RAQUEL GRELLET PEREIRA BERNARDI CONTRATO DE COMPRA E VENDA COMO TÍTULO PARA A TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE MOBILIÁRIA Dissertação Examinadora apresentada da Pontifícia à Banca Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração Direito Civil Comparado, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Helena Diniz. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2006 Banca Examinadora: _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ DEDICATÓRIA A meus pais Ismar e Cibele, pela base de toda a minha formação. A meus irmãos Simone e Fábio, pela convivência que, hoje rara em razão da distância, legou lembranças eternas de bons momentos. A meu sobrinho Alex, por ter ensinado a pessoas que pensavam que já sabiam tudo uma nova forma de amar. A meus avós Virgínia e Gabriel (in memorian), Julieta (in memorian) e Lauro, pelos ensinamentos de toda uma vida. A Renato, por ser muito mais do que marido, meu companheiro de todos os momentos. III AGRADECIMENTOS À Professora Doutora Maria Helena Diniz, como pessoa e como professora, pela oportunidade de convivência e por todos os seus ensinamentos, de direito e de vida. Ao Dr. Oswaldo (in memorian) e à Dona Zezé, pela prova irrefutável, durante a convivência aos sábados no Instituto Internacional de Direito, de que a família continua a ser a base de tudo. Às Faculdades Integradas de Ourinhos, na pessoa de seu diretor, Professor Doutor José Marta Filho, pelo incentivo ao aperfeiçoamento de seu corpo docente. Ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na pessoa do então Presidente, Desembargador Sérgio Augusto Nigro Conceição, pela autorização para a freqüência às aulas do curso de pós-graduação. IV “Já foi dito muito bem que a natureza se repete e que só o homem inova e se transcende. É a essa atividade inovadora, capaz de instaurar formas novas de ser e de viver, que chamamos de espírito. O ponto de partida não é, como se vê, uma hipótese artificial, mas verificação irrecusável de que o homem adicionou e continua adicionando algo ao meramente dado. A natureza de hoje não é a mesma de um, dois, ou três mil anos atrás, porque o mundo circundante foi adaptado à feição do homem. O homem, servindo-se das leis naturais, que são instrumentos ideais, erigiu um segundo mundo sobre o mundo dado: é o mundo histórico, o mundo cultural, só possível por ser o homem um ser espiritual, isto é, um ente livre dotado de poder de síntese, que lhe permite compor formas novas e estruturas inéditas, reunindo em unidades de sentido, sempre renovadas e nunca exauríveis, os elementos particulares e dispersos da experiência”. (Miguel Reale. Filosofia do Direito. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 205) V RESUMO O estudo que segue foi realizado com o objetivo de situar o contrato de compra e venda como título ou negócio causal para a transmissão da propriedade mobiliária no Brasil, tendo como fundamento a eficácia obrigacional conferida ao referido contrato pelo sistema de direito brasileiro. Partiu-se da análise introdutória e resumida da propriedade, consideradas a propriedade no direito romano e no direito brasileiro, e estudou-se o objeto da propriedade a partir da classificação dos bens em imóveis e móveis. Foram estudados os modos considerados universais para a aquisição da propriedade mobiliária e a tradição. Os sistemas de direito estrangeiros de transmissão da propriedade mobiliária foram abordados sob a ótica do reconhecimento do contrato de compra e venda exclusivamente como título para a transmissão da propriedade mobiliária, exigido ainda o modo de aquisição consistente na tradição, ou do reconhecimento da eficácia translativa da propriedade mobiliária ao próprio contrato de compra e venda. Foram identificados traços peculiares dos sistemas estrangeiros e analisadas situações específicas cujas soluções são semelhantes às do sistema brasileiro. Estudou-se o contrato de compra e venda e a sua eficácia obrigacional ou real nos sistemas de direito estrangeiros, bem como a eficácia obrigacional do contrato de compra e venda no sistema de direito brasileiro, com as conseqüências decorrentes. A final, foram analisadas situações concretas em que a garantia da efetividade da prestação jurisdicional decorre da identificação do contrato de compra e venda como título e da tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária. VI ABSTRACT The following study was done with the aim of placing sale contract as the title that functions as the basis for the passing of personal property in Brazil, considering the obligational power the Brazilian law system confers to given contract. It started from an introductory and resumed analysis of property, considered property in Roman law and property in Brazilian law, and studied the object of property, considered the classification in real property and personal property. It was searched the modus aquisitionis said universal for the acquisition or the passing of personal property, as well as delivery. The foreigner law systems for passing of personal property were analyzed under the consideration of recognizing sale contract exclusively as the title for the passing of personal property, the modus aquisitionis being also demanded, or recognizing the power of passing of property to sale contract itself. There were identified the peculiar characteristics of the foreigner systems and there were analyzed specific situations in which responses of the foreigner systems are similar to the Brazilian system responses themselves. In progression, it was studied the sale contract and its obligational or real power under the foreigner law systems, such as the obligational power of sale contract under the Brazilian law system, each one with their own consequences. Finally, there were analyzed concrete situations in which the effectiveness of judgement is granted for the identification of sale contract as the title and of delivery as the modus aquisitionis for the passing of personal property. VII SUMÁRIO Prefácio......................................................................................................................XI Capítulo 1 – Propriedade mobiliária...........................................................................01 1.1 – Patrimônio....................................................................................01 1.2 – Propriedade..................................................................................03 1.2.1 – Propriedade no direito romano.........................................04 1.2.2 – Propriedade no direito brasileiro.......................................07 1.2.2.1 – Definição e caracteres.......................................07 1.2.2.2 – Espécies de propriedade...................................11 1.3 – Propriedade e domínio.................................................................13 1.4 – Coisa e bem.................................................................................15 1.5 – Bens imóveis e bens móveis........................................................17 Capítulo 2 – Modos de aquisição da propriedade mobiliária.....................................26 2.1 – Modos universais de aquisição da propriedade mobiliária....................................................................................................................27 2.1.1 – Usucapião................................................................27 2.1.2 – Ocupação.................................................................29 2.1.3 – Especificação...........................................................31 2.1.4 – Confusão, comistão e adjunção...............................32 2.1.5 – Casamento...............................................................33 2.1.6 – Sucessão.................................................................34 2.2 – Tradição.........................................................................................35 2.2.1 – Definição e requisitos.......................................................35 2.2.2 – Espécies de tradição........................................................38 2.2.2.1 – Tradição real........................................................39 2.2.2.2 – Tradição simbólica...............................................41 VIII 2.2.2.3 – Tradição ficta........................................................43 2.2.2.3.1 – Constituto possessório......................43 2.2.2.3.2 – Cessão de direito de restituição........46 2.2.2.3.3 – Traditio brevi manu............................47 2.2.2.3.4 – Outras hipóteses de tradição ficta.....48 Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da propriedade mobiliária.................................50 3.1 – Sistema romano...........................................................................51 3.2 – Sistema alemão...........................................................................61 3.3 – Sistema francês...........................................................................66 3.4 – Sistema inglês.............................................................................73 3.5 – Sistema brasileiro........................................................................76 3.6 – Paralelo entre direito estrangeiro e o sistema brasileiro..............80 Capítulo 4 – Contrato de compra e venda de bem móvel.........................................88 4.1 – Definição de contrato...................................................................88 4.2 – Requisitos de validade.................................................................90 4.3 – Princípios orientadores................................................................92 4.4 – Definição de contrato de compra e venda...................................93 4.5 – Aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bem móvel.........................................................................................................................94 Capítulo 5 – Contrato de compra e venda de bem móvel nos sistemas de direito estrangeiros................................................................................................................99 5.1 – Sistema romano..........................................................................99 5.2 – Sistema alemão.........................................................................107 5.3 – Sistema francês.........................................................................110 5.4 – Sistema inglês...........................................................................114 IX Capítulo 6 – Contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito brasileiro...................................................................................................................127 6.1 – Eficácia e conseqüências .........................................................127 6.2 – Questões específicas decorrentes da eficácia obrigacional do contrato de compra e venda de bem móvel no direito brasileiro..............................153 6.2.1 – Transmissibilidade da propriedade mobiliária pela tradição independentemente do pagamento do preço.............................................153 6.2.2 – Intransmissibilidade da propriedade mobiliária mediante o pagamento do preço em caso de não efetivação da tradição...............................156 6.2.3 – Questões processuais.................................................157 – Conclusões............................................................................................................171 – Bibliografia.............................................................................................................179 X PREFÁCIO O presente trabalho decorreu da constatação da dificuldade da aplicação da teoria referente à transmissão da propriedade mobiliária tendo como título ou negócio jurídico causal o contrato de compra e venda e como modo de aquisição a tradição. Trata-se de tema conexo tanto com o direito das obrigações (Livro I da Parte Especial do Código Civil) quanto com o direito das coisas (Livro III da Parte Especial do Código Civil). Ao direito das obrigações porque nesse Livro se situa o contrato de compra e venda, com características específicas quanto ao seu aperfeiçoamento e à sua eficácia; ao direito das coisas porque o contrato constitui exclusivamente a causa da transmissão da propriedade mobiliária, exigindo-se cumulativamente o modo – a tradição, prevista no Livro III – para que a propriedade mobiliária seja efetivamente transferida do vendedor ao comprador. O estudo individualizado e estanque do contrato de compra e venda de bem móvel e dos modos de transmissão da propriedade mobiliária enseja grande dificuldade para a compreensão conjunta dos institutos e para a sua aplicação também necessariamente conjunta aos casos concretos. No dia-a-dia acadêmico, é comum e rotineira a surpresa manifestada pelos alunos ao serem confrontados com a regra do artigo 481 do Código Civil, que estabelece que por meio do contrato de compra e venda o vendedor não transfere a propriedade do bem, mas exclusivamente se obriga a transferi-la, bem como ao serem informados de que o pagamento do preço não transmite a propriedade do bem do vendedor ao comprador e de que, por outro lado, a entrega do bem pelo vendedor ao comprador enseja a transferência da XI propriedade do bem do primeiro ao segundo independentemente do pagamento do preço. A mesma surpresa se verifica quando aos acadêmicos é enunciada a regra do artigo 1226 do Código Civil, que prescreve que os direitos reais sobre bens móveis constituídos ou transmitidos por atos entre vivos somente são adquiridos com a tradição, bem como a regra do artigo 1267, também do Código Civil, que estabelece que a propriedade mobiliária não é transferida pelos negócios jurídicos antes da tradição. No dia-a-dia forense, acumulam-se os indeferimentos de petições iniciais de ações cautelares – pretensamente satisfativas – de busca e apreensão de bens móveis cuja propriedade foi validamente transferida pelo vendedor ao comprador por meio da tradição, tendo como negócio jurídico causal o contrato de compra e venda. Sob o fundamento de que a propriedade imobiliária foi, durante séculos, e continua sendo a verdadeira prova de riqueza e o alicerce do poder, a transmissão da propriedade mobiliária tendo como negócio jurídico causal o contrato de compra e venda e como modo de aquisição a tradição despertou e ainda desperta pouco interesse dos juristas e dos profissionais do Direito no Brasil. Fundamenta-se ainda a ausência de interesse específico pela transmissão da propriedade mobiliária pela tradição, tendo como causa o contrato de compra e venda, na constatação de que a circulação de riquezas mediante a celebração de contratos de compra e venda de bens móveis esteve, durante muito tempo, restrita às próprias comunidades, onde as regras para a solução dos conflitos eventualmente decorrentes de seu descumprimento eram ditadas pelos costumes do lugar. XII A disseminação da informação alterou o panorama atual. A celebração de contratos por meio eletrônicos e virtuais tornou a negociação entre estranhos uma constante. Se, por um lado, essa prática facilitou a circulação de bens e a transferência de riquezas, por outro lado tornou mais provável o descumprimento das obrigações pelos contratantes e mais importante o conhecimento técnico-jurídico visando à solução dos problemas decorrentes. A determinação do momento do aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bem móvel e o delineamento de sua eficácia obrigacional geram conseqüências importantes às hipóteses de descumprimento da obrigação de pagamento pelo comprador e de descumprimento da obrigação de entrega do bem móvel pelo vendedor. Com a finalidade de compilar as teorias a respeito da eficácia do contrato de compra e venda de bem móvel e as teorias a respeito dos sistemas de transmissão da propriedade mobiliária, bem como de identificar a teoria aceita no Brasil a respeito dos temas, o presente trabalho foi desenvolvido na tentativa de contribuir para o estudo contextualizado da transmissão da propriedade mobiliária tendo como causa o contrato de compra e venda e como modo a tradição. Afirmamos a importância do estudo do tema tanto para o leigo, que tem aplicadas a si conseqüências nem sempre esperadas, em razão do desconhecimento dos institutos, como para o jurista, a quem incumbe o estudo aprofundado do direito visando à descoberta de novos caminhos a serem trilhados na busca de soluções adequadas à incessante evolução das relações sociais. São Paulo, agosto de 2006. Raquel Grellet Pereira Bernardi XIII Capítulo 1 – Propriedade mobiliária 1.1 – Patrimônio De acordo com a teoria clássica ou subjetiva, o patrimônio é a representação econômica de uma pessoa, e não uma soma de bens considerados concretamente. Ou seja, o patrimônio é uma universalidade abstrata, integrada pelo ativo, consubstanciado nos bens e direitos, bem como pelo passivo, consubstanciado nas obrigações e dívidas. De acordo com a referida teoria, o patrimônio é uma emanação da personalidade no plano econômico e se conserva durante toda a vida da pessoa, ainda que os bens sejam substituídos, aumentados ou diminuídos 1 . “El sujeto no puede liberarse de su patrimônio; puede enajenar partes y hasta todos los elementos que lo integran en un momento dado, pero lo que el adquirente recibe no es el patrimonio del enajenante sino la suma de los derechos que le correspondían en el momento de efectuarse la transferência” 2 . A teoria moderna – também chamada realista ou da afetação – nega a unidade e a indivisibilidade do patrimônio e justifica a coesão dos elementos integrantes de uma universalidade de direitos pela sua destinação comum. De acordo com essa teoria, patrimônio é o conjunto de bens coesos pela afetação a um fim econômico determinado. Mediante tal definição, admite-se a existência de um patrimônio geral, em que os elementos se unem pela relação subjetiva com a pessoa, e de patrimônios especiais, em que a unidade resulta objetivamente do fim 1 C. Aubry e C. Rau. Cours de droit civil français. 6eme ed. Paris: Éditions Techniques S.A., 1935. Tome Neuf, p. 253. 2 Andreas Von Tuhr. Derecho civil. Teoria general del derecho civil aleman. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1946. Volumen I1, p. 394. 1 ao qual foi destacado. 3 “El patrimonio especial puede pertencer a una persona, aparte su otro patrimonio general, como sucede com los bienes reservados que la mujer casada tiene junto a la dote aportada al matrimonio, o com los bienes aportados a una empresa comercial con independencia del patrimonio personal del que los aporta, y puede pertenecer a una pluralidad de titulares, por lo general em el concepto de una unión de coproprietarios en ‘mano común’, como sucede con el patrimonio de una sociedad o com los bienes comunes de la sociedad conyugal” 4 . Para Caio Mário da Silva Pereira, o patrimônio, abrangendo o conjunto das relações jurídicas, é realmente uno e indivisível, “porque em qualquer circunstância, ainda que se procure teoricamente destacar mais de um acervo ativopassivo de valores jurídicos, sempre há de exprimir a noção de patrimônio a idéia de conjunto, de reunião, e esta, segundo a própria razão natural, é una” 5 . O doutrinador também explica que as hipóteses que a teoria moderna pretende sejam entendidas como de divisibilidade do patrimônio – como os casos de regime de bens da comunhão parcial e de falência – nada mais são do que acervos de bens distintos pela sua origem ou pela sua destinação, dentro do mesmo patrimônio, sendo este uno e indivisível 6 . Sílvio de Salvo Venosa corrobora tal afirmação e sustenta que o patrimônio “perdura unido à pessoa durante toda a sua existência e é uno, ou seja, 3 Orlando Gomes. