transferência deste ao
comprador. É a “operação jurídica, em virtude da qual, aquele que possuía em seu
próprio nome, passa, em seguida, a possuir em nome de outrem” 132 .
De acordo com Pietro Bonfante, “il costituto possessorio é quasi
l’inverso della traditio brevi manu. L’alienante, in luogo di operare la transmissione
131
Código Civil, Artigo 1267. “A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos
antes da tradição. Parágrafo único. Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a
possuir pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que
se encontra em poder de terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do
negócio jurídico”.
132
Clovis Bevilaqua. Direito das Coisas, cit., p. 50. A propósito: “Posse. Ação de reintegração.
‘Cláusula constituti’. Outorga uxória. O comprador de imóvel com ‘cláusula constituti’ passa a exercer
a posse, que pode ser defendida através da ação de reintegração. Recurso não conhecido” (Superior
Tribunal de Justiça – RESP n.º 173183/TO (199800313923) – Origem: Tocantins – 4ª Turma –
Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar – J. 01/09/1998).
43
effetiva del possesso, conchiude coll’acquirente una convenzione, che gli permetta di
ritenerlo sott’altro titolo, locazione, deposito, comodato e simili, e a questo titolo si
costituisce rappresentante nel possesso. É questo peraltro um modo e um istituto
giustinianeo.” 133
Pode ser identificado, por exemplo, no caso do proprietário de um
bem que o vende a alguém e imediatamente o loca desse novo proprietário. O
alienante, em vez de proceder à entrega da coisa vendida ao alienatário, retém a
coisa em suas mãos por um outro título, então de locatário. De regra, deveria o
alienante entregar a coisa ao alienatário para que este, a seguir, devolvesse a coisa
ao primitivo alienante, que, com a entrega, tornar-se-ia locatário. Para evitar essa
dupla e recíproca entrega do bem móvel, o legislador supõe que ela existiu,
admitindo a tradição ficta 134 .
A boa-fé do possuidor é requisito essencial para a caracterização do
constituto possessório. Nesse sentido: “Possessória – Manutenção de posse – Bem
móvel – Veículo adquirido, que permaneceu provisoriamente em poder do alienante
- Legitimidade da adquirente possuidora indireta, diante do constituto possessório –
Posse de boa-fé existente ao tempo da apreensão – Embargos de terceiro
procedentes – Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo –
133
“o instituto do constituto possessório é quase o inverso da traditio brevi manu. O alienante, em vez
de operar a transmissão efetiva da posse, celebra com o adquirente uma convenção, que lhe permite
reter a posse a outro título, como locação, depósito, comodato ou outro similar, e a esse título se
constitui representante da posse. Trata-se de um modo e de um instituto do direito justinianeu”
(Instituzioni, cit., p. 238).
134
Silvio Rodrigues. Direito Civil: Direito das Coisas, cit., p. 188. A jurisprudência: “I – A aquisição da
posse se dá também pela cláusula constituti inserida em escritura publica de compra-e-venda de
imóvel, o que autoriza o manejo dos interditos possessórios pelo adquirente, mesmo que nunca tenha
exercido atos de posse direta sobre o bem. II – O esbulho se caracteriza a partir do momento em que
o ocupante do imóvel se nega a atender ao chamado da denúncia do contrato de comodato,
permanecendo no imóvel após notificado (...)” (Superior Tribunal de Justiça – RESP n.º 143707/RJ
(199700563545) 4ª Turma – Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira – J. 25/11/1997).
44
Apelação n.º 0577657-8 – Origem: Ribeirão Preto – 6ª Câmara Especial de Janeiro –
Relator: Des. Castilho Barbosa – J. 30/01/1995 – V.U.).
Após transcrever parte dos votos dos Ministros Artur Ribeiro e
Carvalho Mourão, do Supremo Tribunal, na Apelação Cível n.º 5.165, J. M. Carvalho
Santos manifesta seu entendimento de que o constituto possessório deve ser
reconhecido não apenas quando se usam palavras sacramentais, mas sempre que
do texto do contrato se puder concluir que o possuidor deixou de ter o domínio sobre
o bem porque o alienou, e passou a ter o bem em nome do comprador, a quem o
domínio fora transferido 135 .
Por outro lado, ainda que não conste do contrato celebrado pelas
partes o termo expresso, é imperioso que sejam identificados elementos que
permitam a conclusão de que as partes pretenderam a utilização do instituto, sob
pena de restar inviabilizado o seu reconhecimento. Nesse sentido: “Possessória –
Compra e venda de safra de laranjas Inexistência de cláusulas indicando
transferência simbólica da posse – Esbulho descaracterizado, inocorrendo o alegado
constituto possessório, por não se identificarem cláusulas indicativas da suposta
transferência – Ações de reintegração e manutenção de posse improcedentes –
Recurso parcialmente provido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo –
Apelação n.º 0680661-9 – Origem: Monte Azul Paulista – 8ª Câmara – Relator:
135
J. M. de Carvalho Santos. Código Civil brasileiro interpretado. Volume VII, cit., p. 64-67. Também
nesse sentido: “Constituto possessório – Reintegração de posse. 1. Para a existência do constituto
possessório e consequente transferência da posse indireta ao beneficiário dela, não há necessidade
de o instrumento conter as palavras cláusula constituti’, ‘constituto possessório’, nem mencionar que
o transmitiu, se demitiu da posse e a conserva em nome do adquirente. Basta que o transmitente
declare que imite na posse o adquirente ou a ele a transfere. (...)” (Supremo Tribunal Federal – RE n.º
65681 – Origem: Guanabara – 1ª Turma – Relator: Ministro Aliomar Baleeiro – J. 20/02/1973).
45
Araldo Telles – Revisor: Carlos A Hernández – J. 19/08/1998) 136 .
Embora
a
prova
do
constituto
possessório
seja
admitida
independentemente da menção expressa do termo no contrato, não se sobrepõe ao
título, que tem validade por si. A propósito: “Possessória – Insurgência contra liminar
de reintegração de posse – Alegação do réu de que se tornou possuidor da área em
virtude de constituto possessório – Imóvel que, todavia, estava sendo ocupado pelo
autor – Inoponibilidade da cláusula contratual contra terceiro que dispõe de título
próprio – Prova suficiente à concessão da tutela liminar – Recurso improvido”
(Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º
1057687-1 – Origem: Cachoeira Paulista – 12ª Câmara – Relator: Campos Mello – J.
26/02/2002).
A restrição se justifica, sob pena de o instituto ser utilizado sem
critério e visando à burla do sistema 137 .
2.2.2.3.2 – Cessão de direito de restituição
Essa espécie de tradição ficta se dá no caso de o proprietário alienar
um bem que, quando da alienação, encontra-se na posse de um terceiro, em
decorrência de um contrato de comodato ou de locação, por exemplo.
136
No mesmo sentido: “Embargos de terceiro – Constituto possessório – Cláusula não expressa, que
não se presume e que não resulta das demais disposições contidas na escritura – Escritura não
matriculada – Embargos rejeitados – Decisão mantida” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo –
Apelação Cível n.º 253.119-1 – Origem: São Paulo – 9ª Câmara de Direito Privado – Relator:
Franciulli Netto – 05.11.96 – V.U.).
137
“Penhora – Embargos de terceiro – Oposição por mãe do executado sob alegação de ser ela
proprietária do bem, tendo ocorrido a tradição ficta do mesmo em razão do constituto possessório –
Inexistência de prova nesse sentido, não constituindo o registro do veículo em nome da embargante
meio suficiente para demonstrar a propriedade – Constrição mantida – Embargos improcedentes –
Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0598558-0 –
Origem: Garça – 2ª Câmara – Relator: Nelson Ferreira – J. 31/05/1995 – V.U.).
46
Enquanto não se der a restituição, o comprador, como novo
proprietário do bem, terá apenas a posse indireta deste, a qual decorre da cessão do
direito de restituição que o vendedor fez ao comprador. Essa cessão do direito de
restituição equivale à tradição 138 .
Ou, dito de outra forma, a “transferência envolve a posse indireta
que é acompanhada do direito à restituição, isto é, o direto de reaver a coisa locada
na época oportuna” 139 .
Expirado o prazo do contrato, o direito de reivindicar o bem (Artigo
1.228 do Código Civil: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da
coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou
detenha”) se reconhece ao comprador e não mais ao vendedor, visto que, por meio
do contrato de compra e venda celebrado, o vendedor cedeu ao comprador o direito
de pleitear, na oportunidade adequada à hipótese concreta, a restituição do bem.
2.2.2.3.3 – Traditio brevi manu
A traditio brevi manu, que também caracteriza tradição ficta, é o
instituto por meio do qual o possuidor de coisa alheia passa, por convenção, a
possuir a coisa como própria.
Pode ser identificado, por exemplo, no caso do locatário que adquire
a coisa locada. De regra, deveria o alienatário devolver – como locatário, no exemplo
referido – a coisa ao alienante para que este, a seguir, entregasse a coisa ao
primitivo locatário, então como alienatário, o qual, com a entrega, tornar-se-ia
138
J. M. de Carvalho Santos. Código Civil. Volume XVI, cit., p. 44; Maria Helena Diniz. Curso: Direito
das coisas, cit., p. 317.
139
Sílvio de Salvo Venosa. Direitos reais, cit., p. 254.
47
proprietário da coisa.
Assim como se dá no caso do constituto possessório e da cessão de
direito de restituição de bem que se encontra em poder de terceiro, para evitar a
dupla e recíproca entrega do bem móvel, o legislador supõe que ela existiu,
admitindo também neste último caso a tradição ficta.
2.2.2.3.4 – Outras hipóteses de tradição ficta
Além do constituto possessório, da traditio brevi manu e da cessão
de direito de restituição de bem que se encontra em poder de terceiro, existem
outros diversos dispositivos legais que estabelecem expressamente o modo da
tradição ficta para a transmissão da propriedade.
Quanto à compra e venda de títulos de dívida pública da União, dos
Estados e dos Municípios, por expressa determinação legal, o próprio contrato
transfere ao comprador a propriedade dos títulos, nos termos do artigo 8º, caput, do
Decreto-lei n.º 3.545/41 (“A celebração do contrato transfere imediatamente ao
comprador a propriedade do título”).
De acordo com o artigo 31, caput, da Lei n.º 6.404/76 (Lei das
Sociedades Anônimas), “A propriedade das ações nominativas presume-se pela
inscrição do nome do acionista no livro de ‘Registro de Ações Nominativas’ ou pelo
extrato que seja fornecido pela instituição custodiante, na qualidade de proprietária
fiduciária das ações”. O parágrafo 1º do referido dispositivo legal estabelece que “A
transferência das ações nominativas opera-se por termo lavrado no livro de
‘Transferência de Ações Nominativas’, datado e assinado pelo cedente e pelo
48
cessionário, ou seus legítimos representantes” 140 .
Nos termos do artigo 66, caput, da Lei n.º 4.728/65, com a redação
do Decreto-lei n.º 911/69, “A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o
domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente
da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto
e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de
acordo com a lei civil e penal” 141 .
J. M. de Carvalho Santos, referindo Maynz e Lacerda de Almeida,
cita ainda o caso de “contrato de sociedade de todos os bens, em que a
transferência se opera com a assinatura do contrato, entendendo-se haver tradição
tácita”, bem como o caso da “sociedade particular, em que a transferência se opera
com a simples aquisição dos bens comunicáveis” 142 .
140
Washington de Barros Monteiro. Curso: Direito das coisas, cit., p. 202; Maria Helena Diniz. Curso:
Direito das coisas, cit., p. 315-316.
141
Maria Helena Diniz. Curso: Direito das Coisas, cit., p. 316.
142
J.M. de Carvalho Santos. Código Civil. Volume VIII, cit., p. 277.
49
Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da propriedade mobiliária
O estudo dos sistemas de aquisição da propriedade mobiliária tem
por objetivo, no presente trabalho, a resposta à questão se a propriedade mobiliária
é transmitida pelo contrato compra e venda, por si, ou se é necessário algum outro
ato para que a aquisição se aperfeiçoe e produza os resultados jurídicos decorrentes
(da propriedade transmitida). Ou, dito de outra forma, se o contrato é reconhecido
exclusivamente como título – ou causa – para a transmissão da propriedade
mobiliária ou se efetivamente a transfere.
Teoricamente, são referidos quatro sistemas de aquisição de
propriedade: o sistema romano, o sistema francês, o sistema alemão e o sistema
soviético.
Com a dissolução oficial da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas 143 no dia 25 de dezembro de 1991, o sistema soviético não pode ser
considerado um sistema vigente. É referido para fins acadêmicos, mas não será
estudado à parte, como os demais.
O sistema soviético não se vincula exclusivamente nem ao contrato
e nem à tradição como princípio geral de transmissão da propriedade mobiliária.
Tanto o contrato, por si, quanto a tradição são dotados de igual valor e cada um tem
o seu próprio campo de aplicação. Tratando-se de coisas individualmente
143
A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi um país de proporções continentais, cobrindo
praticamente um sexto das terras emersas do planeta, fundado no dia 30 de dezembro de 1922 pela
reunião dos países que formavam o antigo Império Russo, na Europa e na Ásia. O número de
repúblicas constitutivas variou ao longo do tempo, mas foi de 15 (Rússia, Ucrânia, Bielorrússia
Usbequistão, Cazaquistão, Geórgia, Azerbaijão, Moldávia, Quirguízia, Tadjiquistão, Armênia,
Turcomenistão, Estônia, Letônia e Lituânia) durante a maior parte da existência do país. A União
dissolveu-se
oficialmente
em
25
de
dezembro
de
1991
(disponível
em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_Sovi%C3%A9tica).
50
determinadas, a propriedade se adquire pelo consenso, no momento em que se
conclui o contrato; tratando-se de coisas determinadas apenas pelo gênero, que
devem ser contadas, pesadas ou medidas, a aquisição é diferida para o momento da
tradição 144 .
Quanto ao sistema romano, embora não vigente, justifica-se o seu
estudo em razão de sua importância para a fundamentação e o desenvolvimento do
sistema brasileiro de transmissão da propriedade mobiliária, que também será
estudado.
Ainda, optou-se por estudar, além do sistema francês, o sistema
inglês de transmissão da propriedade mobiliária, em razão de apresentar
características similares às do sistema francês e, conseqüentemente, distintas das
do sistema brasileiro.
3.1 – Sistema romano 145
No sistema de direito romano anterior a Justiniano não se utilizava a
distinção entre bens móveis e móveis 146 , mas sim a distinção entre res mancipi e res
nec mancipi, ou seja, “coisas que exigem ou não exigem o emprego da mancipatio
144
Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil: direito das obrigações – 2ª Parte. 34ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 5, p. 89. R. Limongi França afirma que o artigo 39 do Código
Soviético de 1962 revogou o sistema da forma como existia e “parece ter adotado o sistema alemão”
(Manual de Direito Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1969. 4º Volume, Tomo II, p. 7576). Consideradas as características referidas pelos doutrinadores, pode-se afirmar o sistema
soviético apresentava semelhança com os demais sistemas de aquisição da propriedade mobiliária, já
que a postergação da aquisição da propriedade dos bens móveis que dependem de contagem,
pesagem ou medição não pode ser considerada característica exclusiva do primeiro.
145
Porque o direito romano antigo não reconheceu a classificação atual dos bens em imóveis e
móveis, o estudo do sistema romano de transmissão da propriedade não se refere especificamente à
propriedade mobiliária.
146
Conferir 1.5.
51
para a sua transferência” 147 .
O contrato era constitutivo apenas de obrigações, do vínculo jurídico
que ligava exclusivamente os próprios contratantes. Ou seja, o contrato fazia nascer
um vínculo jurídico entre as partes, mas não tinha força para constituir o direito real.
O título – entendido como o ato jurídico por meio do qual uma parte manifesta
validamente a sua vontade de alienar um bem e a outra parte manifesta
também validamente a sua vontade de adquirir o referido bem – não era suficiente à
transmissão da propriedade, para a qual se exigia também um modo de aquisição.
Não se concebia a constituição de um direito real, oponível contra
todos, por efeito exclusivo da vontade das partes. As partes de um contrato tinham
capacidade para estabelecer vínculos obrigatórios para si mesmas, mas não
podiam, por meio de sua mera manifestação de vontade em relação a um bem,
vincular toda a sociedade, o que seria próprio do direito real, reputado absoluto.
Determinados contratos, como o mútuo, o comodato e o depósito
eram classificados como reais, mas essa classificação não dizia respeito ao direito
constituído por meio do contrato, mas sim exclusivamente à formação do contrato.
Ou seja, os contratos reais eram assim classificados porque não se aperfeiçoavam
mediante a manifestação do consentimento das partes, o que se verificava nos
contratos consensuais, mas sim mediante a entrega da coisa objeto do contrato 148 .
De acordo com o sistema romano de transmissão da propriedade, a
147
Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil: parte geral. 39ª ed. São Paulo: Saraiva,
2003. Volume 1, p. 171.
148
De acordo com Darcy Bessone, por causa dessa noção de contractus, os romanos não incluíram
as convenções relativas à transmissão da propriedade na teoria das obrigações, mas sim as situaram
na teoria dos modos de adquirir, “dissimulando-as e ocultando-as sob exterioridades” (Darcy
Bessone. Da compra e venda, cit., p. 48).
52
aquisição voluntária derivada 149 podia se dar exclusivamente por meio da
mancipatio, da in iure cessio e da traditio.
Esses modos de transmissão da propriedade romana existiam por si,
ou seja, não eram vinculados a nenhum contrato e tampouco a nenhum ato jurídico
anterior que lhe fosse causal.
A mancipatio era a forma mais importante para a transferência da
149
Os modos de aquisição da propriedade em Roma eram classificados em originários, derivados
voluntários e derivados não voluntários. Os modos originários eram a ocupação, a acessão, a
confusão, a comistão e a especificação; os modos derivados voluntários compreendiam a mancipatio,
a in iure cessio e a traditio; e os modos derivados não voluntários consistiam na usucapião e na
adjudicação. Os modos originários apresentavam o fundamento e as características absorvidas pelo
sistema brasileiro (a respeito, conferir o Capítulo 2 – Modos de aquisição da propriedade mobiliária).
Os modos derivados voluntários – a mancipatio, a in iure cessio e a traditio – são estudados no texto
principal. Quanto aos modos derivados não voluntários, a usucapião já apresentava o fundamento e
as características que foram absorvidas pelo direito brasileiro (a respeito, conferir o Capítulo 2)
especificamente quanto à posse prolongada, ao justo título e à boa-fé. Mas a aplicação do instituto no
direito romano se dava em casos desconhecidos do direito brasileiro. O primeiro ocorria quando uma
res mancipi, cuja alienação deveria necessariamente ser feita pela mancipatio, fosse alienada pela
traditio, ato que dava enseja ao nascimento apenas da propriedade pretoriana ou bonitária, não da
propriedade quiritária. Nesse caso, a propriedade quiritária podia ser adquirida depois de decorrido o
prazo previsto para a usucapião. Ou seja, por meio da usucapião, a propriedade pretoriana ou
bonitária se tornava propriedade quiritária. Também se aplicava o instituto da usucapião nos casos
em que a alienação fosse feita a non domino. Apesar de o adquirente obter a posse, não obtinha a
propriedade em razão da nulidade da alienação, reconhecendo-se, entretanto, o justo título para os
fins da usucapião, que se dava ao final de um ano, tratando-se de bem móvel, e de dois anos em se
tratando de bem imóvel. O mesmo raciocínio quanto à alienação a non domino e à aquisição da
propriedade do adquirente por usucapião era aplicado aos escravos, considerados res se moventes.
Reconhecia-se ainda a possibilidade de aquisição da propriedade por meio da usucapião na hipótese
em que o justo título não consistia num ato jurídico, o que se dava quando alguém entrava na posse
de um bem abandonado de fato, mas cujo proprietário não havia manifestado expressamente a sua
intenção de abandono. Também nesse caso, a propriedade quiritária podia ser adquirida pela
usucapião. Em todos os casos referidos exigia-se, além da posse prolongada no tempo e do justo
título, que o bem não fosse produto de crime e que o adquirente houvesse agido com boa-fé. O
direito romano reconhecia ainda três hipóteses excepcionais de usucapião sem justo título e boa-fé. A
primeira era permitida ao herdeiro que estivesse na posse de bens hereditários, decorrido um ano da
posse. A segunda hipótese se dava no caso de alienação fiduciária. Se o devedor não restituísse o
bem alienado, como havia prometido, mas o antigo proprietário adquirisse a posse imediata desse
bem, tornar-se-ia seu proprietário depois de decorrido um ano. A última hipótese era uma instituição
de direito público, que se verificava quando o Estado vendia um bem que lhe havia sido entregue em
garantia por um devedor. Se o devedor se tornasse novamente possuidor imediato do bem alienado
pelo Estado, tornar-se-ia seu proprietário depois de decorrido o prazo da usucapião. Por fim, o
segundo modo derivado não voluntário de aquisição da propriedade, a adjudicação, consistia na
atribuição de um bem a uma pessoa por meio de sentença judicial. A adjudicação tinha lugar nas
ações de partilha de herança, nas ações de partilha de um bem indiviso e nas ações de retificação
dos limites de imóveis, inclusive para fins de atribuição de parcelas de terra a um confrontante (Ebert
Chamoun. Instituições, cit., p. 229-249; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 221-226; Vandick L. da
Nóbrega. Compêndio, cit., p. 69-94).
53
propriedade de res mancipi 150 . Tratava-se de instituto de jus civile, que podia ser
utilizado exclusivamente pelos cidadãos romanos 151 e dava ensejo à aquisição da
propriedade quiritária. “Nella lingua latina classica essa dicevasi ancora mancipium
come il domínio. Mancipatio significava allora propriamente l‘acquisto in cotesta
forma, emancipatio l’alienazione. Mancipio dare, accipere sono ancora le forme
usuali presso giureconsulti classici: certo ne più antichi tempi il significato loro era
‘dare o ricevere in proprietá’” 152 .
O ato exigia a presença do alienante, do adquirente, de cinco
cidadãos romanos púberes que serviam como testemunhas e do libripens, que
carregava a balança. O adquirente, denominado mancipio accipiens, tomava em
suas mãos a própria res ou algo que a simbolizasse e pronunciava as seguintes
palavras (no caso de um escravo): “Hunc ego hominem ex iure Quiritium meun esse
aio isque mihi emptus esto hoc aere aeneaque libra” 153 . Em seguida o libripens
tocava a balança com a barra de bronze e a entregava ao alienante como preço. A
propriedade era transferida e a negociação estava concluída 154 .
Há quem afirme que, concretamente, a mancipatio tinha a natureza
150
De acordo com Vandick L. da Nóbrega, porque não se reconhecia a distinção dos bens em
imóveis e móveis, a mancipatio podia ter por objeto tanto bens imóveis como bens móveis. Em caso
de bens imóveis, uma parte móvel era destacada e representava, simbolicamente, o todo. Um ramo
de árvore simbolizaria uma árvore e uma porção de terra simbolizaria um terreno (Compêndio, cit., p.
79); Sílvio A. B. Meira afirma que uma das prováveis origens do termo mancipatio seria a junção das
palavras manu e capere, isto é, a apreensão, pela mão, do bem adquirido (Instituições, cit., p. 221222).
151
Segundo A. Santos Justo, também era utilizado pelos peregrinos que gozassem do direito de
comércio (Direito privado romano III: direitos reais. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 94-95).
152
Pietro Bonfante. Instituzioni di diritto romano. Terza edizione. Milano: Casa Editrice Dottor
Francesco Vallardi, 1902, p. 239.
153
“Digo que este homem me pertence pelo direito dos Quirites, e que o mesmo seja vendido por
meio desta balança” (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 79).
154
A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 94-95; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239240; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 222; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 79-82.
54
jurídica de uma venda real realizada sempre à vista, considerada a barra de bronze
como instrumento de troca e a sua pesagem real 155 . Por outro lado, há quem
defenda a tese de que, quanto à forma, tratar-se-ia de ato unilateral, já que o
alienante, embora presente ao ato, não se manifestava, mas apenas se limitava a
ouvir as palavras que do adquirente sobre o bem do qual se apropriava 156 .
Com a introdução da moeda cunhada, que substituiu o pagamento
em bronze, a função da balança desapareceu. A mancipatio tornou-se um ato
abstrato – imaginaria venditio – passível de ser usado em qualquer caso que
implicasse uma alienação, como na venda, na doação, na constituição de um dote e
mesmo na constituição de uma garantia real 157 .
O segundo modo romano de adquirir a propriedade consistia na in
iure cessio. Tratava-se também de instituto de jus civile que ensejava a transmissão
da propriedade quiritária tanto das res manicipi quanto da res nec mancipi.
A in iure cessio era realizada perante o magistrado (em Roma, o
pretor; nas províncias, o governador), presentes o alienante e o adquirente. O
adquirente tomava em suas mãos a res, se fosse móvel, ou um símbolo, se fosse
imóvel, e proferia as seguintes palavras (tratando-se de um escravo): “Hunc ego
hominem ex iure Quiritium meum esse aio” 158 . Na seqüência, o magistrado
perguntava ao alienante se este não contestava a propriedade reivindicada pelo
adquirente e, na negativa ou no silêncio daquele, adjudicava o bem ao adquirente.
155
A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 94; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239.
156
Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 80.
157
Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 80.
158
“Eu digo que este escravo me pertence pelo direito dos Quirites” (Vandick L. da Nóbrega.
Compêndio, cit., p. 82).
55
Reconhece-se que se tratava de um processo fictício, porque a anuência do
alienante diante da reivindicação da propriedade do bem pelo adquirente não refletia
a realidade dos fatos, já que o alienante se sabia proprietário do bem até o momento
em que este era adjudicado ao adquirente, assim como o magistrado sabia que a
propriedade não era do reivindicante antes da adjudicação. Afirma-se ainda que a in
iure cessio foi pouco utilizada mesmo na época clássica, devido à dificuldade
concreta de comparecimento das partes perante o magistrado. A última referência
ao instituto se encontra numa constitutio de Diocleciano do ano 293 e se considera
que provavelmente desapareceu depois do séc. III 159 .
O terceiro modo romano de aquisição da propriedade era a traditio.
Tratava-se de um modo não formalista de aquisição da propriedade e era originário
do ius gentium e não do ius civile, razão pela qual podia ser utilizado tanto pelos
romanos como pelos não romanos.
A eficácia translativa da traditio dependia do cumprimento de
diversos requisitos.
Quanto ao tradens, exigia-se que tivesse capacidade e estivesse
apto ao exercício do seu direito, bem como que tivesse legitimidade, ou seja, que
fosse o proprietário do bem, com a ressalva de que se admitiam diversas exceções
para a prática efetiva da entrega, como aos tutores e curadores e aos mandatários
especialmente designados para o ato.
Quanto ao objeto, era preciso que fosse corpóreo, que fosse
passível de alienação – que estivesse no comércio – e que a sua alienação não
159
A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 97-98; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 240241; Pietro Bonfante. Instituzioni, cit., p. 240; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 222-223; Vandick
L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 82-83.
56
fosse proibida por lei, por magistrado ou por vontade das partes 160 .
A mera entrega da coisa não bastava à caracterização da traditio, já
que poderia não ter ocorrido a título de transferência da propriedade, mas sim de
mera detenção ou posse, como no caso de depósito ou comodato. Por essa razão
se afirma que a traditio consistia na entrega material do bem com a finalidade de
transferir o seu domínio, o que possibilita a identificação de seus dois elementos: a
entrega material da coisa e a justa causa.
Quanto à entrega, inicialmente somente se a admitiu na forma
efetivamente material, ou seja, mediante a apreensão física do bem pelo adquirente.
Tratando-se de bem que não pudesse ser transportado, admitia-se a entrega
simbólica de algo que o representasse, como um galho de uma árvore para a
representação da própria árvore. Tratando-se de uma área de terra, de início se
exigia que o adquirente o percorresse a pé ou a cavalo. Com o tempo, passou a
admitir a imissão de posse pelo olhar, hipótese em que o adquirente deveria subir no
local mais elevado do imóvel com o objetivo de enxergá-lo, entrega à qual se deu o
nome de traditio longa manu. Também se admitiu a tradição pelo simples ânimo,
independentemente da manifestação física da entrega, tanto no caso da traditio
brevi manu – hipótese em que o detentor ou possuidor passava a possuir a coisa a
título de dono – como no caso do constituto possessório – hipótese em que o
proprietário alienava o bem, mas mantinha a sua posse a título diverso (conferir
2.2.2).
Além da entrega – material, simbólica ou fictícia – do bem, a justa
causa também era indispensável à transmissão da propriedade por meio da traditio.
160
A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 99.
57
A justa causa se consubstanciava no negócio jurídico anterior e necessariamente
válido, cuja conseqüência, por meio da entrega do bem, era a transferência do
domínio. Sem a justa causa, a tradição não teria razão de ser, já que não transferiria
a propriedade. A justa causa era considerada o elemento subjetivo e propriamente
jurídico em virtude do qual a transferência da posse do bem produzia a transferência
de sua respectiva propriedade 161 .
Os três modos de aquisição da propriedade no direito romano são
aceitos sem controvérsias pelos estudiosos do tema, inexistindo dúvida de que os
três existiram e tiveram aplicação prática, com a ressalva da popularidade restrita da
in iure cessio em decorrência da necessidade de sua realização perante um
magistrado 162 .
A natureza dos institutos, entretanto, não pode ser considerada
aceita de forma pacífica. No Brasil, Darcy Bessone, a respeito dos modos romanos
de transmissão da propriedade, afirmou que ”a propriedade transferia-se, entre os
romanos, por efeito do acôrdo de vontades ou, mais precisamente, do contrato. A
mancipatio, em sua segunda fase, e a in jure cessio eram já contratos consensuais,
pois que se concluíam através de simples convergência de vontades, sem a entrega
imediata da coisa. A própria traditio também se espiritualizou, ao surgirem o
constitutum possessorium, a traditio brevi manu, a traditio longa manu e, mesmo, a
tradição simbólica. Destinando-se a transmitir o domínio, tais modos de adquirir
eram contratos reais pelos efeitos” 163 .
161
Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 242.
162
Conferir a nota 159.
163
Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 52.
58
A posição do doutrinador reflete uma discussão que remonta à
própria época a respeito do ato que dava ensejo à transmissão da propriedade e do
próprio momento em que se a reconhecia transmitida.
A. Santos Justo afirma que, enquanto os romanos seguiam
rigidamente o princípio de que a transferência voluntária da propriedade somente
podia se realizar mediante um ato típico, necessariamente a mancipatio, a in iure
cessio ou a traditio, outros povos consideravam que a transferência se dava
mediante a redação e a entrega de um documento que indicava o negócio jurídico
efetuado. E que a expansão das conquistas romanas e o conseqüente aumento das
relações comerciais com outros povos tornaram inevitável o choque entre os dois
princípios 164 .
É inegável que, ao longo do tempo, a tradição sofreu alterações que
ensejaram inclusive o seu reconhecimento na forma imaterial nos casos
especificamente previstos, mas tais circunstâncias não permitem a conclusão de que
tenha sido considerada extinta como modo de transmissão da propriedade
mobiliária.
“Nondimeno cotesto modo di manifestare la rispettiva intenzione
dell’alienante e dell’acquirente, trattandosi di mero fatto sociale da interpretare via via
secondo l’evoluzione psicologica e civile della società, venne naturalmente, per
opera della giurisprudenza, a staccarsi via via dalla pura materialità dell’atto. Nel
diritto giustinianeo la transmissione del possesso si può compiere in modi cosi
dissimulati e quasi spirituali, che a dichiarare il transferimento della proprietà per
mutuo consenso no v‘è più che un passo. Tali sono i casi delle tradizione simbolica,
164
Direito Privado Romano, cit., p. 105.
59
longa manu, brevi manu e del costituto possessório; tutti riassunti nella categoria
generale della traditio ficta” 165 .
Afirma-se
que
a
imaterialidade
da
tradição
nos
casos
especificamente detalhados ao longo da história romana não comprova que a
transmissão da propriedade passou a ser reconhecida mediante a mera
manifestação de vontade das partes, mas antes confirma a regra de que no direito
romano a transmissão da propriedade pela traditio dependia necessariamente da
entrega – material ou imaterial, nos casos especificamente previstos – do bem e do
justo título (ou justa causa).
Essa a lição romana aceita pelo direito brasileiro, que reconhece a
distinção entre titulus adquirendi e modus acquisitionis. Titulus adquirendi é “a causa
jurídica ou razão de ser da transmissão da aquisição ou transmissão do direito”;
modus acquisitionis é “o fato ao qual a lei atribui o efeito de constituir um direito real
ou operar a sua transmissão” 166 .
De acordo com a máxima romana “traditionibus et usucapionibus
dominia rerum, non nudis pactis transferuntum”, o domínio das coisas se transfere
por tradição e usucapião, nunca por simples pactos. E, se por um lado o contrato por
si não transfere o domínio, por outro lado a tradição por si também não é suficiente à
transmissão da propriedade, porque é necessário que seja precedida de uma justa
causa. Ou seja, para a aquisição da propriedade, no sistema romano, de acordo com
a teoria aceita no direito brasileiro, o título não é suficiente para transferir o domínio
e o modo só transfere o domínio se o título for justo. Vale dizer, são necessários o
165
Pietro Bonfante. Instituzioni, cit., 1902, p. 237.
166
Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 224.
60
título e o modo 167 .
Qualquer outra posição a respeito do direito romano, em que pese a
sua relevância em termos de pesquisa e de desenvolvimento teórico, não pode ser
aceita, porque em desacordo com os institutos romanos em que se fundamenta o
direito brasileiro, como se verá no estudo do sistema brasileiro de transmissão da
propriedade mobiliária (item 3.5).
3.2 – Sistema alemão
O sistema alemão de transmissão da propriedade tem sua origem no
direito romano e exige, para a transmissão da propriedade dos bens móveis, “la
entrega de la cosa com la voluntad de las partes dirigida a la transmissión” ou seja,
“la transmissión se verifica por entrega y acuerdo sobre el traspasso de la
propriedad” 168 .
A entrega “se verifica generalmente mediante dar y recibir
corporalmente, y no es, em tal caso, una declaración bilateral de voluntad, sino un
acto real” 169 .
167
Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 157.
168
Ludwig Enneccerus; Theodor Kipp; Martin Wolff. Tratado de derecho civil. Derecho de cosas (por
Martin Wolff). Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1951. Tercer Tomo, Volume II, p. 372.
169
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 372. A respeito da
classificação do ato de disposição como contrato real, Andréas Von Tuhr adverte: “Como en el
comienzo los juristas han advertido la naturaleza abstracta del acto dispositivo en materia de cosas, y
especialmente de contratos reales, ha podido abrirse paso el hábito de designar al acto dispositivo
como negocio real, por la circunstancia de que es abstracto. Por ejemplo, para distinguir el pactum de
cedendo de la cesión, se ha clasificado a esta última como contracto real, incurriendo en error, pues
la cesión no es y no puede ser contrato real, ya que su objeto es uma obligación”. O autor também
refere que “parece que los redactores de los Motivos no tuvieram conciencia de haber creado com la
expresión ‘disposición’ um nuevo término técnico, que es suficiente para designar a los negócios que
afetan el activo del patrimônio, em oposición a los que fundamentan obligaciones” (Teoria general del
derecho civil aleman. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1947. Volumen II1, p. 283-284).
61
Como característica peculiar e diversa do sistema romano, a
transmissão da propriedade mobiliária no sistema alemão não se verifica por meio
de um título – negócio jurídico – e de um modo, mas sim por meio de dois negócios
jurídicos. “La transmissión es contrato real y debe, por lo tanto, diferenciarse del
negocio que obligue a la transmissión” 170 .
Ou seja, para a transmissão da propriedade é necessário um outro
ato, além do contrato, mas esse outro ato não está condicionado necessariamente
ao contrato, porque para a transmissão da propriedade se abstrai a causa 171 , o que
permite afirmar que, ainda que lhe falte um negócio causal válido, a transmissão
será eficaz. “O sistema alemão dá eficácia real à entrega-tomada, sem permitir que
se veja, através da transparência do acordo, a causa do negócio jurídico básico” 172 .
Tratando-se de dois negócios jurídicos desvinculados, não é
suficiente que as partes tenham manifestado seu consentimento quanto ao negócio
causal antecedente (o contrato de compra e venda, por exemplo), mas sim é
necessário que o manifestem válida – e novamente – quando da efetivação da
tradição. Para a transmissão da propriedade mobiliária por meio da entrega do bem
móvel, portanto, a entrega “há de ser la expressión de la voluntad de transmitir, la
aquisición de la possessión, expressión de la voluntad de adquirir la propriedad” 173 .
Embora seja possível, quando do aperfeiçoamento do ato de
disposição - ou contrato real de entrega –, o reconhecimento de que as partes já
170
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 375.
171
Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 158.
172
Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1956. Tomo XV, p.
239.
173
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 376.
62
haviam manifestado validamente o seu consentimento e de que nenhum elemento
permite a conclusão de que haveria modificação de sua vontade, exige-se que no
momento da entrega subsistam os requisitos do primeiro contrato, como a
capacidade das partes para contratar.
O sistema alemão admite a transmissão da propriedade por traditio
brevi manu, desde que o adquirente já esteja na posse do bem. Nessa hipótese, é
indiferente que o adquirente tenha obtido a posse do próprio alienante ou de um
terceiro, porque o negócio jurídico causal será reconhecido como suficiente à
transmissão da propriedade mobiliária. A transmissão da propriedade mobiliária,
nesse caso específico, será reconhecida pela manifestação de vontades das partes
contratantes.
A entrega, como contrato real desvinculado do acordo que lhe pode
ser considerado causal, também pode ser substituída pelo constituto possessório e
pela cessão da pretensão de entrega.
O constituto possessório apresenta as mesmas características do
sistema romano e do sistema brasileiro e funciona de forma inversa em relação à
traditio brevi manu. Os dois institutos – o constituto possessório e a traditio brevi
manu – permitem a alteração do título sob o qual o possuidor mantém consigo o
bem objeto do contrato, sem que o referido bem mude de mãos.
No constituto possessório, o alienante, titular do domínio e da posse
de um bem, celebra um contrato – que constitui a causa da transmissão da
propriedade – com o adquirente. Mediante previsão expressa – ou implícita – no
referido contrato, o alienante transfere o seu domínio, mas sob o fundamento do
mesmo contrato mantém consigo a posse do referido bem, como se dá no caso do
63
proprietário do veículo que o aliena, mas o mantém na qualidade de locatário ou de
comodatário. São necessários dois requisitos à transmissão da propriedade: o
acordo entre o alienante e o adquirente a respeito da transmissão da propriedade e
o acordo entre ambos a respeito da relação jurídica que fundamenta a manutenção
do bem sob a posse do antigo proprietário e atual possuidor a título diverso. Ou seja,
a retenção do bem pelo alienante que deixa de ser proprietário deve ser justificada
pela circunstância de se tornar possuidor.
Na traditio brevi manu, aquele que mantinha a posse direta ou
imediata do bem, mas não era o titular do seu domínio, celebra um contrato de
compra e venda com o proprietário do bem, titular da propriedade e da posse
indireta. Mediante previsão expressa – ou implícita – no contrato, o adquirente, que
era apenas possuidor, passa a ser o titular da propriedade, como se dá no caso em
que o locatário adquire do locador o bem locado 174 .
A cessão da pretensão de entrega, por fim, pressupõe a posse do
bem por um terceiro, que a mantém, já que também nesse caso não se verifica
entrega material do bem cuja propriedade é transmitida.
Quanto à aquisição de bem a non domino, o sistema alemão exige
distinção entre a aquisição de coisa extraviada e de coisa não extraviada.
Tratando-se de coisa extraviada, que se considera aquela cuja
posse foi perdida pelo possuidor imediato sem a manifestação de sua vontade, “se
excluye em principio la adquisición de la propriedad, aunque el adquirente proceda
174
Andréas Von Tuhr faz referência a uma situação que afirma ser bastante importante e pouco
estudada, quanto ao momento da transmissão da propriedade por meio da traditio brevi manu: “Si el
adquirente ya tiene la posesión, el consentimiento le transforma, sin más, en proprietário (brevi manu
traditio), siempre que el acuerdo sea en el sentido de transferir inmediatamente la propriedad En
cambio, si se convino en que el adquirente podrá apropriarse de la cosa que está en su posesión sólo
en un momento ulterior, no adquiere la propriedad inmediatamente, sino la facultad de adquirirla más
tarde por efecto de su voluntad” (Teoria. Volumen II1, cit., p. 217-218).
64
de buena fe”, mas essa regra não se aplica ao dinheiro e aos títulos ao portador,
bem como não se aplica aos bens vendidos em hasta pública 175 .
Por sua vez, a propriedade da coisa não extraviada, do dinheiro e
dos bens vendidos em hasta pública é considerada transmitida inclusive a non
domino, desde que preenchidos dois requisitos: “la buena fé del adquirente y una
adquisición de la posesión de carácter diverso según sea el modo de transmisión. El
fundamento de este principio es que se considera digno de protección a quien creu
en la propriedad del enajenante que le procuro la posesión” 176 .
Por fim, quanto à transmissão a non domino por entrega (tradição
real) ou por acordo (tradição ficta), tem-se que a boa-fé do adquirente do bem
mediante entrega deve existir no momento da entrega, não se lhe aplicando
qualquer sanção se posteriormente vem a saber que o alienante não era o
proprietário do bem.
No caso da traditio brevi manu, exige-se a boa-fé do adquirente no
momento do acordo, bem como que se exige que o adquirente tenha obtido a posse
do bem do próprio alienante (a non domino) e não de terceiro.
O constituto possessório não enseja a transmissão da propriedade a
non domino, ainda que ao adquirente de boa-fé, considerando-se que a posse é
mantida nas mãos do próprio alienante a non domino. A única hipótese de
aperfeiçoamento da transmissão da propriedade nesse caso se dará mediante a
entrega do bem pelo possuidor/alienante ao adquirente, desde que a este se
reconheça ainda a boa-fé.
175
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 394-395.
176
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 396.
65
E, quanto à cessão da pretensão de entrega, se o alienante é
possuidor mediato do bem, transmite ao adquirente a posse mediata e, juntamente
com esta, o adquirente recebe a propriedade do bem, desde que tenha agido de
boa-fé no momento da cessão. Mas a propriedade não será transmitida ao
adquirente se o alienante a non domino não for possuidor mediato do bem cuja
cessão de pretensão se transmite. Nesse último caso, o adquirente do bem
mediante a cessão da pretensão de entrega somente adquirirá a propriedade se
receber a posse do terceiro possuidor e desde que, ao recebê-la, seja-lhe
reconhecida a boa-fé.
3.3 – Sistema francês
No direito francês anterior ao chamado Code Napoléon, datado de
1804, o conceito teórico da compra e venda era o mesmo aceito pelo direito romano.
Aubry e Rau explicam que, de acordo com a doutrina antiga,
“l’aquisition des droits réels, et principalement celle du droit de proprietè, supposerait
em general le concours de deux éléments distincts, à savoir le titre e le mode
d’acquérir. D’après cette doctrine, le titre serait la cause juridique qui rendrait
l’acquisition légalement efficace, et le mode d’acquérir le fait par lequel elle se
consommerait” 177 .
Na prática cotidiana francesa, o princípio romano foi considerado
arbitrário e deixou de ser utilizado. Com o tempo, tornou-se usual, amparada pelo
177
“a aquisição dos direitos reais e especificamente do direito de propriedade supunha em geral o
concurso de dois elementos distintos, a saber o título e o modo de adquirir. De acordo com essa
doutrina, o título era a causa jurídica que tornava a aquisição legalmente eficaz, e o modo de adquirir
era o fato por meio do qual a aquisição se consumava” (C. Aubry et C. Rau. Cours. Tome Douze, cit.,
p. 74/75).
66
costume, a introdução da cláusula denominada dessaisine-saisine, que permitia a
transmissão da propriedade por tradição ficta e dispensava a entrega real e efetiva
do bem.
Quando das discussões a respeito da elaboração do Code Civil, “la
Commission chargée de présenter le projet de ce Code admit en principe que la
propriété, soit des meubles, soit de immeubles 178 , devait, indépendamment de la
tradition, et même de tout clause expresse destinée à y suppléer, se transférer par le
seul effet des conventions ayant pour object d’en opérer la transmission. Ce príncipe
fut adopté sans opposition par le Conseil d’Etat et par le Tribunat” 179 .
A partir do entendimento reconhecido como aceito pelo Código Civil
francês, nesse sistema se reconheceu à convenção o efeito translativo, o que
equivale a dizer que o título, por si, é suficiente para transferir a propriedade. Não é
necessário o modo, o que significa que, aperfeiçoada a convenção, não se reputa
necessária a formalidade da tradição.
A propriedade é transmitida solu consensu. “Dans le système du
Code Napoléon, les conventions ayant pour objet de transférer ou de constituer des
droits personnels ou réels, una fois parfaites comme telles, transmettent et
178
Considerado o objeto do estudo do presente trabalho, o sistema francês foi considerado
exclusivamente quanto à transmissão da propriedade mobiliária.
179
“a Comissão encarregada de apresentar o projeto do Código admitiu que a propriedade, fosse de
bens móveis ou imóveis, devia, independentemente da tradição, e independentemente de qualquer
cláusula expressa para supri-la, ser transferida pelo efeito das convenções que tivessem como objeto
o bem a ser transferido. Esse princípio foi adotado sem oposição pelo Conselho de Estado e pelo
Tribunat” (C. Aubry et C. Rau. Cours, cit., p. 74/75). Pontes de Miranda afirma que a aceitação da
mudança do sistema de transmissão da propriedade mobiliária não foi consensual e que a melhor
doutrina francesa lhe foi contrária, para cuja comprovação transcreve Pothier: “La chose que le
débiteur s’est obligé de donner, continue donc de lui appartenir, et le créancier ne peut devenir
propriétaire que par la traditión réelle ou feinte, que lui en fera le debiteur em accomplisant son
obligatión” (Robert Joseph Pothier. Oeuvres, I, n.º 151, 39 APUD Pontes de Miranda. Tratado. Tomo
XV, cit., p. 243 (“A coisa que devedor está obrigado a entregar continua a lhe pertencer, e o credor
não pode se tornar proprietário senão pela tradição real ou ficta que lhe fará o devedor em
cumprimento de sua obrigação”).
67
établissent ces droits par elles-mêmes, c’est-à-dire indépendamment de toute
formalité extrinsèque, et de tout acte d’exécution; et ce, non seulement en ce qui
concerne les rapports des parties contractantes, mais encore vis-à-vis des tiers,
auxquels telle ou telle convention serait oposable de sa nature, et d’après les règles
établies em matière de preuve” 180 .
Especificamente quanto aos bens móveis, o artigo 2279 do Código
Civil francês estabelece que “la possession vaut titre” 181 e é utilizado para fins de
solução de litígios envolvendo bens dessa natureza 182 .
O fundamento da regra é a ausência de proteção do adquirente de
um bem móvel. Embora a reivindicação do bem móvel pelo proprietário obedecesse
à lógica jurídica de que ninguém pode alienar o que não é seu, considerava-se que
causava insegurança nas relações jurídicas do dia-a-dia. “Ahora bien, es muy difícil,
en ocasión en que se trata de un mueble, el verificar los derechos de su causante;
las operaciones mobiliarias no constan geralmente por escrito; los muebles se
transmiten, de vendedor a comprador, por ejemplo, muy simplesmente de mano a
mano, sin que la transferencia de propriedad deje huellas; de hecho, el comprador
de um mueble no dispone de ningún medio eficaz para verificar la situación jurídica
180
“No sistema do Código napoleônico, as convenções que têm por objeto transferir ou constituir
direitos pessoais ou reais, uma vez aperfeiçoadas, transmitem e estabelecem esses direitos por si
mesmas, ou seja, independentemente de qualquer formalidade extrínseca e de qualquer ato de
execução, e isso não apenas em relação às partes contratantes, mas também em relação aos
terceiros em relação aos quais a convenção seria oponível por sua natureza, de acordo com as
regras estabelecidas em matéria de prova” (C. Aubry et C. Rau. Cours, cit., p. 77).
181
A posse equivale ao título.
182
“Como la excepción está siempre en oposición con el principio al que se opone, es preciso llegar a
la conclusión de que ese principio consiste aqui en la negativa de la reividicatión contra el poseedor
de um mueble. El artículo 2279 debe, pues, entenderse de la manera siguiente: 1º en tesis general,
no se reivindican los muebles (1er. apartado); 2º por excepción, la víctima de una pérdida o de un
robo tiene la acción de reivindicación durante cierto tiempo” (Louis Josserand. Derecho civil. La
propriedad y los otros derechos reales y principales. Buenos Aires: Bosch y Cia. Editores, 1950, p.
208-209).
68
de su causante; y por eso, es injusto que quede expuesto a la reivindicación por
parte de um tercero; la equidad exige que quien entró en posesión de um mueble en
condiciones normales, no pueda ser inquietado” 183 .
A aplicação desse dispositivo legal pode funcionar como uma regra
de prova ou como um princípio. “Pour régler ce conflit entre titulaires de droits réels
concurrents en l’absence de publicité foncière, l’article 2279, al. 1er fournit une
solution fort utile en faisant présumer que le possesseur a acquis par juste titre le
meuble litigieux. Le possesseur est donc dispensé de rapporter la preuve de son
droit sur le meuble. Le texte procède ainsi à um renversement de charge de la
preuve car c’est à la personne revendiquante ou à ses ayants droits qu’il revient de
prouver que le possesseur n’a pas acquis la propriété de la chose 184 . A segunda
função, ou seja, a aplicação da regra do artigo 2279 como princípio se verifica na
hipótese de aquisição a non domino. “Dans ce cas, um possesseur a cru acquérir
valablement une chose d‘une personne qui n’en était pás le propriétaire.
L’application du principe selon lequel la possession vaut titre va permettre ici de
transférér instantanément le droit de propriété au possesseur a non domino sans que
le revendiquant puisse rapporter la preuve contraire. La présomption de propriété est
irréfragable et fait disparaître le conflit de droits entre acquéreur et véritable
183
Louis Josserand. Derecho civil, cit., p. 210.
184
Jean-Louis Bergel; Marc Bruschi; Sylvie Cimamonti. Traité de droit civil – Les biens. Paris: Librairie
Générale de Droit et de Jurisprudence, E.J.A., 1999, p. 243-244. “Para solucionar o conflito entre
titulares de direitos reais concorrentes na ausência de publicidade na sua origem, o artigo 2279,
alínea primeira, estabelece uma solução de grande utilidade ao estabelecer a presunção de que o
possuidor adquiriu mediante justo título o bem móvel litigioso. Essa presunção dispensa o possuidor
de produzir a prova de seu direito sobre o referido bem. O texto impõe a inversão do ônus da prova,
recaindo sobre o reivindicante a necessidade da prova de que o possuidor não adquiriu a propriedade
do bem litigioso”.
69
propriétaire” 185 .
As duas aplicações da regra do artigo 2279, alínea primeira, do
Código Civil francês, não permitem a conclusão de que, quanto aos bens móveis, a
tradição foi (re)admitida por aquele sistema de direito como modo de transmissão da
propriedade mobiliária 186 .
Considera-se que a alínea segunda do mesmo dispositivo legal
(“Néanmoins celui qui a perdu ou auquel il a été volé une chose peut la revendiquer
pendant trois ans à compter du jour de la perte ou du vol, contre celui dans les mains
duquel il la trouve; sauf à celui-ci son recours contre celui duquel il la tient” 187 )
restringe consideravelmente a aplicação da alínea primeira e afasta a possibilidade
de reconhecimento de posse como comprobatória da propriedade, como regra.
Nesse caso, a posse daquele que pensou ter adquirido o bem validamente – posse,
portanto, de boa-fé, reconhecida como apta a comprovar a propriedade, nos termos
da alínea primeira – cede à prova da propriedade sem posse daquele que, tendo
sido proprietário e possuidor, perdeu a posse em decorrência da perda ou do furto
do bem em questão.
Por outro lado, tem-se que a regra do artigo 2279, alínea primeira,
do Código Civil francês, embora não admita a conclusão de que o sistema francês
185
“Nesse caso, um possuidor acredita ter adquirido validamente um bem de uma pessoa que não
era o proprietário. A aplicação do princípio segundo o qual a posse vale como título permite transferir
imediatamente o direito de propriedade ao possuidor a non domino, sem que o reivindicante possa
produzir prova em contrário. A presunção de propriedade é irrefragável e faz desaparecer o conflito
de direitos entre o adquirente e o verdadeiro proprietário” (Jean-Louis Bergel et AL. Traité – Les
Biens, cit., p. 244).
186
Lafayette Rodrigues Pereira afirma que o direito francês cedeu “à força das coisas” e restabeleceu
de fato a tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária por meio da previsão do
artigo 2279 do Código Civil Francês (Direito das Coisas, cit., nota 2).
187
“Não obstante, aquele que perdeu um bem ou o teve furtado pode reivindicá-lo durante três anos a
contar da data da perda ou do furto contra aquele que a encontrou; salvo a este o direito de regresso
contra aquele de quem o adquiriu”.
70
(re)admitiu a tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária,
comprova que o sistema que admite a transmissão da propriedade mobiliária por
meio das convenções apresenta falhas graves que, em casos de discussão a
respeito de (des)cumprimento de contratos de compra e venda de bens móveis,
poderão ensejar problemas da mesma natureza dos problemas identificados nos
sistemas que exigem, além do título (ou convenção), o modo para a transmissão da
propriedade mobiliária.
Considera-se a situação concreta em que duas partes celebraram
um contrato escrito de compra e venda de um aparelho de som. Suponha-se que o
comprador pagou o preço quando da celebração do contrato, mas não recebeu
imediatamente o bem porque foi providenciar os meios necessários ao seu
transporte, por exemplo. Em razão da eficácia conferida pelo sistema de direito
francês ao contrato de compra e venda, a celebração do contrato, por si, transferiu a
propriedade do aparelho de som ao comprador. Em conseqüência, a recusa do
vendedor à entrega do bem enseja ao comprador o direito à reivindicação do
aparelho de som, como proprietário. Para a reivindicação, o comprador deverá
comprovar a celebração do contrato de compra e venda, mediante os meios de
prova admitidos pela legislação francesa pertinente. No caso concreto referido, o
comprador dispõe do próprio contrato escrito, como justo título, a comprovar a
transmissão da propriedade do bem móvel.
Comprovada a celebração do contrato, aplicar-se-á a regra geral de
que a propriedade se transmite pela convenção e independentemente de qualquer
ato externo, e o aparelho de som deverá ser entregue ao comprador, como
proprietário.
71
A solução será diversa se o contrato de compra e venda tiver sido
celebrado de forma verbal e na presença exclusiva das artes. Suponha-se ainda que
o comprador tenha feito o pagamento do preço, em dinheiro, no ato da celebração,
sem exigir recibo ou qualquer outra prova da quitação de sua obrigação. O
comprador, que, além de proprietário do aparelho de som como conseqüência da
própria celebração do contrato, cumpriu a sua obrigação de pagamento do preço,
não tem a posse do aparelho de som. Mantém-na o próprio vendedor, e a posse (do
vendedor) é injusta a partir da recusa ao pedido de entrega feito pelo comprador.
Considerada a ausência de prova da celebração do contrato, porque
se tratou de contrato verbal celebrado na presença exclusiva das partes, bem como
a ausência de prova do pagamento do preço pelo comprador, é de se reconhecer a
inviabilidade concreta da produção da referida prova, que permitiria, por sua vez,
a prova da transmissão da propriedade e daria ao comprador o direito à
reivindicação do aparelho de som como proprietário, conforme o exemplo
anteriormente utilizado.
Nesse caso, inviabilizada a prova da convenção, restará a aplicação
do disposto no artigo 2279, alínea primeira, do Código Civil francês, que, como regra
de prova, ensejará a conclusão de que ao vendedor não se impõe o ônus de
comprovar que o aparelho de som é seu, embora não o seja, conforme o exemplo
elaborado. E o comprador não disporá de nenhum meio de prova dos fatos
constitutivos de seu direito de propriedade, que somente se sabe existente em
decorrência da narrativa.
Considerados os dois exemplos, a conclusão é de que, quanto aos
bens móveis, a posse equivale ao título somente em caso de não comprovação da
72
existência do próprio título pela parte a quem este beneficiaria.
No segundo exemplo, em que será aplicada a regra do artigo 2279
do Código Civil francês e será reconhecida a propriedade ao vendedor, pode-se
alegar que a solução – injusta – não decorre de um problema do sistema de direito
francês de transmissão da propriedade mobiliária, mas sim das regras de prova do
referido sistema. Considera-se, entretanto, que se trata de regras de prova
decorrentes da aplicação dos próprios institutos de direito material previstos no
artigo 2279 do Código Civil francês.
A conseqüência é que a regra criada com o objetivo de prestigiar o
concreto e beneficiar a situação fática, em detrimento da teoria – da transmissão da
propriedade mobiliária por meio da convenção –, pode acabar por beneficiar a má-fé
em detrimento da boa-fé.
O problema não é exclusivo do sistema que reconhece às
convenções a eficácia da transmissão da propriedade, como se verá quando do
estudo do sistema brasileiro.
3.4 – Sistema inglês 188
O principal diploma legal referente à transmissão da propriedade
188
A Inglaterra, a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do Norte formam o Reino Unido, cujo sistema
de direito é, em tese, uno. No entanto, existem previsões específicas, como por exemplo a Section 11
do Sale of Goods Act 1979, que estabelece que as subseções 2 a 4 e 7 não se aplicam à Escócia e a
que a subseção 7 se aplica somente à Escócia. Outro exemplo é o limite de dez libras para que o
contrato precise ser celebrado na forma escrita ou tenham sido dadas arras ou exista alguma prova
concreta de sua celebração para que esse contrato possa ser discutido em juízo, regra que vigora na
Irlanda do Norte, mas não vigora na Inglaterra. Ainda, por se tratar de países de common law, a
interpretação das regras pelos tribunais não é necessariamente a mesma. Por tal razão, tendo sido
estudada a lei inglesa aplicada aos casos concretos daquele país, a opção foi pela referência
exclusiva ao sistema inglês e não ao sistema do Reino Unido.
73
mobiliária na Inglaterra é o Sale of Goods Act 189 , datado de 1893, reeditado em 1979
e emendado em algumas oportunidades desde então.
As regras estabelecidas pelo Sale of Goods Act a respeito da
transmissão da propriedade mobiliária decorreram da influência comercial vigente
no século XIX, ocasionada pelo expansionismo inglês durante a era vitoriana. As
regras anteriores à era vitoriana tinham por fundamento exclusivamente os costumes
estabelecidos pelas partes nas respectivas regiões onde os contratos eram
celebrados. Por causa do expansionismo decorrente do estabelecimento de diversas
colônias inglesas ao redor do mundo e do crescimento da indústria inglesa, que
ensejou o crescimento do comércio com outros países, os vitorianos decidiram que
seria necessário racionalizar. Pretenderam formular regras que tivessem validade
para o país e também internacionalmente. Desse pensamento resultaram as regras
referentes à transmissão da propriedade mobiliária como se as reconhece
atualmente 190 .
A propriedade mobiliária é transmitida por meio da manifestação do
consentimento das partes, independentemente de qualquer ato externo, ou seja, no
caso do contrato de compra e venda, independentemente do pagamento do preço e
da entrega do bem, com a ressalva de que o bem objeto do contrato deve ser
passível de entrega imediata.
O acordo que dá ensejo à transmissão da propriedade mobiliária
pode ser inclusive verbal, e não existe limite de valor para que o acordo verbal tenha
validade entre as partes e perante terceiros. Isso significa que a propriedade
189
Disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7.
190
Tony Lancaster, Magistrado da Newcastle Upon Tyne Crown Court, em entrevista realizada no dia
26 de julho de 2005, em Newcastle, Inglaterra.
74
mobiliária é transferida pela manifestação da vontade das partes tanto no caso de o
objeto ser uma caneta, no valor de uma libra, como no caso de ser um anel de
diamante, no valor de dez mil libras.
Tony Lancaster, magistrado da Newcastle Upon Tyne Crown Court,
apresenta o seguinte exemplo: duas pessoas celebram um contrato de venda de um
anel de diamante. O bem objeto do contrato existe e é passível de entrega imediata,
o que permite a conclusão de que a própria celebração do contrato transmitiu a
propriedade do vendedor ao comprador. Mas o anel é guardado no cofre da casa do
vendedor, onde permanecerá até a manhã do dia seguinte ao dia da celebração do
contrato e da conseqüente transmissão da propriedade mobiliária, oportunidade em
que o comprador passará para buscá-lo, conforme acordo expresso das partes. Se
durante a noite o cofre for furtado, considerada a ausência de culpa do vendedor, a
perda do bem será do comprador, porque a propriedade do anel lhe havia sido
transmitida no momento em que o contrato fora celebrado. Se se tratar de contrato
celebrado entre um consumidor e uma joalheria, por exemplo, a regra legal estrita
poderia dar lugar à utilização de normas criadas em benefício do comércio e do
consumidor, o que ensejaria a utilização do seguro da joalheria para a cobertura do
dano decorrente do furto do anel vendido ao consumidor e provavelmente
acarretaria a oportunidade ao consumidor de escolher outro anel, que lhe seria
entregue no lugar do anel furtado. Mas essa solução caracterizaria exceção e não a
aplicação da regra estrita prevista legalmente 191 .
As regras específicas para as hipóteses decorrentes do contrato de
compra e venda serão estudadas no item 5.4.
191
Tony Lancaster, cit.
75
3.5 – Sistema brasileiro
Não há consenso se no direito brasileiro anterior ao Código Civil de
1916
a
transmissão
da
propriedade
mobiliária
se
dava
pelo
contrato
independentemente de qualquer ato externo ou exigia a tradição.
Luiz da Cunha Gonçalves afirma que, no Código Civil de 1916, o
legislador brasileiro abandonou o princípio tradicional do direito civil, previsto nas
Ordenações, e adotou o modelo alemão, ao estabelecer que a propriedade dos bens
não se transfere pelo contrato antes da tradição 192 . Sílvio de Salvo Venosa afirma
que, no direito vigente anteriormente ao Código Civil de 1916, “proclamava-se a
suficiência tão-só do contrato para a aquisição da propriedade, sem necessidade de
outra formalidade” 193 . Caio Mário da Silva Pereira, no mesmo sentido, afirma que no
direito brasileiro anterior ao Código Civil de 1916 considerava-se que “a propriedade
se transmitia exclusivamente pelo contrato, sem a necessidade de qualquer outra
exigência” 194 . Darcy Bessone, por sua vez, ao tratar da eficácia do contrato de
compra e venda no direito brasileiro anterior à vigência do Código Civil de 1916,
afirma que não houve consenso sobre a transmissão da propriedade pelo contrato
ou a necessidade do ato dispositivo consistente, no caso dos bens móveis, na
tradição 195 .
Consignado o dissenso a respeito do direito brasileiro pré-codificado,
192
Da compra e venda no direito comercial brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1950, p. 72.
193
Direitos reais, cit., p. 187.
194
Instituições. Direitos reais, cit., p. 118.
195
Da compra e venda, cit., p. 74-75. Também a respeito da transmissão da propriedade por meio do
contrato de compra e venda ou da tradição no Brasil anteriormente à vigência do Código Civil de
1916, conferir o Capítulo 6 – O contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito
brasileiro, Item 6.1 – Eficácia.
76
a manifestação da maioria dos juristas comprova que a tese da transmissão
contratual da propriedade mobiliária no Brasil jamais obteve real aprovação.
A respeito da transmissão da propriedade mediante o contrato e
independentemente de qualquer ato externo, escreveu Teixeira de Freitas, na
exposição de motivos de seu projeto de Consolidação das Leis Civis: “Estabelecido
o direito pessoal, de onde tem de resultar a transmissão da propriedade, e pois que
a fé dos contractos deve ser mantida, muitos espiritos não quizerão vêr mais nada; e
derão logo a propriedade como transmittida, e como adquirida, só pelo simples
poder do concurso das vontades em um momento dado. Tomou-se a propriedade
em seu elemento individual somente, não attendeu-se ao seu elemento social;
contou-se com a boa fé das convenções, como se má fé não fosse possível, ou não
pudesse prejudicar á terceiros. As cousas, que se convenciona transmittir, é
possível, que não sejam transmittidas; e a mesma cousa póde sêr vendida a duas
differentes pessoas. Se o contracto basta, independente de qualquer manifestação
exteriôr da transferência do domínio, o segundo compradôr póde em boa fé
transmittir também a cousa, que assim irá sucessivamente passando á outros. Ahi
temos um conflicto de direitos, ahi temos uma colisão, onde aparece de um lado o
interesse de um só, e do outro lado o interesse de muitos 196 .
Também a respeito da transmissão da propriedade mediante tão
somente a celebração do contrato, escreveu Manoel Ignacio Carvalho de Mendonça:
“Identificar contracto com domínio foi sempre a mais revoltante das aberrações
jurídicas. É pelos defeitos reaes e inilludiveis do systema francez que as legislações
de outros povos tem-se atido ao principio romano. Este é indubitavelmente mais
196
Augusto Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2003. Vol. I, p. CXCII-III.
77
accórde com uma concepção social da propriedade” 197 .
A partir do Código Civil de 1.916, a corrente predominante foi de que
o direito brasileiro adotou o sistema romano para a transmissão da propriedade
mobiliária 198 , mediante a exigência, para a sua efetivação, de um título aquisitivo e,
além deste, de um modo de aquisição.