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1996, p. 178. 4 Paulo Oertmann. Introducción al derecho civil. Buenos Aires: Editorial Labor, sem indicação de data, p. 151. 5 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de direito civil – Introdução ao direito civil. Teoria geral de direito civil. 20ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. Volume I, p. 394-395. 6 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Teoria geral, cit., p. 394-395. 2 há um único patrimônio para cada pessoa” 7 . Para Silvio Rodrigues, mediante referência a Sylvio M. Marcondes Machado, “o patrimônio é formado pelo conjunto de relações ativas e passivas, e esse vínculo entre os direitos e as obrigações do titular, constituído por força de lei, infunde ao patrimônio o caráter de universalidade de direito” 8 . A noção de patrimônio tem relevância, considerado o princípio segundo o qual o patrimônio do devedor responde pelas suas obrigações, nas quais se incluem as decorrentes do contrato de compra e venda de bem móvel, título a partir do qual se estudará a transmissão da propriedade mobiliária. 1.2 – Propriedade A propriedade tem sido objeto de estudo das mais diversas áreas do conhecimento humano ao longo dos tempos e não admite um conceito inflexível e estanque. Afirma Caio Mário da Silva Pereira: “Muito erra o profissional que põe os olhos no direito positivo e supõe que os lineamentos legais do instituto constituem a cristalização dos princípios em termos permanentes, ou que o estágio atual da propriedade é a derradeira, definitiva fase de seu desenvolvimento. Ao revés, evolve sempre, modifica-se ao sabor das injunções econômicas, políticas, sociais e religiosas.” 9 Embora não exista consenso a respeito das formas originárias da 7 Sílvio de Salvo Venosa. Direitos reais. 4ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. Volume 5, p. 184. 8 Silvio Rodrigues. Direito civil: parte geral. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996. Volume 1, p. 111. 9 Caio Mário da Silva. Direitos reais. 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. Volume IV, p. 81. 3 propriedade 10 , admite-se que é do direito romano a origem da propriedade individual como a conhecemos na atualidade 11 . 1.2.1 – Propriedade no direito romano Há discussão quanto à existência de uma propriedade coletiva da gens sobre um determinado território nas origens de Roma 12 . Mas se admite que tenha existido a propriedade privada do paterfamilias, a qual, com a morte deste, era transmitida aos seus herdeiros, bem como a propriedade coletiva das terras conquistadas, as quais eram distribuídas pelo Estado aos particulares ou passavam à propriedade do paterfamilias mediante a posse continuada durante dois anos 13 . São referidas quatro espécies de propriedade: propriedade quiritária, propriedade pretoriana ou bonitária, propriedade provincial e propriedade peregrina. A propriedade quiritária 14 (ius quiritium) era exclusiva dos cidadãos 10 Vandick L. da Nóbrega discorre a respeito das duas correntes a respeito da origem da propriedade: “Fustel de Coulanges admitia a propriedade individual desde os tempos primitivos, havendo mantido célebre polêmica com Paul Viollet, que defendia a tese da apropriação coletiva do solo” (Compêndio de direito romano. 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1971. Volume II, p. 58). 11 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de direito civil: direito das coisas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1962. Volume VI, p. 233; Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 20ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. 4º volume, p. 109; Caio Mário da Silva Pereira. Direitos reais, cit., p. 82. 12 Sílvio A. B. Meira afirma que a existência dessa espécie de propriedade não pôde ser demonstrada e que não houve sinais de loteamentos periódicos ou de partilha entre as famílias que compunham a gens (Instituições de direito romano. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1968, p. 216). 13 Ebert Chamoun. Instituições de direito romano. Rio de Janeiro: Edição Revista Forense, 1951, p. 220; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 216. 14 De acordo com Sílvio A. B. Meira, o antigo direito romano somente admitia essa espécie de propriedade – dominium ex jure Quiritium –, que era protegida por uma ação civil in rem, a reivindicatio. Também conforme o doutrinador, primitivamente a propriedade quiritária era apenas o ager romanus, e foi estendida às terras do Tibur e à costa do Latium pela Lei das XII Tábuas, e posteriormente estendida a toda à Itália por uma série de outras leis (Instituições, cit., p. 215 e 217). 4 romanos 15 e a única reconhecida pelo ius civile. Aplicava-se apenas às coisas romanas e somente podia ser transmitida por uma das modalidades admitidas pelos romanos 16 . A propriedade pretoriana ou bonitária teve como origem a permissão do pretor para que alguém que não tivesse direito reconhecido à propriedade quiritária conservasse uma determinada coisa no seu patrimônio. Tratando-se de res mancipi, a propriedade quiritária somente se transferia pela mancipatio ou pela in iure cessio. Se nenhuma dessas modalidades fosse obedecida na alienação da res mancipi, a propriedade quiritária não era transferida, ou seja, o adquirente não se tornava proprietário ex iure Quiritium, embora houvesse pago o preço. Nesse caso, o pretor reconhecia a validade da alienação feita em desacordo com as formalidades e o adquirente se tornava proprietário pretoriano 17 . Com o tempo, surgiram outras hipóteses de aquisição da propriedade pretoriana ou bonitária 18 . Por meio da posse prolongada e da utilização do instituto da usucapião, a propriedade pretoriana podia se tornar quiritária, razão pela qual – a 15 Vandick L. da Nóbrega afirma que a propriedade quiritária era excepcionalmente permitida a um peregrino, desde que por um tratado lhe fosse permitido possuir bens romanos (Compêndio, cit., p. 64). 16 Tratando-se de res mancipi, a propriedade quiritária deveria ser transmitida por um dos processos solenes de aquisição, que eram a mancipatio ou a in iure cessio. Tratando-se de res nec manicipi, a simples traditio ensejava a propriedade quiritária. Conferir o item 3.1. 17 Ebert Chamoun leciona que a propriedade pretoriana nasceu da iniciativa do pretor com a finalidade de corrigir a rigidez do ius civile (Instituições, cit., p. 221). 18 A aquisição em bloco do patrimônio do falido; a aquisição da herança por determinação do pretor e não em decorrência da aplicação do ius civile; a aquisição da posse do prédio que ameaçava ruína, garantida pelo pretor ao vizinho ameaçado no caso de o proprietário não prestar a caução exigida; a aquisição do escravo que cometia um crime e cujo senhor se recusava a pagar a multa correspondente (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 222; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 65-66; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 218). 5 propriedade pretoriana – era considerada uma propriedade temporária 19 . A propriedade provincial alcançava os bens localizados em solo itálico e nas províncias, que não eram inicialmente considerados romanos porque se encontravam fora de seu território delimitado. Por meio de uma lei agrária do ano de 111 os bens itálicos foram equiparados aos romanos e considerados, a partir de então, res mancipi, passíveis de propriedade ex iure Quiritium 20 . Os bens provinciais pertenciam ao Estado, mas eram ocupados e utilizados pelos particulares, que pagavam impostos ao senado nas províncias senatoriais e ao imperador nas províncias imperiais. A propriedade provincial não era transmitida pela mancipatio, mas exclusivamente pela traditio. 21 A propriedade peregrina era amparada pelo jus gentium e garantida àqueles que não eram cidadãos romanos 22 . Durante a época justinianéia, a propriedade foi unificada para todos os bens e para todos os cidadãos, em todo o Império Romano 23 . 19 Enquanto não decorrido o prazo para a usucapião, o bem tinha dois proprietários: o alienante continuava proprietário – quiritário – perante o ius civile, mas conservava apenas o nudum ius Quiritium, que constituía um título desprovido de qualquer utilidade (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 65); o adquirente – proprietário pretoriano ou bonitário – exercia todos os direitos sobre a coisa, inclusive o de percepção dos frutos, mas não podia aliená-la (Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 218). 20 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 222. 21 Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 219. 22 O jus civile reconhecia apenas a propriedade quiritária e exclusivamente aos cidadãos romanos. 23 Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 220. 6 1.2.2 – Propriedade no direito brasileiro 1.2.2.1 – Definição e caracteres Clovis Bevilaqua define propriedade como o poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida psíquica e moral 24 . Tito Fulgêncio afirma que propriedade é “o direito que tem uma pessoa de tirar diretamente de uma coisa toda a sua utilidade jurídica” 25 . Orlando Gomes, citando Windscheid, leciona que a propriedade pode ser conceituada à luz dos critérios sintético, analítico e descritivo. Pelo critério sintético, propriedade é a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Pelo critério analítico, propriedade é o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. E pelo critério descritivo, propriedade é o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei 26 . Diversas e não consensuais as definições, é consenso que a propriedade é o direito real por excelência. Daí por que Caio Mário da Silva Pereira afirma que “a propriedade é o direito subjetivo padrão, dado que confere ao sujeito toda uma gama de poderes, e encontra na ordem jurídica toda sorte de proteções: a Constituição Federal o assegura, o Direito Civil o desenvolve, o Direito Processual oferece as ações defensivas, o Direito Penal pune os atentados contra a 24 Clovis Bevilaqua. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1951. 1º volume, p. 116. 25 Tito Fulgêncio. Direitos de vizinhança. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1959, p. 7. 26 Orlando Gomes. Direitos reais. 19ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 109. 7 propriedade, o Direito Administrativo disciplina vários dos seus aspectos” 27 . O legislador brasileiro fez a opção de, em vez de conceituar a propriedade, descrever de forma analítica os seus elementos constitutivos, ou os poderes do proprietário (ius utendi, fruendi, abutendi e vindicatio) 28 . O direito de uso do bem objeto da propriedade consiste na possibilidade de o bem ser colocado à disposição do seu titular, que lhe pode retirar todos os serviços, sem alterar-lhe a substância. Ao titular são facultadas as possibilidades de utilizar o bem em seu próprio proveito ou em proveito de terceiro, bem como a possibilidade de não usá-lo, mantendo-o inerte 29 . O direito de fruição “consiste em fazer frutificar a coisa e auferir-lhe os produtos” 30 , sejam estes os que advêm naturalmente da coisa, como a safra de laranjas ou a colheita de flores, ou os frutos civis, como o valor dos aluguéis de um veículo. O direito de disposição do bem abrange a possibilidade de consumilo, alterá-lo ou transformá-lo em outro bem, assim como abrange a possibilidade de aliená-lo a qualquer título – como, por exemplo, a partir do título consistente em um contrato de compra e venda, de permuta ou de doação – e, por fim, até mesmo de destruí-lo, desde que a destruição não possa ser caracterizada como procedimento 27 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições: direitos reais, cit., p. 115. 28 Código Civil, Art. 1228. “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” 29 Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 118. 30 Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil: direito das coisas. 37ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 3, p. 87. 8 anti-social 31 . O direito de reivindicação consiste na possibilidade de o proprietário retomar o bem daquele que injustamente a possua ou detenha. Assim, por exemplo, pode o proprietário locador pleitear a restituição do veículo ao final do contrato de locação, bem como pode o proprietário do animal, ao final do contrato de prestação de serviços e mediante o comprovado pagamento, pleitear a restituição do referido animal contra o profissional que o detém após o encerramento dos trabalhos de domesticação. Adotamos a definição analítica do Código Civil, sob o fundamento de que as demais definições enfatizam uma ou algumas características do direito de propriedade, mas não permitem a sua consideração integral. Considera-se que a multiplicidade e a complexidade dos elementos constitutivos da propriedade impedem o seu delineamento senão pela sua própria análise, a identificar e definir cada uma das facetas do direito em questão. Definido o termo propriedade, consideram-se os seus caracteres de absoluto, exclusivo e perpétuo. Por absoluto deve-se entender que o direito de propriedade permite ao seu titular usar o bem e de dispor dele como o quiser, assim como lhe permite a sua oposição erga omnes. Deve-se ter em conta que o caráter absoluto há de ser considerado mediante a utilização do bem de acordo com a sua própria utilidade e com as limitações que impedem, quanto a todos os institutos, o abuso do direito 32 . 31 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições: direitos reais, cit., p. 95. Sílvio da Salvo Venosa afirma que o termo abutendi, do direito romano, dá a falsa idéia de abuso, de poder ilimitado, razão pela qual o verbo utilizado pelo Código Civil brasileiro – dispor – é mais adequado (Direitos reais, cit., p. 179180). 32 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 253. 9 A exclusividade da propriedade decorre do princípio de que um bem não pode pertencer exclusiva e simultaneamente a mais de uma pessoa 33 . Nesse sentido, a oponibilidade erga omnes é caracterizada como um atributo do caráter da exclusividade 34 . O condomínio não enseja a desconsideração da característica da exclusividade, considerando-se que cada condômino ou co-proprietário é, conjuntamente com os demais, titular do direito de propriedade. O condomínio implica uma divisão abstrata da propriedade 35 . Mas a exclusividade comporta modificações, pois é possível o desmembramento de parcelas da propriedade e a concessão dessas parcelas a terceiros. É o que se dá no caso do usufruto, em que o nu proprietário mantém o domínio e a posse indireta do bem, enquanto o usufrutuário mantém a sua posse direta 36 . Quanto ao caráter de perpetuidade da propriedade, considera-se que não há prazo para ser exercida 37 . Ou seja, adquirida a propriedade, esta subsiste independentemente do seu exercício e, como regra, não pode ser perdida senão pela vontade do proprietário ou mediante causa extintiva legal 38 . 33 O condomínio ou a co-propriedade não enseja a desconsideração da característica da exclusividade, considerando-se que cada condômino ou co-proprietário é, conjuntamente com os demais, titular do direito de propriedade. 34 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 254. 35 Almachio Diniz. Direito das cousas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1923, p. 94. 36 Art. 1394 do Código Civil. “O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos”. 37 Almachio Diniz. Direito das cousas, cit., p. 93. 38 Como se dá nos casos de usucapião e de desapropriação. 10 1.2.2.2 – Espécies de propriedade Reunidos todos os poderes de proprietário em uma única pessoa, a propriedade é denominada plena. Para que se a reconheça, é preciso que o proprietário tenha a possibilidade de usar, gozar e dispor da coisa de maneira absoluta, exclusiva e perpétua, bem como de reivindicá-la de quem quer que injustamente a detenha. Mas a propriedade pode ser desmembrada, de forma que alguns dos poderes que lhe são em princípio inerentes sejam reconhecidos em mãos de outrem. Quanto à extensão, a propriedade será limitada nos casos de constituição de direito real sobre coisa alheia. Instituídos o usufruto, a servidão e a hipoteca, por exemplo, o nu proprietário, o proprietário do prédio serviente e o proprietário do imóvel hipotecado têm seus direitos de propriedade restringidos pelos poderes conferidos aos terceiros mediante a constituição dos ônus referidos. Além dos casos de direitos reais sobre coisas alheias, também haverá propriedade limitada no caso de propriedade gravada com cláusula de inalienabilidade, caso em que o titular da propriedade não poderá dispor livremente do bem 39 . Quanto à duração, o caráter de perpetuidade será afastado nos casos de propriedade resolúvel, que pode ser definida como a que encontra no seu próprio título constitutivo a razão de sua extinção 40 . 39 Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 125; Silvio Rodrigues. Direito civil: direito das coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 5, p. 83. 40 Silvio Rodrigues. Direito civil: direito das coisas, cit., p. 83. 11 Trata-se de propriedade sujeita a condição resolutiva ou termo final, já previstos no título que a constituíra e, portanto, passíveis de conhecimento por terceiros. 41 Implementada a condição ou advindo o termo, extingue-se, com efeitos ex tunc, a propriedade constituída sob tais circunstâncias, bem como, em conseqüência, todos os direitos reais eventuais constituídos na sua vigência. Ou seja, extinta a propriedade resolúvel, reconhece-se ao proprietário o direito de reivindicar o bem de quem quer o detenha 42 . São hipóteses de propriedade resolúvel a propriedade do fiduciário, no fideicomisso 43 , e do comprador, no caso de inclusão de cláusula especial de retrovenda no contrato de compra e venda de bem imóvel 44 . A extinção da propriedade também pode se dar por causa superveniente à sua aquisição e, portanto, alheia ao título 45 , com conseqüências distintas. Porque se presume que terceiros não tenham conhecimento da possibilidade, a resolução da propriedade se opera a partir do ato que a determinou, com efeitos ex nunc. Nesse caso, os direitos constituídos anteriormente à resolução 41 Em se tratando de propriedade mobiliária, o título em que consta a cláusula respectiva deverá ser registrado junto ao Ofício de Registro de Títulos e Documentos. 42 Código Civil, Art. 1359. “Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha.” 43 Código Civil, Art. 1951. “Pode o testador instituir herdeiros ou legatários, estabelecendo que, por ocasião de sua morte, a herança ou o legado se transmita ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste, por sua morte, a certo tempo ou sob certa condição, em favor de outrem, que se qualifica de fideicomissário.”; Art. 1953 do Código Civil. “O fiduciário tem a propriedade da herança ou legado, mas restrita e resolúvel. Parágrafo único. O fiduciário é obrigado a proceder ao inventário dos bens gravados, e a prestar caução de restituí-los se o exigir o fideicomissário.” 44 Código Civil, Art. 505. “O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do comprador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escrita, ou para a realização de benfeitorias necessárias.” 45 Edson Fachin, atualizador de Orlando Gomes, afirma que a hipótese de extinção da propriedade fundada em causa superveniente à aquisição não constitui caso de propriedade resolúvel (Orlando Gomes. Contratos. 21ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 114). 12 da propriedade são válidos e eficazes, o que gera a conclusão de que a transmissão da propriedade a terceiro de boa-fé é reputada perfeita. É o que se dá na hipótese de revogação da doação por ingratidão do donatário. Ao doador somente se reconhece o direito ao próprio objeto da doação se esse bem ainda permanecer na titularidade do donatário; caso contrário, a revogação ensejará exclusivamente o direito à indenização pelo valor do bem doado e alienado pelo donatário a terceiro de boa-fé 46 . 1.3 – Propriedade e domínio Maria Helena Diniz leciona sobre o sentido etimológico do termo propriedade e sobre a utilização dos termos propriedade e domínio no sistema de direito brasileiro: “Para uns o vocábulo vem do latim proprietas, derivado de proprius, designando o que pertence a uma pessoa. Assim, a propriedade indicaria, numa acepção ampla, toda relação jurídica de apropriação de um certo bem corpóreo ou incorpóreo. Outros entendem que o termo propriedade é oriundo de domare, significando sujeitar ou dominar, correspondendo à idéia de domus, casa, em que o senhor da casa se denomina dominus. Logo, domínio seria o poder que se exerce sobre as coisas que lhe estiverem sujeitas. Percebe-se que, no direito romano, a palavra dominium tinha um sentido mais restrito do que a propriedade, indicando a primeira tudo que pertencia ao chefe da casa, mesmo que se tratasse de um 46 Código Civil, Art. 557. “Podem ser revogadas por ingratidão as doações: I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; II - se cometeu contra ele ofensa física; III - se o injuriou gravemente ou o caluniou; IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava”; Art. 563. “A revogação por ingratidão não prejudica os direitos adquiridos por terceiros, nem obriga o donatário a restituir os frutos percebidos antes da citação válida; mas sujeita-o a pagar os posteriores, e, quando não possa restituir em espécie as coisas doadas, a indenizá-la pelo meio termo do seu valor.” 13 usufruto, e tendo a segunda uma acepção mais ampla, abrangendo coisas corpóreas ou incorpóreas. Apesar da distinção que há entre esses dois termos, emprega-se, comumente, tanto o vocábulo propriedade como domínio para designar a mesma coisa, uma vez que entre eles não há diferença de conteúdo” 47 . De Plácido e Silva define propriedade e domínio respectivamente como gênero e espécie: “Propriedade é o gênero – que compreende o domínio como espécie –, abrangendo toda sorte de dominialidades, de dominação ou de senhoria individual sobre coisas corpóreas ou incorpóreas. É o conjunto de direitos reais e pessoais. Domínio, no entanto, compreende somente os direitos reais, ou seja, o direito de propriedade encarado somente em relação às coisas materiais ou corpóreas.” 48 Também ressaltando as concepções de gênero e espécie, Washington de Barros Monteiro destaca duas acepções do direito de propriedade: “Num sentido amplo, este recai tanto sobre coisas corpóreas como incorpóreas. Quando recai exclusivamente sobe coisas corpóreas tem a denominação peculiar de domínio. A noção de propriedade mostra-se, destarte, mais ampla e mais compreensiva do que a de domínio. Aquela representa o gênero de que este vem ser a espécie.” 49 Para Lafayette Rodrigues Pereira, o direito de propriedade, em sentido genérico, abrange todos os direitos que podem ser reduzidos a valor pecuniário, e que em sentido estrito tem por objeto direto ou imediato as coisas corpóreas. Afirma que na última acepção se o reconhece como domínio, definido 47 Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 116. 48 De Plácido e Silva. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1984. Volume I, p. 123. 49 Washington de Barros Monteiro. Curso: direito das coisas, cit., p. 83. 14 este como “o direito real que vincula e legalmente submete ao poder absoluto de nossa vontade a coisa corpórea, na substância, acidente e acessórios” 50 . João Franzen de Lima afirma que, embora propriedade e domínio possam exprimir a mesma idéia, não se pode afirmar tenham o mesmo significado. “(Q)uando se fala em domínio está-se referindo, de modo geral, aos direitos reais, e quando se fala em propriedade, refere-se ao conjunto de todos os direitos que a pessoa exerce sobre as coisas corpóreas e ainda sobre as incorpóreas” 51 . Considerado o consenso dos doutrinadores quanto à afirmação de que o termo propriedade se refere tanto a bens corpóreos quanto a bens incorpóreos, enquanto o termo domínio se refere apenas a bens corpóreos, e tendo em conta o objetivo do presente trabalho, de estudo da transmissão da propriedade de bens móveis corpóreos, os termos propriedade e domínio são utilizados como sinônimos. 1.4 – Coisa e bem A definição de coisa e de bem enseja ampla discussão entre os doutrinadores brasileiros, não se podendo afirmar a existência de um consenso a respeito da definição e da classificação dos termos considerados entre si. Clóvis Bevilaqua afirma a distinção dos termos, mediante a definição de bens como “valores materiais ou imateriais que servem de objeto a uma relação jurídica”. E “(a) palavra coisa, ainda que, sob certas relações, corresponda, na 50 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1956, p. 78. 51 João Franzen de Lima. Curso de direito civil brasileiro: contratos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1961. Volume II. Tomo 2º, p. 88. 15 técnica jurídica, ao termo bem, todavia dele se distingue. Há bens jurídicos, que não são coisas: a liberdade, a honra, a vida, por exemplo” 52 . Afirma Sílvio Rodrigues que coisa é o gênero do qual bem é espécie, sendo que a diferença específica está na circunstância de o bem incluir na sua compreensão a idéia de utilidade e raridade, ou seja, a idéia de possuir valor econômico, o que não acontece com a coisa, que pode ser conceituada como tudo o que existe objetivamente 53 . Renan Lotufo afirma, diversamente, que “(b)em é gênero do qual coisa é espécie”, sendo que “as coisas são materiais, têm concretude, enquanto ao bem é reservada uma idéia mais ampla de objeto da relação jurídica, para designar também o imaterial, o abstrato” 54 . E adverte que o termo “(b)ens muitas vezes é utilizado como sinônimo de coisas, mas a palavra bens tem sentido mais amplo, pois refere-se tanto a coisas como a direitos, e pode chegar a ter o sentido de patrimônio” 55 . Caio Mário da Silva Pereira distingue os termos coisas e bens considerando a materialidade das coisas: “As coisas são materiais ou concretas, enquanto que se reserva para designar os imateriais ou abstratos o nome bens, em sentido estrito. Uma casa, um animal de tração são coisas porque concretizados cada um em uma unidade material e objetiva, distinta de qualquer outra. Um direito de crédito, uma faculdade, embora defensável ou protegível pelos remédios jurídicos 52 Clovis Bevilaqua. Teoria geral do direito civil. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo, 1955, p. 152. 53 Silvio Rodrigues. Direito civil: parte geral, cit., p. 110. 54 Renan Lotufo. Código Civil comentado: parte geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. Volume 1, p. 197 e 200. 55 Renan Lotufo. Código Civil: parte geral, cit., p. 200. 16 postos à disposição do sujeito em caso de lesão, diz-se com maior precisão, ser um bem. Sob o aspecto de sua materialidade é que se faz a distinção entre a coisa e o bem.” 56 Washington de Barros Monteiro cita Scuto para referir a equivocidade dos dois conceitos: “O conceito de coisas corresponde ao de bens, mas nem sempre há perfeita sincronização entre as duas expressões. Às vezes, coisas são o gênero e bens, a espécie; outras, estes são o gênero e aquelas, a espécie; outras, finalmente, são os dois termos usados como sinônimos, havendo então entre eles coincidência de significação.” 57 Ainda de acordo com Washington de Barros Monteiro, a palavra coisa pode ser entendida, no sentido vulgar ou genérico, como tudo o que existe fora ou além do homem e, no sentido jurídico, como tudo quanto seja suscetível de posse exclusiva pelo homem e economicamente apreciável 58 . Para os fins do presente trabalho, os termos bens e coisas são utilizados como sinônimos. 1.5 – Bens imóveis e bens móveis A classificação dos bens em imóveis e móveis não é consenso entre os estudiosos do direito romano. O estudo dos bens no direito romano deve ter como ponto de partida 56 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Teoria geral, cit., p. 401-402. 57 Carmelo Scuto. Instituzioni di diritto privato: Parte generale, volume 1, p. 291 APUD Washington de Barros Monteiro. Curso: parte geral, cit., p. 168. 58 Washington de Barros Monteiro. Curso: parte geral, cit., p. 169. 17 a distinção entre res mancipi e res nec manicipi. Pode-se dizer que res mancipi são as coisas do mancipium, enquanto res nec mancipi são as coisas que não são do mancipium 59 . O critério para a classificação não levava em conta a circunstância de a coisa ser imóvel ou móvel, mas sim a sua utilidade 60 . Consideravam-se res mancipi os bens que eram indispensáveis à manutenção da família e tinham valor para a organização agrícola da Roma antiga, como os imóveis itálicos, as servidões de passagem e de aqueduto, os animais de tiro e de carga e os instrumentos de cultivo e transporte. Todos os demais bens eram res nec mancipi, independentemente de serem móveis ou móveis, como o dinheiro, o gado pequeno e os imóveis provinciais 61 . As res mancipi obedeciam a uma disciplina própria, especialmente para fins de alienação, que se dava somente mediante a mancipatio, diversamente das res nec mancipi, cuja alienação se dava pela traditio, modo mais simples e rápido (conferir 2.1). A evolução de Roma, com as conquistas de novos territórios, ensejou o desenvolvimento da economia individual e capitalista 62 , que passou a atribuir maior valor aos bens imóveis, que geravam maior garantia de estabilidade. No lugar da distinção entre res mancipi e res nec manicipi 63 , desenvolveu-se a divisão entre bens imóveis e móveis, classificados como imóveis os terrenos e os 59 Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 25. 60 Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 142. 61 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 204; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 141-142. O segundo doutrinador inclui entre as res mancipi os escravos. 62 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 205. 63 A distinção foi abolida completamente por Justiniano. 18 edifícios e como móveis todos os demais bens 64 . Conforme Roberto de Ruggiero, embora a classificação dos bens em imóveis e móveis tenha sido delineada em Roma nos períodos pós-clássico e justiniano, o seu valor decisivo somente foi reconhecido por influência do direito medieval e especialmente do direito feudal, em razão da atribuição de importância absolutamente preponderante à propriedade fundiária, como elemento essencial da riqueza e modo de conquista de poderes senhoriais, o que ensejou à propriedade mobiliária uma posição secundária, justificada pelas condições econômicas da sociedade da época em que, ainda não desenvolvidas as indústrias e sendo limitada a produção de metais preciosos, as grandes riquezas não podiam, como regra, ser constituídas por valores mobiliários 65 . San Tiago Dantas fundamenta a razão pela qual a propriedade imobiliária teve e continua a ter tratamento diferenciado nos diversos sistemas de direito: “Não é porque as coisas móveis sejam menos preciosas que as imóveis, pois considerado o seu valor pecuniário, móveis há de mais alto preço que os mais valiosos imóveis. Porém, o direito atende, nesse caso, à estabilidade da fortuna imobiliária. É que os bens imóveis não desaparecem, constituem um fundo estável do patrimônio, são mais fáceis de fiscalizar e tutelar. Não se poderia, por exemplo, pensar, com êxito, num registro para propriedade móvel e, quando, por exemplo, estamos tratando de bens de órgãos, de bens de pessoas que não podem defender por si próprias o seu patrimônio, o natural é que pensemos em lhes imobilizar a fortuna, para pô-la ao abrigo das dilapidações. De sorte que o regime da 64 De acordo com Ebert Chamoun, foi criada uma categoria própria para os escravos e os animais, classificados como res se moventes (Instituições, cit., p. 205). 65 Roberto de Ruggiero. Instituições de direito civil. Campinas: Bookseller, 2005. Volume II, p. 426. 19 propriedade imobiliária não pode deixar de ser cercado de tutela especial, de recursos defensivos que dão a estes bens uma situação à parte no quadro das coisas” 66 . Os bens imóveis podem ser classificados em quatro categorias: os imóveis por natureza, os imóveis por acessão física, industrial ou artificial, os imóveis por acessão intelectual e os imóveis por determinação legal. Primordialmente, apenas o solo poderia ser classificado como bem imóvel por natureza, já que a sua conversão em móvel somente seria possível mediante a modificação de sua substância. Mas o legislador ampliou o conceito e incluiu os acessórios e as adjacências naturais, as árvores, os frutos pendentes, o espaço aéreo e o subsolo 67 . As árvores e tudo o mais que adere ao terreno somente permanecem imóveis porque normalmente se lhe ligam, e é exatamente essa normalidade que se considera para fins da classificação estendida da forma como é reconhecida 68 . Quanto ao subsolo, embora seja classificado como bem imóvel passível de propriedade privada, recebe tratamento especial e a sua exploração depende de autorização da União, já que as riquezas minerais nele encontradas são 66 San Tiago Dantas. Programa de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001. Volume I, p. 187. José Cretella Júnior afirma que a classificação romana dos bens em res mancipi e res nec mancipi tinha critério econômico, bem como que no direito brasileiro antigo também se fazia uma distinção fundada no mesmo critério econômico, mas entre os bens imóveis, mais valiosos, e os bem móveis, menos valiosos (Curso de direito romano. 24ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 110). 67 Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 21ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. 1º volume, p. 300. 68 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria Geral, cit., p. 416. 20 de propriedade desta 69 . Os imóveis por acessão física compreendem tudo o quanto se incorpora permanentemente ao solo, de modo que não se possa retirar sem destruição, modificação, fratura ou dano. A acessão pode se dar independentemente do consentimento ou intervenção de pessoas, como ocorre nos casos do artigo 1.248, incisos I a IV, do Código Civil 70 , ou mediante a intervenção humana, no caso do inciso V do mesmo dispositivo legal 71 . Não são incluídas nessa classe de bens as construções ligeiras, estas consideradas aquelas que se destinam a posterior remoção ou retirada, como as barracas de feira, os pavilhões de circos e os parques de diversões, que são presos ao chão por estacas, mas que para a própria continuidade de sua utilização normal devem ser retirados e conduzidos para outro local 72 . Os imóveis por acessão intelectual são os bens móveis mantidos pelo proprietário, de forma duradoura e intencional, na exploração industrial, no aformoseamento ou na comodidade do imóvel. Diversamente do que se dá na 69 Constituição Federal, “Artigo 20: São bens da União: (...) IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo. Artigo 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º. A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa da fronteira ou terras indígenas. § 2º. É assegurada participação ao proprietário do solo nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei. § 3º. A autorização de pesquisa será sempre por prazo determinado, e as autorizações e concessões previstas neste artigo não poderão ser cedidas ou transferidas, total ou parcialmente, sem prévia anuência do poder concedente. § 4º. Não dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do potencial de energia renovável de capacidade reduzida”. 70 Código Civil, Artigo 1.248. “A acessão pode dar-se: I - por formação de ilhas; II - por aluvião; III por avulsão; IV - por abandono de álveo; (...)”. 71 Código Civil, Artigo 1.248 “A acessão pode dar-se: “V - por plantações ou construções”. 72 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria geral, cit., p. 416-7. 21 acessão física, no caso da acessão intelectual não se dá uma adesão material do bem móvel ao imóvel, mas sim o estabelecimento de um vínculo meramente subjetivo. Ainda, porque a consideração de um bem móvel como bem imóvel ocorre como um artifício da mente humana, o caráter imóvel não é definitivo, ou seja, a mesma vontade humana que considerou o bem móvel como imóvel pode retorná-lo a todo tempo à sua mobilidade natural. Enquanto Serpa Lopes afirma que, para que se dê a acessão intelectual, é preciso que se trate de coisa móvel de propriedade do proprietário do imóvel 73 , Caio Mário da Silva Pereira afirma que tal premissa não se aplica ao direito brasileiro, verificando-se a acessão mesmo quando os proprietários são diferentes, hipótese em que se opera a perda da propriedade móvel em favor do proprietário do imóvel, com direito a indenização pelo valor da coisa móvel imobilizada sempre que o responsável pela imobilização estiver de boa-fé e sem nenhum direito em caso contrário 74 . Por fim, são imóveis por determinação legal os direitos reais sobre imóveis (usufruto, uso, habitação, enfiteuse, anticrese e servidão predial) e as ações que os asseguram, bem como o direito à sucessão aberta, ainda que a herança seja formada exclusivamente por bens móveis. Quanto aos bens móveis, são classificados em três categorias: os móveis por natureza, os móveis para os efeitos legais – ou por determinação legal – e os móveis por antecipação. Os bens móveis por natureza são definidos pelo artigo 82 do Código 73 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de direito civil: parte geral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1962. Volume I, p. 361-2. 74 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria geral, cit., p. 418. 22 Civil: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”. Entre os bens móveis por natureza, os bens móveis propriamente ditos são as coisas inanimadas que podem ser removidas por força alheia sem a alteração de sua substância e de sua destinação econômico-social 75 . A possibilidade de remoção por força alheia sem alteração da destinação econômico-social do bem móvel enseja a classificação, como móvel, de uma casa pré-fabricada, enquanto à mostra para comercialização e mesmo durante o seu transporte até o local em que será adaptada na fundação construída pelo adquirente. Apenas após o assentamento adquirirá natureza de imóvel, pois somente então passará a ter nova destinação econômico-social, a habitação 76 . Também são classificados como bens móveis por natureza os animais, como semoventes, ou seja, bens que se movem de um local para outro por movimentos próprios. O artigo 83 do Código Civil trata dos bens móveis para os efeitos legais – ou por determinação legal – ao referir “I - as energias que tenham valor econômico; II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações”. Quanto às energias que tenham valor econômico, a sua 75 Os navios e aeronaves são bens móveis por natureza, mas podem ser imobilizados para fins de hipoteca, que é direito real de garantia sobre imóveis (artigo 1473, incisos VI e VII, do Código Civil). O parágrafo único do dispositivo legal remete a regulamentação da matéria a lei especial, que, no caso da hipoteca de aeronaves, é o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7565/86), artigos 138 a 147. 76 Renan Lotufo. Código Civil: parte geral, cit., p. 217. 23 classificação como bem móvel constituiu inovação do Código Civil de 2002 77 , embora desde 1940 exista manifestação da Comissão elaboradora do Código Penal equiparando-a a coisa móvel para os fins da previsão do artigo 155, parágrafo 3º, do Código Penal 78 . De acordo com o texto, “(t)oda energia economicamente utilizável e suscetível de incidir no poder de disposição material e exclusiva e um indivíduo, pode ser incluída, mesmo do ponto de vista técnico, entre as coisas móveis, a cuja regulamentação jurídica, portanto, deve ficar sujeita” 79 . Os direitos reais sobre objetos móveis (inciso II) abrangem tanto os direitos reais sobre coisa própria (como a propriedade) e alheia (como o usufruto), como os direitos reais de garantia (como o penhor e a hipoteca), além das ações correspondentes a tais direitos. Entre os direitos pessoais de caráter patrimonial (inciso III) 80 , estão as quotas de capital ou ações que o indivíduo tenha em sociedade de qualquer natureza (simples, em nome coletivo ou por quotas de responsabilidade limitada, em comandita, anônima ou cooperativa), os títulos patrimoniais de associações e os títulos de crédito 81 . São também bens móveis para os efeitos legais (ou por 77 O Código Civil de 2002 excluiu da previsão da classificação dos bens móveis por determinação legal os direitos de autor, que foram regulamentados pela Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. 78 “Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”. 79 Francisco Campos. Exposição de motivos da Parte Especial do Código Penal, DJU de 31 de dezembro de 1940. 80 Caio Mário da Silva Pereira sustenta que o termo direitos pessoais constitui terminologia superada e inadequada, e que o termo correto a ser utilizado pelo Código Civil seria direitos de crédito de caráter patrimonial (Instituições. Teoria geral, cit., p. 425). 81 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Teoria geral, cit., p. 425. 24 determinação legal) os direitos autorais (artigo 3º da Lei n.º 9.610/98 82 ) e os direitos decorrentes da propriedade industrial (artigo 5º da Lei n.º 9.279/96 83 ). Para os fins do presente trabalho, são considerados exclusivamente os bens móveis por natureza. 82 Art. 3º. “Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis”. 83 Art. 5º. “Consideram-se bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de propriedade industrial”. 25 Capítulo 2 – Modos de aquisição da propriedade mobiliária Os modos de aquisição da propriedade mobiliária, à exceção da tradição, não ensejam grandes controvérsias nos diversos sistemas de direito. Como regra geral, são reconhecidos a partir do direito romano e apresentam a mesma definição e as mesmas características fundamentais. Para fins de apresentação 84 como segue, serão considerados inicialmente os modos de aquisição da propriedade mobiliária reconhecidos pelo 84 A classificação considerada principal quanto aos modos de aquisição da propriedade mobiliária os diferencia entre modos de aquisição da propriedade móvel originários e derivados. Essa distinção tem por fundamento a existência ou inexistência de relação entre os sujeitos de direito precedente e conseqüente (Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 161). Darcy Bessone afirma que a aquisição é considerada originária nos casos em que o adquirente é o primeiro proprietário, ou seja, nos casos em que o direito de propriedade nasce da primeira aquisição (Darcy Bessone. Direitos reais. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1996, p. 164). Carlos Alberto da Mota Pinto define a aquisição originária como o fato jurídico que faz surgir, na pessoa do adquirente, um direito de propriedade ex novo, independentemente de ter existido domínio anterior sobre a coisa ou apesar de ter existido esse domínio (Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria geral do direito civil. 3ª ed. Lisboa: Coimbra Editora, 1985, p. 360.). Miguel Maria de Serpa Lopes define a aquisição originária como aquela que surge “no titular do domínio sem que para ela tenha concorrido qualquer outro fator de transmissão que não o próprio fato considerado legalmente como apto a transmitir o domínio. Na aquisição originária, o domínio nasce, por assim dizer, sem qualquer relação de paternidade, sem qualquer vínculo de parentesco com o passado” (Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 506). Maria Helena Diniz acrescenta que na aquisição originária não existe qualquer ato volitivo de transmissão da propriedade (Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 304). Por sua vez, diz-se que a aquisição é derivada nos casos em que o direito deriva de um proprietário anterior. Considera-se a coisa em função de seu dono atual, ou seja, tem-se em conta a titularidade do domínio em relação a outra pessoa que já era proprietária dessa mesma coisa e que transmitiu a propriedade ao adquirente então considerado (Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 116). No Brasil, são considerados modos de aquisição da propriedade mobiliária originários a usucapião, com a consignação da posição divergente de Caio Mário da Silva Pereira (conferir nota 86), e a ocupação. E são considerados modos de aquisição da propriedade mobiliária derivados a especificação, a confusão, a comistão e a adjunção, o casamento, a sucessão e a tradição. Além da classificação dos modos de aquisição da propriedade mobiliária em originários e derivados, há diversas outras classificações, como a que leva em conta a distinção dos bens, classificados em modos de aquisição peculiares aos bens móveis, peculiares aos bens imóveis e comuns aos bens móveis e imóveis; a que leva em conta a individualização dos bens, classificados em modos de aquisição a título singular e a título universal; e a que leva em consideração as circunstâncias da transmissão, classificados em modos aquisição inter vivos e causa mortis. A respeito das diversas classificações, conferir: Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1956, p. 25-294. Tomo XV; Orlando Gomes. Direitos Reais, cit., p. 159-162; Maria Helena Diniz. Curso – Direito das Coisas, cit., p. 132-133; Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos Reais, cit., p. 115-119; Silvio Rodrigues. Direito Civil: Direito das Coisas, cit., p. 92-93. 26 sistema de direito brasileiro e pelos sistemas de direito estrangeiros 85 , com as referências legislativas pertinentes ao sistema nacional. A tradição será estudada à parte, por se tratar de modo de aquisição exigido por alguns sistemas de direito e rejeitado por outros, o que a converte no grande diferencial a ser considerado para fins de aquisição da propriedade mobiliária. 2.1 – Modos universais de aquisição da propriedade mobiliária 2.1.1 – Usucapião Usucapião 86 é “a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei” 87 . O fundamento do instituto consiste em “emprestar juridicidade a situações de fato que se alongaram no tempo” 88 . São requisitos da usucapião a posse e o tempo. 85 Por sistemas de direito estrangeiros devem ser entendidos os sistemas de direito vigentes alemão, francês e inglês, além do sistema romano. 86 A título de consignação, quanto à classificação dos modos de aquisição da propriedade mobiliária originários e derivados, Caio Mário da Silva Pereira diverge da grande maioria dos doutrinadores brasileiros e afirma que a usucapião constitui modo de aquisição derivada da propriedade, “porque é modalidade aquisitiva que pressupõe a perda do domínio por outrem, em benefício do usucapiente”, ou seja, considerada “a circunstância de ser a aquisição por usucapião relacionada com outra pessoa que já era proprietária da mesma coisa, e que perde a titularidade da relação jurídica dominial em proveito do adquirente, conclui-se ser ele uma forma de aquisição derivada” (Instituições – Direitos reais, cit., p. 138). Mas o doutrinador faz a ressalva de que não há dúvida de que falta ao instituto a circunstância da transmissão voluntária, que está presente ordinariamente nos modos de aquisição derivada. Essa posição não encontra ressonância na parcela majoritária dos doutrinadores brasileiros, que classifica a usucapião como modo originário de aquisição da propriedade. A respeito: Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso: direito das coisas, cit., p. 506; Maria Helena Diniz. Curso: direito das coisas, cit., p. 132); Silvio Rodrigues. Direito Civil:direito das coisas, cit., p. 93. 87 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 138. 88 Silvio Rodrigues. Direito civil: direito das coisas, cit., p. 193. 27 Quanto à posse, não se exige seja exercida durante todo o período pela mesma pessoa, mas, para ser considerada ad usucapionem, há de ser contínua, pacífica e incontestada durante todo o período estipulado. Ou seja, exigese que essas características sejam reconhecidas em relação a cada um dos possuidores e a cada um dos períodos a serem considerados. Por fim, a posse há de ser exercida com a intenção de dono. Por sua vez, o tempo necessário para usucapir configura problema de política legislativa, que se resolve de forma distinta nos diversos sistemas jurídicos e pode inclusive variar com o tempo no mesmo sistema jurídico 89 . No sistema brasileiro, quanto aos bens móveis, configura-se a usucapião ordinária no caso de posse com animus domini, ininterrupta e sem oposição, durante três anos, exigidos ainda, nesse caso, o justo titulo e a boa-fé 90 . E se verifica a usucapião extraordinária no caso de posse com animus domini, ininterrupta e sem oposição, durante cinco anos, no último caso independentemente do justo título e da boa-fé 91 . Por fim, é preciso que o bem a ser considerado seja suscetível de aquisição por usucapião, o que exclui da incidência do instituto os bens que estão fora do comércio pela sua própria natureza e os bens públicos 92 . 89 Quanto aos bens imóveis, conferir os artigos 550 e 551 do Código Civil de 1.916 e os artigos 1238 e 1242 do Código Civil de 2002. 90 Artigo 1260 do Código Civil. 91 Artigo 1261 do Código Civil. 92 Artigo 183, parágrafo 3º, da Constituição Federal. 28 2.1.2 – Ocupação A ocupação 93 é “o ato pelo qual alguém se apodera de coisa móvel ou semovente, sem dono, por não ter sido ainda apropriada, ou por ter sido abandonada, não sendo essa apropriação defesa por lei” 94 . Constitui modo originário de aquisição de bem móvel, que consiste na tomada de posse de coisa sem dono, com a intenção de tornar-se seu proprietário. Ocupar significa assenhorear-se de coisa sem dono, ou porque nunca foi apropriada (res nullius) ou porque foi abandonada por seu proprietário (res derelicta) 95 . A ocupação apresenta três formas distintas. A primeira delas é a ocupação propriamente dita, que tem por objeto seres vivos – por meio da caça e da pesca, disciplinadas por leis especiais, como a Lei n.º 5.197/67 (Proteção à fauna) e o Decreto-lei n.º 221/67 (Proteção à pesca) – e coisas inanimadas. A ocupação pela caça 96 se efetiva pela apreensão do animal abatido. Para que o caçador adquira a propriedade do animal, é preciso que tenha obtido do proprietário do terreno o consentimento para caçar. Inexistente a autorização, a propriedade do animal caçado será do proprietário do terreno e o caçador ainda terá de indenizá-lo pelos eventuais danos causados. 93 Código Civil, Art. 1263. “Quem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei”. 94 Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 207. 95 Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 200. 96 Eduardo Espínola afirma que o direito de caçar caracteriza direito subjetivo público, sujeito a regulamentação especial. Sob esse aspecto, o estudo do direito à caça pertence ao ramo do Direito Administrativo (Posse, propriedade, compropriedade ou condomínio, direitos autorais. Campinas: Bookseller, 2002, p. 186). 29 Quanto à pesca, pertence ao pescador o peixe que pescar, mas desde que tenha a autorização do proprietário das águas em que realiza a pesca, sob pena de perder, assim como na caça não autorizada, ao proprietário das águas o que pescar e ainda ficar obrigado a lhe ressarcir eventuais danos. As coisas abandonadas também são suscetíveis de apropriação, mediante a consignação de que coisa abandonada não se confunde com coisa perdida 97 . O abandono, no mais das vezes, resulta das circunstâncias que o induzem. “Não se requer, na caracterização do abandono, uma declaração expressa do dono. Basta que o propósito se infira inequívoco do seu comportamento em relação à coisa, como as que são deixadas em locais públicos, em terrenos baldios, e mesmo em lugares policiados ou fechados” 98 . Por fim, a terceira forma de ocupação é a achada, que caracteriza espécie de ocupação incidente no tesouro 99 . Tesouro é o depósito antigo de moeda ou coisas preciosas, enterrado ou oculto, de cujo dono não se tenha memória. O 97 A descoberta, prevista nos artigos 1.233 a 1.237 do Código Civil, é o achado de coisa que foi perdida por seu dono. O Código Civil de 1.916 lhe atribuía a denominação invenção e seu regramento constava de subtítulo da seção da ocupação. O Código Civil de 2002 passou a regular a descoberta em seção própria, no capítulo da propriedade em geral. Não se trata, de fato, propriamente de modo de aquisição da propriedade móvel, porque o descobridor, de regra, não adquire a propriedade do bem encontrado, mas sim deve devolvê-lo a seu proprietário ou possuidor e, caso não o encontre, deve entregá-lo à autoridade competente. Encontrado o proprietário da coisa, o descobridor tem direito a uma recompensa, denominada achádego, acrescida dos valores gastos com a conservação – e o transporte, se o caso – da coisa. O proprietário fica obrigado ao pagamento desses valores, mas pode exonerar-se dessa obrigação mediante o abandono da coisa. Nesse caso, o descobridor lhe adquire a propriedade. Não encontrado o proprietário e decorridos sessenta dias da publicação de editais, pela autoridade competente, informando a descoberta, a coisa deverá ser vendida em hasta pública e, deduzidas as despesas com os atos praticados e a recompensa do descobridor, o valor restante pertencerá ao Município onde foi descoberto. Tratando-se de objeto de pequeno valor, o Município poderá abandonar a coisa em favor de quem a achou. Essa é a segunda e última hipótese em que o descobridor se torna proprietário da coisa descoberta, com a ressalva de que nas duas situações houve o abandono da coisa pelo proprietário (no primeiro caso o proprietário primitivo e no segundo caso o Município que lhe adquirira a propriedade). 98 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 160. 99 Artigos 1264 a 1266 do Código Civil. 30 tesouro achado pelo proprietário do terreno, intencional ou casualmente, pertencelhe com exclusividade. O tesouro encontrado por quem o procure mediante ordem do proprietário do terreno também pertence com exclusividade ao próprio proprietário do terreno. Ainda, o tesouro localizado por quem intencionalmente o procure sem ordem do proprietário do terreno pertence também com exclusividade ao proprietário do terreno, considerada, nesse caso, a invasão da propriedade alheia pelo pesquisador. E o tesouro encontrado casualmente por alguém que não o proprietário do terreno pertencerá ao proprietário e ao descobridor, dividido em partes iguais. 2.1.3 – Especificação Especificação 100 é “a transformação definitiva da matéria-prima em espécie nova, mediante o trabalho ou indústria do especificador” 101 e ocorre quando uma “coisa móvel pertencente a alguém é transformada em espécie nova pelo trabalho de outrem” 102 . O que, na especificação, gera o direito é o trabalho criador, que transforma a matéria informe em obras de arte, da ciência ou de utilidade para a vida social. E essa criação se verifica, de modo claro, quando, na tela, que não é sua, o artista pinta um belo quadro; ou do mármore alheio o escultor faz uma estátua; ou no papel, de outrem, o escritor data a ciência ou a literatura com um produto de valor intelectual. Para a sociedade e para a civilização, a matéria utilizada perde todo o interesse, que se volve para a forma nova, que a inteligência fez 100 Artigos 1269 a 1271 do Código Civil. 101 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 166. 102 Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 204. 31 surgir 103 . A espécie nova será do especificador se a matéria era sua, ainda que só em parte, e não se puder restituí-la à forma anterior. Se a matéria não pertencer ao especificador e não se puder restituí-la à forma anterior, a espécie nova pertencerá ao especificador de boa-fé. E, se o especificador agiu de má-fé, a espécie nova pertencerá ao dono da matéria, ainda que seja possível a restituição à forma anterior. Em qualquer caso, ainda que constatada a má-fé do especificador, a obra de arte lhe pertencerá se o seu valor exceder consideravelmente o valor da matéria-prima. E, também em qualquer caso, os prejudicados deverão ser indenizados, à exceção do especificador de má-fé, quando a obra de arte não exceder consideravelmente o valor da matéria-prima e for irredutível a especificação. 2.1.4 – Confusão, comistão e adjunção 104 A confusão, como forma de aquisição da propriedade móvel, é a mistura de coisas líquidas pertencentes a diferentes donos, sem que se possam separar. A comistão é a mistura de coisas sólidas ou secas, nas mesmas condições. A adjunção é a justaposição de uma coisa a outra, de tal modo que não possam ser separadas sem deterioração. 103 Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 222. 104 As previsões legais a respeito da confusão, da comistão e da adjudicação constam dos artigos 1272 a 1274 do Código Civil. 32 Nas três hipóteses, é preciso que não se produza coisa nova, pois nesse caso haveria especificação. Se as coisas pertencem a donos diversos e foram misturadas sem o consentimento deles, continuam a lhes pertencer, desde que seja possível separar a matéria-prima sem deterioração. Se não for possível a separação ou se esta exigir dispêndio excessivo, o todo subsistirá indiviso. Nesse caso, a espécie nova pertencerá aos donos da matéria-prima, cada qual com o seu quinhão proporcional ao valor do seu material. Se uma das coisas puder ser considerada principal em relação às outras, o seu proprietário terá o domínio da espécie nova, com a obrigação de indenizar os demais. Todas as previsões têm por fundamento a boa-fé do causador da mistura das coisas. Em caso de má-fé, caberá ao proprietário que não deu causa ao novo estado das coisas o domínio sobre o todo, pagando o valor proporcional do que não é seu, ou, alternativamente, renunciar à coisa que lhe pertence, mediante indenização. 2.1.5 – Casamento 105 No Brasil, o casamento realizado sob o regime de bens da comunhão universal enseja a aquisição, por cada um dos cônjuges, da meação de todos os bens móveis – e imóveis – de propriedade do outro cônjuge, à exceção das 105 O casamento não é reconhecido como modo de aquisição da propriedade mobiliária por todos os sistemas de direito. 33 hipóteses legalmente previstas 106 . A aquisição da propriedade – da meação – dos bens, nesse caso, independe da tradição, visto que decorre da solenidade inerente ao próprio ato do casamento 107 . O casamento e os temas adjacentes são objeto de estudo específico em matéria própria 108 e não são considerados para a finalidade do presente trabalho. 