A respeito da tradição no sistema romano, escreveu Teixeira de
Freitas, também na exposição de motivos de seu projeto de Consolidação das Leis
Civis: “Pela natureza das cousas, por uma simples operação lógica, por sentimento
espontaneo de justiça, pelo interesse da segurança das relações privadas ás que
liga-se a prosperidade em geral, como se-queira dizer, decide-se de prompto, que o
direito real deve-se manifestar por outros caracteres, por outros signaes, que não
sejam os do direito pessoal; e que esses signaes devem ser tão visíveis, tão
públicos, quanto fôr possivel. Não se-concebe, que a sociedade esteja obrigada a
respeitar um direito, que não tem conhecido. Eis a razão philosophica do grande
principio da tradição, que a sabedoria dos Romanos tem fixado, as legislações
posteriores reconhecido, e que também passou para o nosso Direito Civil 199 .
Segundo Laffayette Rodrigues Pereira, a natureza do domínio exige
que o seu deslocamento de uma pessoa a outra seja identificado por um sinal
197
Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça. Doutrina e Prática das Obrigações. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves & Cia. Volume I, p. 196.
198
Código Civil de 1916, Art. 620. “O domínio das coisas não se transfere pelos contratos antes da
tradição. Mas esta se subentende, quando o transmitente continua a possuir pelo constituto
possessório (artigo 675)”. A respeito do sistema brasileiro, R. Limongi França afirma que não se pode
dizer que adotou o sistema alemão, “porque sempre seguiu a tradição romana, muito antes do
aparecimento do Código Alemão, cujo projeto é da última década do Século XIX” (Manual de direito
civil, cit., p. 75-76). Ou seja, o doutrinador também afirma que o direito brasileiro pré-codificado já
exigia o título aquisitivo e a modo de aquisição para a transmissão da propriedade mobiliária (Conferir
as notas 192 a 195).
199
Augusto Teixeira de Freitas, Consolidação, cit., p. CLXXXIII.
78
exterior que o comprove e o confirme perante a sociedade. Como direito absoluto,
no sentido de ser oponível erga omnes, é imperioso que se garanta à sociedade o
conhecimento da transmissão da propriedade, para a segurança dos interesses
sociais e dos interesses ligados à própria propriedade, visando a prevenir as fraudes
que a má-fé de alguns, protegida pela clandestinidade que se seguiria decorrente da
transmissão da propriedade sem sinal exterior,– poderia causar em prejuízo da boafé da grande maioria 200 .
Adotado pelo direito brasileiro o sistema romano, pode-se afirmar
que o contrato, por si só, não transmite a propriedade da coisa, mas apenas cria a
obrigação de transferir 201 . O título – ao que interessa especificamente ao objetivo do
presente trabalho, o contrato de compra e venda – é simplesmente a causa da
aquisição e não tem eficácia translativa.
Ou seja, o contrato produz somente um direito pessoal: para o
alienante, gera a obrigação de entregar a coisa; para o adquirente, gera o direito de
exigir do alienante a tradição do bem objeto do contrato. Antes de cumprida a
obrigação da entrega pelo alienante não há transmissão do domínio, o que resulta
na conclusão de que o alienante detém e retém a propriedade do objeto alienado,
bem como na conclusão de que, até o momento da tradição, o adquirente é um
mero credor do alienante, com ação pessoal para forçá-lo a entregar a coisa ou a
restituir-lhe o preço no caso de ter sido pago. O cumprimento da obrigação do
alienante somente se consuma pela tradição, e a tradição, uma vez realizada,
desloca o domínio da coisa alienada da pessoa do alienante para a pessoa do
200
Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 127.
201
José Osório de Azevedo Júnior. Compra e venda – troca ou permuta. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2005, p. 19.
79
adquirente.
No ensinamento de Manoel Ignacio Carvalho de Mendonça: “Os
contractos e as obrigações delles resultantes foram sempre, como são ainda,
apenas um justo titulo para a acquisição da propriedade por transferência de um
proprietario a outro; só produzem um direito puramente pessôal que, para o
alienante é a obrigação de entregar a cousa, e para o adquirente o de exigir a
tradição. Antes do alienante cumprir a obrigação que assume, nem-um domínio tem
o adquirente. O alienante continúa com a propriedade do objecto alienado, com sua
livre disposição” 202 .
A respeito do assunto, afirma Orlando Gomes que, embora o título
seja indispensável, por ser a fonte da aquisição, ou o negócio jurídico causal, não
basta para que esta se efetue, sendo imprescindível o modus, que, em suma, é o
fato jurídico lato senso a que a lei atribui o efeito de produzir a aquisição da
propriedade. O modo pressupõe um título conforme o direito e só existe se
reconhecido por lei 203 .
Entendemos que o sistema brasileiro exige para a transmissão da
propriedade mobiliária o título aquisitivo e o modo de aquisição. Para os fins do
presente trabalho, o contrato de compra e venda e a tradição.
3.6 – Paralelo entre direito estrangeiro e o sistema brasileiro
Considerados os sistemas romano, alemão, francês e inglês de
transmissão da propriedade mobiliária, afirma-se que o sistema brasileiro tem seu
202
Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça. Doutrina, cit., p. 197.
203
Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 159.
80
fundamento no direito romano, especificamente na dupla exigência do direito
romano de um título aquisitivo e de um modo de aquisição para a transmissão da
propriedade mobiliária.
O sistema alemão, que, por um lado, apresenta semelhança com o
direito brasileiro em razão da duplicidade de momentos necessários à transmissão
da propriedade mobiliária, distancia-se do sistema brasileiro, por outro lado, em
razão da exigência de dois negócios jurídicos para a transmissão da propriedade,
enquanto o sistema brasileiro exige um título causal – o negócio jurídico – e um
modo.
A distinção entre o negócio jurídico da tradição no direito alemão e a
tradição como modo de aquisição no direito brasileiro tem especial relevância no
caso de tradição sem justo título. No sistema de direito alemão, em razão da
abstração da causa à qual se segue a tradição, esta, efetivada, produzirá seus
efeitos, ou seja, a propriedade terá sido transmitida, ainda que sem causa. Por outro
lado, no sistema de direito brasileiro, porque o modo está necessariamente ligado ao
negócio jurídico causal, que constitui o seu fundamento e subordina a sua validade,
como regra a tradição sem justo título não ensejará os seus efeitos, ou seja, o
adquirente terá a posse injusta do bem e estará sujeito à sua reivindicação pelo
proprietário.
Quanto aos sistemas francês e inglês, é inegável que, em princípio,
divergem de forma absoluta do sistema brasileiro, considerado especificamente o
momento em que se reputa transferida a propriedade, ou seja, o momento da
celebração do contrato, nos dois primeiros sistemas, e o momento da tradição do
bem objeto do contrato, no sistema nacional.
81
As regras gerais dos sistemas francês e inglês permitem a afirmação
inicial e genérica de que a propriedade mobiliária se transmite mediante a mera
convenção
e
independentemente
de
qualquer
ato
externo,
ou
seja,
independentemente da tradição.
Por outro lado, as diversas regras específicas dos dois sistemas
permitem também a conclusão de que ambos, reconhecidas as regras gerais,
reconhecem também a insuficiência destas à solução adequada de todas as
situações concretas.
É sabido que a propriedade é um poder de direito, enquanto a posse
é um poder de fato sobre a coisa. Enquanto no juízo possessório se discute o jus
possessionis, que é o direito à posse nascido da própria posse, no juízo petitório se
discute o jus possidendi, que se caracteriza como o direito à posse nascido do direito
de propriedade.
O fundamento da discussão da posse há que levar em conta a sua
origem, especificamente se foi justa. Isso porque, tratando-se de posse injusta, não
poderá ser invocada contra o direito de propriedade, caracterizando violência contra
esse, ou será considerada meramente detenção, o que impedirá igualmente seja
invocada contra o referido direito de propriedade.
Consideradas tais circunstâncias, no sistema francês a regra do
artigo 2279 do Código Civil tem especial relevância.
A doutrina francesa fundamenta o seu conteúdo (“En fait de meuble,
la possession vaut titre” 204 ) na constatação da insuficiência da proteção do
adquirente de bem móvel, em razão da inexistência de registro e, portanto, de
204
“Quanto aos bens móveis, a posse equivale ao título”. Acrescenta-se, equivale ao título que
fundamenta a propriedade.
82
controle da transmissão de bens dessa natureza.
Se, por um lado, não se reconhece que o referido dispositivo legal
(re)estabeleu a tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária, como
pretendeu Lafayette Rodrigues Pereira 205 , por outro lado é inegável que permitiu
uma perspectiva diversa a respeito da situação fática da posse como prova da
propriedade.
A conclusão é de que no sistema francês a regra geral de que a
convenção transmite a propriedade se aplica aos bens móveis. Comprovada a
convenção, esta se sobrepõe à posse para o fim de reconhecimento do titular da
propriedade. E, não comprovada a convenção, e somente nesse caso, a posse é
reconhecida como – equivalente ao – título para fins de reconhecimento da
titularidade da propriedade 206 .
Por sua vez, no sistema brasileiro, a comprovação da celebração da
convenção não ensejará o reconhecimento da titularidade da propriedade ao
adquirente, considerando-se que o negócio jurídico causal constitui apenas o título
aquisitivo que fundamentará a tradição, por meio da qual a propriedade mobiliária
será transmitida. Em conseqüência, diversamente do que ocorre no sistema francês,
o sistema brasileiro não reconhece ao comprador o direito de se valer da ação de
reivindicação do bem, já que esta é exclusiva do proprietário (e o comprador que não
recebeu o bem pela tradição não é proprietário do bem comprado).
Afastada a regra geral – a propriedade mobiliária no sistema francês
é transmitida pela convenção e a propriedade mobiliária no sistema brasileiro é
205
Conferir a nota 186
206
Conferir 5.3.
83
transmitida pela tradição fundada na convenção – em casos que não comportam a
sua aplicação por razões específicas a serem identificadas concretamente, tem-se
que os dois sistemas apresentam semelhança quanto à importância da posse do
bem móvel para o reconhecimento da titularidade de sua propriedade.
Assim é que, no sistema francês, o adquirente pelo constituto
possessório não adquirirá a propriedade do bem móvel se o alienante, que mantém
a posse do bem, aliená-lo a terceiro de boa-fé e entregá-lo materialmente a esse
terceiro. “En fait de meubles, le constitut possessoire n’investit pas l’acheteur de la
possession des choses vendues, à l’égard d’un second acquéreur de bonne foi. Ce
dernier sera préféré, s’il a été mis em possession réelle” 207 .
Portanto, a solução francesa para a situação comprova que, nessa
hipótese, a convenção foi suplantada pela tradição.
No Brasil, inexiste regra legal com o mesmo conteúdo do artigo 2279
do Código Civil francês, o que se reputa benéfico, considerado o sistema de
transmissão da propriedade mobiliária adotado e a incontestável existência de
número ilimitado de situações em que as circunstâncias ensejam consideração
específica.
Sem prejuízo, a posse do bem móvel é, como regra, o primeiro
indício a ser considerado para a prova da propriedade do referido bem 208 . Ou seja,
207
C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 49 (“Quanto aos bens móveis, o constituto
possessório não investe o adquirente na posse das coisas vendidas, considerado um segundo
adquirente de boa-fé. Ao último será dada preferência se obteve a posse material dos bens”).
208
“Execução – Penhora – Nomeação de bens – Ordem do artigo 655 do Código de Processo Civil –
Pedras preciosas – Prova da propriedade – Desnecessidade – Posse – Admissibilidade.
Desnecessária a comprovação da titularidade do bem móvel por quem é possuidor, tendo em vista a
presunção 'juris tantum'” (Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º
639.381-00/5 – 8ª Câmara – Relator: Juiz Ruy Coppola – J. 27.7.2000).
84
em princípio o possuidor do bem móvel é tido como o seu proprietário 209 .
Dessa regra decorre a conclusão de que, para discussão a respeito
da propriedade de bens móveis, incumbe àquele que a alega a comprovação do
fundamento da posse exercida pelo atual possuidor, ou seja, incumbe-lhe (àquele
que pretende discutir a propriedade de um bem móvel que se encontra na posse de
outrem) a comprovação de que a posse atual é exercida mediante título que não
prevalece sobre o seu próprio título. Não comprovado o fundamento da alegação, a
posse – atual – resiste e comprova a propriedade. Nesse sentido: “Agravo de petição
– Embargos de terceiro – Ausência de prova da propriedade – Improvimento –
Tratando-se de bens móveis, cuja propriedade se transfere pela simples tradição,
presume-se proprietário aquele que detém a posse dos bens, salvo prova em
sentido contrário, mormente quando, além de não provar a propriedade, a agravante
não apresentou nenhum argumento ou justificativa para os bens que alega serem
seus estarem em outro endereço e na posse de outra pessoa” (Tribunal Regional do
Trabalho de 20ª Região – Apelação n.º 00136-2005-004-20-00-9 – (2474/05) –
Relator: Juiz Eliseu Pereira do Nascimento – J. 30.08.2005) 210 .
209
“Embargos de Terceiro. Penhora sobre bens encontrados na residência do devedor. Propriedade
presumida ‘juris tantum’. Alegação do bem pertencer a terceiro residente no mesmo imóvel. Ausência
de prova a elidir a presunção. Recurso improvido. Os bens encontrados na residência do devedor
presumem-se, até prova em contrário, de sua propriedade, cujo terceiro que habitar na mesma
residência deverá para liberar da constrição os bens comprovar ser o titular de sua propriedade” (1º
Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo – Recurso n.º 1528 – J. 24.02.99); “Embargos de
Terceiro – Penhora – Incidência sobre bens móveis – Alegação do embargante de que é proprietário
do imóvel onde se encontram os bens constritos. Posse inequívoca e propriedade dos bens móveis
não demonstradas. Embargos improcedentes. Sentença mantida” (1º Tribunal de Alçada Civil do
Estado de São Paulo – Acórdão n.º 9834 – Apelação Cível n.º 0000416-0/44 – Origem: Santos – 6ª
Câmara – Relator: Carlos Roberto Gonçalves – V.U).
210
No mesmo sentido: “Embargos de terceiro – Alegação de ser o possuidor do bem – Não
comprovação – Em se tratando de bem móvel, uma máquina pá carregadeira, a posse se traduz pela
tradição do mesmo, mormente quando o bem vem sendo tranqüilamente utilizado nas atividades da
empresa executada. Não provando, o embargante, ser o possuidor do bem, não há como garantir-lhe
a restituição. Agravo improvido” (Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região – Apelação n.º 003872005-113-08-00-8 – 1ª Turma – Relator: Juiz Marcus Augusto Losada Maia – J. 18.11.2005).
85
Tem-se, portanto, que no sistema de direito brasileiro a posse do
bem móvel, embora não comprove por si a propriedade, exerce papel relevante na
prova desta e é comumente invocada como fundamento das decisões judiciais em
que se afasta uma alegação de propriedade de um bem móvel desacompanhada da
posse do referido bem.
Quanto ao sistema inglês, embora, como já referido, apresente regra
geral que diverge de forma absoluta da regra geral do sistema brasileiro, reconhece
às partes maior liberdade do que o sistema francês para a modificação dessa regra
geral, por meio dos termos contratuais e da própria intenção das partes, a ser aferida
a cada caso concreto.
É importante salientar que a Inglaterra é um país de common law,
que, portanto, como regra, tem como base de seu direito as decisões proferidas nos
casos concretos, que constituem os precedentes a serem aplicados como
Também: “Tributário – Apreensão e perdimento de veículo e reboque utilizados em furto de
mercadorias acobertadas pelo regime especial de trânsito aduaneiro mantidos – Propriedade
incomprovada – Ilegitimidade ativa – Apelação improvida – 1. Não havendo prova segura da
transferência do veículo antes da apreensão, resulta daí, no mínimo, indícios de simulação de referida
venda para afastar o perdimento do bem, a uma, porque o único documento trazido aos autos para
comprovar a alegada propriedade – Certificado de Registro de Veículos – está em nome do
proprietário anterior, a duas, porque não há recibo, nota fiscal ou qualquer registro da venda do
veículo no Cartório de Títulos e Documentos, a três, porque o reconhecimento de firma constante da
Autorização para Transferência do Veículo ocorreu um mês após a data da apreensão do veículo, a
quatro, porque não restou comprovada a tradição do automóvel em questão, pois no momento da
apreensão, este estava sendo utilizado por terceiro, que segundo a testemunha e demais autuados
era o proprietário do automóvel em questão, a cinco, porque as testemunhas judiciais em nada
modificaram esse quadro, a seis, porque as Escrituras Públicas de Declaração juntadas aos autos,
além de lavradas quase um ano após a data dos fatos, constituem prova unilateral. 2. Tendo sido tal
reboque apreendido pela Polícia Federal de posse de terceiro, o qual, inclusive, portava seu
Certificado de Registro e Licenciamento, e estando o anverso do Certificado de Registro de Veículo
(Autorização para Transferência) assinado em branco pelo autor, por óbvio que o mesmo não
pertencia mais ao autor reclamante, mas sim ao seu condutor/possuidor, porque a transferência de
bem móvel ocorre com a simples tradição, não necessitando de nenhum registro ou formalidade para
perfectibilizar-se. 3. Ante a fragilidade da prova de propriedade dos bens apreendidos em questão,
não há como restituí-los aos autores ou afastar o perdimento decretado sobre os mesmos, pois
aquele que pede a tutela jurisdicional em relação ao litígio deve ser o titular da pretensão formulada
ao Poder Judiciário (arts. 3º e 6º do CPC). Precedentes desta Corte. (...)” (Tribunal Regional Federal
da 4ª Região – Apelação Cível n.º 1998.04.01.080913-5 – Origem: PR – 2ª Turma – Relator: Juiz
Alcides Vettorazzi – DJU 18.12.2002 – p. 706).
86
fundamento para as decisões futuras. E que, apesar dessa natureza histórica, a
densidade da matéria consistente na celebração dos contratos de compra e venda e
na determinação do momento da transmissão da propriedade mobiliária ensejou a
edição de norma específica, o Sale of Goods Act 1979 211 , que prevê uma série de
regras a serem aplicadas para a solução das lides decorrentes das questões
referidas.
Em relação ao sistema brasileiro, o sistema inglês é muito mais
aberto, já que permite que muitas variantes sejam consideradas para a aferição do
momento da transmissão da propriedade mobiliária, enquanto o sistema brasileiro
reconhece, como regra, exclusivamente a transmissão da propriedade mobiliária por
meio da tradição.
Assim como se dá no sistema francês e no próprio sistema
brasileiro, como já referido, a posse de um bem móvel também representa grande
diferencial a ser considerado no sistema inglês em caso de discussão a respeito do
momento da transmissão da propriedade mobiliária, embora não se verifique nesse
sistema nenhuma previsão legal semelhante à do artigo 2279 do Código Civil
francês 212 .
211
Lei de Venda de Bens Móveis de 1979. A primeira edição dessa lei é de 1893.
212
“En fait de meubles, la possession vaut titre” (“Quanto aos bens móveis, a posse equivale ao
título”).
87
Capítulo 4 – Contrato de compra e venda de bem móvel
4.1 – Definição de contrato
Ulpiano, jurisconsulto romano, definiu contrato como “duorum
pluriumve in idem placitum consensus”, ou seja, o mútuo consenso de duas ou mais
pessoas sobre o mesmo objeto. Para Aristóteles, contrato é “uma lei feita por
particulares, tendo em vista determinado negócio”; para Kelsen, “a criação de uma
norma jurídica particular” 213 .
O direito alemão reconhece como contrato o meio pelo qual “una
relación obligatoria puede constituirse (contrato obligatorio), extinguirse (contrato
liberatório) o modificarse (contrato de modificación)” 214 .
No direito francês, “convention est l’accord de deux ou pluisiers
personnes sur um objet d’intérêt juridique” e “la convention qui a pour objet la
formation d’une obligation, ou la translation d’un droit, se nomme plus specialement
contrat” 215 .
O direito inglês aceita a definição de obrigações contratuais como
aquelas “obligations, which are voluntarily undertaken and owed to a specific person
or persons” 216 .
213
Washington de Barros Monteiro. Curso: obrigações – 2ª Parte, cit., p. 4-5.
214
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 142.
215
C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Quatrième, p. 412 (“convenção é o acordo de duas ou mais
pessoas sobre um objeto de interesse jurídico” e “a convenção que tem por objeto a formação de uma
obrigação ou a transmissão de um direito se denomina mais especificamente contrato”).
216
Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Contract#Comparison_of_contract_and_tort_law.
(“obrigações que são voluntariamente assumidas e devidas para uma pessoa ou pessoas
específicas”).
88
No Brasil, Clovis Bevilaqua define contrato como o acordo de
vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir direitos 217 .
De acordo com Orlando Gomes, contrato, na concepção tradicional,
é “todo acordo de vontades destinado a constituir uma relação jurídica de natureza
patrimonial e eficácia obrigacional” 218 .
Caio Mário da Silva Pereira define contrato como o “acordo de
vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar,
transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos” 219 .
Maria Helena Diniz afirma que o contrato “repousa na idéia de um
pressuposto de fato querido pelos contraentes e reconhecido pela norma jurídica
como base do efeito jurídico perseguido” 220 .
Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, contrato
é o “negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos
princípios da função social e da boa-fé objetiva, auto-disciplinam os efeitos
patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias
vontades” 221 .
217
Clovis Bevilaqua. Código, cit., p. 194 (observação 1 ao artigo 1.079).
218
Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 12. O autor também refere duas concepções antagônicas de
contrato em relação ao seu conteúdo. De acordo com a concepção subjetiva, o conteúdo do contrato
são os direitos e as obrigações das partes. “O contrato é, por definição, fonte de relações jurídicas,
sem ser exclusivamente, no entanto, o ato propulsor das relações obrigacionais”. De acordo com a
concepção objetiva, o conteúdo do contrato são os preceitos. “As disposições contratuais têm
substância normativa, visando a vincular a conduta das partes. Na totalidade, constituem verdadeiro
regulamento traçado de comum acordo. Tal, em suma, sua estrutura. É o contrato, portanto, fonte de
normas jurídicas, ao lado da lei e da sentença”.
219
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Contratos., cit., p. 7.
220
Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e
extracontratuais. 19ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. 3º volume, p. 23.
221
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo curso de direito civil – Contratos. São
Paulo: Editora Saraiva, 2005. Volume IV. Tomo 1 (Teoria Geral), p. 11-12.
89
Distintas nos vocábulos, as definições têm o mérito de, cada uma a
seu modo, definir um dos principais institutos do direito ao longo da história da
humanidade.
Para os fins do presente estudo da transmissão da propriedade
mobiliária a partir do título consistente no contrato de compra e venda, adota-se a
definição de contrato de Clovis Bevilaqua, de acordo de vontades que tem por fim
criar, modificar ou extinguir direitos.
4.2 – Requisitos de validade
No sistema de direito brasileiro, os requisitos ou condições de
validade de um contrato podem ser divididos em duas espécies.
A primeira espécie diz respeito aos requisitos de ordem geral, que
são aqueles comuns a todos os atos e negócios jurídicos e estão previstos do artigo
108 do Código Civil brasileiro, ou seja, agente capaz, objeto lícito, possível,
determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.
É considerada capaz toda pessoa natural que apresenta condições
de exercer pessoalmente seus direitos e de responder também pessoalmente por
suas obrigações. O próprio Código Civil estabelece as hipóteses em que uma
pessoa não tem capacidade para a prática dos atos da vida civil, dividindo tais
hipóteses em duas categorias, de incapacidade absoluta e incapacidade relativa 222 .
222
Código Civil, Art. 3º “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o
necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não
puderem exprimir sua vontade”; Art. 4º “São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de
os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os
viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os
excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos”.
90
Na celebração de contratos, os absolutamente incapazes deverão ser representados
e os relativamente incapazes deverão ser assistidos por quem de direito para que o
instrumento possa ser considerado válido.
Quanto às pessoas jurídicas, devem ser representadas pelas
pessoas indicadas em seus contratos ou estatutos sociais.
O segundo requisito de ordem geral diz respeito ao objeto do
contrato, que há de ser lícito e não ofender a moral e os bons costumes, bem como
há de ser possível física e juridicamente. A impossibilidade física é considerada a
que decorre das leis físicas ou naturais e deve ser absoluta, ou seja, atingir a todos,
indistintamente, reconhecendo-se que a impossibilidade que atinge apenas o
devedor não invalida o negócio jurídico. A impossibilidade jurídica decorre da
proibição legal do objeto, como a proibição de contrato tendo como objeto a herança
de pessoa viva (artigo 426 do Código Civil brasileiro).
Quanto à forma, como terceiro e último requisito de validade dos
contratos, como regra é livre, o que significa que os contratos se aperfeiçoam
mediante a manifestação do consentimento dos contratantes. Em casos específicos
se exige forma especial, como a escritura pública para os contratos referentes a
direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o salário mínimo (artigo
108 do Código Civil brasileiro).
A segunda espécie de requisito ou requisito de ordem especial,
próprio dos contratos, é o consentimento recíproco ou acordo de vontades
manifestado pelos contratantes. A manifestação de vontade deve ser livre e
espontânea, sob pena de o contrato ter a sua validade afetada pelos vícios do
consentimento, consistentes em erro (artigos 138 a 144 do Código Civil brasileiro),
91
dolo (artigos 145 a 150 do Código Civil brasileiro), coação (artigos 151 a 155 do
Código Civil brasileiro), estado de perigo (artigo 156 do Código Civil brasileiro) e
lesão (artigo 157 do Código Civil brasileiro).
4.3 – Princípios orientadores
Os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato, da
liberdade de contratar ou da autonomia da vontade, da obrigatoriedade e da
relatividade dos contratos são especialmente considerados no Brasil.
O princípio da boa-fé objetiva tem previsão expressa no artigo 422
do Código Civil brasileiro, que estabelece que “Os contratantes são obrigados a
guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé”. Afirma-se que se trata de exigência não apenas de boa
intenção, mas de manifestação de boa intenção mediante a conduta comprobatória
desta.
O princípio da função social do contrato tem por fundamento o
reconhecimento de que, em que pese a liberdade das partes para a celebração de
contratos (o princípio da liberdade de contratar ou da autonomia da vontade
representa a força vinculante das convenções e significa que ninguém pode ser
obrigado a contratar, mas, se o fizer, deve cumprir a obrigação assumida), o contrato
deve atender também aos interesses da sociedade 223 .
O princípio da obrigatoriedade dos contratos reconhece o vínculo
representado pelo contrato como fundamento jurídico à exigência de seu
223
Código Civil, Art. 421. “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função
social do contrato”.
92
cumprimento.
Por fim, de acordo com o princípio da relatividade dos contratos,
como regra apenas os próprios contratantes podem ser atingidos pelas obrigações a
partir dele assumidas.
4.4 – Definição de contrato de compra e venda
A definição do contrato de compra e venda independe da
especificação de seu objeto como imóvel ou móvel.
O direito alemão define a compra e venda como “contrato bilateral
por el qual una de las partes se obliga a la prestación de una cosa o de un derecho y
la outra a una contraprestación en dinero” 224 .
No direito francês, “la vente est un contrat par lequel l’une des
parties s’oblige à transferer à l’autre la propriété d’une chose, moyennant um prix
que celle-ci s’engage à lui payer” 225 .
Apesar de a Inglaterra ser um pais de common law, a definição de
contrato de compra e venda consta do Sale of Goods Act 1979: “A contract of sale
of goods is a contract by which the seller transfers or agrees to transfer the property
in goods to the buyer for a money consideration, called the price” 226 .
224
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 14.
225
C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 01-02 (“a venda é um contrato pelo qual uma
das partes se obriga a transferir à outra uma coisa, mediante um preço que a outra parte se
compromete a pagar”). Os autores afirmam que essa definição está de acordo com o artigo 1582 do
Código Civil francês, mas que a expressão “tranférer la propriété” deve ser substituída pelo verbo
“livrer” (entregar), “afin de mieux faire ressortir le caractère que la nouvelle législation a imprimé au
contrat de vente” (a fim de melhor refletir a natureza que a nova legislação deu ao contrato de venda”
(cit., p. 01, nota 1).
226
Section
2.1
do
Sale
of
Goods
Act
1979,
disponível
em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7 (“Um contrato de venda de bens
93
Clovis Bevilaqua define o contrato de compra e venda como “o
contrato pelo qual uma pessoa se obriga a transferir a outra o domínio de uma coisa
determinada, por certo preço em dinheiro ou em valor fiduciário correspondente” 227 .
Eduardo Espínola define o mesmo contrato como aquele “pelo qual
uma pessoa se obriga a transferir o domínio de uma coisa a outra pessoa, a qual,
por sua vez se obriga, como contra-prestação, a pagar-lhe certo preço em
dinheiro” 228 .
Caio Mário da Silva Pereira acrescenta que a coisa pode ser
corpórea ou incorpórea 229 .
Adota-se a definição legal do artigo 481 do Código Civil, que
estabelece que “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a
transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”.
4.5 – Aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bem móvel
Os sistemas de direito alemão, francês e inglês reconhecem o
contrato de compra e venda como um contrato consensual, razão pela qual inexiste
dúvida de que se o reconhece perfeito quando as partes manifestam seu
consentimento quanto ao bem e ao preço 230 .
móveis é um contrato por meio do qual o vendedor transfere ou se compromete a transferir a
propriedade do bem ao comprador mediante um valor em dinheiro, denominado preço”).
227
Clovis Bevilaqua. Código Civil, cit., p. 236 (observação 1 ao artigo 1.122).
228
Eduardo Espínola. Dos Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro. Campinas: Bookseller,
2002, p. 31.
229
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Contratos, cit., p. 172.
230
No direito alemão, “la compraventa queda concluída tan pronto como las partes se han puesto de
acuerdo sobre el contenido del contrato” (Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de
94
No sistema brasileiro, de acordo com o artigo 482 do Código Civil,
“(a) compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que
as partes acordarem no objeto e no preço”.
Os elementos essenciais do contrato de compra e venda são a
coisa, o preço e o consentimento.
Excetuados os contratos aleatórios, que podem ter como objeto
coisa futura e inclusive eventual 231 , a coisa, como regra, deve ter existência atual, já
que a sua inexistência enseja o reconhecimento da inviabilidade concreta da
efetivação da tradição visando à transmissão da propriedade 232 .
O preço deve ser sério e real. Não se exige que reflita o valor de
mercado, porque não se pode negar às partes a disponibilidade a respeito de seu
obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 20. No direito francês, o contrato de compra e venda é
considerado aperfeiçoado “dès que les parties sont d’accord sur la chose et sur le prix” (“desde que
as partes estejam de acordo quanto à coisa e quanto a preço”) (C. Aubry e C. Rau. Cours de droit civil
français. 6eme ed. Paris: Éditions Techniques S.A., 1947. Tome Cinquième, p. 02). No direito inglês,
o aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bens móveis envolve “a conveyance and a
contract” (uma transmissão e um contrato”) (Andrew P. Bell. Modern law, cit., p. 236.).
231
Código Civil, Art. 458. “Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos futuros, cujo
risco de não virem a existir um dos contratantes assuma, terá o outro direito de receber integralmente
o que lhe foi prometido, desde que de sua parte não tenha havido dolo ou culpa, ainda que nada do
avençado venha a existir”; Art. 459. “Se for aleatório, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o
adquirente a si o risco de virem a existir em qualquer quantidade, terá também direito o alienante a
todo o preço, desde que de sua parte não tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em
quantidade inferior à esperada. Parágrafo único. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienação não
haverá, e o alienante restituirá o preço recebido”; Art. 460. “Se for aleatório o contrato, por se referir a
coisas existentes, mas expostas a risco, assumido pelo adquirente, terá igualmente direito o alienante
a todo o preço, posto que a coisa já não existisse, em parte, ou de todo, no dia do contrato”. Os
sistemas alemão, francês e inglês também admitem a compra e venda de coisas futuras, nos
mesmos termos do sistema brasileiro. A respeito da compra e venda aleatória nos referidos sistemas
de direito estrangeiros, conferir, respectivamente: Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de
obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 16; Jean-Louis Bergel et AL. Traité – Les Biens, cit., p.
230); e H. W. Wilkinson. Personal property. Londres: Sweet & Maxwell, 1971, p. 75.
232
“Compra e venda – Bem inexistente no patrimônio do alienante – Transferência do domínio –
Impossibilidade – Resolução do contrato em perdas e danos – Cabimento – Hipótese, porém,
condicionada a prévio pedido da parte interessada – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo – Relator: Anotonio Marson – Apelação Cível n.º 191.581-1 – Origem:
Campinas – 04.08.93).
95
próprio patrimônio. Por outro lado, não pode ser inexistente, sob pena de
caracterizar negócio simulado 233 .