2.1.6 – Sucessão O Brasil adotou um sistema singular de transmissão causa mortis 109 , diverso do sistema romano, que exigia a aceitação dos herdeiros e a apreensão material dos bens da herança, e do sistema germânico, em que apenas os herdeiros legítimos – e não os testamentários – adquirem a propriedade dos bens da herança 106 Art. 1667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte; Art. 1668. São excluídos da comunhão: I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar; II - os bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva; III - as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum; IV - as doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade; V Os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659 (Art. 1659. Excluem-se da comunhão: V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge; VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes). 107 A menção à dispensa da tradição se refere à tradição real, com a consignação de que a aquisição da propriedade móvel por meio do casamento realizado sob o regime da comunhão universal se enquadra na hipótese de tradição jurídica ou ficta. O casamento realizado sob o regime da comunhão parcial, da separação legal ou convencional e da participação final nos aquestos não apresenta utilidade prática para o presente estudo, já que a aquisição da meação da propriedade de um dos cônjuges somente será possível após o casamento e nas hipóteses legais, razão pela qual afasta o casamento, em si, como modo de aquisição da propriedade. 108 Livro IV- Do Direito de Família (artigos 1511 a 1783 do Código Civil). 109 A sucessão, assim como o casamento, enquadra-se na hipótese de aquisição da propriedade móvel por meio da tradição ficta (conferir 2.2.2.3). 34 mediante a morte de seu autor. Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery afirmam que o sistema brasileiro uniu as vantagens dos sistemas romano e germânico para incluir os herdeiros testamentários na regra da transmissão ipso iure da herança; admitir que há transferência tanto da posse direta quanto da indireta; admitir que a transferência automática da posse ao herdeiro é ficção jurídica, pois não depende nem da apreensão física da coisa, nem do conhecimento do herdeiro de que ostenta essa condição para aperfeiçoar-se a transmissão; admitir que a transmissão se dá no momento da morte, independentemente da aceitação da herança pelo herdeiro; admitir que não existe herança sem dono, razão de ser da transferência imediata e automática da herança aos herdeiros, no momento da morte do de cujus 110 . O fundamento do sistema brasileiro de transmissão causa mortis da propriedade está previsto no artigo 1784 do Código Civil (“Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”) e o estudo específico da matéria tem lugar no Livro respectivo 111 . 2.2 – Tradição 2.2.1 – Definição e requisitos Sem prejuízo de outras definições possíveis para finalidades diversas, a definição aqui desenvolvida tem por objetivo específico o estudo da tradição como modo de transferência da propriedade mobiliária do vendedor ao 110 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil anotado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 778. 111 Livro V – Do Direito das Sucessões (artigos 1784 a 2022 do Código Civil). 35 comprador. Nesses termos, tradição é “a expressão empregada para designar o ato que consuma o contrato, no momento em que a coisa se desliga do domínio do vendedor, para incorporar-se ao patrimônio do comprador” 112 . É o ato em virtude do qual o direito obrigacional, que resulta do negócio jurídico realizado entre vivos, transforma-se em direito real, e consiste na entrega do bem alienado a quem o adquiriu” 113 , transformando a inicial declaração translatícia de vontade em direito real 114 . A tradição não gera o domínio, mas sim o pressupõe existente e limita-se a transferi-lo de uma pessoa a outra 115 . Para que a tradição produza o efeito da transferência da propriedade, diversos requisitos devem ser preenchidos. Quanto ao alienante e ao adquirente, exige-se, inicialmente, a sua capacidade, como de regra para a prática de qualquer ato da vida civil, nos termos do artigo 104, inciso I, do Código Civil 116 . 112 J. M. de Carvalho Santos. Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1961. Volume XVI, p. 43. 113 Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 225. 114 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Direitos reais, cit., p. 170. 115 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 131; Almachio Diniz. Direito das cousas, cit., p. 166. 116 “Apelação cível – Ação anulatória de ato jurídico – (...) É válida a venda de bem imóvel pelo ascendente a descendente, após ratificado expressamente o ato, através de escritura pública de aditamento firmada pelos demais herdeiros e, após atingida a maioridade, pelo herdeiro relativamente incapaz” (Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina – Apelação Cível n.º 2005.016957-4 – Origem: Joinville – 3ª Câmara de Direito Civil – Relator: Des. Wilson Augusto do Nascimento – J. 25.11.2005). 36 Ainda quanto ao alienante, exige-se a sua titularidade em relação ao bem alienado mediante determinado título e por meio da tradição 117 . A hipótese será sanada se o alienante, que não era proprietário do bem à data da tradição, adquirirlhe posteriormente a propriedade, desde que constatada a boa-fé do adquirente. Nesse caso, a aquisição posterior revalida a transferência feita e a tradição opera os seus efeitos jurídicos retroativamente, desde o momento de sua ocorrência 118 . Para a efetividade da transmissão da propriedade mobiliária pela tradição também se exige o acordo de vontades. Ou seja, no caso da tradição que tem como título o contrato de compra e venda, exige-se que o tradens entregue o bem com a intenção de transferir a sua propriedade e sem a pretensão de devolução, como se daria nos casos de tradição que tivesse como título um contrato de locação, de comodato ou de depósito; e que o accipiens receba o bem com a intenção de adquirir a sua propriedade. A manifestação de vontade das partes deve decorrer de um ato jurídico válido, que configura a (justa) causa – titulus adquirendi – da tradição. 117 Código Civil, Art. 1268. “Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono”. A propósito: “Apelação cível – Ação declaratória c.c. indenização por perdas e danos e lucros cessantes – Ônus da prova – Venda por quem não é proprietário – Recurso improvido – No ordenamento jurídico brasileiro existe uma regra geral dominante no sistema probatório, qual seja, à parte que alega a existência de determinado fato para dele derivar a existência de algum direito incumbe o ônus de demonstrar sua existência. O Código de Processo Civil, em seu artigo 333, afirma que o ônus da prova cabe ao autor relativamente ao fato constitutivo de seu direito, e ao réu, em relação à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Sendo o documento do Detran prova relativa de propriedade do veículo, tal presunção deve ser refutada por outras provas idôneas, que demonstrassem ter a parte recorrente adquirido o veículo de quem de direito (o proprietário). A tradição do veículo, por si só, não pode oferecer prova firme e segura de venda do veículo à parte recorrente, que demonstrou ter efetuado pagamento a terceiras pessoas, não provando que tais pessoas integraram a cadeia dominical do veículo objetivado. Nos termos do artigo 622 do CC/1916, feita por quem não seja proprietário, a tradição não alheia a propriedade. Recurso improvido” (Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul – Apelação Cível n.º 2004.004126-8/0000-00 – Origem: Campo Grande – 3ª Turma Cível – Relator: Des. Oswaldo Rodrigues de Melo – J. 20.12.2004). 118 Nos termos do artigo 1268, parágrafo 1º, do Código Civil. 37 “Qualquer ato nullo que sirva de titulo à tradição, é bastante para que não se transfira absolutamente o domínio pela tradição. Assim, quem não for proprietário não alheiou a propriedade das cousas móveis entregues a outrem por tradição, que é a entrega com ânimo de transferir o domínio” 119 . Por fim, exige-se a imissão do adquirente na posse do bem, o que caracteriza a tradição real, sem prejuízo das exceções expressamente previstas, consistentes na tradição simbólica e na tradição ficta. 2.2.2 – Espécies de tradição Há três espécies de tradição referidas pela doutrina: tradição real, tradição simbólica e tradição ficta 120 . 119 Almachio Diniz. Direito das cousas, cit., p. 167. Prevê o artigo 1.268, parágrafo 2º, do Código Civil: “Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo”. Nesse sentido: “Compra e venda – (...) É da tradição de nosso direito, que vem desde as Ordenações Manuelinas, proibir a venda de ascendente a descendente, sem o consentimento dos demais, considerada nenhuma e de nenhum efeito jurídico, para se evitar enganos e demandas em função de dissimular doações inoficiosa e prejudiciais aos outros descendentes. Idêntica a conseqüência jurídica. Seja a venda direta, seja a venda por interposta pessoa, porque aquilo que a lei veda fazer pelos meios diretos, veda, igualmente, que se faça pelos meios indiretos, pois, do contrário, seria o mesmo que não proibir. O negócio, simuladamente feito por interposta pessoa, está vinculado ao negócio real, não podendo ser apreciado em separado, se é inquinado de ofensivo à norma do artigo 1.1132. Não há de se processar uma ação anulatória fundada m simulação contra a interposta pessoa: para em seguida ser pleiteada a declaração de nulidade do negócio jurídico proibido. Numa ou noutra situação a venda é nula e prescreve no prazo de vinte anos contados da data do ato, consoante previsto na Súmula 494 do Supremo Tribunal Federal. E sendo nulo o ato descabe a invocação da usucapião ordinária por faltar-lhe os requisitos do justo título e da boa-fé” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 77.980-4 – Origem: Franca – 9ª Câmara de Direito Privado – Relator: Ruiter Oliva – J. 22.06.99 – V.U.); “Reivindicatória julgada procedente, porque a autora demonstrara ser proprietária do lote possuído pelos réus – Alegação de prescrição rejeitada, em face da prova. Tradição reputada inoperante, porque se baseara em titulo nulo” (Supremo Tribunal Federal – RE n.º 48211 – 2ª Turma – Relator Antônio Villas Boas – J. 01/08/1961). 120 Lafayette Rodrigues Pereira, J. M. Carvalho Santos e Jefferson Daibert referem a tradição nua (nuda traditio) e a definem como a simples entrega da coisa, desacompanhada da intenção de transferir o domínio, como a conduta que se verifica no comodato, pelo comodante, no depósito, pelo depositante, e na locação, pelo locador (respectivamente Direito das coisas., cit., p. 131; Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1961. Volume VIII, p. 276; e Direito das coisas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1979, p. 289). 38 2.2.2.1 – Tradição real A tradição real é o modo mais comum de transmissão da propriedade mobiliária e consiste no ato material da entrega da coisa ao adquirente, ou seja, na transferência da coisa de mão a mão, passando do antigo ao novo proprietário 121 . A tradição real – fundada no título translativo consistente em um contrato de compra e venda – enseja a perda da propriedade pelo alienante. Nesse sentido: “Compra e venda – Bem móvel – Entrega do veiculo não obstante sem provisão de fundos o segundo cheque dado em pagamento – Perda da propriedade do bem consumada (artigo 620 do Código Civil), independentemente de assinatura no documento de transferência – Reintegração de posse improcedente, sendo certo reconhecer-se o pedido desconstitutivo do documento de trânsito porque evidenciada a falsificação – Recurso parcialmente provido para esse fim” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0480230-0 – Origem: Sumaré – 5ª Câmara – Relator: Juiz Nivaldo Balzano – J. 29/09/1993 – V.U). Também se considera real a tradição operada por terceiro que, por ordem do alienante, entregue a coisa ao adquirente ou à pessoa que este designar 122 . Efetivada a tradição real – fundada no título consistente em um contrato de compra e venda –, a propriedade do bem móvel é transmitida independentemente de quaisquer outros atos de natureza administrativa, como no caso de veículo automotor, cujo registro junto ao Departamento de Trânsito tem 121 Washington de Barros Monteiro afirma que a tradição real era conhecia do direito romano como traditio longa manu e significava a entrega efetiva ao accipiens, diretamente ou em sua residência, mediante ordem (Curso: direito das coisas, cit., p. 201). 122 Clovis Bevilaqua. Direito das coisas, cit., p. 226. 39 caráter administrativo e desvinculado da transmissão da propriedade: “(...). A exigência administrativa de registro de veículos no Departamento de Trânsito visa o controle e a fiscalização de trânsito, não se constituindo em modo de aquisição, que se opera pela tradição. A autorização de transferência de veículo para essa finalidade assinada em branco equivale à outorga de mandato ao portador para o seu preenchimento. Não comprovada a falsidade da assinatura, não se segue que a morte do vendedor em data anterior, àquela que consta da referida autorização assinada em branco implica na inexistência do negócio de compra e venda” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Embargos Infringentes n.º 45.057-4 – Origem: Vargem Grande do Sul – 9ª Câmara de Direito Privado – Relator: Ruiter Oliva – 19.05.98 – M. V.) 123 . Embora a entrega efetiva da coisa seja o modo mais comum de transmissão da propriedade mobiliária, são reconhecidas outras espécies de tradição, as quais, identificadas, ensejam a mesma conseqüência, ou seja, efetivam a transmissão da propriedade mobiliária. Vale a consignação, entretanto, de que as espécies de tradição que não se efetivam pela entrega material do bem não podem ser caracterizadas como hipóteses de ausência de tradição, mas sim devem ser consideradas como situações específicas que, por previsão expressa, são tidas como tradição, 123 A confirmar a regra de que a transmissão da propriedade mobiliária se dá com a tradição, julgado em que se decidiu que a convenção entre as partes, não seguida pela tradição, não enseja a transmissão da propriedade: “VEÍCULO – Compra e venda - Assinatura do termo de autorização para transferência do bem – Assinante, entretanto, que não figurou como alienante do bem, não podendo, assim, responder pela não concretização do negócio, ante a ausência de tradição, junto ao comprador – Ausência, ademais, de provas de que teria o assinante agido com má-fé ou de que teria o alienante do veículo agido em seu nome – Ação improcedente – Recurso não provido. A transferência de propriedade de bem móvel somente se perfaz pela tradição. A simples convenção entre as partes interessadas não é suficiente para a aquisição da propriedade” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 12.420-4 – Origem: São José dos Campos – 1ª Câmara de Direito Privado – Relator: Guimarães e Souza - 13.08.96 - V. U.). 40 dispensado exclusivamente o ato material da entrega. 2.2.2.2 – Tradição simbólica A tradição simbólica se verifica no ato representativo da transferência da coisa 124 . A primeira hipótese se dá nos casos em que é entregue ao adquirente não a própria coisa, mas algo que a represente, como a chave de um veículo, a demonstrar que a propriedade deste está sendo transferida 125 . Afirma Pietro Bonfante: “Simbólica si disse nel médio evo la consegna delle chiave, di cui non è che um ulteriore progresso la odierna consegna dei titoli rappresentativi” 126 . Também se verifica a tradição simbólica quando um determinado ato praticado pelas partes comprova a sua intenção de transmissão da propriedade. A propósito: “A inscrição do recibo de compra de automóvel no registro público dispensa a tradição, ou vale como tradição, simbólica, para o efeito de transmitir o domínio ao comprador. Pode este, em conseqüência, reclamar a imissão na posse, com fundamento no Código de Processo Civil, artigos 381, I, e 382 (Código de 124 “Concordata – Penhor mercantil – Bens fungíveis e consumíveis – Tradição simbólica – Admissibilidade – Penhor mercantil. Bens fungíveis e consumíveis. Tradição simbólica. Art. 274 do Código Comercial. Ainda que se cuide de bens fungíveis e consumíveis, é admissível a tradição simbólica no penhor mercantil. Recurso Especial conhecido e provido" (STJ – Resp 147.898 – RS – 4ª T. – Relator: Min. Barros Monteiro – DJU 09.12.2003 – p. 290). 125 “Cominatória – Obrigação de dar - Transferência de direitos possessórios – Impossibilidade de preceito cominatório – Súmula 500 do STF – Entrega da chave e outorga da escritura que caracterizam, respectivamente, a forma simbólica e definitiva do cumprimento da obrigação de dar Transferência, entretanto, que se perfaz pela mera tradição – Carência decretada – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 188.770-2 – Origem: Caraguatatuba – Relator: Torres de Carvalho – 21.05.92). 126 “Simbólica se dizia na idade média a entrega da chave, da qual não é senão um progresso posterior a entrega do título representativo” (Instituzioni, cit., p. 237). 41 Processo Civil de 1939)” (Supremo Tribunal Federal – RE n.º 51952 – 1ª Turma – Relator: Ministro Victor Nunes – J. 17/05/1963) 127 . Para que a tradição simbólica seja considerada como tal, é imprescindível que se revista dos mesmos requisitos necessários à caracterização da tradição real. Isso significa que somente se a verifica se o bem cuja propriedade foi transmitida pela tradição simbólica estiver na posse do adquirente, não se a reconhecendo se o bem estiver na posse de terceiro, já que nesse caso não se pode falar em transmissão, ainda que simbólica, a quem não teve e não tem a posse do bem 128 . Espécie de tradição simbólica é a traditio longa manu, “in cui l’oggetto non é consegnato proprieamente, ma indicato e messo a disposizione dell’adquirente” 129 . A sua origem é do direito romano, com utilização indicada no caso de alienação de imóveis de grandes dimensões, as quais não era possível ou não era comum percorrer 130 . 127 Jefferson Daibert afirma que a transcrição do título aquisitivo no registro imobiliário, para fins de aquisição da propriedade imobiliária, caracteriza a tradição simbólica (Dos contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1980, p. 181). 128 “Embargos de terceiro – Ilegitimidade ‘ad causam’ – Transmissão simbólica da posse ‘per instrumentum’ que só equivale à tradição real quando o tradente estiver na posse da coisa e esta não for possuída por terceiro – Hipótese na qual o imóvel foi adquirido pelo marido da apelada quando na posse dos apelantes – Ação ajuizada por quem não possuía a qualidade de terceiro – Exame da doutrina e da jurisprudência – Carência reconhecida – Recurso provido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação n.º 0570474-1 – Origem: Itapecerica da Serra – 9ª Câmara – Relator: Armindo Freire Mármora – J. 19/03/1996 – V.U.). 129 “em que o objeto não é entregue propriamente, mas indicado e posto à disposição do adquirente” (Pietro Bonfante. Instituzioni, cit., p. 237-238). 130 Sílvio de Salvo Venosa. Direitos Reais, cit., p. 254. 42 2.2.2.3 – Tradição ficta Na tradição jurídica ou ficta, a transmissão da propriedade mobiliária se opera por força de uma norma jurídica, sem que se efetive a entrega material da coisa alienada. Verifica-se nas hipóteses do artigo 1.267, parágrafo único, do Código Civil 131 , ou seja, nos casos de constituto possessório, de cessão de direito à restituição da coisa que se encontra em poder de terceiro e de traditio brevi manu, sem prejuízo das demais hipóteses legais. 2.2.2.3.1 – Constituto possessório O constituto possessório é o modo de transmissão da propriedade por meio do qual o proprietário, que aliena um bem de sua propriedade, mantém a posse desse bem, a partir de então alieno nomine. Ou seja, aquele que possuía e tinha o domínio do bem passa, por convenção, a possuí-lo sem domínio, em razão da transferência deste ao comprador. É a “operação jurídica, em virtude da qual, aquele que possuía em seu próprio nome, passa, em seguida, a possuir em nome de outrem” 132 . De acordo com Pietro Bonfante, “il costituto possessorio é quasi l’inverso della traditio brevi manu. L’alienante, in luogo di operare la transmissione 131 Código Civil, Artigo 1267. “A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição. Parágrafo único. Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico”. 132 Clovis Bevilaqua. Direito das Coisas, cit., p. 50. A propósito: “Posse. Ação de reintegração. ‘Cláusula constituti’. Outorga uxória. O comprador de imóvel com ‘cláusula constituti’ passa a exercer a posse, que pode ser defendida através da ação de reintegração. Recurso não conhecido” (Superior Tribunal de Justiça – RESP n.º 173183/TO (199800313923) – Origem: Tocantins – 4ª Turma – Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar – J. 01/09/1998). 43 effetiva del possesso, conchiude coll’acquirente una convenzione, che gli permetta di ritenerlo sott’altro titolo, locazione, deposito, comodato e simili, e a questo titolo si costituisce rappresentante nel possesso. É questo peraltro um modo e um istituto giustinianeo.” 133 Pode ser identificado, por exemplo, no caso do proprietário de um bem que o vende a alguém e imediatamente o loca desse novo proprietário. O alienante, em vez de proceder à entrega da coisa vendida ao alienatário, retém a coisa em suas mãos por um outro título, então de locatário. De regra, deveria o alienante entregar a coisa ao alienatário para que este, a seguir, devolvesse a coisa ao primitivo alienante, que, com a entrega, tornar-se-ia locatário. Para evitar essa dupla e recíproca entrega do bem móvel, o legislador supõe que ela existiu, admitindo a tradição ficta 134 . A boa-fé do possuidor é requisito essencial para a caracterização do constituto possessório. Nesse sentido: “Possessória – Manutenção de posse – Bem móvel – Veículo adquirido, que permaneceu provisoriamente em poder do alienante - Legitimidade da adquirente possuidora indireta, diante do constituto possessório – Posse de boa-fé existente ao tempo da apreensão – Embargos de terceiro procedentes – Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – 133 “o instituto do constituto possessório é quase o inverso da traditio brevi manu. O alienante, em vez de operar a transmissão efetiva da posse, celebra com o adquirente uma convenção, que lhe permite reter a posse a outro título, como locação, depósito, comodato ou outro similar, e a esse título se constitui representante da posse. Trata-se de um modo e de um instituto do direito justinianeu” (Instituzioni, cit., p. 238). 134 Silvio Rodrigues. Direito Civil: Direito das Coisas, cit., p. 188. A jurisprudência: “I – A aquisição da posse se dá também pela cláusula constituti inserida em escritura publica de compra-e-venda de imóvel, o que autoriza o manejo dos interditos possessórios pelo adquirente, mesmo que nunca tenha exercido atos de posse direta sobre o bem. II – O esbulho se caracteriza a partir do momento em que o ocupante do imóvel se nega a atender ao chamado da denúncia do contrato de comodato, permanecendo no imóvel após notificado (...)” (Superior Tribunal de Justiça – RESP n.º 143707/RJ (199700563545) 4ª Turma – Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira – J. 25/11/1997). 44 Apelação n.º 0577657-8 – Origem: Ribeirão Preto – 6ª Câmara Especial de Janeiro – Relator: Des. Castilho Barbosa – J. 30/01/1995 – V.U.). Após transcrever parte dos votos dos Ministros Artur Ribeiro e Carvalho Mourão, do Supremo Tribunal, na Apelação Cível n.º 5.165, J. M. Carvalho Santos manifesta seu entendimento de que o constituto possessório deve ser reconhecido não apenas quando se usam palavras sacramentais, mas sempre que do texto do contrato se puder concluir que o possuidor deixou de ter o domínio sobre o bem porque o alienou, e passou a ter o bem em nome do comprador, a quem o domínio fora transferido 135 . Por outro lado, ainda que não conste do contrato celebrado pelas partes o termo expresso, é imperioso que sejam identificados elementos que permitam a conclusão de que as partes pretenderam a utilização do instituto, sob pena de restar inviabilizado o seu reconhecimento. Nesse sentido: “Possessória – Compra e venda de safra de laranjas Inexistência de cláusulas indicando transferência simbólica da posse – Esbulho descaracterizado, inocorrendo o alegado constituto possessório, por não se identificarem cláusulas indicativas da suposta transferência – Ações de reintegração e manutenção de posse improcedentes – Recurso parcialmente provido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação n.º 0680661-9 – Origem: Monte Azul Paulista – 8ª Câmara – Relator: 135 J. M. de Carvalho Santos. Código Civil brasileiro interpretado. Volume VII, cit., p. 64-67. Também nesse sentido: “Constituto possessório – Reintegração de posse. 1. Para a existência do constituto possessório e consequente transferência da posse indireta ao beneficiário dela, não há necessidade de o instrumento conter as palavras cláusula constituti’, ‘constituto possessório’, nem mencionar que o transmitiu, se demitiu da posse e a conserva em nome do adquirente. Basta que o transmitente declare que imite na posse o adquirente ou a ele a transfere. (...)” (Supremo Tribunal Federal – RE n.º 65681 – Origem: Guanabara – 1ª Turma – Relator: Ministro Aliomar Baleeiro – J. 20/02/1973). 45 Araldo Telles – Revisor: Carlos A Hernández – J. 19/08/1998) 136 . Embora a prova do constituto possessório seja admitida independentemente da menção expressa do termo no contrato, não se sobrepõe ao título, que tem validade por si. A propósito: “Possessória – Insurgência contra liminar de reintegração de posse – Alegação do réu de que se tornou possuidor da área em virtude de constituto possessório – Imóvel que, todavia, estava sendo ocupado pelo autor – Inoponibilidade da cláusula contratual contra terceiro que dispõe de título próprio – Prova suficiente à concessão da tutela liminar – Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º 1057687-1 – Origem: Cachoeira Paulista – 12ª Câmara – Relator: Campos Mello – J. 26/02/2002). A restrição se justifica, sob pena de o instituto ser utilizado sem critério e visando à burla do sistema 137 . 2.2.2.3.2 – Cessão de direito de restituição Essa espécie de tradição ficta se dá no caso de o proprietário alienar um bem que, quando da alienação, encontra-se na posse de um terceiro, em decorrência de um contrato de comodato ou de locação, por exemplo. 136 No mesmo sentido: “Embargos de terceiro – Constituto possessório – Cláusula não expressa, que não se presume e que não resulta das demais disposições contidas na escritura – Escritura não matriculada – Embargos rejeitados – Decisão mantida” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 253.119-1 – Origem: São Paulo – 9ª Câmara de Direito Privado – Relator: Franciulli Netto – 05.11.96 – V.U.). 137 “Penhora – Embargos de terceiro – Oposição por mãe do executado sob alegação de ser ela proprietária do bem, tendo ocorrido a tradição ficta do mesmo em razão do constituto possessório – Inexistência de prova nesse sentido, não constituindo o registro do veículo em nome da embargante meio suficiente para demonstrar a propriedade – Constrição mantida – Embargos improcedentes – Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0598558-0 – Origem: Garça – 2ª Câmara – Relator: Nelson Ferreira – J. 31/05/1995 – V.U.). 46 Enquanto não se der a restituição, o comprador, como novo proprietário do bem, terá apenas a posse indireta deste, a qual decorre da cessão do direito de restituição que o vendedor fez ao comprador. Essa cessão do direito de restituição equivale à tradição 138 . Ou, dito de outra forma, a “transferência envolve a posse indireta que é acompanhada do direito à restituição, isto é, o direto de reaver a coisa locada na época oportuna” 139 . Expirado o prazo do contrato, o direito de reivindicar o bem (Artigo 1.228 do Código Civil: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”) se reconhece ao comprador e não mais ao vendedor, visto que, por meio do contrato de compra e venda celebrado, o vendedor cedeu ao comprador o direito de pleitear, na oportunidade adequada à hipótese concreta, a restituição do bem. 2.2.2.3.3 – Traditio brevi manu A traditio brevi manu, que também caracteriza tradição ficta, é o instituto por meio do qual o possuidor de coisa alheia passa, por convenção, a possuir a coisa como própria. Pode ser identificado, por exemplo, no caso do locatário que adquire a coisa locada. De regra, deveria o alienatário devolver – como locatário, no exemplo referido – a coisa ao alienante para que este, a seguir, entregasse a coisa ao primitivo locatário, então como alienatário, o qual, com a entrega, tornar-se-ia 138 J. M. de Carvalho Santos. Código Civil. Volume XVI, cit., p. 44; Maria Helena Diniz. Curso: Direito das coisas, cit., p. 317. 139 Sílvio de Salvo Venosa. Direitos reais, cit., p. 254. 47 proprietário da coisa. Assim como se dá no caso do constituto possessório e da cessão de direito de restituição de bem que se encontra em poder de terceiro, para evitar a dupla e recíproca entrega do bem móvel, o legislador supõe que ela existiu, admitindo também neste último caso a tradição ficta. 2.2.2.3.4 – Outras hipóteses de tradição ficta Além do constituto possessório, da traditio brevi manu e da cessão de direito de restituição de bem que se encontra em poder de terceiro, existem outros diversos dispositivos legais que estabelecem expressamente o modo da tradição ficta para a transmissão da propriedade. Quanto à compra e venda de títulos de dívida pública da União, dos Estados e dos Municípios, por expressa determinação legal, o próprio contrato transfere ao comprador a propriedade dos títulos, nos termos do artigo 8º, caput, do Decreto-lei n.º 3.545/41 (“A celebração do contrato transfere imediatamente ao comprador a propriedade do título”). De acordo com o artigo 31, caput, da Lei n.º 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), “A propriedade das ações nominativas presume-se pela inscrição do nome do acionista no livro de ‘Registro de Ações Nominativas’ ou pelo extrato que seja fornecido pela instituição custodiante, na qualidade de proprietária fiduciária das ações”. O parágrafo 1º do referido dispositivo legal estabelece que “A transferência das ações nominativas opera-se por termo lavrado no livro de ‘Transferência de Ações Nominativas’, datado e assinado pelo cedente e pelo 48 cessionário, ou seus legítimos representantes” 140 . Nos termos do artigo 66, caput, da Lei n.º 4.728/65, com a redação do Decreto-lei n.º 911/69, “A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal” 141 . J. M. de Carvalho Santos, referindo Maynz e Lacerda de Almeida, cita ainda o caso de “contrato de sociedade de todos os bens, em que a transferência se opera com a assinatura do contrato, entendendo-se haver tradição tácita”, bem como o caso da “sociedade particular, em que a transferência se opera com a simples aquisição dos bens comunicáveis” 142 . 140 Washington de Barros Monteiro. Curso: Direito das coisas, cit., p. 202; Maria Helena Diniz. Curso: Direito das coisas, cit., p. 315-316. 141 Maria Helena Diniz. Curso: Direito das Coisas, cit., p. 316. 142 J.M. de Carvalho Santos. Código Civil. Volume VIII, cit., p. 277. 49 Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da propriedade mobiliária O estudo dos sistemas de aquisição da propriedade mobiliária tem por objetivo, no presente trabalho, a resposta à questão se a propriedade mobiliária é transmitida pelo contrato compra e venda, por si, ou se é necessário algum outro ato para que a aquisição se aperfeiçoe e produza os resultados jurídicos decorrentes (da propriedade transmitida). Ou, dito de outra forma, se o contrato é reconhecido exclusivamente como título – ou causa – para a transmissão da propriedade mobiliária ou se efetivamente a transfere. Teoricamente, são referidos quatro sistemas de aquisição de propriedade: o sistema romano, o sistema francês, o sistema alemão e o sistema soviético. Com a dissolução oficial da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas 143 no dia 25 de dezembro de 1991, o sistema soviético não pode ser considerado um sistema vigente. É referido para fins acadêmicos, mas não será estudado à parte, como os demais. O sistema soviético não se vincula exclusivamente nem ao contrato e nem à tradição como princípio geral de transmissão da propriedade mobiliária. Tanto o contrato, por si, quanto a tradição são dotados de igual valor e cada um tem o seu próprio campo de aplicação. Tratando-se de coisas individualmente 143 A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi um país de proporções continentais, cobrindo praticamente um sexto das terras emersas do planeta, fundado no dia 30 de dezembro de 1922 pela reunião dos países que formavam o antigo Império Russo, na Europa e na Ásia. O número de repúblicas constitutivas variou ao longo do tempo, mas foi de 15 (Rússia, Ucrânia, Bielorrússia Usbequistão, Cazaquistão, Geórgia, Azerbaijão, Moldávia, Quirguízia, Tadjiquistão, Armênia, Turcomenistão, Estônia, Letônia e Lituânia) durante a maior parte da existência do país. A União dissolveu-se oficialmente em 25 de dezembro de 1991 (disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_Sovi%C3%A9tica). 50 determinadas, a propriedade se adquire pelo consenso, no momento em que se conclui o contrato; tratando-se de coisas determinadas apenas pelo gênero, que devem ser contadas, pesadas ou medidas, a aquisição é diferida para o momento da tradição 144 . Quanto ao sistema romano, embora não vigente, justifica-se o seu estudo em razão de sua importância para a fundamentação e o desenvolvimento do sistema brasileiro de transmissão da propriedade mobiliária, que também será estudado. Ainda, optou-se por estudar, além do sistema francês, o sistema inglês de transmissão da propriedade mobiliária, em razão de apresentar características similares às do sistema francês e, conseqüentemente, distintas das do sistema brasileiro. 3.1 – Sistema romano 145 No sistema de direito romano anterior a Justiniano não se utilizava a distinção entre bens móveis e móveis 146 , mas sim a distinção entre res mancipi e res nec mancipi, ou seja, “coisas que exigem ou não exigem o emprego da mancipatio 144 Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil: direito das obrigações – 2ª Parte. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 5, p. 89. R. Limongi França afirma que o artigo 39 do Código Soviético de 1962 revogou o sistema da forma como existia e “parece ter adotado o sistema alemão” (Manual de Direito Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1969. 4º Volume, Tomo II, p. 7576). Consideradas as características referidas pelos doutrinadores, pode-se afirmar o sistema soviético apresentava semelhança com os demais sistemas de aquisição da propriedade mobiliária, já que a postergação da aquisição da propriedade dos bens móveis que dependem de contagem, pesagem ou medição não pode ser considerada característica exclusiva do primeiro. 145 Porque o direito romano antigo não reconheceu a classificação atual dos bens em imóveis e móveis, o estudo do sistema romano de transmissão da propriedade não se refere especificamente à propriedade mobiliária. 146 Conferir 1.5. 51 para a sua transferência” 147 . O contrato era constitutivo apenas de obrigações, do vínculo jurídico que ligava exclusivamente os próprios contratantes. Ou seja, o contrato fazia nascer um vínculo jurídico entre as partes, mas não tinha força para constituir o direito real. O título – entendido como o ato jurídico por meio do qual uma parte manifesta validamente a sua vontade de alienar um bem e a outra parte manifesta também validamente a sua vontade de adquirir o referido bem – não era suficiente à transmissão da propriedade, para a qual se exigia também um modo de aquisição. Não se concebia a constituição de um direito real, oponível contra todos, por efeito exclusivo da vontade das partes. As partes de um contrato tinham capacidade para estabelecer vínculos obrigatórios para si mesmas, mas não podiam, por meio de sua mera manifestação de vontade em relação a um bem, vincular toda a sociedade, o que seria próprio do direito real, reputado absoluto. Determinados contratos, como o mútuo, o comodato e o depósito eram classificados como reais, mas essa classificação não dizia respeito ao direito constituído por meio do contrato, mas sim exclusivamente à formação do contrato. Ou seja, os contratos reais eram assim classificados porque não se aperfeiçoavam mediante a manifestação do consentimento das partes, o que se verificava nos contratos consensuais, mas sim mediante a entrega da coisa objeto do contrato 148 . De acordo com o sistema romano de transmissão da propriedade, a 147 Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil: parte geral. 39ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 1, p. 171. 148 De acordo com Darcy Bessone, por causa dessa noção de contractus, os romanos não incluíram as convenções relativas à transmissão da propriedade na teoria das obrigações, mas sim as situaram na teoria dos modos de adquirir, “dissimulando-as e ocultando-as sob exterioridades” (Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 48). 