Embora o preço deva ser fixado em dinheiro, a previsão de que,
fixado em dinheiro, seja convertido em bens determinados não invalida o negócio
jurídico subordinado, como se depreende da decisão a seguir: “Se houve
estipulação, em contrato de compra e venda de imóvel rural, que o preço seria
transformado em cabeças de gado, não há falar em contrato vaca-papel, que retrata
um mútuo dissimulado em parceria pecuária. (...)” (Tribunal de Justiça do Estado do
Mato Grosso do Sul – Apelação Cível n.º 2003.007285-3/0000-00 – Origem: Rio
Negro – 1ª Turma Cível – Relator: Des. Hildebrando Coelho Neto – J. 02.12.2003).
O contrato de compra e venda é classificado como consensual – em
contraposição ao qualificativo formal – porque se constitui e se aperfeiçoa mediante
o simples acordo – consentimento – das partes a respeito do objeto e do preço. A
importância do consentimento é explicada por Orlando Gomes: “A compra e venda
se forma obviamente pelo consentimento das partes, mas ao enfatizar o consensus
como um dos elementos essenciais do contrato, quer-se acentuar a sua natureza
simplesmente consensual, para deixar claro que a entrega da coisa vendida não é
necessária à sua perfeição. Basta, com efeito, o simples consentimento, do qual
surge, para o vendedor, a obrigação de entregar a coisa e para o comprador a de
233
“Compra e venda – Imóvel – Escritura pública – Ato jurídico regular – Transação lícita –
Inadmissibilidade – Venda simulada de bens de herança – Utilização de instrumento particular falso –
Decretada a anulação da escritura – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo – Apelação Cível n.º 205.479-1 – Origem: São Bento do Sapucaí – Relator: Almeida Ribeiro –
10.03.94); “Embargos de terceiro – Sentença procedente – Penhora incidente em bem que integrou o
patrimônio do autor antes da ação de execução. Veículo automotor. Certidão do Detran. Domínio
comprovado. Venda simulada. Alegação inconsistente. Recurso desprovido” (Tribunal de Alçada Civil
do Estado do Paraná – Apelação Cível n.º 0268399-6 – (224895) – Origem: Londrina – 5ª Câmara
Cível – Relator: Juiz Edson Vidal Pinto – DJPR 10.12.2004).
.
96
pagar o preço” 234 .
A integração da vontade dos contratantes, por meio da proposta e
da aceitação, e que resulta no consentimento, constitui elemento essencial à
formação do contrato de compra e venda, o que permite a conclusão de que, não
identificada (a integração da vontade dos contratantes), não se considera
aperfeiçoado o referido contrato. Essa a decisão do Primeiro Tribunal de Alçada Civil
do Estado de São Paulo em caso concreto em que se discutiu o aperfeiçoamento do
contrato de compra e venda em leilão: “Compra e venda – Contrato não
aperfeiçoado – Ação declaratória da existência de venda e compra de móvel, em
leilão – Contrato que não chegou a existir, faltando a integração de vontades –
Lanço não aceito pelo leiloeiro, que recebeu os valores condicionalmente, por
estarem abaixo do preço estipulado pelo comitente – Mera proposta, dependente de
aceitação que não houve – Ação improcedente – Decisão mantida” (Apelação n.º
0570708-2 – Origem: Guarulhos – 1ª Câmara – Relator: Elliot Akel – J. 16/05/1994 –
V.U – JTA-EX 147/59).
Quanto ao seu aperfeiçoamento, em contraposição à classificação
como consensual, que constitui a regra, o contrato de compra e venda pode ser
classificado como formal ou solene nos casos em que a lei exige determinada
formalidade para o seu aperfeiçoamento, como ocorre, no sistema brasileiro, no
caso da exigência da escritura pública para os negócios jurídicos que visem à
constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre bens
imóveis de valor superior a trinta vezes o salário mínimo vigente (artigo 108 do
234
Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 227.
97
Código Civil de 2002) 235 . O sistema brasileiro também exige a escritura pública para
a transferência de determinados bens móveis, como as licenças ou os contratos que
tenham como objeto a exploração de distribuição e venda de jornais (artigo 5º do
Decreto-lei n.º 4.826/42). Nesses casos, exigida por lei a formalidade, o próprio
aperfeiçoamento do contrato de compra e venda fica condicionado ao seu
atendimento.
A noção do aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bem
móvel mediante, como regra, a mera manifestação da vontade das partes, a
caracterizar o seu consentimento quanto ao bem e ao preço, é imprescindível à
compreensão e à solução dos problemas práticos decorrentes do descumprimento
das obrigações contratuais pelos contratantes.
235
O artigo 134, inciso II, do Código Civil de 1916 estabelecia ser da substância do ato a escritura
pública nos “contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis de valor superior a
Cr$ 50.000 (cinqüenta mil cruzeiros), excetuado o penhor agrícola”. A jurisprudência a respeito do
Código Civil de 1916: “(...) A transferência do domínio de bem imóvel é negócio jurídico que para se
aperfeiçoar requer forma prescrita em Lei, que, na hipótese, é a escritura pública (Código Civil/1916,
art. 134). Portanto, só com a lavratura do documento público considera-se perfeito e acabado o
negócio jurídico. (...)” (Tribunal Regional Federal da 1ª Região – Apelação Cível n.º 9501185346 –
BA – 3ª Turma Supl. – Relator: Juiz Federal Convocado Wilson Alves de Souza – DJU 23.06.2005 –
p. 77); “Dúvida – Transferência de bem imóvel – Requisitos – Na formalização de ato translativo de
bem imóvel, segundo o art. 134, II, do Código Civil, é da substância da medida a escritura pública e,
para a validade da alienação respectiva é indispensável a outorga uxória, conforme art. 235, I, do
Código Civil, com os seus desdobramentos na legislação pertinente aos Registro Públicos” (Tribunal
de Justiça do Estado de Minas Gerais – Apelação Cível n.º 000.316.718-6/00 – 2ª C^Mara Cível –
Relator: Des. Francisco Figueiredo – J. 17.06.2003); “Compromisso de compra e venda – Imóvel
loteado – Aquisição de dois lotes – Passado instrumento particular de um só deles – Pleiteada a
declaração de que também adquirido o lote não referido no compromisso – Utilização de prova
testemunhal – Inadmissibilidade – Observância da forma legal dos contratos de aquisição de imóveis
para que produzam efeitos reais – Inadmitidas as avenças verbais – Artigo 134, inciso II do Código
Civil e artigo 26 da Lei n.º 6.766/79 – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo – Relator: Carlos Ortiz – Apelação Cível n.º 218.635-2 – Origem: São Caetano do Sul –
15.03.94).
98
Capítulo 5 – Contrato de compra e venda de bem móvel nos sistemas de direito
estrangeiros
5.1 – Sistema romano
A compra e venda, denominada emptio venditio, era o contrato do
jus gentium pelo qual o vendedor (venditor) prometia ao comprador (emptor) lhe
transferir definitivamente a posse de uma coisa mediante um pagamento em
dinheiro, o preço (pretium).
Há quem afirme que inicialmente existiu em Roma a compra e venda
à vista, celebrada por meio da mancipatio, que transferia ao comprador a
propriedade da res mancipi, com a entrega imediata do preço 236 . Por outro lado, há
quem negue que essa compra e venda à vista efetivada por meio da mancipatio
possa ser tida como compra e venda contratual, geradora de obrigações, já que se
tratava de um ato translatício da propriedade da coisa e do preço, razão pela qual
não pertencia à teoria dos contratos, mas sim à teoria dos modos de aquisição do
domínio 237 .
Além da teoria que afirma a compra e venda real como originária da
compra e venda consensual como foi posteriormente desenvolvida pelos próprios
romanos, diversas outras teorias foram elaboradas. Entendem alguns que o acordo
de vontades entre o vendedor e o comprador teria por fundamento exclusivamente o
princípio da lealdade, que era observado rigidamente na Roma antiga. Outros
236
A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 94; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239 e
355. Inicialmente o preço na mancipatio era pago mediante a entrega de uma barra de bronze, cujo
peso era equivalente ao valor do bem negociado, mas após a cunhagem da moeda o preço passou a
ser pago em dinheiro.
237
José Carlos Moreira Alves. Direito romano, cit., p. 156; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p.
287. A respeito da mancipatio como modo de transmissão da propriedade romana, conferir 1.2.1.
99
afirmam que a compra e venda consensual teria resultado da venda comercial,
realizada no início apenas entre peregrinos e romanos, fundamentada na boa-fé e
sancionada pelo pretor peregrino. Ainda, outra teoria sustenta que a compra e venda
consensual decorreu de duas estipulações – stipulatio 238 – por meio das quais o
vendedor se tornaria credor do preço e o comprador se tornaria credor do bem. Por
fim, sustenta-se que a compra e venda consensual teria sua origem na imitação da
venda de objetos móveis e imóveis de propriedade do Estado, mediante
adjudicação 239 .
Todas as teorias são passíveis de fundamentação e encontram
apoio nas fontes de direito romano, razão pela qual Zulueta afirma que o contrato de
compra e venda consensual moderno é o produto de uma longa evolução, iniciada
com a Lei das XII Tábuas 240 e encerrada com Justiniano 241 , para a qual contribuíram
várias fontes e circunstâncias históricas, razão pela qual não se pode identificar um
critério único por meio do qual se teria processado a passagem da venda real – ou
do modo denominado mancipatio –, que transmitia a propriedade romana, para a
venda a crédito que passou a dar origem exclusivamente a obrigações 242 .
O contrato de compra e venda era classificado no direito romano
como nominado, do direito das gentes, de boa-fé, sinalagmático e consensual.
238
Existem diversas teorias a respeito da origem da stipulatio. Tratava-se de um contrato verbal que
se formava mediante uma interrogação, feita em caráter solene pelo credor, e a resposta do futuro
devedor (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 257).
239
Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 355; José Carlos Moreira Alves. Direito romano, cit., p. 156157; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 287-288.
240
451-449 a.C. (Gaetano Sciascia. Direito romano e direito civil brasileiro. São Paulo: Editora
Saraiva, 1947, p. 15).
241
527-565 d.C. (Gaetano Sciascia. Direito romano, cit., p. 19).
242
F. de Zulueta. The roman law of sale. APUD Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 288.
100
Quanto aos elementos, já se distinguiam os três identificados
atualmente: a coisa, o preço e o consentimento.
Todas as coisas suscetíveis de entrar no patrimônio do comprador,
corpóreas e incorpóreas, desde que não estivessem fora do comércio, podiam ser
objeto da compra e venda. A não existência do objeto, o seu perecimento e a
impossibilidade de comércio tornavam o contrato nulo 243 .
O preço devia consistir em dinheiro 244 e ser certo e verdadeiro.
Devia ser fixado por ocasião da venda ou suscetível de ser determinado
posteriormente, por critérios fixados, mas nunca podia ser deixado ao arbítrio das
partes 245 . Quanto a ser considerado verdadeiro, o preço insignificante ensejava o
tratamento da compra e venda como doação simulada.
O terceiro elemento do contrato de compra e venda era o
consentimento manifestado pelas partes, considerado o elemento mais importante
em razão da natureza consensual da compra e venda, ou seja, porque esta se
realizava independentemente de qualquer elemento material, como a entrega da
coisa ou o pagamento do preço.
243
O contrato de venda também já podia ter por objeto uma coisa futura ou esperada. O comprador
ou vendedor poderia aceitar o risco de a coisa nunca vir a ter existência, devendo, nesse caso, ser
admitida a emptio venditio, que se baseava na emptio spei. Por exemplo, o produto da pesca que
seria realizada em determinado dia podia ser objeto de venda; nesse caso, o comprador correria o
risco e seria obrigado ao pagamento do preço mesmo que nenhum peixe fosse apanhado naquele dia
(Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 290).
244
O preço devia consistir em dinheiro para que o contrato de compra e venda pudesse ser
diferenciado da troca, mas essa distinção só se estabeleceu depois das manifestações divergentes
de sabinianos e proculeianos. Os sabinianos consideravam a permuta como uma emptio venditio,
mas os proculeianos distinguiam os dois contratos. A doutrina dos proculeianos predominou (Ebert
Chamoun. Instituições, cit., p. 356-3575; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 290-291).
245
Se a fixação do preço houvesse sido confiada a terceiros, Justiniano considerava a compra e
venda condicional, a qual somente se tornaria definitiva quando o terceiro fixasse o preço e, se isso
não ocorresse, o contrato seria nulo. O jurisconsulto Proculus considerava válida a venda cujo preço
fosse estabelecido por terceiro, desde que o nome desse terceiro constasse do contrato (Ebert
Chamoun. Instituições, cit., p. 356-357; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 290-291).
101
Com o tempo, as partes passaram a condicionar os contratos de
compra e venda tendo como objeto bens considerados mais valiosos à redação de
um documento escrito. Nesses casos, a redação do documento se tornava elemento
essencial
à
própria
formação
do
contrato,
da
qual
dependia
o
seu
aperfeiçoamento 246 .
Porque a conclusão do contrato ensejava muitas dúvidas quanto ao
momento em que se realizava, introduziu-se o costume de assinalar esse momento
com um elemento material diferente da prestação. Essa a origem das arras, que
consistiam num objeto de pequeno valor ou numa parcela reduzida do próprio preço,
que as partes, a partir da entrega, passavam a poder invocar como prova do
contrato 247 .
Quanto às obrigações do vendedor decorrentes da celebração do
contrato de compra e venda, inicialmente lhe incumbia efetuar a transmissão da
posse do bem, e não a propriedade deste 248 .
Com o passar do tempo e a evolução da teoria contratual, o
246
Se se houvesse convencionado fazer por escrito a compra e venda, esta somente se aperfeiçoaria
quando o documento fosse redigido. Nesses contratos de venda cum scriptura, o escrito, que outrora
havia sido meio de prova, foi elevado à categoria de elemento necessário à própria formação do
contrato. Enquanto não se o redigisse, era lícito às partes retirarem-se do contrato sem outras
conseqüências, salvo se tivessem sido dadas as arras, hipótese em que se aplicavam as regras a
estas referentes (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 358).
247
Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 358; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 292.
248
Afirma Ebert Chamoun: “Não se sabe, com certeza, qual a origem desse curioso sistema. Pode-se
entretanto explicá-lo com o caráter de contrato iuris gentium da compra e venda, o qual, dada a
existência de vários tipos de domínio, nem todos acessíveis aos peregrinos e, comuns a todas as
coisas, seria prejudicado se se exigisse a transferência da propriedade; ou então com a regra das XII
Táboas que condiciona a transferência da propriedade ao pagamento do preço, não podendo, então,
o vendedor ser obrigado a transferir a propriedade da coisa enquanto não for pago” (Instituições, cit.,
p. 358-359).
102
vendedor passou a ter a obrigação de proteger o comprador contra a evicção 249 e
contra a presença de vícios ocultos no bem vendido 250 , e o uso acabou tornando
249
A evicção ocorria quando quem adquiria uma coisa ou um direito se via privado dessa coisa ou
desse direito em juízo, total ou parcialmente, sem culpa sua, mas sim por vício do direito do alienante.
No juízo que se instaurava pelo legítimo titular contra o adquirente sem culpa, este devia chamar à
autoria o alienante, para que este lançasse mão dos seus meios de defesa. A evicção era
reconhecida, por exemplo, quando o vendedor não era proprietário da coisa e o verdadeiro
proprietário a reivindicava do comprador, ou ainda quando o credor hipotecário investisse contra o
comprador armado de sua ação hipotecária a fim de fazer valer a sua garantia. Em ambas as
hipóteses, que eram as principais, sendo vitorioso o terceiro, que seria o verdadeiro proprietário do
bem, o comprador se via desapossado do bem, apesar de haver pago o preço. Se a transferência da
coisa houvesse sido feita por mancipatio, o comprador evicto podia, mediante a actio auctoritatis,
volver-se contra o vendedor e dele obter a restituição do dobro do preço que havia pago. No caso de
res nec mancipi, o vendedor somente era obrigado ao ressarcimento se assumisse a garantia contra
a evicção por uma estipulação acessória à compra e venda. Essas estipulações podiam ser: a
satisdatio ou repromissio secundum mancipium, conforme essa obrigação fosse garantida por
terceiros ou não; a stipulatio duplae, modelada na actio auctoritatis, por força da qual o vendedor de
uma res nec mancipi de valor ou de uma res mancipi de que não houvesse sido feita a mancipação
se obrigava a pagar o dobro do preço em caso de evicção; e a stipulatio rem habere licere, que
funcionava para as res nec mancipi de menor valor e dava direito à restituição apenas do próprio
preço. Em homenagem aos ideais de boa fé, considera-se que desde os primeiros séculos do Império
Romano o comprador tinha direito a que o vendedor lhe prestasse a stipulatio duplae ou a stipulatio
rem habere licere, podendo reclamá-las pela ação do contrato de compra e venda. Com o passar do
tempo e a adoção reiterada das garantias, estas passaram a ser presumidas, permitindo ao
comprador voltar-se contra o vendedor sempre que sofresse um prejuízo, o que poderia ocorrer
mesmo antes da evicção, quando, sob a ameaça de sua ocorrência, pudesse ser caracterizado o dolo
do vendedor. Nesse caso, o valor da indenização era arbitrado pelo juiz. No direito justinianeo, a
stipulatio rem habere licere deixou de existir, restando apenas os dois remédios da stipulatio duplae e
da ação do contrato. Mas a garantia contra a evicção passou a incorporar o próprio contrato de
compra e venda como um elemento natural, permitida a sua exclusão apenas mediante a
manifestação expressa das partes (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 360-361; Vandick L. da
Nóbrega. Compêndio, cit., p. 295-297).
250
Vícios ocultos ou redibitórios eram considerados aqueles existentes no momento da celebração do
contrato e que tornavam a coisa imprópria ao seu uso ou lhe diminuíam o valor. A garantia contra os
vícios ocultos sofreu evolução semelhante à da garantia contra a evicção. A princípio era assegurada
mediante a previsão expressa fora do contrato, mas o seu uso reiterado fez com que fosse integrada
ao acordo independentemente de previsão (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 361-363; Vandick L.
da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 296-297). Ebert Chamoun afirma também que os edis introduziram
em seus editos um princípio absolutamente diferente dos seguidos à época e que deu ensejo a uma
nova evolução dos contratos. Os edis policiavam os mercados, onde era comum a prática de fraudes
por peregrinos contra cidadãos romanos durante a venda de escravos. Para agravar a
responsabilidade dos vendedores e evitar as constantes fraudes, os edis estabeleceram que o
vendedor responderia pelos vícios ocultos mesmo quando os ignorasse no momento de conclusão do
contrato. As ações a que tinha direito o comprador eram a actio redhibitioria, por meio da qual se
restituía a coisa e seus acessórios (redhibitio), exigindo-se do vendedor a restituição do preço, ou a
actio aestimatoria ou quanti minoris, por meio da qual o comprador obtinha a redução no preço
correspondente à desvalorização causada pelo vício apresentado pelo bem adquirido. No direito
justinianeo, o sistema de garantias dos vícios criados pelos edis foi generalizado a todas os contratos
de compra e venda (Instituições, cit., p. 362).
103
subentendidas essas garantias 251 .
Quanto ao comprador, tinha como obrigação principal o pagamento
do preço, e essa obrigação era mantida mesmo se, após a conclusão do contrato e
antes da entrego bem, este perecesse, desde que sem culpa do vendedor 252 .
Considerava-se que, se por um lado se garantia ao comprador o direito ao
recebimento dos acréscimos e incrementos incorporados ao bem vendido após a
celebração do contrato, mesmo que o bem ainda estivesse na posse do vendedor,
por outro lado se lhe exigia que assumisse os riscos do perecimento do objeto,
desde que não constatada a culpa do vendedor 253 . Essa regra era inaplicável se o
bem perecesse em poder do vendedor quando já estivesse pago o preço, bem como
251
Darcy Bessone afirma que essa complementação do contrato – referente às garantias – repercutiu
na sua primitiva concepção, de que deveria restringir-se, exclusivamente, à obrigação de transferir a
posse. E que o contrato de compra e venda passou a produzir, na prática, efeitos próximos dos
peculiares aos modos de adquirir, inclusive porque contribuía para a aquisição do domínio por
usucapião, que se operava em dois anos (Da compra e venda, cit., p. 74).
252
Vandick L. da Nóbrega afirma que vários romanistas puseram em dúvida que essa tenha sido
efetivamente a doutrina predominante na época clássica: “Arno afirma que, no direito clássico, os
riscos ficavam a cargo do vendedor até a entrega da coisa. No entanto, Rabel julga terem sido os
bizantinos que estabeleceram o princípio geral segundo o qual o comprador seria responsável pelos
riscos; é verdade, diz êle, que os jurisconsultos clássicos conheceram o periculum emptoris, mas num
sentido muito limitado. Em trabalho posterior ao de Rabel, o romanista Emil Seckel (...) retoma a
defesa da teoria tradicional, segundo a qual os riscos ficavam a cargo do comprador desde que a
venda fosse considerada perfeita. A doutrina clássica do periculum emptoris só pode ser averiguada,
diz Seckel, por meditação cuidadosa do que nos foi transmitido. Ela, na verdade, só pode ser
compreendida quando três condições preliminares de compreensão se cumprem: primeiro, deve ser
incluída a chamada pura compra de espécie; segundo, o periculum emptoris tem seu contrapeso no
periculum custodiae do vendedor; terceiro, a doutrina do periculum emptoris não é uma norma
arbitrária, mas um princípio sadio, que domina todos os direitos hodiernos” (Compêndio, cit., p. 293).
Outras teorias procuraram explicar a aplicação do referido princípio. Uma delas se baseava na
suposição de que a compra e venda se processara inicialmente mediante duas estipulações,
decorrendo daí o caráter de independência das duas obrigações e a manutenção da obrigação do
comprador em caso de perecimento do objeto sem culpa do vendedor. Outra teoria se amparava na
consideração de que a regra havia sobrevivido da época em que a compra e venda se fazia à vista,
pela mancipatio., para aqueles que a aceitam com natureza contratual. Uma terceira teoria pretendia
fundamentar a regra na influência grega (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 364; Vandick L. da
Nóbrega. Compêndio, cit., p. 294).
253
O vendedor deveria cuidar da coisa como um bonus paterfamilias, sendo a sua falta observada em
abstrato. Como regra, não respondia na hipótese de perda por motivo de força maior, mas apenas no
caso de constatação de sua culpa (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 363-364; Vandick L. da
Nóbrega. Compêndio, cit., p. 292-293).
104
quando o vendedor houvesse assumido expressamente a custódia do bem até a
tradição, caso em que a responsabilidade seria exclusivamente sua em decorrência
do próprio acordo celebrado.
Se o contrato de compra e venda fosse condicional, ou seja,
subordinado a um evento futuro e incerto, não seria reputado perfeito enquanto a
condição não fosse implementada. Se houvesse a perda total da coisa, sem culpa
de qualquer das partes, enquanto o contrato não fosse considerado perfeito, a
responsabilidade pelos riscos era imputada ao vendedor, ou seja, a este cabiam os
prejuízos decorrentes do perecimento do objeto. Mas se a perda fosse parcial ou se
se tratasse de deterioração, continuava o comprador obrigado ao pagamento do
preço.
Porque o contrato de compra e venda não tinha como resultado a
transferência da propriedade, o bem vendido podia ser próprio ou alheio 254 . “É
precisamente quest’indole dell’obbligazzione del venditore, che faceva ammettere la
validità della vendita della cosa altrui; perchè la circostanza che il venditore non era
punto proprietário, non essendo um ostacolo a che egli mettesse il compratore in
possesso, non poteva autorizzare costui a reclamare, finchè non fosse molestato dal
proprietário” 255 .
De acordo com Darcy Bessone, a circunstância de por meio do
contrato de venda se transferir a posse – e não a propriedade – tinha por
254
Mas do vendedor, embora não se lhe exigisse a propriedade, exigia-se a boa-fé, ou seja, ou
ignorava que a coisa não era sua ou, juntamente com o comprador, sabia que não o era.
255
“É essa a natureza da obrigação do vendedor, que permitia reconhecer a validade da venda de
coisa alheia; porque a circunstância de o vendedor não ser o proprietário, não sendo um obstáculo a
que garantisse a posse do bem pelo comprador, também não autorizava o comprador a reclamar,
desde que não fosse molestado na sua posse pelo verdadeiro proprietário” (G. Baudry-Lacantinerie;
L. Barde. Trattato teórico-pratico di diritto civil: della vendita e della permuta. Milano: Casa Editrice
Dottor Francesco Vallardi, 1935, p. 4).
105
fundamento o conceito romano de contractus, que impedia a sua utilização como
instrumento constitutivo ou transmissivo de direitos reais. 256 Afirma também o
doutrinador que os romanos entendiam, por outro lado, que o conceito de contractus
não constituía óbice à criação de obrigações que se relacionassem apenas à posse,
estabelecendo-se situação segura no juízo possessório. Nesses termos, de acordo
com a concepção romana, o contrato podia produzir ao alienante a obrigação de
entregar a coisa – vacuam possessionem tradere. E com o tempo, em razão das
garantias que passaram a acompanhar a emptio e venditio, 257 esta passou a – ser
considerada como passível de – transferir a própria propriedade 258 .
A explicação de Darcy Bessone tem por objetivo demonstrar a
ausência de fundamento dos doutrinadores brasileiros que, como regra, atribuem ao
direito romano a eficácia obrigacional da compra e venda no direito pátrio. E é
exatamente essa posição contestada por Darcy Bessone – que reconhece a eficácia
obrigacional do contrato de compra e venda como herança do direito romano – a
dominante no cenário brasileiro 259 .
De acordo com Miguel Maria de Serpa Lopes, o ponto de maior
relevo no contrato de compra e venda no direito romano, com profundos reflexos no
direito moderno, consistiu no seu efeito meramente obrigatório, ou seja, na
circunstância de que dele não derivava a transferência do domínio, cujos meios de
256
A transmissão da propriedade somente se daria por um dos modos de transmissão da
propriedade, ou seja, pela mancipatio, pela in iure cessio e pela traditio, estudados no Capítulo 2 –
Sistemas de transmissão da propriedade, item 2.1 – Sistema romano.
257
Conferir as notas 249 e 250.
258
Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 52-55.
259
A posição dominante no direito brasileiro e a posição divergente de Darcy Bessone a respeito
especificamente da eficácia da compra e venda no direito brasileiro serão abordadas no Capítulo 6 –
O contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito brasileiro, item 6.1 – Eficácia e
conseqüências.
106
transmissão eram a mancipatio e a traditio, e tudo quanto se discutia era acerca do
momento em que se deveria de reputar consumada a transferência. Afirma ainda o
doutrinador que em todo o movimento de evolução da história do contrato se
destaca a idéia romana e fundamental da separação entre os dois atos: o ato causal
e o ato da transferência; a obrigação de transferir e o ato da transferência. Portanto,
no direito romano, o contrato de compra e venda nada representava como elemento
da transferência da propriedade, pois só a traditio podia fazê-lo. Por outro lado, os
sistemas que não reconhecem ao contrato a força translativa da propriedade, como
o sistema brasileiro, reconhecem o contrato como causa jurídica dessa mesma
transferência, o que não se verificava no direito romano, pois a traditio era um ato
considerado em si mesmo e desvinculado de qualquer outro ato jurídico
precedente 260 .
Consideradas as lições dos dois doutrinadores, adotamos o
entendimento de que o direito romano legou ao direito brasileiro o contrato de
compra e venda de natureza obrigacional, mediante o reconhecimento de que o
modo de aquisição da propriedade mobiliária consistente na tradição é
imprescindível à garantia da segurança das relações jurídicas e da própria paz
social.
5.2 – Sistema alemão
No sistema de direito alemão, o contrato de compra e venda é
considerado “el contrato bilateral por el cual una de las partes se obliga a la
260
Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de Direito Civil – Fontes das Obrigações: Contratos. 6ª ed.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2001. Volume III, p. 265-266.
107
prestación de una cosa o de un derecho y la outra a una contraprestación en
dinero” 261 . Trata-se de “un negocio obligatorio y los efectos inmediatos de la misma
son de naturaleza puramente obligatoria” 262 .
O sistema de direito alemão não reconhece ao contrato de compra e
venda o efeito translativo. A transmissão da propriedade mobiliária exige a
conjugação de dois atos, na verdade dois negócios jurídicos, o primeiro consistente
no negócio jurídico que fundamenta o título, no presente item considerado o contrato
de compra e venda, e o segundo consistente no negócio jurídico da tradição ou
entrega, desvinculada do primeiro contrato e para a qual se exigem os mesmos
elementos daquele 263 .
Portanto, no sistema alemão, o contrato de compra e venda é
estranho ao negócio translativo e se situa na área obrigacional.
261
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 14.
262
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 14. A respeito da eficácia da
compra e venda no sistema alemão, o autor afirma: “Esto vale también respecto a la compraventa
llamada manual, real o natural, o sea, aquella que, sin convenio previo especial, se concluye por el
canje immediato de precio y mercancia, y a veces incluso mediante aparato automático. Algunos vem
en la compraventa manual una mera prestación recíproca sin prévia obligación, o sea un negocio real
o, mas exactamente, dos tradiciones simultáneas, unidas por la causa. Pero este punto de vista no se
ajusta ni a la voluntad de las partes ni a la necessidades del tráfico. Si en una compraventa manual
se entrega moneda falsa, no será conforme a la intención de las partes, ni a la buena fé, el que la
consecuencia sea meramente la de tenerse que restituir las prestaciones, sino que lo oportuno es que
el vendedor tenga un crédito dirigido al pago del precio. De igual modo, corresponde al comprador
una pretensión dirigida a la prestación de la cosa debida cuando por error se le ha dado una distinta
de la que ambas partes querían. Aun en el caso de compraventa manual existe, pues, la intención de
vincularse reciprocamentey y así se declara tacitamente por el cambio de la coisa y del precio. No es
obstáculo el que en los casos normales la vinculación y el cumplimento seam simultâneos. La
questión tiene importancia práctica respecto a la carga de la prueba. Si la compraventa manual
tuviesse naturaleza meramente real la affirmación del comprador demandado de haberse concluído
una compraventa manual representaria una negación del fundamento de la demanda y la prueba
correspondería entonces al vendedor. En cambio, según nuestro punto de vista, el comprador tiene
que probar el pago del precio. Pero si se trata de negócios que, de una manera absolutamente
regular, sólo se concluyen en el tráfico com pago al contado (billetes de teatro, de ferrocarril, etc), el
juez habrá deducir de esto que se pagó al contado salvo prueba em contrario”.
263
Conferir 3.2.
108
As obrigações do vendedor consistem em “proprocionar al
comprador na propiedad de la cosa vendida”, além de “entregar la cosa vendida, o
sea procurar la posesión immediata corporal” 264 .
Quanto ao objeto do contrato, “se pueden vender no sólo las cosas y
derechos propios, sino también los ajenos. Em tal caso, si el vendedor no puede
procurar las cosas, viene obligado a indemnización” 265 .
Porque o contrato de compra e venda não transfere, por si, a
propriedade, o vendedor continua proprietário do bem vendido até o negócio jurídico
da tradição. Com a propriedade, o vendedor mantém sob a sua responsabilidade
também os riscos a que o bem está sujeito. “El vendedor soporta el riesgo. Así,
pues, si el objeto perece casualmente antes de la prestación, el comprador no tiene
que pagar el precio. Si la prestación si hace imposible solo em parte, el precio se ha
de pagar sólo proporcionalmente. El riesgo, prescindiendo del cas de mora
accipiendi, solo passa, por lo regular, al comprador com la entrega de la cosa” 266 .
Quanto ao comprador, suas obrigações principais são pagar o preço
e receber o bem vendido.
Há exceções à regra de que os riscos permanecem com o vendedor
até a data da tradição, como a hipótese de o vendedor, a pedido do comprador,
despachar o bem vendido para lugar diverso do lugar do cumprimento, o que faz
com que os riscos passem ao comprador imediatamente após a entrega do bem
pelo vendedor ao responsável pelo transporte.
264
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de Obligaciones, cit., p. 29.
265
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 16.
266
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 32.
109
O sistema alemão impõe ao contrato de compra e venda as
garantias contra a evicção 267 .
As características do contrato de compra e venda alemão guardam
relação de semelhança com as características do contrato de compra e venda
brasileiro, especialmente quanto à sua eficácia obrigacional. Essa circunstância
afasta o interesse da comparação dos contratos, já que as conseqüências são
também semelhantes quanto aos objetivos do presente trabalho.
Para o estudo do negócio jurídico desvinculado do contrato de
compra e venda e apto à transmissão da propriedade mobiliária, consistente na
tradição, bem como para o estudo do sistema alemão de transmissão da
propriedade mobiliária, remete-se ao Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da
propriedade mobiliária, item 3.2 – Sistema alemão.
5.3 – Sistema francês
“La vente n’est pas seulement un contrat qui se forme par le seul
échange des consentements, première application du príncipe du consensualisme;
c’est aussi um contrat que, automatiquement, par le simple échange des
consentements et sans aucune formalité, réalise le transfert de la propriété de la
chose vendue”. 268
No sistema de direito francês prepondera o critério da unidade
267
Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de Obligaciones, p. 52-74.