52 aquisição voluntária derivada 149 podia se dar exclusivamente por meio da mancipatio, da in iure cessio e da traditio. Esses modos de transmissão da propriedade romana existiam por si, ou seja, não eram vinculados a nenhum contrato e tampouco a nenhum ato jurídico anterior que lhe fosse causal. A mancipatio era a forma mais importante para a transferência da 149 Os modos de aquisição da propriedade em Roma eram classificados em originários, derivados voluntários e derivados não voluntários. Os modos originários eram a ocupação, a acessão, a confusão, a comistão e a especificação; os modos derivados voluntários compreendiam a mancipatio, a in iure cessio e a traditio; e os modos derivados não voluntários consistiam na usucapião e na adjudicação. Os modos originários apresentavam o fundamento e as características absorvidas pelo sistema brasileiro (a respeito, conferir o Capítulo 2 – Modos de aquisição da propriedade mobiliária). Os modos derivados voluntários – a mancipatio, a in iure cessio e a traditio – são estudados no texto principal. Quanto aos modos derivados não voluntários, a usucapião já apresentava o fundamento e as características que foram absorvidas pelo direito brasileiro (a respeito, conferir o Capítulo 2) especificamente quanto à posse prolongada, ao justo título e à boa-fé. Mas a aplicação do instituto no direito romano se dava em casos desconhecidos do direito brasileiro. O primeiro ocorria quando uma res mancipi, cuja alienação deveria necessariamente ser feita pela mancipatio, fosse alienada pela traditio, ato que dava enseja ao nascimento apenas da propriedade pretoriana ou bonitária, não da propriedade quiritária. Nesse caso, a propriedade quiritária podia ser adquirida depois de decorrido o prazo previsto para a usucapião. Ou seja, por meio da usucapião, a propriedade pretoriana ou bonitária se tornava propriedade quiritária. Também se aplicava o instituto da usucapião nos casos em que a alienação fosse feita a non domino. Apesar de o adquirente obter a posse, não obtinha a propriedade em razão da nulidade da alienação, reconhecendo-se, entretanto, o justo título para os fins da usucapião, que se dava ao final de um ano, tratando-se de bem móvel, e de dois anos em se tratando de bem imóvel. O mesmo raciocínio quanto à alienação a non domino e à aquisição da propriedade do adquirente por usucapião era aplicado aos escravos, considerados res se moventes. Reconhecia-se ainda a possibilidade de aquisição da propriedade por meio da usucapião na hipótese em que o justo título não consistia num ato jurídico, o que se dava quando alguém entrava na posse de um bem abandonado de fato, mas cujo proprietário não havia manifestado expressamente a sua intenção de abandono. Também nesse caso, a propriedade quiritária podia ser adquirida pela usucapião. Em todos os casos referidos exigia-se, além da posse prolongada no tempo e do justo título, que o bem não fosse produto de crime e que o adquirente houvesse agido com boa-fé. O direito romano reconhecia ainda três hipóteses excepcionais de usucapião sem justo título e boa-fé. A primeira era permitida ao herdeiro que estivesse na posse de bens hereditários, decorrido um ano da posse. A segunda hipótese se dava no caso de alienação fiduciária. Se o devedor não restituísse o bem alienado, como havia prometido, mas o antigo proprietário adquirisse a posse imediata desse bem, tornar-se-ia seu proprietário depois de decorrido um ano. A última hipótese era uma instituição de direito público, que se verificava quando o Estado vendia um bem que lhe havia sido entregue em garantia por um devedor. Se o devedor se tornasse novamente possuidor imediato do bem alienado pelo Estado, tornar-se-ia seu proprietário depois de decorrido o prazo da usucapião. Por fim, o segundo modo derivado não voluntário de aquisição da propriedade, a adjudicação, consistia na atribuição de um bem a uma pessoa por meio de sentença judicial. A adjudicação tinha lugar nas ações de partilha de herança, nas ações de partilha de um bem indiviso e nas ações de retificação dos limites de imóveis, inclusive para fins de atribuição de parcelas de terra a um confrontante (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 229-249; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 221-226; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 69-94). 53 propriedade de res mancipi 150 . Tratava-se de instituto de jus civile, que podia ser utilizado exclusivamente pelos cidadãos romanos 151 e dava ensejo à aquisição da propriedade quiritária. “Nella lingua latina classica essa dicevasi ancora mancipium come il domínio. Mancipatio significava allora propriamente l‘acquisto in cotesta forma, emancipatio l’alienazione. Mancipio dare, accipere sono ancora le forme usuali presso giureconsulti classici: certo ne più antichi tempi il significato loro era ‘dare o ricevere in proprietá’” 152 . O ato exigia a presença do alienante, do adquirente, de cinco cidadãos romanos púberes que serviam como testemunhas e do libripens, que carregava a balança. O adquirente, denominado mancipio accipiens, tomava em suas mãos a própria res ou algo que a simbolizasse e pronunciava as seguintes palavras (no caso de um escravo): “Hunc ego hominem ex iure Quiritium meun esse aio isque mihi emptus esto hoc aere aeneaque libra” 153 . Em seguida o libripens tocava a balança com a barra de bronze e a entregava ao alienante como preço. A propriedade era transferida e a negociação estava concluída 154 . Há quem afirme que, concretamente, a mancipatio tinha a natureza 150 De acordo com Vandick L. da Nóbrega, porque não se reconhecia a distinção dos bens em imóveis e móveis, a mancipatio podia ter por objeto tanto bens imóveis como bens móveis. Em caso de bens imóveis, uma parte móvel era destacada e representava, simbolicamente, o todo. Um ramo de árvore simbolizaria uma árvore e uma porção de terra simbolizaria um terreno (Compêndio, cit., p. 79); Sílvio A. B. Meira afirma que uma das prováveis origens do termo mancipatio seria a junção das palavras manu e capere, isto é, a apreensão, pela mão, do bem adquirido (Instituições, cit., p. 221222). 151 Segundo A. Santos Justo, também era utilizado pelos peregrinos que gozassem do direito de comércio (Direito privado romano III: direitos reais. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 94-95). 152 Pietro Bonfante. Instituzioni di diritto romano. Terza edizione. Milano: Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1902, p. 239. 153 “Digo que este homem me pertence pelo direito dos Quirites, e que o mesmo seja vendido por meio desta balança” (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 79). 154 A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 94-95; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239240; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 222; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 79-82. 54 jurídica de uma venda real realizada sempre à vista, considerada a barra de bronze como instrumento de troca e a sua pesagem real 155 . Por outro lado, há quem defenda a tese de que, quanto à forma, tratar-se-ia de ato unilateral, já que o alienante, embora presente ao ato, não se manifestava, mas apenas se limitava a ouvir as palavras que do adquirente sobre o bem do qual se apropriava 156 . Com a introdução da moeda cunhada, que substituiu o pagamento em bronze, a função da balança desapareceu. A mancipatio tornou-se um ato abstrato – imaginaria venditio – passível de ser usado em qualquer caso que implicasse uma alienação, como na venda, na doação, na constituição de um dote e mesmo na constituição de uma garantia real 157 . O segundo modo romano de adquirir a propriedade consistia na in iure cessio. Tratava-se também de instituto de jus civile que ensejava a transmissão da propriedade quiritária tanto das res manicipi quanto da res nec mancipi. A in iure cessio era realizada perante o magistrado (em Roma, o pretor; nas províncias, o governador), presentes o alienante e o adquirente. O adquirente tomava em suas mãos a res, se fosse móvel, ou um símbolo, se fosse imóvel, e proferia as seguintes palavras (tratando-se de um escravo): “Hunc ego hominem ex iure Quiritium meum esse aio” 158 . Na seqüência, o magistrado perguntava ao alienante se este não contestava a propriedade reivindicada pelo adquirente e, na negativa ou no silêncio daquele, adjudicava o bem ao adquirente. 155 A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 94; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239. 156 Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 80. 157 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 80. 158 “Eu digo que este escravo me pertence pelo direito dos Quirites” (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 82). 55 Reconhece-se que se tratava de um processo fictício, porque a anuência do alienante diante da reivindicação da propriedade do bem pelo adquirente não refletia a realidade dos fatos, já que o alienante se sabia proprietário do bem até o momento em que este era adjudicado ao adquirente, assim como o magistrado sabia que a propriedade não era do reivindicante antes da adjudicação. Afirma-se ainda que a in iure cessio foi pouco utilizada mesmo na época clássica, devido à dificuldade concreta de comparecimento das partes perante o magistrado. A última referência ao instituto se encontra numa constitutio de Diocleciano do ano 293 e se considera que provavelmente desapareceu depois do séc. III 159 . O terceiro modo romano de aquisição da propriedade era a traditio. Tratava-se de um modo não formalista de aquisição da propriedade e era originário do ius gentium e não do ius civile, razão pela qual podia ser utilizado tanto pelos romanos como pelos não romanos. A eficácia translativa da traditio dependia do cumprimento de diversos requisitos. Quanto ao tradens, exigia-se que tivesse capacidade e estivesse apto ao exercício do seu direito, bem como que tivesse legitimidade, ou seja, que fosse o proprietário do bem, com a ressalva de que se admitiam diversas exceções para a prática efetiva da entrega, como aos tutores e curadores e aos mandatários especialmente designados para o ato. Quanto ao objeto, era preciso que fosse corpóreo, que fosse passível de alienação – que estivesse no comércio – e que a sua alienação não 159 A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 97-98; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 240241; Pietro Bonfante. Instituzioni, cit., p. 240; Sílvio A. B. Meira. Instituições, cit., p. 222-223; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 82-83. 56 fosse proibida por lei, por magistrado ou por vontade das partes 160 . A mera entrega da coisa não bastava à caracterização da traditio, já que poderia não ter ocorrido a título de transferência da propriedade, mas sim de mera detenção ou posse, como no caso de depósito ou comodato. Por essa razão se afirma que a traditio consistia na entrega material do bem com a finalidade de transferir o seu domínio, o que possibilita a identificação de seus dois elementos: a entrega material da coisa e a justa causa. Quanto à entrega, inicialmente somente se a admitiu na forma efetivamente material, ou seja, mediante a apreensão física do bem pelo adquirente. Tratando-se de bem que não pudesse ser transportado, admitia-se a entrega simbólica de algo que o representasse, como um galho de uma árvore para a representação da própria árvore. Tratando-se de uma área de terra, de início se exigia que o adquirente o percorresse a pé ou a cavalo. Com o tempo, passou a admitir a imissão de posse pelo olhar, hipótese em que o adquirente deveria subir no local mais elevado do imóvel com o objetivo de enxergá-lo, entrega à qual se deu o nome de traditio longa manu. Também se admitiu a tradição pelo simples ânimo, independentemente da manifestação física da entrega, tanto no caso da traditio brevi manu – hipótese em que o detentor ou possuidor passava a possuir a coisa a título de dono – como no caso do constituto possessório – hipótese em que o proprietário alienava o bem, mas mantinha a sua posse a título diverso (conferir 2.2.2). Além da entrega – material, simbólica ou fictícia – do bem, a justa causa também era indispensável à transmissão da propriedade por meio da traditio. 160 A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 99. 57 A justa causa se consubstanciava no negócio jurídico anterior e necessariamente válido, cuja conseqüência, por meio da entrega do bem, era a transferência do domínio. Sem a justa causa, a tradição não teria razão de ser, já que não transferiria a propriedade. A justa causa era considerada o elemento subjetivo e propriamente jurídico em virtude do qual a transferência da posse do bem produzia a transferência de sua respectiva propriedade 161 . Os três modos de aquisição da propriedade no direito romano são aceitos sem controvérsias pelos estudiosos do tema, inexistindo dúvida de que os três existiram e tiveram aplicação prática, com a ressalva da popularidade restrita da in iure cessio em decorrência da necessidade de sua realização perante um magistrado 162 . A natureza dos institutos, entretanto, não pode ser considerada aceita de forma pacífica. No Brasil, Darcy Bessone, a respeito dos modos romanos de transmissão da propriedade, afirmou que ”a propriedade transferia-se, entre os romanos, por efeito do acôrdo de vontades ou, mais precisamente, do contrato. A mancipatio, em sua segunda fase, e a in jure cessio eram já contratos consensuais, pois que se concluíam através de simples convergência de vontades, sem a entrega imediata da coisa. A própria traditio também se espiritualizou, ao surgirem o constitutum possessorium, a traditio brevi manu, a traditio longa manu e, mesmo, a tradição simbólica. Destinando-se a transmitir o domínio, tais modos de adquirir eram contratos reais pelos efeitos” 163 . 161 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 242. 162 Conferir a nota 159. 163 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 52. 58 A posição do doutrinador reflete uma discussão que remonta à própria época a respeito do ato que dava ensejo à transmissão da propriedade e do próprio momento em que se a reconhecia transmitida. A. Santos Justo afirma que, enquanto os romanos seguiam rigidamente o princípio de que a transferência voluntária da propriedade somente podia se realizar mediante um ato típico, necessariamente a mancipatio, a in iure cessio ou a traditio, outros povos consideravam que a transferência se dava mediante a redação e a entrega de um documento que indicava o negócio jurídico efetuado. E que a expansão das conquistas romanas e o conseqüente aumento das relações comerciais com outros povos tornaram inevitável o choque entre os dois princípios 164 . É inegável que, ao longo do tempo, a tradição sofreu alterações que ensejaram inclusive o seu reconhecimento na forma imaterial nos casos especificamente previstos, mas tais circunstâncias não permitem a conclusão de que tenha sido considerada extinta como modo de transmissão da propriedade mobiliária. “Nondimeno cotesto modo di manifestare la rispettiva intenzione dell’alienante e dell’acquirente, trattandosi di mero fatto sociale da interpretare via via secondo l’evoluzione psicologica e civile della società, venne naturalmente, per opera della giurisprudenza, a staccarsi via via dalla pura materialità dell’atto. Nel diritto giustinianeo la transmissione del possesso si può compiere in modi cosi dissimulati e quasi spirituali, che a dichiarare il transferimento della proprietà per mutuo consenso no v‘è più che un passo. Tali sono i casi delle tradizione simbolica, 164 Direito Privado Romano, cit., p. 105. 59 longa manu, brevi manu e del costituto possessório; tutti riassunti nella categoria generale della traditio ficta” 165 . Afirma-se que a imaterialidade da tradição nos casos especificamente detalhados ao longo da história romana não comprova que a transmissão da propriedade passou a ser reconhecida mediante a mera manifestação de vontade das partes, mas antes confirma a regra de que no direito romano a transmissão da propriedade pela traditio dependia necessariamente da entrega – material ou imaterial, nos casos especificamente previstos – do bem e do justo título (ou justa causa). Essa a lição romana aceita pelo direito brasileiro, que reconhece a distinção entre titulus adquirendi e modus acquisitionis. Titulus adquirendi é “a causa jurídica ou razão de ser da transmissão da aquisição ou transmissão do direito”; modus acquisitionis é “o fato ao qual a lei atribui o efeito de constituir um direito real ou operar a sua transmissão” 166 . De acordo com a máxima romana “traditionibus et usucapionibus dominia rerum, non nudis pactis transferuntum”, o domínio das coisas se transfere por tradição e usucapião, nunca por simples pactos. E, se por um lado o contrato por si não transfere o domínio, por outro lado a tradição por si também não é suficiente à transmissão da propriedade, porque é necessário que seja precedida de uma justa causa. Ou seja, para a aquisição da propriedade, no sistema romano, de acordo com a teoria aceita no direito brasileiro, o título não é suficiente para transferir o domínio e o modo só transfere o domínio se o título for justo. Vale dizer, são necessários o 165 Pietro Bonfante. Instituzioni, cit., 1902, p. 237. 166 Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 224. 60 título e o modo 167 . Qualquer outra posição a respeito do direito romano, em que pese a sua relevância em termos de pesquisa e de desenvolvimento teórico, não pode ser aceita, porque em desacordo com os institutos romanos em que se fundamenta o direito brasileiro, como se verá no estudo do sistema brasileiro de transmissão da propriedade mobiliária (item 3.5). 3.2 – Sistema alemão O sistema alemão de transmissão da propriedade tem sua origem no direito romano e exige, para a transmissão da propriedade dos bens móveis, “la entrega de la cosa com la voluntad de las partes dirigida a la transmissión” ou seja, “la transmissión se verifica por entrega y acuerdo sobre el traspasso de la propriedad” 168 . A entrega “se verifica generalmente mediante dar y recibir corporalmente, y no es, em tal caso, una declaración bilateral de voluntad, sino un acto real” 169 . 167 Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 157. 168 Ludwig Enneccerus; Theodor Kipp; Martin Wolff. Tratado de derecho civil. Derecho de cosas (por Martin Wolff). Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1951. Tercer Tomo, Volume II, p. 372. 169 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 372. A respeito da classificação do ato de disposição como contrato real, Andréas Von Tuhr adverte: “Como en el comienzo los juristas han advertido la naturaleza abstracta del acto dispositivo en materia de cosas, y especialmente de contratos reales, ha podido abrirse paso el hábito de designar al acto dispositivo como negocio real, por la circunstancia de que es abstracto. Por ejemplo, para distinguir el pactum de cedendo de la cesión, se ha clasificado a esta última como contracto real, incurriendo en error, pues la cesión no es y no puede ser contrato real, ya que su objeto es uma obligación”. O autor também refere que “parece que los redactores de los Motivos no tuvieram conciencia de haber creado com la expresión ‘disposición’ um nuevo término técnico, que es suficiente para designar a los negócios que afetan el activo del patrimônio, em oposición a los que fundamentan obligaciones” (Teoria general del derecho civil aleman. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1947. Volumen II1, p. 283-284). 61 Como característica peculiar e diversa do sistema romano, a transmissão da propriedade mobiliária no sistema alemão não se verifica por meio de um título – negócio jurídico – e de um modo, mas sim por meio de dois negócios jurídicos. “La transmissión es contrato real y debe, por lo tanto, diferenciarse del negocio que obligue a la transmissión” 170 . Ou seja, para a transmissão da propriedade é necessário um outro ato, além do contrato, mas esse outro ato não está condicionado necessariamente ao contrato, porque para a transmissão da propriedade se abstrai a causa 171 , o que permite afirmar que, ainda que lhe falte um negócio causal válido, a transmissão será eficaz. “O sistema alemão dá eficácia real à entrega-tomada, sem permitir que se veja, através da transparência do acordo, a causa do negócio jurídico básico” 172 . Tratando-se de dois negócios jurídicos desvinculados, não é suficiente que as partes tenham manifestado seu consentimento quanto ao negócio causal antecedente (o contrato de compra e venda, por exemplo), mas sim é necessário que o manifestem válida – e novamente – quando da efetivação da tradição. Para a transmissão da propriedade mobiliária por meio da entrega do bem móvel, portanto, a entrega “há de ser la expressión de la voluntad de transmitir, la aquisición de la possessión, expressión de la voluntad de adquirir la propriedad” 173 . Embora seja possível, quando do aperfeiçoamento do ato de disposição - ou contrato real de entrega –, o reconhecimento de que as partes já 170 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 375. 171 Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 158. 172 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1956. Tomo XV, p. 239. 