268
Jacques Ghestin et Bernard Desché. Traité – La vente, cit., p. 589 (“A venda não é apenas um
contrato que se forma por meio da mera manifestação de consentimento, que é a primeira aplicação
do princípio do consensualismo; é também um contrato que, automaticamente, pela simples
manifestação de consentimento e sem nenhuma formalidade, concretiza a transferência da
propriedade do bem vendido”).
110
formal, isto é, o próprio contrato, ao mesmo tempo em que cria o vínculo
obrigacional, transfere o domínio da coisa vendida. O repúdio ao critério romanista
foi uma conseqüência da influência do direito natural, que pretendeu dar cunho
filosófico ao princípio da transferência da propriedade, valendo-se de uma ficção, ou
seja, a de ser o consentimento elemento bastante para tornar perfeita a obrigação,
dispensando-se a tradição 269 .
O credor torna-se proprietário sem que haja necessidade de praticar
qualquer ato ou realizar qualquer formalidade subseqüente, e sequer há
necessidade de adimplemento, qualquer que seja, já que a transmissão da
propriedade se situa no momento em que se aperfeiçoa a vontade das partes. É a
vontade das partes que opera por si mesma o deslocamento, a transmissão da
propriedade 270 .
“Il est donc inexact, de façon generale, de considérer ce transfert de
la propriété comme une obligation pesant sur le vendeur. Ce transfert se réalise em
effet sans nouvelle manifestation de volonté de la part de ce dernier. La vendeur a
immédiatement et par le seul effet
de l’echange des consentements perdu la
propriété de droit vendu, propriété qui a été acquise par l’acheteur” 271 .
A obrigação de entrega do bem objeto do contrato pelo vendedor ao
comprador “no es traslativa ni de propiedad ni siquiera de posesión; el comprador se
ha convertido en propietario por la venta misma, y a contar de ese día, ha adquirido
269
Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso – Contratos, cit., p. 267.
270
Victor Hugo Tejerina Velázquez. A Tradição. São Paulo: PUC/SP (Dissertação de Mestrado –
PUC/SP), 1996, p. 69.
271
Jacques Ghestin et Bernard Desché. Traité – La vente, cit., p. 589 (“É inexato, de modo geral,
considerar a transferência da propriedade como uma obrigação do vendedor. A transferência se
realiza de fato sem nova manifestação de vontade deste. O vendedor, imediatamente e por efeito
exclusivo da manifestação de seu consentimento, perde a propriedade do bem vendido, propriedade
que é adquirida também imediatamente pelo comprador”).
111
el título de poseedor; el vendedor no podia ya tener el animus domini; no era ya más
que um poseedor precário, por cuenta de outro” 272 .
Dessa regra resulta que o comprador tem ação de reivindicação
contra o vendedor. Por outro lado, não a tem contra terceiro, em razão do disposto
no artigo 2279 do Código Civil francês (“En fait de meubles, la possession vaut
titre”). “Il en résulte, d’une part que, quand une chose mobilière corporelle a été
successivement vendue à deux personnes, celle d’entre elles qui en a été mise en
possession réelle est préférée, et en demeure propriétaire, encore que son titre soit
postérieur en date, pouvru cependant qu’elle ait été de bonne foi. Il en résulte,
d’autre part, qu’au cas de collision entre l’acquéreur d’une chose mobilière corporelle
et le créancier mis em possession de cette chose à titre de gage, ce dernier doit
l’emporter, s’il l’a reçue de bonne foi, encore que la mise en gage soit postérieure à
la vente” 273 .
Apesar da regra do artigo 2279 do Código Civil francês, “em dehors
des cas auxquels s’applique la máxime qu’em fait de meubles possession vaut titre,
on doit s’em tenir au príncipe que la propriété de meubles corporels est transmise à
l’acquéreur, même au regard des tiers, par le seul effet de la vente” 274 .
272
Louis Josserand. Derecho civil. Contrats. Buenos Aires: Bosch y Cia. Editores, 1950. Tomo II,
Volume II, p. 60.
273
C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 26 (“Disso resulta, por um lado, que, quando
um bem móvel é vendido sucessivamente a duas pessoas, aquele que foi imitida na posse real do
bem tem preferência, ainda que o seu título seja posterior em data, desde que se lhe reconheça a
boa-fé. Resulta também, por outro lado, que em caso de controvérsia entre o adquirente de um bem
móvel e o credor ao qual o bem foi entregue materialmente em garantia, este último deve levar a
melhor, se recebeu o bem de boa-fé, ainda que a imissão seja posterior à data da venda”).
274
C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 26 (“Fora os casos aos quais se aplica a
máxima de que quanto aos bens móveis a posse equivale ao título, é preciso ter em mente o princípio
de que a propriedade dos bens móveis é transmitida ao comprador, mesmo em relação a terceiros,
tão só pelo efeito do contrato de compra e venda”).
112
Assim como a propriedade, os riscos a que o bem está sujeito são
transmitidos ao comprador tão somente pelo efeito do contrato.
“Le transfert de la propriété solo consensu crée également um grave
danger pour l’acheteur. Em effet devenu immédiatement propriétaire de la chose,
l’acheteur va dès la conclusion du contrat devoir supporter les risques de perte ou de
détérioration de la chose vendue. Et cela alors même que cette chose ne lui ayant
pás été livrée, il ne peut exercer sur elle aucune surveillance. Tout au plus pourra-t-il
invoquer lune faute du vendeur dans la surveillance de la chose. Mais il aura à
supporter les risques de force majeure. C’est l’applications de la règle res perit
domino” 275 .
A venda de coisa alheia é considerada anulável, sendo que apenas
o comprador tem legitimidade para a sua discussão, e desde que mediante a prova
de ignorância de que o vendedor não era o proprietário do bem. Isso porque se a
ignorância do comprador decorre de sua própria conduta negligente, deverá suportar
uma parte do prejuízo.
E a anulabilidade será sanada mediante a ratificação da venda pelo
verdadeiro proprietário, bem como pela circunstância de o vendedor se tornar
posteriormente sucessor particular ou universal do proprietário. Será também
sanada mediante a manifestação da ciência do adquirente a respeito da propriedade
do bem. O sistema francês impõe ao contrato de compra e venda as garantias
275
Jacques Ghestin et Bernard Desché. Traité – La vente, cit., p. 590 (“A transferência da propriedade
solo consensu cria um grave risco para o comprador. Pelo efeito de se tornar imediatamente
proprietário da coisa vendida, o comprador, desde a conclusão do contrato, passa a suportar os
riscos da perda ou da deterioração da coisa vendida. E isso se dá mesmo quando a coisa ainda não
tenha sido entregue e mesmo que o comprador não possa exercer nenhuma vigilância sobre a coisa.
Quando muito, pode o comprador alegar um erro – e a culpa do vendedor – e em relação à vigilância
exercida sobre a coisa. Mas o comprador sempre suportará os riscos de caso fortuito e de força
maior. É a aplicação da regra res perit domino”).
113
contra a evicção 276 .
5.4 – Sistema inglês
Assim como no sistema francês, no sistema inglês o contrato de
compra e venda de bem móvel tem eficácia real, ou seja, a transmissão da
propriedade mobiliária se dá mediante o consenso do vendedor e do comprador a
respeito da coisa e do preço, com a ressalva de que, no sistema inglês, a
transmissão da propriedade se verifica, como regra, desde que o bem móvel seja
passível de entrega imediata.
As previsões a respeito do contrato de compra e venda de bens
móveis constam do “Sale of Goods Act 1979” 277 .
De acordo com a referida norma, contrato de compra e venda,
denominado sale, é o contrato por meio do qual “the seller transfers or agrees to
transfer the property in goods to the buyer for a money consideration, called the
price” 278 .
276
C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 67-93.
277
“Lei de Venda de Bens Móveis”. O texto completo da lei está disponível no endereço eletrônico
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7. O termo “goods” é usado no sentido
de produtos ou mercadorias (Durval de Noronha Goyos Jr. Dicionário Jurídico. 5ª ed. São Paulo:
Observador Legal Editora Ltda, 2003, p. 164; Michaelis Escolar, disponível em
http://cf.uol.com.br/michaelis/dicionar.cfm?dicion_id=8&TextoBusca=goods), ou seja, bens móveis,
em oposição ao termo “real estate”, que identifica o bem imóvel (Durval de Noronha Goyos Jr.
Dicionário
Jurídico,
cit.,
p.
276;
Michaelis
Escolar,
disponível
em
http://cf.uol.com.br/michaelis/dicionar.cfm?dicion_id=8&TextoBusca=goods).
278
“o vendedor transfere ou se compromete a transferir a propriedade do bem ao comprador
mediante um valor em dinheiro, denominado preço” (Section 2.1 do Sale of Goods Act 1979,
disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
114
O sistema inglês diferencia a venda da promessa de venda,
mediante a especificação de que se “under a contract of sale the property in the
goods is transferred from the seller to the buyer the contract is called a sale” 279 ,
enquanto que se “under a contract of sale the transfer of the property in the goods is
to take place at a future time or subject to some condition later to be fulfilled the
contract is called an agreement to sell” 280 , sendo que este o compromisso de venda
se torna uma venda quando “the time elapses or the conditions are fulfilled subject to
which the property in the goods is to be transferred” 281 .
O contrato é considerado consensual e pode ser celebrado “in
writing (either with or without seal), or by word of mouth, or partly in writing and partly
by word of mouth, or may be implied from the conduct of the parties” 282 .
A respeito da transferência da propriedade dos bens móveis objeto
do contrato, o sistema inglês distingue entre bens determinados e não determinados,
sendo os últimos identificados pelo gênero e quantidade, mas ainda não
individualizados. “Where there is a contract for the sale of unascertained goods no
property in the goods is transferred to the buyer unless and until the goods are
279
“mediante o contrato a propriedade do bem móvel é transferida do vendedor ao comprador, o
contrato é denominado venda” (Section 2.4 do Sale of Goods Act 1979, disponível em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
280
“mediante o contrato a transferência da propriedade do bem móvel é postergada para um
momento futuro ou condicionada a uma determinada condição a ser implementada, o contrato é
denominado compromisso de venda” (Section 2.5 do Sale of Goods Act 1979, disponível em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
281
“com o transcurso do prazo ou o implemento das condições às quais ficou submetida a
transferência da propriedade dos bens móveis objeto do contrato” (Section 2.6 do Sale of Goods Act
1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
282
“por escrito (com ou sem registro), verbalmente ou parcialmente por escrito e parcialmente de
forma verbal, bem como também pode ser presumido tendo como base a conduta das partes (Section
4.1
do
Sale
of
Goods
Act
1979,
disponível
em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
115
ascertained” 283 . Mas se o bem objeto do contrato, apesar de ainda não
individualizado, puder ser identificado de forma a ser reconhecido como vinculado ao
contrato, as partes podem estabelecer que a propriedade desse bem – mesmo ainda
não individualizado e independentemente desse ato – é transferida pelo vendedor ao
comprador no momento do pagamento do preço 284 .
Tratando-se de bens especificados e individualizados, "the property
in them is transferred to the buyer at such time as the parties to the contract intend it
to be transferred” 285 . Para a finalidade de se aferir a intenção das partes a respeito
da transmissão da propriedade mobiliária, devem ser considerados “the terms of the
contract, the conduct of the parties and the circumstances of the case” 286 .
Considerada a dificuldade concreta de identificação da intenção das
partes, a lei inglesa prevê cinco regras para a sua aferição, as quais são aplicadas
aos casos de ausência de identificação da intenção das partes considerados os
elementos legais referidos (os termos do contrato, a conduta das partes e as
circunstâncias do caso).
A primeira regra estabelece que se se trata de “an unconditional
contract for the sale of specific goods in a deliverable state the property in the goods
passes to the buyer when the contract is made, and it is immaterial whether the time
283
“Se o contrato tem por objeto bens ainda não individualizados, a sua propriedade, como regra, não
é transferida ao comprador até que o sejam” (Section 16 do Sale of Goods Act 1979, disponível em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
284
Adrian Jenkala, advogado inglês, em entrevista realizada no dia 31 de julho de 2005, em Durham,
Inglaterra.
285
“a sua propriedade é transferida ao comprador quando as partes do contrato pretendem que o seja”
(Section
17.1
do
Sale
of
Goods
Act
1979,
disponível
em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
286
“os termos do contrato, a conduta das partes e as circunstâncias do caso concreto” (Section17.2 do
Sale
of
Goods
Act,
de
1979,
disponível
em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
116
of payment or the time of delivery, or both, be postponed” 287 . Ou seja, assim que as
partes acordam a respeito do bem e do preço, e desde que o bem móvel negociado
seja passível de entrega imediata, a propriedade do bem e os riscos respectivos são
transferidos ao comprador 288 .
Como conseqüência da transmissão da propriedade, se a coisa se
perde antes da tradição, sem culpa do vendedor e sem que qualquer das partes
esteja em mora, a perda é do comprador, já que este se tornou proprietário do bem
anteriormente à tradição e independentemente desta. Nesse caso, incumbe ao
comprador o pagamento do preço, já que o contrato produziu seus efeitos
validamente 289 .
Por outro lado, entregue o bem pelo vendedor ao comprador, o
vendedor não tem mais o direito ao bem, mas exclusivamente ao valor acordado. Na
prática, isso significa que ao vendedor não se garante a pretensão de desfazimento
do negócio e consolidação da propriedade do bem em suas mãos, mas
exclusivamente a pretensão ao valor do bem, conforme acordado no contrato 290 .
A situação é diversa se o bem móvel objeto do contrato, apesar de
ter sido individualizado e especificado, ainda não existir no momento da celebração,
ou seja, se o bem móvel objeto do contrato não for passível de entrega imediata. O
exemplo é de peças de roupas, especificadas mediante a escolha em um catálogo,
287
“Tratando-se de um contrato incondicional de venda de bens móveis determinados e passíveis de
entrega imediata, a propriedade dos bens é transferida ao comprador no momento da celebração do
contrato, independentemente de o pagamento e a entrega serem postergados” (Section 18.1 do Sale
of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
288
Tony Lancaster, cit.
289
Tony Lancaster, cit.
290
Adrian Jenkala, Advogado inglês, em entrevista realizada no dia 31 de julho de 2005, em Durham,
Inglaterra.
117
por exemplo, mas ainda não confeccionadas pelo vendedor. Porque as peças de
roupa ainda não existem quando da celebração do contrato – e portanto não são
passíveis de entrega imediata –, a sua propriedade não é transmitida pelo vendedor
ao comprador naquele momento, apesar do consenso a respeito do objeto e do
preço. Nesse caso, a propriedade será transmitida assim que as peças de roupa
estiverem prontas 291 .
De acordo com a segunda regra, tratando-se de um “contract for the
sale of specific goods and the seller is bound to do something to the goods for the
purpose of putting them into a deliverable state, the property does not pass until the
thing is done and the buyer has notice that it has been done” 292 .
Nos termos da terceira regra, se se tratar de “contract for the sale of
specific goods in a deliverable state but the seller is bound to weigh, measure, test or
do some other act or thing with reference to the goods for the purpose of ascertaining
the price, the property does not pass until the act or thing is done and the buyer has
notice that it has been done” 293 .
A quarta regra estabelece que, “When goods are delivered to the
buyer on approval or on sale or return or other similar terms the property in the goods
passes to the buyer: (a) when he signifies his approval or acceptance to the seller or
291
Tony Lancaster, cit.
292
“contrato de venda de bens móveis determinados e individualizados, mas a respeito dos quais o
vendedor precisa tomar alguma providência para que os bens sejam passíveis de entrega, a
propriedade desses bens não é transmitida até que a providência seja tomada e o comprador seja
informado pelo vendedor de que a providência foi tomada” Section 18.2 do Sale of Goods Act 1979,
disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
293
“contrato de venda de bens móveis individualizados, mas que devem ser pesados, medidos ou
testados pelo vendedor a fim de que o preço seja fixado, a propriedade desses bens não é transmitida
até que a providência seja tomada e o comprador seja informado pelo vendedor de que a providência
foi
tomada”
(Section
18.3
do
Sale
of
Goods
Act
1979,
disponível
em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
118
does any other act adopting the transaction; (b) if he does not signify his approval or
acceptance to the seller but retains the goods without giving notice of rejection, then,
if a time has been fixed for the return of the goods on the expiration of that time, and
if no time has been fixed, on the expiration of a reasonable time” 294 .
A quinta regra, dividida em duas partes, prescreve, na primeira
parte, que, no caso de um “contract for the sale of unascertained or future goods by
description, and goods of that description and in a deliverable state are
unconditionally appropriated to the contract, either by the seller with the assent of the
buyer or by the buyer with the assent of the seller, the property in the goods then
passes to the buyer; and the assent may be express or implied, and may be given
either before or after the appropriation is made”, e, na segunda parte, que ”Where, in
pursuance of the contract, the seller delivers the goods to the buyer or to a carrier or
other bailee or custodier (whether named by the buyer or not) for the purpose of
transmission to the buyer, and does not reserve the right of disposal, he is to be
taken to have unconditionally appropriated the goods to the contract” 295 .
294
“Quando os bens são entregues ao comprador mediante consignação ou mediante outros termos
semelhantes, a propriedade dos bens é transferida ao comprador: (a) quando ele sinaliza sua
aprovação ou sua aceitação ao vendedor, ou tem qualquer conduta que demonstra que ele aceitou o
negócio jurídico; (b) se ele não sinalize sua aprovação ou aceitação ao vendedor, mas retém os bens
sem manifestar sua rejeição, considerado, nesse caso, o prazo fixado, se o foi, ou o decurso de tempo
razoável, se não houve fixação de prazo” (Section 18.4 do Sale of Goods Act 1979, disponível em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
295
“No contrato que tem como objeto bens indeterminados ou bens futuros, que tenham sido
contratados mediante descrição, e bens com a descrição exata do contrato e passíveis de entrega
imediata fora vinculados ao contrato, ou pelo vendedor com o consentimento do comprador, ou pelo
comprador com o consentimento do vendedor, a propriedade dos bens é transferida ao comprador, e o
consentimento pode ser expresso ou implícito, e pode ser dado antes ou depois que a vinculação é
feita”; “Quando, em cumprimento do contrato, o vendedor entrega os bens móveis ao comprador ou a
um depositário ou detentor – que podem ter sido nomeados pelo comprador ou não – com o objetivo
de transmissão dos bens ao comprador, e não se reserva o domínio dos bens, considera-se que os
vinculou incondicionalmente ao contrato (Section 18.5 do Sale of Goods Act 1979, disponível em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
119
O sistema inglês admite a reserva de domínio nos contratos de
venda de bens especificados ou de bens que são posteriormente vinculados ao
contrato. Nesse caso, o vendedor pode, “by the terms of the contract or
appropriation, reserve the right of disposal of the goods until certain conditions are
fulfilled; and in such a case, notwithstanding the delivery of the goods to the buyer, or
to the carrier or other bailee or custodier for the purpose of transmission to the buyer,
the property in the goods does not pass to the buyer until the conditions imposed by
the seller are fulfilled” 296 .
Uma das situações mais comuns nas quais é necessária uma
decisão judicial a respeito da transferência da propriedade se dá quando uma das
partes se torna insolvente e é necessário estabelecer se os bens móveis objeto do
contrato podem ser considerados parte do ativo da parte insolvente para o fim de
quitação de seus débitos.
Dois casos são considerados paradigma para a solução da
transmissão da propriedade mobiliária dos bens objeto do contrato. Em Aldridge v.
Johnson 297 , o contrato de venda teve por objeto quinhentas toneladas de trigo, do
total de mil toneladas que se encontravam embarcadas em um navio. O comprador
inspecionou os grãos e deixou as embalagens para a sua colocação. Depois da
embalagem e antes da entrega efetiva dos grãos ao comprador, o vendedor tornouse insolvente. A decisão estabeleceu que a propriedade dos grãos havia sido
296
o vendedor pode, pelos termos do contrato”ou da vinculação, reservar-se o domínio dos bens até
que determinadas condições sejam implementadas; nesse caso, ainda que os bens sejam entregues
ao comprador, ao transportador ou outro depositário ou detentor com o objetivo de transmissão dos
bens ao comprador, a propriedade dos bens não é transmitida ao comprador até que as condições
impostas pelo comprador sejam implementadas” (Section 19.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível
em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
297
(1857) 7 E & B 885, disponível em http://www.singaporelaw.sg/content/9saleofgds.pdf.
120
transmitida ao comprador assim que os grãos haviam sido embalados pelo
vendedor, já que esse havia sido o ato por meio do qual o vendedor havia vinculado
incondicionalmente os grãos ao contrato.
Em 1957, Carlos Federspiel & Co SA v Charles Twigg & Co Ltd 298
constituiu um marco no regramento a respeito da transferência da propriedade dos
bens móveis em caso de insolvência. O contrato de venda dizia respeito a bicicletas
de crianças, que haviam sido embaladas e identificadas com o nome do comprador.
Em resposta à remessa das faturas contendo os detalhes da remessa e do
pagamento das taxas de embarque, o comprador enviou um cheque para fins de
pagamento. Quatro semanas depois, mas ainda antes de as bicicletas serem
encaminhadas ao porto para o efetivo embarque, o vendedor tornou-se insolvente e
a entrega não foi efetivada. O comprador ajuizou uma ação pleiteando a entrega das
bicicletas. A decisão estabeleceu que a mera separação dos bens não é suficiente à
transmissão da propriedade, porque o vendedor poderia mudar de opinião e usar
aqueles bens para o cumprimento de outro contrato. Estabeleceu ainda que o ato de
determinação dos bens, ou seja, o ato por meio do qual os bens passam de
indeterminados a determinados e se vinculam incondicionalmente ao contrato é o
último ato a ser praticado pelo vendedor, no caso a entrega dos bens para
embarque. E que, como as bicicletas não haviam sido entregues para embarque, a
sua propriedade não havia sido transferida ao comprador.
Em 1976, outro caso considerado paradigma foi decidido pela Corte
Inglesa de Apelação 299 . Em Aluminium Industrie Vaassen BV v. Romalpa Aluminium
298
1
Lloyd's
Rep.
240,
disponível
trade/passage%20of%20property.htm.
299
em
http://www1.doshisha.ac.jp/~tradelaw/international-
English Court of Appeal.
121
Ltd. 300 , a autora era uma empresa que havia vendido folhas metálicas de alumínio à
empresa requerida. A autora/vendedora havia elaborado um contrato de venda com
uma cláusula que estabelecia que a propriedade dos bens vendidos não seria
transmitida à requerida/compradora até que o preço fosse pago integralmente, e que
até a implementação do pagamento a requerida/compradora manteria os bens
manufaturados com as folhas de alumínio como proprietária fiduciária. O contrato
também estabelecia que a requerida/compradora estocaria os bens vendidos de
forma
a
poderem
ser
claramente
identificados
como
propriedade
da
autora/vendedora até a data do pagamento. A requerida/compradora se tornou
insolvente
antes
do
pagamento
do
preço,
mas
havia
vendido
produtos
manufaturados a partir das folhas de alumínio. A Corte de Apelação decidiu que a
propriedade
das
folhas
de
alumínio
não
havia
sido
transmitida
à
requerida/compradora e que esta havia revendido os bens como mera representante
da autora/vendedora, razão pela qual esta estava legitimada a receber o valor da
venda no varejo com preferência em relação aos demais credores da
requerida/compradora insolvente.
Nada impede que as partes estabeleçam uma cláusula contratual
por meio da qual se determine que a propriedade é transferida, quanto aos bens
indeterminados, mediante o pagamento parcial ou integral do preço.
A presunção res perit domino se aplica ao sistema inglês, razão pela
qual se justifica a importância da especificação do momento em que a propriedade
mobiliária é transferida do vendedor ao comprador.
300
(1976) 2 All ER 552, disponível em http://www.ebc-india.com/lawyer/articles/671.htm.
122
A solução pode ser determinante para a fixação dos direitos
decorrentes de um contrato de venda de um veículo, por exemplo. É passível de
discussão se a regra atende às expectativas das partes. O vendedor pode não ter a
intenção de transferir a propriedade do veículo até que o pagamento tenha sido feito
pelo comprador. E o comprador pode não ter a intenção de adquirir a propriedade e,
conseqüentemente, responsabilizar-se pelos riscos, antes da entrega efetiva do
veículo, considerando-se que nesse caso ele próprio arcará com os prejuízos
decorrentes da perda ou deterioração do veículo se uma ou outra hipótese ocorrer
sem culpa do vendedor e antes da entrega efetiva.
Quanto aos riscos, como regra geral são transmitidos pelo vendedor
ao comprador juntamente com a propriedade. “Unless otherwise agreed, the goods
remain at the seller's risk until the property in them is transferred to the buyer, but
when the property in them is transferred to the buyer the goods are at the buyer's risk
whether delivery has been made or not” 301 . Mas se a entrega do bem vendido
houver sido atrasada “through the fault of either buyer or seller the goods are at the
risk of the party at fault as regards any loss which might not have occurred but for
such fault” 302 .
Em 1827, em Taling v. Baxter, o comprador adquiriu um monte de
feno, mas antes da entrega efetiva houve um incêndio, sem culpa de qualquer das
301
“A menos que acordado de outra forma pelos contratantes, os bens são mantidos sob o risco do
vendedor até que a propriedade seja transmitida ao comprador, mas quando a propriedade é
transmitida, os bens passam a estar sob o risco do comprador,s o são conjuntamente, ainda que os
bens não tenham sido entregues materialmente ao comprador, independentemente de a entrega ter
sido efetivada ou não” (Section 20.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
302
“por culpa do vendedor ou do comprador, os bens serão considerados sob o risco da parte
culposa, com relação a quaisquer perdas que não teriam ocorrido senão pela ocorrência da culpa”
(Section
20.2
do
Sale
of
Goods
Act
1979,
disponível
em
http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7).
123
partes, e o feno queimou completamente e se perdeu. A decisão estabeleceu que a
propriedade havia sido transmitida ao comprador no momento da celebração do
contrato, já que se tratava de bem determinado e passível de entrega imediata 303 .
Em 1922, em Underwood Ltd. V. Burgh Castle Brick and Cement
Syndicate, o objeto da venda era uma máquina de grande porte, que pesava trinta
toneladas e estava montada sobre uma estrutura de concreto. Antes de ser entregue
pelo vendedor à companhia de estrada de ferro que faria o transporte até o local em
que seria recebida pelo comprador, a máquina teve de ser desmontada e, ao ser
colocada no caminhão de transporte, foi danificada. O comprador se recusou a
recebê-la e o vendedor ajuizou uma ação para o fim de obrigá-lo a receber a
máquina e cobrar-lhe o preço acordado. A decisão estabeleceu que, como a
máquina tinha de ser desmontada para ser entregue à transportadora, a propriedade
não havia sido transmitida no momento do acidente 304 .
Em 1949, em Demby Hamilton & Co Ltd. v. Barden, o contrato teve
por objeto trinta toneladas de suco de maçã, que seriam entregues em
carregamentos semanais. O suco foi estocado em barris, prontos para a entrega.
Depois de algumas semanas o comprador se recusou a aceitar novos
carregamentos pelo tempo que o próprio comprador estabeleceria. Antes que o
comprador permitisse o recomeço das entregas, o suco estragou e teve de ser
jogado fora. A decisão foi de que, embora a propriedade ainda não houvesse
passado, os riscos eram do comprador, considerada a culpa deste ao não receber o
objeto do contrato no tempo combinado.
303
Andrew P. Bell. Modern Law of Personal Property in England and Ireland. Londres/Edimburgo:
Butterworths, 1989, p. 316.
304
Disponível
em
WEB.DLL?DocumentBody?1154214136&ELR_1922_32_1_123.
http://www.justis.com/J-Net/J-
124
Se o comprador tem a intenção de revender os bens e o vendedor
aceita mantê-los sob a sua posse enquanto o negócio é finalizado, os riscos são
considerados para o comprador. Ou seja, os riscos do contrato deixam de estar com
o vendedor assim que este deixa de agir como vendedor (no exemplo o vendedor
deixou de agir como tal e passou a agir como depositário dos bens a serem
entregues pelo comprador primitivo, que estão sob a detenção do vendedor
primitivo) ao novo comprador.
A solução será diferente se o contrato tem por objeto bens
especificados a serem entregues em data posterior, e antes da entrega os bens se
perdem mediante a negligência do vendedor. Nesse caso, embora a propriedade e
os riscos tenham sido transmitidos para o comprador, o vendedor terá agido com
culpa enquanto ainda no papel de vendedor, o que faz com que se conclua que
assumiu os riscos.
Se o vendedor de um bem móvel não é o proprietário do bem objeto
do contrato, e se a venda não é celebrada mediante a autorização ou o
consentimento do proprietário, o comprador não adquire um título melhor do que o
título do vendedor, a menos que exista fundamento para que se reconheça o
impedimento ao proprietário do bem objeto do contrato para negar que o vendedor
tivesse sua autorização para a realização da venda.
Mas essa norma não impede a aplicação de outras normas que
garantam ao proprietário aparente o direito de dispor dos respectivos bens como
verdadeiro proprietário, bem como não impede a validade de qualquer contrato
celebrado sob regras reconhecidas pelo costume, sob regras específicas previstas
125
em outras normas ou sob a autorização de tribunal competente para a apreciação
do caso.
O terceiro adquirente do bem por meio de um título anulável tem a
sua propriedade protegida, desde que a tenha adquirido de boa-fé. “When the seller
of goods has a voidable title to them, but his title has not been avoided at the time of
the sale, the buyer acquires a good title to the goods, provided he buys them in good
faith and without notice of the seller's defect of title” 305 .
305
Section 23 do Sale of Goods Act 1979 (“Se o vendedor do bem móvel tem um título anulável, mas
esse título não foi anulado até a data da venda, o comprador adquire validamente a propriedade do
bem objeto do contrato, desde que o faça de boa-fé e sem conhecimento do defeito do título”).
126
Capítulo 6 – Contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito
brasileiro
6.1 – Eficácia e conseqüências
Como referido no Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da propriedade
mobiliária, item 3.5 – Sistema brasileiro, inexiste consenso a respeito da eficácia real
ou obrigacional do contrato de compra e venda no sistema de direito brasileiro
anterior ao Código Civil de 1916 306 .
Nas Ordenações Filipinas, o conceito da compra e venda era
expresso no Livro IV, título 2: "Fazendo-se compra e venda de alguma certa cousa
por certo preço, depois que o contracto he acordado e firmado pelas partes, não se
pode mais alguma dellas arrepender sem consentimento da outra. Porque, tanto que
o comprador e o vendedor são acordados na compra e venda de alguma certa
cousa por certo preço, logo esse contracto he perfeito e acabado, em tanto que
dando, ou offerecendo o comprador ao vendedor o dito preço, que seja seu, será
elle obrigado de lhe entregar a cousa vendida, se fôr seu poder; e se em seu poder
não fôr, pagar-lhe-ha todo o interesse, que lhe pertencer, assi por respeito do ganho,
como por respeito da perda" 307 .
Darcy Bessone afirma que o texto transcrito permitia a conclusão de
306
Afirmam a eficácia real do contrato de compra e venda no direito brasileiro pré-codificado: Luiz da
Cunha Gonçalves. Da compra e venda, cit., p. 72; Sílvio de Salvo Venosa. Direitos reais, cit., p. 187; e
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Direitos reais, cit., p. 118 (conferir notas 192 a 195). Por sua
vez, R. Limongi França afirma a eficácia brigacional do contrato de compra e venda inclusive na fase
anterior ao Código Civil de 1916 (Manual de direito civil, cit., p. 75-76).
307
Darcy Bessone. Da Compra e venda, cit., p. 74, nota 77.
127
que o contrato, por si, transmitia a propriedade, mas conclui que essa possibilidade
era afastada pelo parágrafo primeiro do referido dispositivo legal, que autorizava o
arrependimento, com a perda das arras dadas.
O doutrinador transcreve também o texto do título 7 das mesmas
Ordenações – "Se o que fôr senhor de alguma cousa, a vender duas vêzes a
desvairadas pessoas, o que primeiro houver a entrega della será della feito
verdadeiro senhor, se della pagou o preço, por que lhe foi vendida, ou se se houve e
o vendedor por pago della, por concorrendo assi na dita venda entrega da cousa e
paga do preço, o fazeram senhor della" – para concluir que a transmissão da
propriedade não se perfazia pela convenção, exigindo-se o modo para a sua
efetivação 308 .
Ainda antes da vigência do Código Civil de 1916, a Lei n.º 1.237, de
24 de setembro de 1.864, em seu artigo 8º, estabeleceu que "a transmissão
intervivos dos imóveis, por titulo oneroso ou gratuito, não opera seus efeitos a
respeito de terceiro, senão pela transcrição e desde a data dela" 309 , o que gerou
discussão a respeito do momento da transmissão da propriedade, que, de acordo
com o referido dispositivo legal, seria reputada transferida ao adquirente tão
somente pelo efeito da celebração do contrato.
Lafayette Rodrigues Pereira, comentando o referido dispositivo legal
e a possibilidade levantada, de transmissão da propriedade por meio da convenção
e independentemente do modo, afirmou: "O domínio é um direito absoluto, erga
omnes. Se não existe em relação a terceiro, também não pode existir entre as
308
Darcy Bessone. Da Compra e venda, cit., p. 74-75, nota 77.
309
Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 138, nota 44; Darcy Bessone. Da compra e
venda, cit., p. 75, nota 77.
128
próprias partes contratantes. Um domínio que só é domínio entre os contratantes,
mas que não o é em relação a terceiro, também não pode existir entre as próprias
partes contratantes. Um domínio que só é domínio entre os contratantes, mas que
não o é em relação a terceiros, é uma monstruosidade, que repugna à razão" 310 .
Consideradas
as
posições
contraditórias
manifestadas
pelos
estudiosos e a inexistência de decisões reiteradas que possam atestar o
entendimento jurisprudencial à época, Darcy Bessone afirma que não se pode extrair
do direito pré-codificado brasileiro um principio sólido quanto à eficácia real ou
obrigaciaonal do contrato de compra e venda 311 .
A partir da vigência do Código Civil de 1916, o entendimento
majoritário foi de que a eficácia do contrato de compra e venda no sistema de direito
brasileiro é meramente obrigacional 312 , embora tenham sido emitidas opiniões
divergentes.
Luiz da Cunha Gonçalves afirmou que a interpretação conjunta dos
artigos 1.126 e 1.127 do Código Civil de 1916 313 permitia a conclusão de que o
contrato de compra e venda, considerado perfeito a partir do momento em que as
partes acordassem sobre o objeto e o preço a ser pago, ensejava, por si, a
310
Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 138, nota 45.
311
Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 74-75 (notas omitidas).
312
A tese dominante se baseou na previsão do artigo 1.122, do Código Civil de 1916 (“Pelo contrato
de compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a
pagar-lhe certo preço em dinheiro”), sob o fundamento de que, se a lei estabeleceu que da compra e
venda resulta a obrigação de transferir o domínio, a conclusão somente pode ser de que o vendedor
não o transfere, mas apenas se obriga a transferi-lo.
313
Código Civil, Art. 1126. “A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita,
desde que as partes acordarem no objetivo e no preço”; Art. 1127. “Até ao momento da tradição, os
riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”.
129
transmissão da propriedade e dos riscos ao comprador 314 .
Darcy Bessone também manifestou opinião divergente da maioria e
desenvolveu uma tese para afirmar a eficácia real do contrato de compra e venda no
sistema de direito brasileiro.
O texto do Código Civil de 1916 (Artigo 1122. “Pelo contrato de
compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa,
e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”) é equivalente ao do Código Civil
francês (Article 1582. “La vente est une convention par laquelle l’un s’oblige a livrer
une chose et l’outre la payer” 315 ) quanto à obrigação do vendedor, de entrega do
bem objeto do contrato. Ou seja, nenhuma das disposições estabelece que o próprio
contrato transfere a propriedade do bem vendido. No entanto, a corrente vitoriosa na
França afirmou que não se podia extrair o sistema francês de um único dispositivo
legal com a desconsideração de vários outros, que fixavam o caráter real do
contrato 316 .
Com fundamento nessa visão do direito francês, Darcy Bessone
analisou diversos artigos do Código Civil de 1916, visando a comprovar a eficácia
real do contrato de compra e venda no direito brasileiro.
O primeiro objeto da análise foi o artigo 134, inciso II (“É, outrossim,
da substância do ato a escritura pública: I – (...); II – nos contratos constitutivos ou
translativos de direitos reais sobre imóveis de valor superior a Cr$ 50.000 (cinqüenta
314
Luiz da Cunha Gonçalves. Da compra e venda, cit., p. 72.
315
“A venda é uma convenção pela qual alguém se obriga a entregar uma coisa e outrem a pagá-la”.
316
“Article 1.583. La vente est parfaite entre les parties, et la propriété est acquise de droit à l’acheteur
à l’egard du vendeur, dès qu’on est convenu de la chose et du prix, quoique la chose n’ait pas encore
été livrée ni le prix payé” (Artigo 1.583. A venda se considera perfeita entre as partes, e a propriedade
é adquirida pelo comprador em relação ao vendedor, desde que sejam convencionados a coisa e o
preço, embora a coisa ainda não tenha sido entregue nem o preço pago).
130
mil cruzeiros), excetuado o penhor agrícola 317 ). Afirma o doutrinador: “Não é
possível maior clareza, quanto à existência, entre nós, de contratos constitutivos ou
translativos de direitos reais (...). O conceito moderno do contrato admite, ao
contrário do que supunham os romanos, que êle é hábil para constituir e transmitir
direitos reais, não se cingindo, assim, à produção de obrigações. Ninguém duvidaria
de que, entre os contratos constitutivos ou translativos de direitos reais, destaca-se,
como o principal dêles, precisamente a compra e venda, cuja forma, sempre que o
imóvel seja de valor superior a dez mil cruzeiros, é, por fôrça apenas do invocado
art. 134, a escritura pública. Então, não se pode, sem afronta a êsse inciso, negar à
compra e venda o caráter translativo ou constitutivo de direito real, o que equivale a
reconhecer-lhe eficácia real, isto é, a incluí-lo entre os contratos reais pelos
efeitos” 318 .
A seguir, Darcy Bessone compara o texto dos artigos 1.122 (“Pelo
contrato de compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de
certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”) e 1.165 (“Considera-se
doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio
bens ou vantagens para o de outro, que os aceita”) para ressaltar no segundo
dispositivo legal a redação que não refere a obrigação de transferir a propriedade,
mas sim a própria transferência desta: “A diferença da expressão, nos arts. 1122 e
1165, definidores da compra e venda e da doação, teria sido intencional, visando a
conferir caráter obrigacional à primeira, e caráter real, à segunda? Dificilmente,
317
Embora o dispositivo legal se refira a bens imóveis, a explicação do doutrinador diz respeito não à
qualidade do bem em si, mas sim à eficácia do contrato de compra e venda, genericamente
considerado.
318
Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 76.
131
poder-se-ia, em face de figuras tão afins, admitir tal diversidade de tratamento. Mais
facilmente, admitir-se-á, sobretudo em face do texto do art. 134, que faltou ao
legislador,
apenas,
uma
visão
penetrante
do
tema,
deixando-se
influir,
possivelmente, pela redação do art. 1582, do Code Civil francês. Este, não obstante,
foi, na própria França, cotejado com outros incisos legais, em um trabalho de
exegese sistemática e teleológica, que acabou afirmando a eficácia real da compra e
venda francesa 319 .
Na seqüência, o doutrinador estuda os artigos 533 (“Os atos sujeitos
à transcrição (artigos 531 e 532, nºs. II e III) não transferem o domínio, senão da
data em que lhe transcreverem (artigos 856 e 860, parágrafo único) e 620 (“O
domínio das coisas não se transfere pelos contratos antes da tradição”) para
fundamentar a sua tese. De acordo com a sua conclusão, os dois dispositivos legais
“afirmam, embora sob forma indireta, que a transferência do domínio deriva do
contrato. Com efeito, o primeiro, convertido em proposição afirmativa, teria o
seguinte texto: os atos sujeitos a transcrição, transferem o domínio, na data em que
se transcreverem; o segundo, submetido a idêntica operação, afirmaria que o
domínio das coisas, no momento da tradição, se transfere pelos contratos. A forma
negativa de expressão, adotada pelo legislador nos artigos 533 e 620, pode, à
primeira vista, desligar, do ato ou contrato, o efeito translativo, para lhe fixar a origem
na transcrição ou tradição. Mas a análise lógica precisará o verdadeiro sentido dos
dois preceitos 320 .
Darcy Bessone faz ainda uma análise do acordo de vontades,
319
Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 77-78.
320
Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 78.
132
considerado a base da compra e venda brasileira, para o fim de comparar o referido
contrato aos contratos de compra e venda nos outros sistemas de direito. Afirma que
a tese de que a compra e venda brasileira produz apenas a obrigação de transferir o
domínio significa que o objeto do acordo de vontades é a criação dessa obrigação
de transferir o domínio e não a própria transferência deste. E que essa afirmação
poderia ser admitida no direito alemão, cujo sistema estabelece que o contrato de
compra e venda é estranho ao negócio translativo, já que este tem por base um
outro contrato, que é abstrato e, pelos efeitos, real. Ou no direito romano, porque, de
acordo com o doutrinador, os romanos se valiam de modos de adquirir de natureza
contratual, embora não o percebessem ou não o admitissem. “Mas, entre nós, não
se pode aceitar a aludida tese, por ser certo que não dispomos de um segundo
acôrdo de vontades, de um segundo contrato, integrativo do negócio de transmissão
dominical. No direito brasileiro, é a própria compra e venda que o integra. Então,
apresenta-se esta incontornável alternativa: ou o acôrdo de vontades sôbre a
transferência do domínio (não sôbre a obrigação de transferi-lo) está na compra e
venda, ou não está em parte alguma, não existe” 321 .
O doutrinado afirma que o sistema de direito brasileiro somente pode
ser entendido mediante a conclusão de que o acordo de vontades a respeito da
transmissão do domínio da propriedade está no próprio contrato de compra e venda.
A respeito da comparação entre o sistema brasileiro e os sistemas
francês e alemão, o doutrinar conclui: “o direito brasileiro aproxima-se do francês e
do italiano, que consideram a compra e venda como um acôrdo de vontades sôbre a
própria transferência do domínio, não sôbre a obrigação de transferi-lo.
321
Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 79.
133
Aproximando-se, não se identifica com êles, entretanto, porque, aqui, a transcrição
no Registro Imobiliário, em relação aos bens imóveis, e a tradição, quanto aos bens
móveis, são, ao contrário do que ocorre na França e na Itália, atos integradores do
negócio translativo. Sob êsse aspecto, filia-se o nosso direito ao germânico. Mas,
também, não se identifica com êste, porque, como já foi repetidamente assinalado,
no direito alemão, o acôrdo de vontades sôbre a transferência do domínio, embora
seja essencial, não se estabelece na compra e venda, que é simplesmente
obrigacional e encerra autêntica promessa de alienar, mas sim em um segundo
contrato,
real
pelos
efeitos
translatícios
que
suscita.
(...)
Admitindo-se,
principalmente, em face do art. 134, do Código Civil, que, em nosso direito, o acôrdo
de vontades, constante da compra e venda, abrange os efeitos obrigacionais e reais
do negócio, far-se-á honra ao legislador pátrio, que teria, assim, se adiantado ao
alemão, na unificação dos dois acôrdos de vontades. (...) Mesmo em relação aos
bens móveis, não se poderia ver apenas na tradição o ato translativo. A tradição,
como forma de entrega da coisa, ocorre a vários títulos: pode fazer-se a título de
transmissão do domínio (art. 620, do Código Civil), ou de transmissão da posse (art.
520, II), como na locação, no mútuo, no comodato, no penhor, na anticrese, na
enfiteuse, no usufruto, no depósito, etc. Então, a simples entrega material nada
define, por si mesma. É ato de sentido equívoco, que só se torna unívoco, através
do título fundamental. Logo se vê que decisivo é o título, não a materialidade da
entrega, tanto que o parágrafo único, do art. 622, do Código Civil, preceitua que,
sendo, nulo o título, o domínio não se transfere pela tradição. (...) Então, o acôrdo
sôbre a transferência do domínio é essencial. No, caso brasileiro, êsse acôrdo se
134
exprime na compra e venda, título originador da tradição e que lhe confere o exato
alcance” 322 .
A discussão proposta por Darcy Bessone não se prolongou e a tese
defendida pelo doutrinador não prosperou no direito brasileiro, merecendo poucas
referências nas obras dos demais doutrinadores.
Orlando Gomes refere a posição de Darcy Bessone, mas não a
reconhece como passível de acolhimento no direito brasileiro: “O Direito pátrio
seguiu a orientação romana ao atribuir à compra e venda efeitos meramente
obrigacionais. Esta a opinião predominante. Contudo, não é inteiramente pacífica,
porque a referência legal a contratos constitutivos de direitos reais dá a impressão
de que estes podem ser constituídos ou transmitidos por efeitos exclusivos de
obrigação, sustentando alguns escritores que a perda do domínio de uma coisa pela
alienação verifica-se em conseqüência do título transmissivo, embora os efeitos se
subordinem à transcrição deste no lugar do imóvel. Em reforço da tese de que, entre
nós, o contrato pode ter efeito real, invocam-se disposições concernentes à
doação 323 . Prevalece, no entanto, a opinião de que o Direito nacional não atribui ao
contrato de compra e venda efeitos reais, como se depreende, sem esforço, das
disposições concernentes ao registro da propriedade imóvel” 324 .
322
Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 79-81.
323
Em nota de rodapé, Orlando Gomes refere a explicação de Darcy Bessone quanto à identidade do
momento da transmissão da propriedade nos contratos de compra e venda e de doação (conferir a
nota 325).
324
Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 225-226. Embora Orlando Gomes não especifique a quais
dispositivos referentes concernentes ao registro da propriedade imóvel se refere, é possível presumir
que se refere ao artigo 533 do Código Civil de 1916 (“Os atos sujeitos à transcrição (artigos 531 e
532, nºs. II e III) não transferem o domínio, senão da data em que lhe transcreverem (artigos 856 e
860, parágrafo único)”). Vale consignar, pela oportunidade, mas apenas a título de reiteração, que
Darcy Bessone estendeu retroativamente a eficácia do registro da propriedade imóvel à data da
celebração do contrato de compra e venda (conferir a nota 326). A tese de Darcy Bessone, como
135
Silvio Rodrigues também cita Darcy Bessone: “A despeito da
excelência e fulgor da argumentação, não me convenci de sua razão. Ademais, o
ponto de vista majoritário que empresta apenas efeitos pessoais ao contrato de
compra e venda, a meu ver, revela-se mais convincente e melhor consulta o
regra, não foi aceita pela jurisprudência brasileira, como se constata das decisões sob a vigência do
Código Civil de 1916: “Bem imóvel – Transferência de propriedade – Nos termos do art. 530, I, do
atual Código Civil Brasileiro, ‘adquire-se a propriedade imóvel pela transcrição do título de
transferência no registro do imóvel’. Essa regra não foi revogada, ao contrário, foi repetida no art.
1.245 e §§, da Lei nº 10.406, de 10.1.2002, que aprovou o novo Código Civil que vai entrar em vigor
no dia 11 de janeiro próximo. Estando ali previsto que ‘enquanto não se registrar o título translativo, o
alienante continua a ser havido como dono do imóvel’” (Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região –
Apelação n.º 5148/2002 – 2ª Turma – Relator: Juiz José Edílsimo Eliziário Bentes – J. 18.12.2002);
“(...) Como se sabe, no direito brasileiro a aquisição de propriedade imóvel se dá mediante a
transcrição do título de transferência no registro competente, conforme artigos 530, I; 531; 533 e 860
do CCB, estabelecendo o referido diploma legal regras de publicidade dos atos, exatamente para se
conferir segurança às relações jurídicas atinentes a bens imóveis. (...)” (Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região – Apelação n.º 5254/02 – 2ª Turma – Relatora: Juíza Alice Monteiro de Barros
– DJMG 02.10.2002 – p. 10); “(...) 1 – Tendo o autor provado a propriedade do bem imóvel e não
ocorrendo qualquer das hipóteses elencadas no art. 530, do CCB, outra não poderia ter sido a
solução encontrada. 2 – A documentação apresentada pelos apelantes, não atendeu aos requisitos
legais para fazer prova da aquisição da propriedade e, a única escritura apresentada por um deles
não foi levada a registro. 3 – Não se discute a existência de posse de boa-fé, pois, segundo informou
o apelado, que morava em outro estado, a pessoa que tomava conta do terreno morreu, não sendo
certo o período em que o imóvel permaneceu sem vigilância. 4 – Correta a determinação de
indenização das benfeitorias edificadas sobre o imóvel do apelado, após a perfeita individualização
do mesmo. 5 – Sentença mantida. Apelação conhecida e improvida” (Tribunal de Justiça do Estado
do Espírito Santo – Apelação Cível n.º 035980118992 – 1ª Câmara Cível – Relatora: Des. Arione
Vasconcelos Ribeiro – J. 10.12.2003). Também a título de consignação, o Código Civil de 2002
alterou a redação a respeito da transcrição, nos termos do atual artigo 1.245: “Art. 1245. Transfere-se
entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1º
Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
§ 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o
respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”. A jurisprudência
a respeito do dispositivo atual, mediante rejeição da tese de Darcy Bessone: “(...) A aquisição da
propriedade imobiliária ocorre mediante a transcrição do título de transferência no registro de imóveis,
sendo titular do direito aquele cujo nome estiver transcrito o bem imóvel. - Constando na certidão de
registro de imóveis que o INSS é o proprietário do imóvel objeto da presente lide, legitimado está para
figurar no pólo passivo da demanda. – Caso ocorra a alienação do bem, obrigatório será o registro da
escritura de compra e venda no competente registro de imóveis, por força da norma inserta no art.
530, I, do CC. – Recurso não provido. Sentença mantida” (Tribunal Regional Federal da 2ª Região –
Apelação Cível n.º 2001.51.01.013149-0 – 6ª Turma Especial – Relator: Des. Fed. Benedito
Goncalves – DJU 10.11.2005 – p. 203); “Embargos de terceiro – Prova da propriedade – Bem imóvel
– A propriedade de bem imóvel é adquirida com a transcrição do título de transferência no cartório de
registro de imóveis, conforme preceituado no art. 1245 do Código Civil. Assim, havendo prova do
registro legalmente exigido, considera-se a Agravante como proprietária do bem penhorado” (Tribunal
Regional do Trabalho da 5ª Região – Apelação n.º 01639-2003-016-05-00-1 – (30.985/04) – 4ª Turma
– Relatora: Juíza Débora Machado – J. 30.11.2004); “Penhora de imóvel – Registro – Propriedade –
Somente é dono de bem imóvel aquele que detém o respectivo registro da propriedade no cartório de
registro de imóveis, nos termos do art. 1245 do Código Civil/2002. Agravo de petição conhecido e
nele não provido, por unanimidade” (Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região – Apelação n.º
0922/2003-002-24-00-0 – Relator: Juiz Nicanor de Araújo Lima – J. 04.08.2004).
136
interesse geral” 325 .
Manoel Inácio Carvalho de Mendonça afirma a eficácia obrigacional
do contrato de compra e venda no sistema brasileiro mediante a fundamentação do
sistema nacional no sistema de direito romano, que reconhecia que o contrato de
compra e venda não transferia a propriedade e tampouco fundava direitos reais, mas
apenas dava lugar a direitos de crédito 326 .
J. M. Carvalho Santos, ao comentar o artigo 1.122 do Código Civil
de 1916, leciona: “Pelo contrato de compra e venda, um dos contraentes se obriga a
transferir o domínio de certa coisa... Note-se bem: um dos contraentes, o vendedor,
não transfere; obriga-se, sim, a transferir o domínio de certa coisa. É que a compra e
venda, no sistema do nosso Código, não opera, de si só, a transferência do domínio.
(...) Os mestres não divergem: em nenhum caso, adquire o comprador o domínio
sobre a coisa, antes da tradição” 327 . E, ao comentar o artigo 620 do mesmo Código
Civil de 1916, o doutrinador reitera a eficácia obrigacional do contrato de compra e
venda: “Sem a tradição, na verdade, existe apenas o contrato e êste destinado a
325
Silvio Rodrigues. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 29ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2003. Volume 3, p. 142, nota 188. Nesse sentido: “Recurso especial – Civil –
Embargos de terceiro – Tradição de coisa semovente não caracterizada – Boa-fé do adquirente não
demonstrada – 1. O contrato de compra e venda produz efeitos meramente obrigacionais, não
conferindo poderes de proprietário àquele que não obteve a entrega do bem adquirido. In casu, não
tendo havido a tradição, conforme relatado pelas instâncias ordinárias, e não tendo havido o
pagamento do preço, não se concluiu a primeira compra e venda. 2. Boa-fé do segundo adquirente
não demonstrada. 3. Recurso não conhecido” (Superior Tribunal de Justiça – RESP n.º
200401636417 – (704170 GO) – 4ª Turma – Relator: Ministro Jorge Scartezzini – DJU 07.11.2005 –
p. 00305).
326
Manoel Inácio Carvalho de Mendonça. Contratos, cit., p. 314. Nesse sentido: “Recurso especial –
Civil – Embargos de terceiro – Tradição de coisa semovente não caracterizada – Boa-fé do
adquirente não demonstrada – 1. O contrato de compra e venda produz efeitos meramente
obrigacionais, não conferindo poderes de proprietário àquele que não obteve a entrega do bem
adquirido. In casu, não tendo havido a tradição, conforme relatado pelas instâncias ordinárias, e não
tendo havido o pagamento do preço, não se concluiu a primeira compra e venda. 2. Boa-fé do
segundo adquirente não demonstrada. 3. Recurso não conhecido” (STJ – RESP 200401636417 –
(704170 GO) – 4ª T. – Rel. Min. Jorge Scartezzini – DJU 07.11.2005 – p. 00305).
327
J. M. Carvalho Santos. Código Civil. Volume XVI, cit., p. 10.
137
criar direitos de obrigação só acarreta a de entregar, a de fazer a tradição, não
criando nenhum direito à coisa, nenhum direito ad rem. Não havendo nenhuma
discrepância na doutrina sôbre êsse ponto” 328 .
Washington de Barros Monteiro comunga do mesmo entendimento e
afirma que o contrato de compra e venda, por si só, não opera a transmissão da
propriedade. Corrobora que para que se efetive a transferência da propriedade são
necessárias a tradição (para os bens móveis) e o registro (para os imóveis), sendo
que antes desses fatos, o comprador só tem contra o vendedor um direito pessoal, já
que a tradição e o registro é que dão origem ao direito real 329 .
Caio Mário da Silva Pereira, após referir a definição legal do contrato
de compra e venda, afirma a sua posição de que a eficácia do referido contrato é
obrigacional: “Desta noção fazemos ressaltar, desde logo, o ponto essencial, que
marca a posição do nosso direito: o caráter meramente obrigatório do contrato.
Seguindo, como se vê, a tradição romana, e fiel à nossa determinação histórica, a
compra e venda não opera, segundo o nosso Código, a transmissão do domínio” 330 .
328
J. M. Carvalho Santos. Código Civil. Volume VIII, cit., p. 277. Nesse sentido: “Ilegitimidade ‘ad
causam’ – Compra e venda de coisa móvel – Mercadoria não entregue – Pretensão à satisfação do
direito por meio de ação de imissão de posse – Inadmissibilidade – Legitimação para essa ação
conferida, apenas, ao proprietário – Inexistência de transferência de domínio da coisa, pela ausência
de tradição – Incidência do artigo 620 do Código Civil – Ilegitimidade ativa reconhecida – Extinção do
processo mantida - Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação
Sumária n.º 0865431-9 – Origem: São José dos Campos – 8ª Câmara de Férias Julho – Relator:
Maurício Ferreira Leite – J. 02/07/1999).
329
Washington de Barros Monteiro. Curso: obrigações – 2ª Parte, cit., p. 90.
330
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Contratos, cit., p. 172. O doutrinador também
manifestou sua posição no seu “Anteprojeto de Código de Obrigações”, em cuja exposição de
motivos afirmou que havia mantido as características tradicionais, “milenares”, do contrato de compra
e venda. Continua: “Foi-lhe conservada a natureza de título causal da transferência do domínio,
dentro do que constitui a linha fundamental do instituto entre nós. O princípio da escola francesa,
segundo o qual a venda opera desde logo a mutação da propriedade não vinga. Por isso, o contrato
habilita a transmissão, mediante a formalidade essencial do registro, ou tradição” (Anteprojeto de
Código de Obrigações. Rio de Janeiro: sem editora indicada, 1964, p. 26).
138
Maria Helena Diniz manifesta seu entendimento no mesmo sentido:
“O contrato de compra e venda dá aos contratantes tão-somente um direito pessoal,
gerando para o vendedor apenas uma obrigação de transferir o domínio;
conseqüentemente, produz efeitos meramente obrigacionais, não conferindo
poderes de proprietário àquele que não obteve a entrega do bem adquirido. Não
opera, portanto, de per si, a transferência da propriedade, que só se perfaz pela
tradição, se a coisa for móvel, ou pela transcrição do título aquisitivo no registro
competente, se for imóvel” 331 .
Reconhecida a eficácia obrigacional do contrato de compra e venda
no direito brasileiro, conforme entendimento que, se não se pode afirmar pacífico, é
absolutamente majoritário, identifica-se a grande dificuldade de transposição da
teoria para a prática nos casos em que o contrato de compra e venda e a
transmissão da propriedade são simultâneos.
Pontes de Miranda desenvolveu uma explicação sobre os dois atos
distintos – a celebração do contrato de compra e venda e a transmissão da
propriedade mobiliária – que, ocorridos simultaneamente, fundamentam a dúvida a
respeito da eficácia do contrato de compra e venda de bem móvel no Brasil: “A
compra e venda à vista, ou a compra e venda a prazo, pela qual o vendedor desde
331
Maria Helena Diniz. Tratado Teórico e Prático dos Contratos. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva,
1996, p. 333. Ainda no mesmo sentido se manifesta Sebastião de Souza: “No sistema adotado pelo
nosso direito, o contrato de compra e venda não transfere o domínio da coisa. Dele surgem apenas
obrigações pessoais” (Da compra e venda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1956, p. 33). E
também Carlos Alberto Bittar, que afirma que o regime brasileiro aproximou-se do alemão, ao
estabelecer que o laço contratual implica apenas no nascimento de direitos pessoais entre as partes,
impondo-lhe obrigações de dar, diversamente do que prevê a legislação codificação francesa, que
estabelece que o próprio contrato de compra e venda cria o vínculo pelo qual se opera a transferência
de domínio da coisa alienada. Afirma ainda que, em conseqüência da eficácia obrigacional do
contrato de compra e venda, o comprador não dispõe de mecanismos de reação próprios de
proprietário, como a ação de reivindicação, resolvendo-se normalmente em perdas e danos os litígios
com o vendedor decorrentes da não entrega do bem vendido, salvo nos casos em que se faz possível
o cumprimento do contrato (Contratos Civis. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1991, p.
16).
139
logo transfere a propriedade ou a posse, é contrato consensual, como qualquer
outro. Apenas o vendedor se obrigou a prestar imediatamente, e a imediatidade dá a
ilusão da simultaneidade e, o que é mais delicado, da causação da transferência
pelo contrato de compra e venda. Mesmo se o comprador recebe o bem
(propriedade e posse) ao concluir o contrato, ou se já o havia recebido, o que passa
é que ele foi figurante de dois negócios jurídicos: o contrato de compra e venda e o
acordo de transmissão; ou de três: o contrato de compra e venda, o acordo de
transmissão da propriedade e o acordo de transmissão da posse” 332 .
Arnaldo Rizzardo também faz menção à duplicidade de atos, ao
afirmar que, mediante a celebração do contrato de compra e venda, o vendedor
somente se obriga a transferir a propriedade do bem mediante a contraprestação do
preço em dinheiro. Enfatiza que o aperfeiçoamento do contrato se dá
independentemente da tradição do bem móvel que consiste no seu objeto e que,
acaso não consumada a tradição, os direitos decorrentes do contrato serão
exclusivamente obrigacionais, já que a constituição do direito real depende
necessariamente daquele ato 333 .
Adotamos a posição majoritária de que no direito brasileiro o
contrato de compra e venda tem eficácia meramente obrigacional. A tese
desenvolvida por Darcy Bessone, reconhecido o seu inegável valor histórico e
acadêmico, desconsidera os distintos caminhos trilhados, por um lado, pelo direito
francês e pelo direito inglês e, por outro, pelo direito brasileiro.
O reconhecimento, pelo sistema brasileiro, da tradição simbólica e
332
Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1962. Tomo XXXIX,
p. 55.
333
Arnaldo Rizzardo. Contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 293-294.
140
da tradição ficta, ambas referidas pela doutrina francesa – a partir do princípio de
dessaisine-saisine 334 – como o caminho por meio do qual a tradição deixou de ser
essencial à transmissão da propriedade mobiliária naquele sistema de direito, não
tem como conseqüência a desconsideração ou o afastamento da necessidade do
ato de exteriorização da transmissão da propriedade mobiliária. Trata-se
exclusivamente do reconhecimento de que, de forma excepcional e desde que
caracterizada uma das situações expressamente previstas 335 , dispensa-se a entrega
material do bem objeto do contrato de compra e venda e se reconhece a um
determinado ato jurídico ou a uma conduta das partes o mesmo efeito daquela
entrega material.
O contrato de compra e venda, por si e independentemente da
tradição, enseja exclusivamente direitos obrigacionais aos contratantes. Dessa
circunstância decorre a inegável conclusão de que, ainda que pago o preço, o
comprador – que não é proprietário do bem móvel porque não obteve a tradição –
não pode se valer dos interditos garantidos apenas ao proprietário para obter a
posse do bem.
Quanto aos riscos a que o bem está sujeito, consideram-se-nos
transmitidos ao comprador mediante a tradição do referido bem. Ou seja, até o
334
Conferir 3.3.
335
As hipóteses de tradição simbólica decorrem de atos reputados válidos para a transmissão da
propriedade mobiliária, como a entrega das chaves simbolizando a entrega do veículo que se
encontra em local diverso; as hipóteses de tradição ficta estão previstas no artigo 1267 do Código
Civil (A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição. Parágrafo
único. Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto
possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de
terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico”) e em
diversos outros dispositivos legais, referidos no Capítulo 2 – Modos de aquisiçào da propriedade
mobiliária, item 2.2 – Tradição.
141
momento da tradição os riscos correm por conta do vendedor 336 .
Isso significa que, ocorrido o caso fortuito ou de força maior 337 , o
vendedor, como proprietário do bem, sofrerá a perda, mediante a aplicação da
máxima res perit domino.
Excepcionalmente, a perda decorrente do caso fortuito ou de força
maior será imputada ao comprador, desde que verificada durante o “ato de contar,
marcar ou assinalar coisas, que comumente se recebem, contando, pesando,
medindo ou assinalando, e que já tiverem sido postas à disposição do comprador,
correrão por conta deste” (artigo 492, parágrafo 1º, do Código Civil).
Por fim, os riscos a que se sujeita o bem objeto do contrato são
considerados à conta do comprador se este estiver em mora de recebê-lo, desde
que posto à sua disposição no tempo, lugar e pelo modo ajustados (artigo 492,
parágrafo 2º, do Código Civil). Ou seja, desde que o bem seja posto, da forma
estipulada no contrato, à disposição do comprador, será este responsável pelos
danos a partir de então decorrentes e que não tenham qualquer ligação com a
conduta do vendedor anterior à efetivação da entrega. Nesse sentido a decisão do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em acórdão em que se analisou a conduta do
comprador do bem que se perdeu após ter sido posto à disposição deste: “Direito
civil – Embargos à execução – Morte de animal objeto do contrato de compra e
venda – Prejuízo pela perda da coisa deve ser suportado pelo dono – Prescrição do
direito de ação referente ao vício redibitório – Recurso improvido – Unânime – Nas
obrigações de dar, a tradição é um dos requisitos indispensáveis para a efetiva
336
Código Civil, Art. 492. “Até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do
vendedor, e os do preço por conta do comprador”.
337
Nos termos do artigo 393, parágrafo único do Código Civil, caso fortuito ou de força maior é o “fato
necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.
142
realização do negócio, e esta se consubstancia na entrega do bem ao adquirente,
com a intenção de lhe transferir o domínio, em razão de título translativo de
propriedade. Comprovado que foi efetuada a entrega do cavalo, mesmo que o
comprador tenha decidido deixá-lo naquele local, deve suportar o prejuízo, pois
assumiu todos os direitos, ônus e obrigações, que competem ao titular da coisa
adquirida. O vício redibitório somente pode ser alegado em até seis meses após a
compra do bem, à luz do Código Civil de 1916, ou a partir da ciência da existência
do vício oculto, sob pena de prescrição do direito de ação” (Tribunal de Justiça do
Distrito Federal – Apelação Cível n.º 1998.04.1.004383-9 – 4ª Turma Cível – Relator:
Des. Lecir Manoel da Luz – DJU 26.02.2004 – p. 60).
Considerando que a propriedade mobiliária é transmitida pela
tradição, a celebração do contrato, por si, não enseja a modificação da sua
titularidade, o que permite a aplicação, ao contrato de compra e venda de bem
móvel, das regras gerais a respeito das obrigações de dar.
Se o bem móvel objeto do contrato de compra e venda se perder
antes da tradição, sem culpa 338 do vendedor, será considerada extinta a obrigação
de dar (artigo 234 do Código Civil) e, conseqüentemente, será considerado resolvido
338
Para os fins de identificação da conduta culposa do devedor da obrigação de dar, assim como
para as hipóteses de obrigação de fazer e de não fazer, utiliza-se a definição de culpa em sentido
amplo, utilizada como regra no direito civil, o que compreende o dolo e a culpa em sentido estrito. O
dolo se verifica na conduta voluntária do agente, voltada especificamente à prática de um
determinado ato. Por sua vez, a culpa em sentido estrito é identificada nas hipóteses de imprudência,
negligência e imperícia. A imprudência se caracteriza pela conduta positiva do agente – in
committendo ou in faciendo – de enfrentamento desnecessário do perigo, ou seja, o indivíduo se
conduz positivamente, deixando de tomar os cuidados objetivos básicos para evitar a ocorrência de
um resultado danoso. A negligência se caracteriza pela conduta negativa do agente (in ommittendo),
o qual se abstém quando deveria agir de forma a evitar um determinado resultado. Por fim, a
imperícia decorre da falta de habilidade específica para a prática de uma atividade técnica ou
científica. Em se tratando de relação contratual, o lesado pelo inadimplemento da obrigação tem o
ônus exclusivo de comprovar o referido descumprimento, mas não tem o ônus de comprovar a culpa
da parte inadimplente, que é presumida em decorrência do descumprimento da obrigação
regularmente pactuada. À parte inadimplente incumbe o ônus da prova da inexistência de sua culpa.
143
o contrato e extinta, como contraprestação, a obrigação do comprador de pagar o
preço. Se o preço já houver sido pago, o comprador terá o direito de reavê-lo na sua
integralidade 339 .
Se o bem móvel se perder antes da tradição, mas com culpa do
vendedor, e o comprador já houver pago o preço, poderá este optar entre desfazer o
negócio, exigindo a devolução do valor pago, ou exigir que o vendedor cumpra o
contrato, mediante a entrega de bem equivalente, se houver possibilidade. Se o
preço não houver sido pago, o comprador ficará exonerado de seu pagamento se
pretender o desfazimento do contrato. Pretendendo o cumprimento do contrato pelo
vendedor, em caso de possibilidade de entrega de bem equivalente, deverá
comprovar o cumprimento de sua obrigação, mediante a consignação do
pagamento, se o caso. Em todas as hipóteses, terá o direto de ser indenizado por
perdas e danos, desde que comprovados (artigo 234 do Código Civil).
Se o bem móvel se deteriorar antes da tradição, sem culpa do
vendedor, ao comprador será garantido optar pela resolução do contrato de compra
e venda, mediante a devolução do preço, ou aceitar o bem móvel deteriorado nas
condições em que se encontrar, nesse último caso mediante o abatimento em seu
preço do valor que se perdeu (artigo 235 do Código Civil).
Se o bem móvel se deteriorar antes da tradição, mas com culpa do
vendedor, o comprador poderá desfazer o negócio, já que não é obrigado a aceitar
bem diverso ou em condições diversas daquelas em que se encontrava quando da
339
A devolução da integralidade do preço poderá ser objeto de discussão em casos específicos. Por
exemplo, se o vendedor teve gastos para a manutenção do bem, os quais, embora tenham sido
efetuados para a manutenção de bem de sua propriedade, já que a propriedade somente seria
transmitida com a tradição, tenham constado especificamente de contrato como passíveis de
dedução quando do pagamento do preço, posteriormente à tradição que não chegou a ocorrer.
144
celebração do contrato 340 . Poderá ainda optar entre exigir o equivalente, se houver
possibilidade, ou aceitar o bem no estado em que se encontra, mediante o
abatimento em seu preço do valor que se perdeu. Tratando-se de hipóteses de
deterioração com o reconhecimento da culpa do vendedor, o comprador terá o direto
de ser indenizado por perdas e danos, desde que comprovados (artigo 236 do
Código Civil).
Considerada a regra de que a propriedade do bem móvel no Brasil
não se transfere do vendedor ao comprador por meio do contrato de compra e
venda, mas sim por meio da tradição 341 , como modo de transmissão da propriedade,
sob o fundamento do título consubstanciado no referido contrato, tem-se que,
também como regra, a insolvência de uma das partes não enseja, por si, dificuldade
quanto à aferição de a qual delas pertence o bem objeto do contrato, já que o bem
será do vendedor se ainda não efetivada a tradição e será do credor se já efetivada
a tradição.
Mas poderão ser identificadas situações específicas em que a
solução dependerá da consideração de circunstâncias diversas.
De acordo com o artigo 159 do Código Civil, os contratos onerosos
celebrados pelo devedor insolvente são anuláveis, desde que a insolvência seja
notória ou desde que exista motivo para ser conhecida do outro contratante. Tratase de regra cuja aplicação depende da comprovação, no caso concreto, das
circunstâncias especificadas.
340
Código Civil, Art. 313. “O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida,
ainda que mais valiosa”.
341
Código Civil, Art. 1226. “Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou
transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição”; Art. 1267. “A propriedade das
coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”.
145
Em caso de insolvência do vendedor, se o bem móvel não houver
sido entregue ao comprador, a sua propriedade será do próprio vendedor insolvente.
Consigna-se que, não entregue o bem pelo vendedor ao comprador na data
estabelecida no contrato, a solução será a mesma independentemente de ter sido
ou não decretada a insolvência do vendedor ou de se tratar de situação notória ou
em que se presume a ciência dessa situação pelo eventual adquirente.
Se o comprador já houver pago o preço e o bem ainda estiver sob a
posse do vendedor, poderá o primeiro optar entre executar o contrato, mediante a
exigência da entrega do bem móvel objeto da compra e venda 342 , ou desfazê-lo,
mediante a cobrança do valor pago 343 . Se o bem não mais estiver sob a posse do
vendedor porque este o alienou a terceiro, o comprador poderá resolver o contrato,
mediante a exigência da devolução do valor pago 344 , ou poderá pretender a
342
A ação de execução poderá ser ajuizada desde que o contrato preencha os requisitos do artigo
585, inciso II, do Código de Processo Civil. Caso o contrato não preencha os requisitos legais (artigo
585, combinado com o artigo 586, ambos do Código de Processo Civil), o que se verifica na grande
maioria dos casos de contratos celebrados por leigos em decorrência da ausência de assinatura de
duas testemunhas, ao credor será garantida a ação de obrigação de dar, prevista no artigo 461-A do
Código de Processo Civil.
343
“Cobrança – Compra de elevadores para entrega futura, com preço pago – Desavença, quando da
época da entrega quanto à diferença de preço, a autorizar, por ambas as partes, denúncia do
contrato – Obrigação da vendedora de devolver, de imediato, após notificação, o preço recebido –
Ilicitude da retenção do dinheiro, pela ré – Procedência da ação confirmada – Recurso não provido.
(Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 22.765-4 – Origem: São Paulo – 3ª
Câmara de Direito Privado – Relator: Alfredo Migliore – 18.02.97 – V. U.).
344
O direito do comprador de ser indenizado por perdas e danos somente poderá ser aferido no caso
concreto, mediante a sua comprovação por aquele que os alega. Se o bem não foi utilizado pelo
comprador, como na hipótese aventada no texto, já que o comprador não obteve a sua posse, o
direito de ser indenizado por perdas e danos é mais remoto, exigida a prova de evento concreto a
demonstrar a sua ocorrência, como, por exemplo, a celebração de contrato preliminar tendo como
objeto o bem comprado e não recebido. A propósito, especificamente, dos valores passíveis de
exigência de devolução pelo alienante ao adquirente: “(...) Se o recorrente, malgrado tenha adquirido
terreno a ‘non domino’, nunca o ocupou, nem o utilizou de qualquer forma, o "quantum" da
indenização em decorrência da ilicitude, deve corresponder à devolução do preço pago, com as
correções devidas, não se havendo de cogitar de lucros cessantes” (Superior Tribunal de Justiça –
RESP n.º 151306/PR (199700727521) – 1ª Turma – Relator: Ministro Demócrito Reinaldo – J.
15/12/1998).
146
decretação da ineficácia 345 ou da anulação 346 da alienação do vendedor a terceiro,
mediante a comprovação da ciência do terceiro a respeito da situação de insolvência
do vendedor.
Por outro lado, também no caso de insolvência do vendedor, se o
comprador não houver pago o preço e o bem ainda não lhe houver sido entregue, (o
comprador) poderá optar entre desfazer o contrato (e não pagar o preço) ou exigirlhe o cumprimento. Pretendendo o cumprimento do contrato, poderá comprovar o
cumprimento de sua obrigação de pagamento mediante o depósito do preço em
juízo, com a citação de todos os interessados (artigo 160 do Código Civil), embora
esse procedimento não lhe garanta a entrega do bem objeto do contrato, que pode
eventualmente ser utilizado para o pagamento de outros credores que se encontrem
em situação mais privilegiada que a sua 347 .
345
“Ação pauliana - Transferência de imóvel de filho para pai - Contrato de arrendamento celebrado
antes da transferência - Distrato prevendo pagamento da dívida, vencido no mesmo dia do registro da
escritura pública de compra e venda do imóvel - Notificação, expedida no dia seguinte ao vencimento
das obrigações previstas no distrato – Descumprimento das obrigações assumidas, no prazo
concedido – Ajuizamento de ação de rescisão contratual cumulada com perdas e danos e
reintegração de posse – Redução dos devedores ao estado de insolvência – Negócio entre familiares
– Presunção de o pai conhecer o estado de insolvência do filho e da nora, os devedores – ‘Consilium
fraudis’ evidente – Caracterização de defeito do ato jurídico – Aplicação do artigo 106 c. c. o artigo
147, II, ambos do Código Civil – Hipótese de declaração de ineficácia do ato, com relação ao credor,
e, não, de anulação – (...) Ação julgada procedente – Recurso não provido, com recomendação”
(Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 79.716-4 – Origem: Fernandópolis
– 8ª Câmara de Direito Privado – Relatora: Zélia Maria Antunes Alves – 15.09.99 – V.U.).
346
“Ação pauliana – Sentença monocrática substanciosa, bem elaborada e com fundamentação
adequada, inclusive com embasamento em entendimentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito
do ‘thema decidendum’ – Matéria discutida amplamente pelas partes, pelo que correta a conclusão de
que as alienações dos imóveis apontados, nos autos, foram feitas sob o pálio de fraude contra credor,
pois presentes os requisitos do ‘eventus dammi’ e do ‘consilium fraudis’ que conduzem à anulação
daqueles atos jurídicos (artigo 106 e seguintes do Código Civil Brasileiro) – Recurso improvido”
(Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 60.955-4 – Origem: Presidente
Prudente – 3ª Câmara de Direito Privado – Relator: Antonio Manssur – 03.11.98 – V. U.).
347
Art. 957. Não havendo título legal à preferência, terão os credores igual direito sobre os bens do
devedor comum. Art. 958. Os títulos legais de preferência são os privilégios e os direitos reais. Art.
959. Conservam seus respectivos direitos os credores, hipotecários ou privilegiados: I - sobre o preço
do seguro da coisa gravada com hipoteca ou privilégio, ou sobre a indenização devida, havendo
responsável pela perda ou danificação da coisa; II - sobre o valor da indenização, se a coisa obrigada
a hipoteca ou privilégio for desapropriada. Art. 960. Nos casos a que se refere o artigo antecedente, o
147
Considerada a hipótese de o bem já haver sido entregue pelo
vendedor ao comprador, tendo como fundamento o contrato de compra e venda, a
transmissão da propriedade mobiliária terá sido efetivada e, como regra, não será
atingida pela decretação da insolvência do vendedor. Considerada a hipótese de o
comprador já haver cumprido a sua obrigação de pagamento do preço, o contrato
terá sido extinto pelo cumprimento e a sua discussão restará prejudicada 348 .
Nesse caso, a anulação do contrato somente será possível mediante
a aplicação da regra do artigo 159 do Código Civil quanto à caracterização da má-fé
devedor do seguro, ou da indenização, exonera-se pagando sem oposição dos credores hipotecários
ou privilegiados. Art. 961. O crédito real prefere ao pessoal de qualquer espécie; o crédito pessoal
privilegiado, ao simples; e o privilégio especial, ao geral. Art. 962. Quando concorrerem aos mesmos
bens, e por título igual, dois ou mais credores da mesma classe especialmente privilegiados, haverá
entre eles rateio proporcional ao valor dos respectivos créditos, se o produto não bastar para o
pagamento integral de todos. Art. 963. O privilégio especial só compreende os bens sujeitos, por
expressa disposição de lei, ao pagamento do crédito que ele favorece; e o geral, todos os bens não
sujeitos a crédito real nem a privilégio especial. Art. 964. Têm privilégio especial: I - sobre a coisa
arrecadada e liquidada, o credor de custas e despesas judiciais feitas com a arrecadação e
liquidação; II - sobre a coisa salvada, o credor por despesas de salvamento; III - sobre a coisa
beneficiada, o credor por benfeitorias necessárias ou úteis; IV - sobre os prédios rústicos ou urbanos,
fábricas, oficinas, ou quaisquer outras construções, o credor de materiais, dinheiro, ou serviços para a
sua edificação, reconstrução, ou melhoramento;V - sobre os frutos agrícolas, o credor por sementes,
instrumentos e serviços à cultura, ou à colheita;VI - sobre as alfaias e utensílios de uso doméstico,
nos prédios rústicos ou urbanos, o credor de aluguéis, quanto às prestações do ano corrente e do
anterior;VII - sobre os exemplares da obra existente na massa do editor, o autor dela, ou seus
legítimos representantes, pelo crédito fundado contra aquele no contrato da edição;VIII - sobre o
produto da colheita, para a qual houver concorrido com o seu trabalho, e precipuamente a quaisquer
outros créditos, ainda que reais, o trabalhador agrícola, quanto à dívida dos seus salários. Art. 965.
Goza de privilégio geral, na ordem seguinte, sobre os bens do devedor: I - o crédito por despesa de
seu funeral, feito segundo a condição do morto e o costume do lugar; II - o crédito por custas judiciais,
ou por despesas com a arrecadação e liquidação da massa; III - o crédito por despesas com o luto do
cônjuge sobrevivo e dos filhos do devedor falecido, se foram moderadas; IV - o crédito por despesas
com a doença de que faleceu o devedor, no semestre anterior à sua morte; V - o crédito pelos gastos
necessários à mantença do devedor falecido e sua família, no trimestre anterior ao falecimento; VI - o
crédito pelos impostos devidos à Fazenda Pública, no ano corrente e no anterior; VII - o crédito pelos
salários dos empregados do serviço doméstico do devedor, nos seus derradeiros seis meses de vida;
VIII - os demais créditos de privilégio geral.
348
“O contrato que já se finalizou, por ter sido integralmente cumprido pelas partes, caracteriza-se
como ato jurídico perfeito, impassível, portanto, de ter suas cláusulas discutidas judicialmente. Deve
ser decretada a carência de ação quando a pretensão aviada cingir-se à discussão de obrigações
previstas em contrato findo, tendo em vista a impossibilidade jurídica deste, extinguindo-se o
processo sem julgamento do mérito, com base no inciso VI do art. 267 do Código de Processo Civil”
(Tribunal de Alçada de Minas Gerais – Apelação Cível n.º 0405605-3 – (83353) – Origem: Patos de
Minas – 3ª Câmara Cível – Relatora: Juíza Teresa Cristina da Cunha Peixoto – J. 17.12.2003).
148
do comprador em relação aos demais credores do vendedor 349 .
E se o bem houver sido entregue e o comprador não houver pago o
preço, poderá cumprir a sua obrigação de pagamento mediante o depósito do preço
em juízo, com a citação de todos os interessados (artigo 160 do Código Civil),
embora esse procedimento também não lhe garanta a manutenção da propriedade
do bem, em razão dos procedimentos específicos da ação em que se processa a
insolvência, na qual poderá ser eventualmente apurada a má-fé do vendedor na
entrega do bem ao comprador 350 .
Em caso de insolvência do comprador, se o peço já houver sido
pago e o bem móvel já lhe houver sido entregue sob o fundamento do contrato de
compra e venda, o contrato terá sido cumprido e a transmissão da propriedade
mobiliária terá sido efetivada, o que torna prejudicada qualquer discussão a
respeito 351 .
349
Presumido o conhecimento do estado de insolvência do vendedor pelo comprador e a ineficácia da
alienação: “Ação pauliana - Fraude contra credores - Contrato oneroso do devedor insolvente Parentesco próximo - Presunção de fraude - Suficiência para justificar a ação revocatória - Artigo 107
do Código Civil - Prova em contrário a cargo do devedor não demonstrada - Ação procedente Recurso desprovido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 119.328-4/4 –
Origem: Santo André – 7ª Câmara de Direito Privado – Relator: De Santi Ribeiro – 16.05.01 – V.U.).
Em sentido contrário, mediante o reconhecimento de ausência de provas de que os adquirentes
tinham conhecimento do estado de insolvência dos alienantes: “Ação pauliana – Fraude contra
credores - Caracterização - Consilium fraudis - Inocorrência - Adquirentes que antes da compra se
acautelaram com buscas de ações e protestos contra os clientes e ônus sobre o imóvel - Constituição
do crédito só após a alienação do bem - Improvado motivo para ser reconhecida a insolvência pelo
outro contraente - Sentença procedente - Recurso provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo – Apelação Cível n.º 60.977-4 – Origem: Barretos - 7ª Câmara de Direito Privado - Relator:
Oswaldo Breviglieri - 04.11.98 - V. U.).
350
Código Civil, Art. 956. “A discussão entre os credores pode versar quer sobre a preferência entre
eles disputada, quer sobre a nulidade, simulação, fraude, ou falsidade das dívidas e contratos”.
351
Conferir a nota 348. Sem prejuízo, em caso de notória disparidade entre o valor de mercado do
bem adquirido pelo comprador (muito mais baixo) e o preço pretensamente pago por este (muito mais
alto), os credores do comprador insolvente poderão discutir em juízo eventual dissimulação
caracterizadora do negócio jurídico realizado, nos termos do artigo 167, caput, combinado com o seu
parágrafo 1º, inciso II, do Código Civil.
149
Ainda em caso de insolvência do comprador, mesmo que o preço
não tenha sido pago, se o bem móvel já lhe houver sido entregue a transmissão da
propriedade mobiliária terá sido efetivada, e o vendedor poderá optar entre executar
o contrato, mediante a cobrança do valor acordado 352 , ou desfazê-lo, sob o
fundamento do inadimplemento e mediante o requerimento de reintegração de
posse.
Também no caso de insolvência do comprador, se o bem ainda não
houver sido entregue e tampouco o preço houver sido pago, o vendedor poderá
sobrestar-lhe a entrega do bem móvel objeto do contrato até que o comprador lhe dê
caução de pagar o preço ajustado no prazo fixado (artigo 495 do Código Civil).
Porque o contrato é reconhecido no sistema brasileiro como título
causal da transmissão da propriedade mobiliária, para cuja efetivação se exige a
tradição, a conclusão é de que o terceiro adquirente do bem móvel alienado
validamente pelo primitivo vendedor não é atingido pelo descumprimento desse
contrato 353 .
Ou seja, celebrado validamente um contrato de compra e venda de
um bem móvel e entregue esse bem móvel pelo vendedor ao comprador, sob o
352
Em situação excepcional: “Medida cautelar – Seqüestro – Bens móveis – Cabimento, ante o risco
de o requerente, vendedor, não obter a satisfação de seu crédito, diante dos sinais de insolvência do
comprador e do receio de não recuperar os bens, após a solução da demanda rescisória do contrato,
e do perigo de desaparecimento destes, em razão de venda a terceiros – Reconhecida a presença
dos requisitos do artigo 822 do Código de Processo Civil – Extinção do processo afastada –
Determinação do prosseguimento do feito com a análise do pedido liminar – Recurso provido para
esse fim” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação n.º 0851058-1 – Origem: Tupã –
3ª Câmara – Relator: Itamar Gaino – Revisor: Roque Mesquita – J. 24/10/2000 – V.U.).
353
“Compra e venda – Bem móvel – Pretensão do vendedor à sua rescisão ao fundamento de que o
pagamento foi efetuado com cheque sem provisão de fundos – Veículo em poder de terceiro de boafé – Possibilidade apenas da condenação dos compradores ao pagamento do valor do veículo –
Existência de pedido alternativo nesse sentido – Procedência – Sentença mantida” (Primeiro Tribunal
de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0000388126 – Origem: Araraquara – 2ª Câmara –
Relator: Jacobina Rabello – J. 08/06/1988 – V.U).
150
fundamento do contrato de compra e venda, a propriedade do referido bem móvel é
transmitida validamente ao comprador. Em conseqüência, se o comprador celebra
um contrato de compra e venda com um terceiro e lhe entrega o bem sob o
fundamento desse novo contrato de compra e venda, a propriedade do bem objeto
do contrato também é transmitida validamente, dessa vez ao terceiro, que, portanto,
passa a ser o proprietário do bem 354 .
Quaisquer problemas decorrentes do descumprimento do contrato
de compra e venda celebrado entre os primitivos vendedor e comprador não atingem
o terceiro, que, a partir da tradição efetivada sob o fundamento do segundo contrato
de compra e venda, passa a ser o novo proprietário do bem móvel. Nesse sentido:
“(...) Embargos de terceiro – Medida cautelar – Busca e apreensão – Veículo
apreendido fora vendido pelo autor ao réu - Transferência do domínio ocorreu com a
tradição - Não pagamento do preço pelo adquirente - Irrelevância - Réu também
vendeu o veículo a terceiro, ao embargante e, com a tradição, houve igualmente a
transferência do domínio - Inexistência de prova de que o embargante agiu de má-fé
- Embargos de terceiro procedentes - Recurso desprovido” (1º Tribunal de Alçada
Civil do Estado de São Paulo – Apelação n.º 0944228-4 – (57467) – Origem:
Americana – 5ª Câmara – Relator: Juiz Álvaro Torres Júnior – J. 15.12.2004).
Também: “(...). Contrato – Compra e venda de gado – Reconhecimento da boa-fé
dos segundos adquirentes, eis que demonstram o regular pagamento, de acordo
com o preço de mercado, não podendo ser prejudicados pela imprevidência dos
354
“Embargos de terceiro – Compra e venda – Bem móvel – Caminhão transacionado anteriormente
em que parte do preço não foi paga – Negócio consumado – Circunstância que exclui o embargante,
terceiro de boa-fé, daquela relação – Art. 620 do Código Civil e art. 1046 do Código de Processo Civil
–Embargos procedentes – Sentença mantida” (Primeiro Tribunal de Alçada Civel de São Paulo –
Apelação Cível n.º 0432593-5 – Origem: Ribeirão Preto –10ª Câmara – Relator: Jacobina Rabello – J.
03/09/1990 – V.U).
151
autores que procederam a entrega imediata do gado àquele último, possibilitando o
aperfeiçoamento do contrato e a transferência do domínio dos bens, quando
poderiam retê-los, apenas os entregando após a efetivação do pagamento, nos
termos do art. 1130 do Código Civil – Exame da jurisprudência – Prejudicado o
pedido de perdas e danos – Ação improcedente – Apelo improvido” (Primeiro
Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação n.º 0825234-8 – Origem:
Jaboticabal – 3ª Câmara – Relator: Itamar Gaino – J. 14/08/2001) 355 .
Merece referência a situação verificada no caso de reconhecimento
de nulidade do primeiro contrato de compra e venda. Considerando-se que de um
ato jurídico eivado de nulidade não se concebe a decorrência de qualquer efeito 356 ,
em tese não se reconheceria eficácia e sequer validade ao segundo contrato de
compra e venda tendo como objeto o bem alienado por meio do contrato nulo,
restando ao segundo comprador voltar-se contra o segundo vendedor visando a ser
indenizado pelo preço e eventuais perdas e danos. Mas a decisão a seguir
reconhece a prevalência da posse de boa-fé do terceiro adquirente do bem alienado
inicialmente por título – contrato de compra e venda – nulo, considerada a assinatura
355
Ainda no mesmo sentido: “Compra e venda – Bem móvel – Pagamento efetuado através de
cheque sem suficiente provisão de fundos – Veículo em poder de terceiro, boa-fé deste presumida –
Exegese do art. 521 do Código Civil – Recurso provido para revogar a liminar” (Primeiro Tribunal de
Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º 0000398346 – Origem: São Paulo – 1ª
Câmara – Relator: Celso Bonilha – J. 03/10/1988 – V.U). Também: “Compra e venda – Bem móvel –
Veículo alienado sucessivamente – Preço pago mediante cheque devolvido por insuficiência de
fundos – Pretensão à restituição do bem – Desacolhimento, uma vez adquirido validamente do
emitente da cambial –Art. 1046, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil – Embargos de terceiro
procedentes – Recurso desprovido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível
n.º 0000404037 – Origem: Taubaté – 4ª Câmara – Relator: Octaviano Lobo – J. 22/02/1989 – V.U).
356
“Ato jurídico – Vício – Manifestação de vontade – Outorga de procuração por pessoa em estado de
coma – Obtenção do documento com a posição das impressões digitais em livro próprio –
Inexistência de ato em face da ausência do consentimento – Hipótese em que o negocio não é
anulável, mas sim nulo, não gerando efeitos nem permitindo ratificação – Declaratória de nulidade
procedente, provido o recurso adesivo, prejudicado o apelo de ré e improvido o do co-réu” (Primeiro
Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0700628-2 – Origem: Ourinhos – 4ª
Câmara – Relator: Carlos Bittar – J. 11/12/1996 – V.U.).
152
falsa aposta no certificado de propriedade, resguardado à vítima do falso o direito de
se voltar contra o autor do ato ilícito: “Compra e venda – Bem móvel – Proprietário
vítima de apropriação indébita – Alegação da falsidade de assinatura deste, lançada
no certificado de propriedade – Bem, no entanto, apreendido em mãos de terceiro de
boa-fé – Prevalência do direito deste, resguardando o direito da vitima, em ação
autônoma de voltar-se contra o autor do ato ilícito – Inaplicabilidade do art. 521 do
Código Civil – Reivindicatória improcedente – Recurso improvido” (Primeiro Tribunal
de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0528126-7 – Origem: São Paulo –
6ª Câmara – Relator: Carlos Roberto Gonçalves – J. 29/11/1994 – V.U.) 357 .
6.2 – Questões específicas decorrentes da eficácia obrigacional do contrato de
compra e venda de bem móvel no direito brasileiro
6.2.1
–
Transmissibilidade
da
propriedade
mobiliária
pela
tradição
independentemente do pagamento do preço
O principal problema com o qual se depara o vendedor de um bem
móvel é o não pagamento do preço pelo comprador.
A conjugação dos artigos 481 (“Pelo contrato de compra e venda,
um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a
pagar-lhe certo preço em dinheiro”), 482 (“A compra e venda, quando pura,
357
Em sentido inverso apenas quanto à nulidade do negócio jurídico em razão da assinatura falsa
aposta no documento de venda, mas sem menção a terceiro: “Compra e venda – Bem móvel –
Requisitos – Lançamento de assinatura falsa no documento de venda – Negócio absolutamente
ineficaz ante a ausência de consentimento – Nulidade reconhecida – Declaratória integralmente
procedente – Recurso provido para esse fim” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo –
Apelação Civil n.º 0487759-8 – Origem: Atibaia – 4ª Câmara – Relator: Carlos Bittar – J. 10/11/1993 –
V.U).
153
considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no
preço”), 1226 (“Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou
transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição”) e 1267 (“A
propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”),
todos do Código Civil, permite o delineamento do aperfeiçoamento e da eficácia do
contrato de compra e venda, conforme já estudado no Capítulo 5 do presente
trabalho, bem como a identificação da tradição como o modo – e o momento – de
transmissão da propriedade mobiliária.
Embora o artigo 491 (“Não sendo a venda a crédito, o vendedor não
é obrigado a entregar a coisa antes de receber o preço”) garanta ao vendedor o
direito de manter o bem consigo até a entrega do preço, é sabido que no dia-a-dia
os negócios são celebrados mediante a consideração do interesse imediato das
partes e muitas vezes em desacordo com as regras legais pertinentes. Assim é que
se verifica a situação comum de entrega do bem móvel pelo vendedor ao
comprador, fundada a tradição no contrato de compra e venda regularmente
celebrado.
A celebração do contrato, nos termos do artigo 481 do Código Civil,
cria obrigações recíprocas às partes, ao vendedor a obrigação de entrega do bem
móvel ao comprador e ao comprador a obrigação de pagamento do preço ao
vendedor.
Regularmente celebrado o contrato, a entrega do bem móvel pelo
vendedor ao comprador caracteriza cumprimento da obrigação do primeiro e enseja
a transmissão da propriedade mobiliária ao segundo.
A partir da tradição, o comprador passa a ser o legítimo proprietário
154
do bem móvel, independentemente do pagamento do preço. Nesse sentido: “Posse
– Reintegração – Coisa móvel – Liminar pretendida – Inexistência de esbulho –
Posse justa do réu, como dominus, derivada de contrato de compra e venda Recurso não provido. Estando o réu na posse de veículo, na qualidade de
proprietário, em decorrência de negócio de compra e venda, tem posse a justo título,
não podendo estar cometendo esbulho na posse do autor, que não a tem, pois
transferiu em negócio regular” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Agravo
de Instrumento n. 62.683-4 - Barueri - 9ª Câmara de Direito Privado - Relator: Ruiter
Oliva - 21.10.97 - V. U.) 358 .
O pagamento do preço, que consiste na obrigação do comprador
decorrente do mesmo contrato de compra e venda, não guarda relação com a
transmissão da propriedade mobiliária, que, repita-se, efetivou-se mediante a
entrega do bem pelo vendedor.
Porque a partir da tradição o vendedor não é mais o proprietário do
bem móvel vendido e entregue, não pode se valer dos meios postos à disposição do
proprietário para ser reintegrado na posse do referido bem. A propósito:
“Possessória – Reintegração de posse – Compra e venda de bem móvel a
prestação, sem reserva de domínio e pacto comissório – Comprador inadimplente –
Hipótese em que cabia à parte lesada requerer a rescisão do contrato, com perdas e
danos – Artigos 1056 e 1092, parágrafo único do Código Civil – Via escolhida
358
No mesmo sentido: ”(...) Transmissão de domínio de bem móvel opera-se pela tradição – A
transferência de veículo junto ao Detran somente após o aforamento da ação de execução é
irrelevante, porquanto o referido registro tem fins meramente administrativos, não refletindo a situação
jurídica da propriedade de bem móvel, cuja transferência ocorre pela tradição do bem, nos termos do
art. 620, do Código Civil de 1916, especialmente em decorrência de contrato. (...)” (Tribunal de Alçada
do Estado do Paraná – Apelação Cível n.º 0277781-3 – (232903) – Origem: Cândido de Abreu – 14ª
Câmara Cível – Relator: Juiz Fernando Wolff Bodziak – DJPR 01.04.2005).
155
inadequada – Extinção do processo decretada – Recurso improvido” (Primeiro
Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0562058-2 – Origem:
São Paulo – 12ª Câmara – Relator: Matheus Fontes – J. 01/11/1995 – V.U.) 359 .
6.2.2 – Intransmissibilidade da propriedade mobiliária mediante o pagamento
do preço em caso de não efetivação da tradição
A dificuldade principal com a qual se defronta o comprador de um
bem móvel se consubstancia na recusa de entrega do referido bem pelo vendedor.
Como enfatizado anteriormente, porque a propriedade mobiliária é
transmitida pela tradição, o pagamento do preço pelo comprador não lhe enseja a
transmissão da propriedade do bem comprado e inclusive pago.
Ainda, porque o comprador não é o dono do bem, já que não o
recebeu, não pode se valer dos meios postos à disposição do proprietário para que
o bem lhe seja entregue. A propósito: “Compra e venda – Bem móvel – Medida
cautelar – Busca e apreensão – Ajuizamento objetivando a entrega da coisa pago o
preço, sob a alegação de que o vendedor estaria prestes a deixar a cidade –
Inadmissibilidade – Artigos 1056 do Código Civil e 287 do Código de Processo Civil
– Cabimento de ação de indenização ou ação para a entrega de bem – Carência
decretada – Recurso provido para esse fim. (...)” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil
359
Também a propósito: “Possessória – Reintegração de posse – Compra e venda de bem móvel
(caminhão) – Preço não pago – Liminar não concedida – Impossibilidade de reaver os bens antes de
rescindir ou anular o negócio havido – Inteligência do art. 521 do Código Civil – Carência reconhecida
– De ofício, julga-se extinta a ação, prejudicado o exame do recurso” (Primeiro Tribunal de Alçada
Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º 1069641-6 – Origem: São José do Rio Preto –12ª
Câmara – Relator: Beretta da Silveira – J. 05/03/2002). Ainda: “Possessória – Reintegração de posse
– Bem móvel (veículo) objeto de compra e venda não cumprido integralmente – Descabimento
enquanto não rescindido o contrato – Ausência de interesse processual – Carência decretada –
Recurso desprovido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0399041-0
– Origem: Indaiatuba – 7ª Câmara – Donaldo Armelin – J. 30/08/1988 – Publicação: JTA 115/121).
156
de São Paulo – Apelação Cível n.º 0420162-9 – Origem: Franca – 2ª Câmara –
Relator: Jacobina Rabello – J. 06/12/1989 – V. U.).
6.2.3 – Questões processuais
Após o estudo dos sistemas de transmissão da propriedade
mobiliária e do aperfeiçoamento e da eficácia do contrato de compra e venda, bem
como de algumas questões práticas a respeito da aplicação daquela teoria, o
presente item tem por objetivo específico a análise de problemas estritamente
processuais, que afirmamos decorrentes da desconsideração do direito material,
especificamente da desconsideração do contrato como título ou negócio jurídico
causal e da tradição como modo de aquisição da propriedade mobiliária.
Afirmamos que a desconsideração do direito material é o
fundamento da dificuldade de identificação, pelo profissional do direito, do
instrumento processual adequado à solução do problema concreto decorrente do
descumprimento do contrato de compra e venda de bem móvel.
Foram pesquisadas decisões dos tribunais do Estado de São Paulo
entre 1989 e 2005. Em razão das regras internas de distribuição de competência,
durante o período pesquisado o tema foi de competência do Primeiro Tribunal de
Alçada Civil do Estado de São Paulo 360 .
Os acórdãos escolhidos o foram por tratarem especificamente da
questão abordada no presente trabalho, de equívoco na identificação do momento
360
Atualmente, com a unificação dos tribunais em decorrência da Emenda Constitucional n.º 45, a
competência é do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
157
da transmissão da propriedade mobiliária como causa de escolha inadequada do
instrumento processual.
Nos autos da Apelação n.º 414.253/8, da Comarca de Mogi das
Cruzes, a Sétima Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, relator Régis de
Oliveira, por votação unânime, aos 26 de setembro de 1989, negou provimento ao
recurso, nos seguintes termos: “Através da medida cautelar, objetivou o credor a
busca e apreensão de veículo adquirido mediante uso de cheque sem fundos. Ora,
tendo ocorrido a tradição, não haveria mais como evitar a aquisição do veiculo e
futura alienação, uma vez que ocorrera a tradição. O vendedor não tomou as
cautelas devidas, deixando de providenciar a exigência de cheque visado. (...)
Poderia haver alguma providência cautelar. Todavia, a pretensão do autor é de que
haja apreensão do veículo. Tal pedido não pode ser aceito. Falta ao autor interesse
processual”.
No caso concreto, pretendeu o requerente/apelante o deferimento de
medida cautelar de busca e apreensão contra terceiro, a quem fora alienado o
veículo que o próprio requerente/apelante vendera ao comprador inadimplente.
Celebrado o contrato de compra e venda de bem móvel, no caso o
veículo, e entregue o bem pelo vendedor ao comprador, como se verificou no caso,
a propriedade do referido veículo foi validamente – tendo como título o contrato de
compra e venda e como modo a tradição – transferida ao comprador. Estivesse o
veículo ainda na posse do comprador, seria possível ao vendedor o desfazimento do
contrato em razão do inadimplemento da obrigação de pagamento pelo comprador –
no caso concreto porque o cheque emitido não foi compensado por insuficiência de
fundos – com a reintegração do veículo na sua posse. No entanto, considerada a
158
compra e venda válida e eficaz, a alienação do veículo pelo comprador a terceiro
não pode ser considerada, por si, maculada. Não se desconsidera que eventual
simulação entre o comprador e o terceiro adquirente poderia ser levada em conta em
benefício do vendedor, mas tal questão sequer foi levantada no caso concreto, em
que a única pretensão do requerente/apelante consistiu na apreensão do veículo
que, até prova em contrário, encontrava-se validamente na posse de um terceiro.
Reconhecida a tradição como modo de transmissão da propriedade
mobiliária, o vendedor lesado poderia ser ressarcido por meio de uma ação de
cobrança do preço não pago, ou por meio de uma ação de resolução contratual,
nesse caso a ser resolvida em perdas e danos, já que a apreensão do veículo
restaria inequivocamente prejudicada em razão estar na posse de quem não
participara do contrato de compra e venda celebrado.
Nos autos da Apelação n.º 417.880/7, da Comarca de Garça, a
mesma Sétima Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, relator Francisco de
Assis Vasconcellos Pereira da Silva, por votação unânime, aos 14 de novembro de
1989, negou provimento ao recurso, nos seguintes termos: “Com a busca e
apreensão quer a apelante ingressar desde logo na posse, recuperando-a, de bens
móveis transferidos ao apelado em virtude de contrato de compra e venda, sob o
fundamento de falta de cumprimento do preço ajustado.
Pretende, no fundo, o
mesmo efeito de medida liminar de reintegração de posse, contemplada no artigo
928 do Código de Processo Civil. Sucede, todavia, que a busca e apreensão não se
presta tão singelamente à tutela possessória de bens móveis, especialmente
quando, a exemplo dos autos, mostra-se visível a inexistência do perigo da mora e
da aparência ou verossimilhança do direito material invocado. Ao deferimento da
159
cautela. em apreço, costuma-se ponderar que basta, além do perigo, a mera
probabilidade de a ação futura vir a declarar o direito em favor de quem a persegue,
conquanto outros entendam que o fumus boni iuris tem ligação com o próprio pedido
cautelar, não com o mérito do processo principal. Seja como for, na hipótese
concreta dos autos observa-se, imediatamente, não dispor a apelante do direito de
busca e apreensão como autentica tutela possessória que antecipa o resultado da
ação principal. Nota-se, ainda, que a própria ação possessória depende da prévia
resolução do contrato de compra e venda dos bens móveis. A r. sentença apelada
realça adequadamente que a petição inicial vem desacompanhada de prova
documental referente à propriedade dos móveis; assim também da posse, vale
acrescentar. Ademais, como a só falta de pagamento do preço de venda não é
capaz de outorgar de pronto o reingresso do vendedor na posse, especialmente por
via de busca e apreensão cautelar, segue-se que tampouco existe o periculum in
mora. Do raciocínio exposto conclui-se: a apelante lançou mão de provimento
jurisdicional inadequado, inútil até, à pretensão de natureza possessória sobre os
bens alienados ao apelado que, pela tradição, tornou-se titular do domínio. Em
conseqüência, é caso de indeferimento da petição inicial por ausência de interesse
processual, extinguindo-se o processo com fundamento nos artigos 295, III e 267,
ambos do Código de Processo Civil”.
No caso concreto, mesmo narrando ter vendido bens móveis ao
apelado e ter, sob o fundamento e em cumprimento do contrato, entregue os
referidos bens móveis ao apelado, a apelante se afirma proprietária dos referidos
bens.
Pretende a utilização da ação cautelar de busca e apreensão como
160
medida satisfativa, a fim de, como proprietária desapossada dos bens móveis que se
encontram injustamente na posse do apelado, tê-los de volta, consolidando-se nas
suas mãos o domínio e a posse plenos e exclusivos dos referidos bens.
Reconhecido o contrato válido e eficaz celebrado pelas partes, bem
como reconhecida a transmissão da propriedade mobiliária pela tradição, para o
desfazimento do contrato seria necessário o ajuizamento de ação de resolução de
contrato, na qual, reconhecido o inadimplemento da compradora, seria decretado o
seu desfazimento (do contrato de compra e venda de bem móvel) e seria garantida à
vendedora, a seu requerimento, a reintegração de posse dos bens móveis objeto
daquele contrato desfeito.
Mais uma vez, a desconsideração da transmissão da propriedade
mobiliária pela tradição, independentemente do pagamento do preço, ensejou a
escolha de instrumento inadequado ao exercício do direito da vendedora.
Nos autos da Apelação n.º 777.381/3, da Comarca de Marília, a
Primeira Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, relator Plínio Tadeu do
Amaral Malheiros, por votação unânime, aos 24 de agosto de 1998, negou
provimento ao recurso, nos seguintes termos: “Insurgiu-se a autora, ora apelante,
dizendo que a presente ação tem caráter satisfativo, conforme expressamente
constou do pedido inicial, razão pela qual não há que se falar em ajuizamento de
qualquer outra ação, no prazo de trinta dias. Asseverou que com a recuperação dos
bens, a demanda já atingiu seu objetivo e, assim, a sentença deveria ter apreciado o
seu mérito, concluindo pela procedência, tendo em vista a prova produzida. (...) O
apelo interposto pela autora desmerece provimento. A ação de busca e apreensão,
prevista no art. 839 e seguintes do Código de Processo Civil, é medida cautelar e,
161
como
tal,
revestida
das
características
de
instrumentalidade,
autonomia,
provisoriedade e revogabilidade. (...) Assim, competia à autora indicar em sua
petição inicial qual a ação principal a ser proposta (providência, aliás, que não foi
tomada), assim como ajuizá-la no prazo máximo de trinta dias do cumprimento da
medida liminar deferida. Não o tendo feito, a extinção da ação era de rigor. (...) Ainda
que assim não fosse, é de se observar que a ação cautelar não é via adequada para
a obtenção da solução de contrato celebrado entre as partes e não cumprido”.
Mais uma vez, no caso concreto, sob o fundamento de que o
apelado/comprador descumpriu sua obrigação de pagamento, a apelante/vendedora
se afirma proprietária dos bens móveis cuja propriedade foi validamente transferida
ao apelado pela tradição, tendo como causa o contrato – válido e eficaz – de compra
e venda.
A consideração do momento do aperfeiçoamento do contrato de
compra e venda – mediante a mera manifestação, pelas partes, de consentimento a
respeito do objeto e do preço – e a consideração da transmissão da propriedade
mobiliária pela tradição permitiriam a conclusão correta de que, tendo a propriedade
dos bens sido validamente transferida ao comprador, não se reconhecia à
vendedora a titularidade dessa propriedade. Conseqüentemente, a ação cautelar de
busca e apreensão com natureza satisfativa não se lhe apresentava como
instrumento adequado ao exercício de seu direito.
Como um dos elementos da condição da ação consistente no
interesse de agir, a adequação significa que o exercício da atividade jurisdicional
deve ficar condicionado, em cada caso concreto, à efetiva utilidade que o provimento
pretendido pelo autor terá para atingir a finalidade de atuação da vontade concreta
162
da lei, bem como à justiça da submissão da parte contrária aos resultados e aos
rigores específicos de cada tipo de processo 361 .
Afirma-se
que
utilização
do
meio
inadequado
não
decorre
necessariamente do desconhecimento dos instrumentos processuais, mas sim do
desconhecimento do direito material, mais especificamente do desconhecimento do
momento específico da transmissão da propriedade mobiliária do vendedor ao
comprador, a partir de quando o primeiro deverá, anteriormente à manifestação da
pretensão de reaver a posse dos bens, pleitear o desfazimento do contrato sob o
fundamento do inadimplemento do comprador quanto ao pagamento do preço.
Ou seja, no caso concreto, celebrado validamente o contrato e
transferida validamente a propriedade dos bens pela vendedora ao comprador,
incumbia à vendedora, que não recebeu o preço o ajuizamento de ação de
resolução do contrato, na qual, reconhecido o inadimplemento do comprador, seria
decretado o seu desfazimento (do contrato de compra e venda) e seria garantida à
vendedora a reintegração de posse dos bens móveis objeto daquele contrato.
Nos autos da Apelação n.º 830.223/8, da Comarca de Campinas, a
mesma Primeira Câmara do Primeiro Tribunal da Alçada Civil, relator Elliot Akel, por
votação unânime, aos 07 de junho de 1999, negou provimento ao recurso, nos
seguintes termos: “Foram julgadas improcedentes as ações, cautelar e principal, à
consideração de que, em se tratando de venda e compra de bem móvel,
aperfeiçoou-se o contrato na medida em que as partes manifestaram seu
consentimento a respeito da coisa e do preço, servindo ele de causa para a
transferência da propriedade, que se consumou com a tradição. (negritei) Não tendo,
361
Cândido Rangel Dinamarco. Execução Civil. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 406.
163
o adquirente Eduardo Minatel, cumprido a obrigação assumida no contrato, de pagar
o preço, mesmo assim o autor não tem título para exigir a reintegração na posse do
bem cuja propriedade e posse transferiu com a tradição, devendo o inadimplemento
da obrigação de Eduardo ser resolvido em perdas e danos, nos termos do artigo
1.056 do Código Civil’. Verifica-se que o autor, nominando a ação ajuizada de
‘principal declaratória de busca e apreensão’ (sic), ali narrou haver vendido a
Eduardo Minatel o veiculo indicado pelo preço de Cr$ 8.800.000,00 (oito milhões e
oitocentos mil cruzeiros), recebendo do comprador três cheques, no valor total de
Cr$ 5.000.000,00 (cinco milhões de cruzeiros), acrescentando que nos restantes Cr$
3.800.000,00 entraram por conta de acerto de negócios anteriores. Na seqüência,
afirmou haverem os cheques sido devolvidos pelo sacado com a informação de
divergência
de
assinaturas,
dizendo
que
tentando
receber
os
valores
correspondentes diretamente do comprador, foi informado de que o caminhão havia
sido transferido já para seu irmão Edvaldo Minatel. Argumentou: ‘em razão do
exposto, conclui-se que a avença não se completou, sendo certo que Edvaldo
Minatel adquiriu coisa alheia, a venda de coisa alheia é negócio inexistente’. (fl. 04).
Instado a aditar a Inicial, que não conteria pedido declaratório apesar da
denominação dada à ação, o autor apresentou a petição de fl. 12, pedindo ‘seja
aditada à inicial o pedido declaratório quanto ao direito do autor com referência à
devolução de seu veículo a nulidade da transação e dos cheques emitidos como
pagamento’ (in verbis). Da análise do teor da inicial e das razões recursais (em que
se faz referência a ‘contrato de compromisso de compra e venda’, nelas
encontrando-se ainda as afirmações de que ‘res significa a entrega da coisa pelo
vendedor ao comprador, o pretium significa o pagamento do preço pelo comprador e
164
finalmente o consensum, ou seja, a concordância de ambas as partes em fazer a
transação’) chega-se à conclusão de que o autor desconhece ou procura ignorar
conceitos básicos atinentes à própria natureza do contrato de venda e compra. Certo
é que constituem elementos essenciais da venda e compra, segundo clássica
ensinança de nossos doutrinadores, res, pretium et consensum. Res, contudo, não
significa a entrega da coisa pelo vendedor ao comprador, mas sim a própria coisa
suscetível de apreciação econômica a cuja tradição obriga-se o vendedor através do
contrato. Pretium, por outro lado, não é o pagamento do preço pelo comprador, mas
sim a expressão pecuniária da coisa devida pelo comprador. Finalmente, consensum
traduz o acordo de vontades a respeito da coisa e de seu preço. Sendo contrato
consensual, a compra e venda torna-se perfeita e acabada com o acerto de seu
objeto, do preço e da modalidade de pagamento. Entrega da coisa e pagamento do
preço dizem respeito á execução do contrato de compra e venda. A exigência dessa
entrega e desse pagamento pressupõem a existência de contrato perfeito e
acabado. Certo que como todo negócio jurídico, o contrato de venda e compra pode
ser anulado, uma vez demonstrado vício do consentimento (erro, dolo ou coação) ou
vício social (simulação ou fraude). Mas não foi a defeito do negócio jurídico que se
referiu a Inicial, razão pela qual no curso da instrução nem mesmo se cuidou de
perquirir a respeito. De qualquer forma, se a pretensão do autor era a de obter a
resolução do contrato, seja pela atuação de eventual cláusula resolutória tácita
implícita nos contratos comutativos, seja pelo reconhecimento de defeito na
formação do contrato, impunha-se o direcionamento da ação contra quem dele
participou, no caso o comprador, Eduardo Minatel. Ao Invés disso, acabou por
direcionar, contra o réu Edvaldo Minatel, estranho àquela relação contratual, ação
165
que, apesar de rotulada de declaratória, tem evidente natureza possessória, sem
titulo algum para tanto. Como se constata das referências do acórdão às alegações
do apelante, no caso concreto não apenas a eficácia do contrato de compra e venda
de bem móvel foi desconsiderada, mas os próprios elementos do contrato também o
foram. Pretendeu o vendedor/apelante o deferimento da medida cautelar contra
terceiro que – sendo terceiro – não participou do contrato de compra e venda. Na
ação principal, reiterou a alegação de que o terceiro adquiriu a non domino, razão
pela qual não se lhe poderia reconhecer a propriedade do bem objeto do contrato”.
Mais uma vez, a consideração do aperfeiçoamento do contrato de
compra e venda permitiria a conclusão correta de que, diversamente do alegado
pelo vendedor/apelante, res, pretium e consensus não constituem elementos do
cumprimento do contrato, mas sim do seu aperfeiçoamento. E a consideração da
transmissão da propriedade mobiliária pela tradição permitiria a conclusão correta de
que, também diversamente do alegado pelo vendedor/apelante, a entrega dos bens
móveis – tecnicamente, a tradição – ensejara a transmissão da propriedade desses
bens ao comprador, não se reconhecendo mais ao vendedor a titularidade dessa
propriedade.
Ou seja, no caso concreto, ainda uma vez, celebrado validamente o
contrato e transferida validamente a propriedade dos bens pelo vendedor ao
comprador, incumbia ao vendedor, que não recebeu o preço, o ajuizamento de ação
de resolução do contrato, na qual, reconhecido o inadimplemento do comprador,
seria decretado o seu desfazimento (do contrato de compra e venda) e seria
garantida ao vendedor a reintegração de posse dos bens móveis objeto daquele
contrato.
166
Nos autos do Agravo de Instrumento n.º 1.139.734/7, da Comarca
de Sorocaba, a Quarta Câmara do Primeiro Tribunal da Alçada Civil, relator José
Marcos Marrone, por votação unânime, aos 22 de setembro de 2004, indeferiu, de
ofício, a petição inicial da ação cautelar e julgou prejudicado o agravo de
instrumento, nos seguintes termos: “1. A agravante, em 12.52004, por telefone,
vendeu à agravada ‘Elson José Xavier –ME’, pelo preço de R$ 3.884,00, as
seguintes mercadorias: ‘629,34 kgs de vergalhão CA50 10.0mm AM 0,85; 808,92
kgs de vergalhão CA50 12,5mm AM 0,70; 34 painéis de malha CA60 3,4mm 15x15
média’ (fl. 08). Tais mercadorias foram entregues no endereço indicado pela
agravada (fl. 09). Com base na respectiva nota fiscal (fl. 22), a agravante emitiu duas
duplicatas, a primeira das quais não foi paga no vencimento pela agravada (fl. 09).
Logo, a aludida venda encontrava-se aperfeiçoada, uma vez que houve acordo
sobre a coisa e sobre o preço, nos termos do art. 482 do atual Código Civil,
correspondente ao art. 1.126 do anterior Código Civil. Por outro lado, consoante
dispõe o art. 1.267, caput, do atual Código Civil, correspondente ao art. 620 do
anterior Código Civil, a propriedade dos bens móveis transmite-se pela tradição. (...)
Assim, para que se efetivasse a transferência de propriedade daquelas mercadorias,
bastava a tradição, que se deu pela entrega das mesmas. Considerando-se que a
tradição já se verificara (fl. 22), incumbia à agravante: ou cobrar da agravada, pelas
vias próprias, o débito existente; ou ajuizar ação de rescisão contratual, colimando o
retorno das partes ao estado em que se encontravam anteriormente. 2.2. Ademais, a
agravante ingressou com medida cautelar de busca e apreensão (fl. 08), objetivando
reaver as mercadorias que foram vendidas e entregues, sob essas alegações: de
que emitiu as duplicatas com vencimentos para 27.5.2004 e 11.6.2004, não tendo,
167
no primeiro vencimento, o pagamento sido efetuado; de que diligenciou no local da
entrega das mercadorias, tendo obtido a informação de que a pessoa que assinou a
nota fiscal era desconhecida no local, onde existia uma serralheria, pertencente ao
agravado Lázaro Aparecido de Godoi; de que as mercadorias encontravam-se em
um depósito, para onde foram levadas pelo próprio Lázaro Aparecido de Godoi
(fl. 09).
Ao ajuizar a referida cautelar, a agravante baseou-se nos arts. 839 e
seguintes do CPC (fl. 08).
Todavia, conforme se infere da inicial (fls. 08/10), a
medida pretendida tem caráter eminentemente satisfativo, o que somente se admite
quando expressamente prevista na legislação. (...) Inadequada, portanto, revelou-se
a via processual eleita pela agravante, impondo-se o indeferimento da petição inicial,
com fulcro no art. 295, inciso III, do CPC, e a conseqüente extinção do processo, nos
termos do art. 267, incisos I e VI, do CPC, ante a ausência de interesse processual.
3. Nessas condições, de ofício (art. 267, § 3º, do CPC), indefere-se a petição inicial
da ação cautelar e julga-se extinto o respectivo processo sem a análise do mérito,
reputando-se como prejudicado o agravo de instrumento contraposto.
A última decisão traz em seu próprio bojo a explicação da razão pela
qual não se reconhece ao vendedor prejudicado pelo descumprimento da obrigação
de pagamento do preço pelo comprador a possibilidade de ajuizamento da ação
cautelar de busca e apreensão dos bens móveis objeto do contrato de compra e
venda descumprido. As referências do acórdão à tradição como modo de
transmissão da propriedade mobiliária, a exigir a conclusão de que o contrato
descumprido fora validamente celebrado e de que a tradição transmitira validamente
a propriedade ao comprador tornam desnecessária a repetição dos ensinamentos.
Os acórdãos analisados demonstram os grandes prejuízos causados
168
às partes em decorrência da desconsideração de lições e preceitos de direito
material.
Considerados os prazos previstos 362 para a distribuição das ações e
para a prática dos atos formais de publicação após a decisão proferida, o
indeferimento de uma petição inicial pode acarretar, e na maioria das vezes acarreta
a perda definitiva do direito material a ser discutido.
Por essa razão, reiteramos a necessidade da identificação do
contrato de compra e venda como título ou negócio jurídico causal, e da tradição
como modo de aquisição da propriedade mobiliária.
O desfazimento do negócio jurídico causal – contrato de compra e
venda – validamente celebrado é condição essencial à reintegração do bem vendido
na posse do vendedor prejudicado pelo descumprimento da obrigação de
pagamento do preço pelo comprador. O pedido de reintegração de posse somente
preencherá a condição da ação consistente no interesse de agir se o bem objeto do
contrato estiver na posse do comprador, ou seja, se o bem objeto do contrato não
houver sido alienado – validamente – pelo comprador a terceiro de boa-fé.
Constatada a transmissão da propriedade do bem objeto do contrato pelo comprador
ao terceiro de boa-fé, restará afastada a possibilidade de reintegração de posse ao
vendedor, que não tem relação de direito material com o terceiro. Ao vendedor
prejudicado restará exclusivamente a cobrança do preço não pago e de eventuais
perdas e danos.
Afirmamos que a escolha do instrumento processual adequado para
a garantia da efetividade do direito material passa necessariamente pelo estudo do
362
No Estado de São Paulo, os prazos em que os andamentos processuais devem ser efetuados
constam das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.
169
próprio direito material, no caso concreto pelo estudo do contrato como título ou
negócio jurídico causal e da tradição como modo de aquisição da propriedade
mobiliária.
170
CONCLUSÕES
Ao final do estudo, apresentamos a síntese das conclusões que
obtivemos:
1 – A propriedade vem sendo estudada ao longo dos séculos pelas
diversas áreas do conhecimento humano e a sua importância é universalmente
reconhecida como medida de riqueza e poder.
2 – O direito romano antigo não reconheceu a classificação dos bens
em imóveis e móveis, mas sim, pelo critério de utilidade e independentemente de
serem imóveis ou móveis, reconheceu a distinção entre res mancipi e res nec
mancipi. As primeiras eram os bens com valor para a organização agrícola da Roma
antiga; as últimas eram todos os demais bens.
3 – A propriedade romana era classificada em quiritária, pretoriana
ou bonitária, provincial e peregrina. A propriedade quiritária era a mais importante,
adquirida por modos solenes e originariamente apenas por cidadãos romanos. A
propriedade pretoriana ou bonitária era garantida por ato do pretor e considerada
como forma de abrandamento dos rigores da transmissão da propriedade quiritária.
A propriedade provincial referia-se às terras localizadas fora dos limites romanos
originais e a propriedade peregrina era garantida àquelas pessoas que não se
qualificavam como cidadãos romanos.
171
4 – No sistema romano, a transmissão da propriedade das res
mancipi se dava por dois modos solenes, a mancipatio e a in iure cessio, e a
transmissão da propriedade das res nec manicpi se dava pela in iure cessio e pela
traditio.
5 – A mancipatio consistia num instituto de jus civile, que podia ser
utilizado exclusivamente pelos cidadãos romanos e dava ensejo à aquisição da
propriedade quiritária. A sua realização exigia a presença do alienante, do
adquirente, de cinco cidadãos romanos púberes que serviam como testemunhas e
do libripens, que carregava a balança em que era pesado o bronze que funcionava
como pagamento. O adquirente tomava em suas mãos a própria res ou algo que a
simbolizasse e pronunciava palavras solenes, após o que libripens tocava a balança
com o bronze e o entregava ao alienante como preço. Posteriormente o bronze foi
substituído pela moeda cunhada e a mancipatio se tornou um ato abstrato, passível
de utilização em qualquer caso que implicasse uma alienação.
6 – A in iure cessio consistia num instituto de jus civile que ensejava
a transmissão da propriedade quiritária tanto das res manicipi quanto da res nec
mancipi. Era realizada perante o magistrado, presentes o alienante e o adquirente. O
adquirente tomava em suas mãos a res, se fosse móvel, ou um símbolo, se fosse
imóvel, e o reivindicava. Mediante a negativa de contestação do alienante, o bem
era adjudicado ao adquirente. Foi pouco utilizada mesmo na época clássica, devido
à dificuldade concreta de comparecimento das partes perante o magistrado. A última
referência ao instituto consta do ano de 293.
172
7 – A traditio era considerada um modo não formalista de aquisição
da propriedade. Por se tratar de um instituto do ius gentium e não do ius civile, podia
ser utilizado tanto pelos romanos como pelos não romanos. Consistia na entrega
material do bem com a finalidade de transferir o seu domínio, o que exigia a
conjugação da entrega material da coisa com a justa causa. Inicialmente se exigia a
efetiva apreensão do bem pelo adquirente, ainda que de forma simbólica, no caso
de bens imóveis. Com o tempo, passou-se a admitir a entrega ficta, mediante a
criação dos institutos da traditio longa manu, da traditio brevi manu e do constituto
possessório. A justa causa consistia no negócio jurídico anterior e válido, em virtude
do qual a transferência da posse do bem produzia a transferência de sua respectiva
propriedade. À época de Justiniano, a traditio se tornou o modo único de
transmissão da propriedade romana.
8 – No sistema romano, a compra e venda, denominada emptio et
venditio, era o contrato pelo qual o vendedor prometia ao comprador transferir-lhe
definitivamente a posse de uma coisa mediante o pagamento de certo preço. Há
quem sustente que a compra e venda, quando à vista, dava-se pela mancipatio,
enquanto outra corrente afirma a inexistência de ligação entre os institutos, já que a
mancipatio constituía modo de transmissão da propriedade, enquanto a emptio et
venditio se destinava à transmissão da posse. À parte as diversas teorias a respeito
de sua origem, a emptio et venditio era um contrato do direito das gentes, que,
portanto, podia ser celebrado por romanos e não romanos, que se aperfeiçoava
mediante o consentimento das partes a respeito do objeto e do preço. A efetiva
transmissão da posse e/ou da propriedade somente se dava por um dos modos de
173
aquisição previstos, ou seja, pela mancipatio ou pela traditio.
9 – A partir do sistema romano, foram desenvolvidos outros sistemas
atualmente vigentes quanto à transmissão da propriedade mobiliária, cujo interesse
de estudo repousa na identificação da circunstância de a propriedade mobiliária ser
transferida por meio do próprio contrato de compra e venda ou exigir, além do título
representado pelo contrato, o modo de aquisição, ou seja, o ato de exteriorização da
transferência da propriedade, consistente na tradição.
10 – A tradição, como modo de transferência da propriedade
mobiliária do vendedor ao comprador, pode ser real, simbólica, consensual ou virtual
e ficta ou jurídica. A tradição real se realiza mediante a entrega efetiva do bem pelo
vendedor ao comprador. A tradição simbólica ocorre mediante a entrega, pelo
vendedor ao comprador, de um objeto que represente o bem cuja propriedade se
transfere, como as chaves de um carro. A tradição ficta se opera por força de uma
norma jurídica, independentemente de ato que a exteriorize. Dá-se nas hipóteses de
constituto possessório, de cessão de direito à restituição da coisa que se encontra
em poder de terceiro e de traditio brevi manu.
11 – O sistema alemão se baseia na prática de dois negócios
jurídicos independentes para a transmissão da propriedade mobiliária. O negócio
causal consistente no contrato de compra e venda não transfere, por si, a
propriedade do bem alienado, sendo necessária a tradição ou entrega, que, por sua
vez, consiste num contrato real. A tradição independentemente do negócio causal é
174
considerada eficaz, embora se tenha aperfeiçoado sem causa jurídica.
12 – No sistema de direito alemão, o contrato de compra e venda
tem eficácia obrigacional.
13 – O sistema francês reconhece às convenções, por si mesmas, o
efeito translativo da propriedade mobiliária, independentemente de qualquer
formalidade extrínseca e de qualquer ato de execução, não apenas em relação às
partes contratantes, mas também em relação aos terceiros em relação aos quais a
convenção seria oponível. Por outro lado, o artigo 2279 do Código Civil francês
estabelece que, quanto aos bens móveis, a posse equivale ao título, o que enseja o
reconhecimento de que, concretamente, a tradição pode suplantar a eficácia real
das convenções.
14 – No sistema de direito francês, o contrato de compra e venda
tem eficácia real. Celebrado o contrato de compra e venda de um bem móvel, a
propriedade mobiliária é transmitida imediatamente do vendedor ao comprador,
independentemente da exteriorização da entrega do bem.
15 – No sistema inglês, a propriedade mobiliária é transmitida por
meio da manifestação do consentimento das partes, independentemente de
qualquer ato externo, desde que o bem cuja propriedade se transfere por meio da
convenção seja passível de entrega imediata.
175
16 – No sistema de direito inglês, o contrato de compra e venda tem
eficácia real, com a consignação de que, para a transmissão imediata da
propriedade mobiliária do vendedor ao comprador, é imprescindível que o bem
móvel seja passível de entrega imediata.
17 – O sistema brasileiro exige, para a transmissão da propriedade
mobiliária, um título e um modo. O título constitui a causa da aquisição e não tem
eficácia translativa, para o que se exige o modo.
18 – No sistema de direito brasileiro, o contrato de compra e venda
tem eficácia obrigacional. Por meio do contrato, o vendedor de obriga a transferir a
propriedade do bem ao comprador, e este se obriga a pagar ao vendedor
determinado preço em dinheiro. O contrato de compra e venda constitui o título que
fundamenta a tradição, esta o modo pelo qual a propriedade mobiliária é
efetivamente transferida do vendedor ao comprador.
19 – No sistema de direito brasileiro, a posse não faz, por si, prova
da propriedade, mas se consubstancia no primeiro indício para a sua comprovação.
Constitui ônus daquele que alega a propriedade de um bem móvel que não se
encontra sob a sua posse a comprovação de que a posse atual é exercida mediante
título que não prevalece sobre o seu próprio título.
20 – Celebrado o contrato de compra e venda, a entrega do bem
móvel – que caracteriza o modo de transmissão da propriedade mobiliária
176
consistente na tradição – pelo vendedor ao comprador transfere a este a
propriedade mobiliária, independentemente do pagamento do preço.
21 – O pagamento do preço pelo comprador não lhe enseja a
transmissão da propriedade mobiliária se, apesar do pagamento, o bem não lhe foi
entregue.
22 – O vendedor que entregou o bem móvel ao comprador como
decorrência do contrato de compra e venda, mas não recebeu o preço, e o
comprador que pagou o preço ao vendedor, mas não recebeu deste o bem móvel,
não são proprietários do bem móvel objeto do contrato – no primeiro caso porque
houve a tradição e no segundo caso porque não houve a tradição – e não podem
fazer uso dos instrumentos processuais postos à disposição exclusivamente do
proprietário para a (re)tomada da posse do bem.
23 – O contrato de compra e venda validamente celebrado e não
desfeito por resilição bilateral – distrato – somente pode ser desfeito por ação
ordinária de resolução de contrato, cabível a reintegração liminar do bem móvel na
posse do vendedor.
24 – A alienação onerosa do bem móvel pelo comprador a terceiro
de boa-fé impede a reintegração do referido bem na posse do vendedor,
considerada a inexistência de relação de direito material entre o vendedor e o
terceiro.
177
25 – Inviabilizada a reintegração do bem móvel na posse do
vendedor, em razão de a propriedade do referido bem haver sido validamente
transmitida pelo comprador a terceiro de boa-fé, resta ao vendedor cobrar do
comprador o preço e indenização por eventuais perdas e danos.
178
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