173 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 376. 62 haviam manifestado validamente o seu consentimento e de que nenhum elemento permite a conclusão de que haveria modificação de sua vontade, exige-se que no momento da entrega subsistam os requisitos do primeiro contrato, como a capacidade das partes para contratar. O sistema alemão admite a transmissão da propriedade por traditio brevi manu, desde que o adquirente já esteja na posse do bem. Nessa hipótese, é indiferente que o adquirente tenha obtido a posse do próprio alienante ou de um terceiro, porque o negócio jurídico causal será reconhecido como suficiente à transmissão da propriedade mobiliária. A transmissão da propriedade mobiliária, nesse caso específico, será reconhecida pela manifestação de vontades das partes contratantes. A entrega, como contrato real desvinculado do acordo que lhe pode ser considerado causal, também pode ser substituída pelo constituto possessório e pela cessão da pretensão de entrega. O constituto possessório apresenta as mesmas características do sistema romano e do sistema brasileiro e funciona de forma inversa em relação à traditio brevi manu. Os dois institutos – o constituto possessório e a traditio brevi manu – permitem a alteração do título sob o qual o possuidor mantém consigo o bem objeto do contrato, sem que o referido bem mude de mãos. No constituto possessório, o alienante, titular do domínio e da posse de um bem, celebra um contrato – que constitui a causa da transmissão da propriedade – com o adquirente. Mediante previsão expressa – ou implícita – no referido contrato, o alienante transfere o seu domínio, mas sob o fundamento do mesmo contrato mantém consigo a posse do referido bem, como se dá no caso do 63 proprietário do veículo que o aliena, mas o mantém na qualidade de locatário ou de comodatário. São necessários dois requisitos à transmissão da propriedade: o acordo entre o alienante e o adquirente a respeito da transmissão da propriedade e o acordo entre ambos a respeito da relação jurídica que fundamenta a manutenção do bem sob a posse do antigo proprietário e atual possuidor a título diverso. Ou seja, a retenção do bem pelo alienante que deixa de ser proprietário deve ser justificada pela circunstância de se tornar possuidor. Na traditio brevi manu, aquele que mantinha a posse direta ou imediata do bem, mas não era o titular do seu domínio, celebra um contrato de compra e venda com o proprietário do bem, titular da propriedade e da posse indireta. Mediante previsão expressa – ou implícita – no contrato, o adquirente, que era apenas possuidor, passa a ser o titular da propriedade, como se dá no caso em que o locatário adquire do locador o bem locado 174 . A cessão da pretensão de entrega, por fim, pressupõe a posse do bem por um terceiro, que a mantém, já que também nesse caso não se verifica entrega material do bem cuja propriedade é transmitida. Quanto à aquisição de bem a non domino, o sistema alemão exige distinção entre a aquisição de coisa extraviada e de coisa não extraviada. Tratando-se de coisa extraviada, que se considera aquela cuja posse foi perdida pelo possuidor imediato sem a manifestação de sua vontade, “se excluye em principio la adquisición de la propriedad, aunque el adquirente proceda 174 Andréas Von Tuhr faz referência a uma situação que afirma ser bastante importante e pouco estudada, quanto ao momento da transmissão da propriedade por meio da traditio brevi manu: “Si el adquirente ya tiene la posesión, el consentimiento le transforma, sin más, en proprietário (brevi manu traditio), siempre que el acuerdo sea en el sentido de transferir inmediatamente la propriedad En cambio, si se convino en que el adquirente podrá apropriarse de la cosa que está en su posesión sólo en un momento ulterior, no adquiere la propriedad inmediatamente, sino la facultad de adquirirla más tarde por efecto de su voluntad” (Teoria. Volumen II1, cit., p. 217-218). 64 de buena fe”, mas essa regra não se aplica ao dinheiro e aos títulos ao portador, bem como não se aplica aos bens vendidos em hasta pública 175 . Por sua vez, a propriedade da coisa não extraviada, do dinheiro e dos bens vendidos em hasta pública é considerada transmitida inclusive a non domino, desde que preenchidos dois requisitos: “la buena fé del adquirente y una adquisición de la posesión de carácter diverso según sea el modo de transmisión. El fundamento de este principio es que se considera digno de protección a quien creu en la propriedad del enajenante que le procuro la posesión” 176 . Por fim, quanto à transmissão a non domino por entrega (tradição real) ou por acordo (tradição ficta), tem-se que a boa-fé do adquirente do bem mediante entrega deve existir no momento da entrega, não se lhe aplicando qualquer sanção se posteriormente vem a saber que o alienante não era o proprietário do bem. No caso da traditio brevi manu, exige-se a boa-fé do adquirente no momento do acordo, bem como que se exige que o adquirente tenha obtido a posse do bem do próprio alienante (a non domino) e não de terceiro. O constituto possessório não enseja a transmissão da propriedade a non domino, ainda que ao adquirente de boa-fé, considerando-se que a posse é mantida nas mãos do próprio alienante a non domino. A única hipótese de aperfeiçoamento da transmissão da propriedade nesse caso se dará mediante a entrega do bem pelo possuidor/alienante ao adquirente, desde que a este se reconheça ainda a boa-fé. 175 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 394-395. 176 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de cosas (por Martin Wolff), cit., p. 396. 65 E, quanto à cessão da pretensão de entrega, se o alienante é possuidor mediato do bem, transmite ao adquirente a posse mediata e, juntamente com esta, o adquirente recebe a propriedade do bem, desde que tenha agido de boa-fé no momento da cessão. Mas a propriedade não será transmitida ao adquirente se o alienante a non domino não for possuidor mediato do bem cuja cessão de pretensão se transmite. Nesse último caso, o adquirente do bem mediante a cessão da pretensão de entrega somente adquirirá a propriedade se receber a posse do terceiro possuidor e desde que, ao recebê-la, seja-lhe reconhecida a boa-fé. 3.3 – Sistema francês No direito francês anterior ao chamado Code Napoléon, datado de 1804, o conceito teórico da compra e venda era o mesmo aceito pelo direito romano. Aubry e Rau explicam que, de acordo com a doutrina antiga, “l’aquisition des droits réels, et principalement celle du droit de proprietè, supposerait em general le concours de deux éléments distincts, à savoir le titre e le mode d’acquérir. D’après cette doctrine, le titre serait la cause juridique qui rendrait l’acquisition légalement efficace, et le mode d’acquérir le fait par lequel elle se consommerait” 177 . Na prática cotidiana francesa, o princípio romano foi considerado arbitrário e deixou de ser utilizado. Com o tempo, tornou-se usual, amparada pelo 177 “a aquisição dos direitos reais e especificamente do direito de propriedade supunha em geral o concurso de dois elementos distintos, a saber o título e o modo de adquirir. De acordo com essa doutrina, o título era a causa jurídica que tornava a aquisição legalmente eficaz, e o modo de adquirir era o fato por meio do qual a aquisição se consumava” (C. Aubry et C. Rau. Cours. Tome Douze, cit., p. 74/75). 66 costume, a introdução da cláusula denominada dessaisine-saisine, que permitia a transmissão da propriedade por tradição ficta e dispensava a entrega real e efetiva do bem. Quando das discussões a respeito da elaboração do Code Civil, “la Commission chargée de présenter le projet de ce Code admit en principe que la propriété, soit des meubles, soit de immeubles 178 , devait, indépendamment de la tradition, et même de tout clause expresse destinée à y suppléer, se transférer par le seul effet des conventions ayant pour object d’en opérer la transmission. Ce príncipe fut adopté sans opposition par le Conseil d’Etat et par le Tribunat” 179 . A partir do entendimento reconhecido como aceito pelo Código Civil francês, nesse sistema se reconheceu à convenção o efeito translativo, o que equivale a dizer que o título, por si, é suficiente para transferir a propriedade. Não é necessário o modo, o que significa que, aperfeiçoada a convenção, não se reputa necessária a formalidade da tradição. A propriedade é transmitida solu consensu. “Dans le système du Code Napoléon, les conventions ayant pour objet de transférer ou de constituer des droits personnels ou réels, una fois parfaites comme telles, transmettent et 178 Considerado o objeto do estudo do presente trabalho, o sistema francês foi considerado exclusivamente quanto à transmissão da propriedade mobiliária. 179 “a Comissão encarregada de apresentar o projeto do Código admitiu que a propriedade, fosse de bens móveis ou imóveis, devia, independentemente da tradição, e independentemente de qualquer cláusula expressa para supri-la, ser transferida pelo efeito das convenções que tivessem como objeto o bem a ser transferido. Esse princípio foi adotado sem oposição pelo Conselho de Estado e pelo Tribunat” (C. Aubry et C. Rau. Cours, cit., p. 74/75). Pontes de Miranda afirma que a aceitação da mudança do sistema de transmissão da propriedade mobiliária não foi consensual e que a melhor doutrina francesa lhe foi contrária, para cuja comprovação transcreve Pothier: “La chose que le débiteur s’est obligé de donner, continue donc de lui appartenir, et le créancier ne peut devenir propriétaire que par la traditión réelle ou feinte, que lui en fera le debiteur em accomplisant son obligatión” (Robert Joseph Pothier. Oeuvres, I, n.º 151, 39 APUD Pontes de Miranda. Tratado. Tomo XV, cit., p. 243 (“A coisa que devedor está obrigado a entregar continua a lhe pertencer, e o credor não pode se tornar proprietário senão pela tradição real ou ficta que lhe fará o devedor em cumprimento de sua obrigação”). 67 établissent ces droits par elles-mêmes, c’est-à-dire indépendamment de toute formalité extrinsèque, et de tout acte d’exécution; et ce, non seulement en ce qui concerne les rapports des parties contractantes, mais encore vis-à-vis des tiers, auxquels telle ou telle convention serait oposable de sa nature, et d’après les règles établies em matière de preuve” 180 . Especificamente quanto aos bens móveis, o artigo 2279 do Código Civil francês estabelece que “la possession vaut titre” 181 e é utilizado para fins de solução de litígios envolvendo bens dessa natureza 182 . O fundamento da regra é a ausência de proteção do adquirente de um bem móvel. Embora a reivindicação do bem móvel pelo proprietário obedecesse à lógica jurídica de que ninguém pode alienar o que não é seu, considerava-se que causava insegurança nas relações jurídicas do dia-a-dia. “Ahora bien, es muy difícil, en ocasión en que se trata de un mueble, el verificar los derechos de su causante; las operaciones mobiliarias no constan geralmente por escrito; los muebles se transmiten, de vendedor a comprador, por ejemplo, muy simplesmente de mano a mano, sin que la transferencia de propriedad deje huellas; de hecho, el comprador de um mueble no dispone de ningún medio eficaz para verificar la situación jurídica 180 “No sistema do Código napoleônico, as convenções que têm por objeto transferir ou constituir direitos pessoais ou reais, uma vez aperfeiçoadas, transmitem e estabelecem esses direitos por si mesmas, ou seja, independentemente de qualquer formalidade extrínseca e de qualquer ato de execução, e isso não apenas em relação às partes contratantes, mas também em relação aos terceiros em relação aos quais a convenção seria oponível por sua natureza, de acordo com as regras estabelecidas em matéria de prova” (C. Aubry et C. Rau. Cours, cit., p. 77). 181 A posse equivale ao título. 182 “Como la excepción está siempre en oposición con el principio al que se opone, es preciso llegar a la conclusión de que ese principio consiste aqui en la negativa de la reividicatión contra el poseedor de um mueble. El artículo 2279 debe, pues, entenderse de la manera siguiente: 1º en tesis general, no se reivindican los muebles (1er. apartado); 2º por excepción, la víctima de una pérdida o de un robo tiene la acción de reivindicación durante cierto tiempo” (Louis Josserand. Derecho civil. La propriedad y los otros derechos reales y principales. Buenos Aires: Bosch y Cia. Editores, 1950, p. 208-209). 68 de su causante; y por eso, es injusto que quede expuesto a la reivindicación por parte de um tercero; la equidad exige que quien entró en posesión de um mueble en condiciones normales, no pueda ser inquietado” 183 . A aplicação desse dispositivo legal pode funcionar como uma regra de prova ou como um princípio. “Pour régler ce conflit entre titulaires de droits réels concurrents en l’absence de publicité foncière, l’article 2279, al. 1er fournit une solution fort utile en faisant présumer que le possesseur a acquis par juste titre le meuble litigieux. Le possesseur est donc dispensé de rapporter la preuve de son droit sur le meuble. Le texte procède ainsi à um renversement de charge de la preuve car c’est à la personne revendiquante ou à ses ayants droits qu’il revient de prouver que le possesseur n’a pas acquis la propriété de la chose 184 . A segunda função, ou seja, a aplicação da regra do artigo 2279 como princípio se verifica na hipótese de aquisição a non domino. “Dans ce cas, um possesseur a cru acquérir valablement une chose d‘une personne qui n’en était pás le propriétaire. L’application du principe selon lequel la possession vaut titre va permettre ici de transférér instantanément le droit de propriété au possesseur a non domino sans que le revendiquant puisse rapporter la preuve contraire. La présomption de propriété est irréfragable et fait disparaître le conflit de droits entre acquéreur et véritable 183 Louis Josserand. Derecho civil, cit., p. 210. 184 Jean-Louis Bergel; Marc Bruschi; Sylvie Cimamonti. Traité de droit civil – Les biens. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, E.J.A., 1999, p. 243-244. “Para solucionar o conflito entre titulares de direitos reais concorrentes na ausência de publicidade na sua origem, o artigo 2279, alínea primeira, estabelece uma solução de grande utilidade ao estabelecer a presunção de que o possuidor adquiriu mediante justo título o bem móvel litigioso. Essa presunção dispensa o possuidor de produzir a prova de seu direito sobre o referido bem. O texto impõe a inversão do ônus da prova, recaindo sobre o reivindicante a necessidade da prova de que o possuidor não adquiriu a propriedade do bem litigioso”. 69 propriétaire” 185 . As duas aplicações da regra do artigo 2279, alínea primeira, do Código Civil francês, não permitem a conclusão de que, quanto aos bens móveis, a tradição foi (re)admitida por aquele sistema de direito como modo de transmissão da propriedade mobiliária 186 . Considera-se que a alínea segunda do mesmo dispositivo legal (“Néanmoins celui qui a perdu ou auquel il a été volé une chose peut la revendiquer pendant trois ans à compter du jour de la perte ou du vol, contre celui dans les mains duquel il la trouve; sauf à celui-ci son recours contre celui duquel il la tient” 187 ) restringe consideravelmente a aplicação da alínea primeira e afasta a possibilidade de reconhecimento de posse como comprobatória da propriedade, como regra. Nesse caso, a posse daquele que pensou ter adquirido o bem validamente – posse, portanto, de boa-fé, reconhecida como apta a comprovar a propriedade, nos termos da alínea primeira – cede à prova da propriedade sem posse daquele que, tendo sido proprietário e possuidor, perdeu a posse em decorrência da perda ou do furto do bem em questão. Por outro lado, tem-se que a regra do artigo 2279, alínea primeira, do Código Civil francês, embora não admita a conclusão de que o sistema francês 185 “Nesse caso, um possuidor acredita ter adquirido validamente um bem de uma pessoa que não era o proprietário. A aplicação do princípio segundo o qual a posse vale como título permite transferir imediatamente o direito de propriedade ao possuidor a non domino, sem que o reivindicante possa produzir prova em contrário. A presunção de propriedade é irrefragável e faz desaparecer o conflito de direitos entre o adquirente e o verdadeiro proprietário” (Jean-Louis Bergel et AL. Traité – Les Biens, cit., p. 244). 186 Lafayette Rodrigues Pereira afirma que o direito francês cedeu “à força das coisas” e restabeleceu de fato a tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária por meio da previsão do artigo 2279 do Código Civil Francês (Direito das Coisas, cit., nota 2). 187 “Não obstante, aquele que perdeu um bem ou o teve furtado pode reivindicá-lo durante três anos a contar da data da perda ou do furto contra aquele que a encontrou; salvo a este o direito de regresso contra aquele de quem o adquiriu”. 70 (re)admitiu a tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária, comprova que o sistema que admite a transmissão da propriedade mobiliária por meio das convenções apresenta falhas graves que, em casos de discussão a respeito de (des)cumprimento de contratos de compra e venda de bens móveis, poderão ensejar problemas da mesma natureza dos problemas identificados nos sistemas que exigem, além do título (ou convenção), o modo para a transmissão da propriedade mobiliária. Considera-se a situação concreta em que duas partes celebraram um contrato escrito de compra e venda de um aparelho de som. Suponha-se que o comprador pagou o preço quando da celebração do contrato, mas não recebeu imediatamente o bem porque foi providenciar os meios necessários ao seu transporte, por exemplo. Em razão da eficácia conferida pelo sistema de direito francês ao contrato de compra e venda, a celebração do contrato, por si, transferiu a propriedade do aparelho de som ao comprador. Em conseqüência, a recusa do vendedor à entrega do bem enseja ao comprador o direito à reivindicação do aparelho de som, como proprietário. Para a reivindicação, o comprador deverá comprovar a celebração do contrato de compra e venda, mediante os meios de prova admitidos pela legislação francesa pertinente. No caso concreto referido, o comprador dispõe do próprio contrato escrito, como justo título, a comprovar a transmissão da propriedade do bem móvel. Comprovada a celebração do contrato, aplicar-se-á a regra geral de que a propriedade se transmite pela convenção e independentemente de qualquer ato externo, e o aparelho de som deverá ser entregue ao comprador, como proprietário. 71 A solução será diversa se o contrato de compra e venda tiver sido celebrado de forma verbal e na presença exclusiva das artes. Suponha-se ainda que o comprador tenha feito o pagamento do preço, em dinheiro, no ato da celebração, sem exigir recibo ou qualquer outra prova da quitação de sua obrigação. O comprador, que, além de proprietário do aparelho de som como conseqüência da própria celebração do contrato, cumpriu a sua obrigação de pagamento do preço, não tem a posse do aparelho de som. Mantém-na o próprio vendedor, e a posse (do vendedor) é injusta a partir da recusa ao pedido de entrega feito pelo comprador. Considerada a ausência de prova da celebração do contrato, porque se tratou de contrato verbal celebrado na presença exclusiva das partes, bem como a ausência de prova do pagamento do preço pelo comprador, é de se reconhecer a inviabilidade concreta da produção da referida prova, que permitiria, por sua vez, a prova da transmissão da propriedade e daria ao comprador o direito à reivindicação do aparelho de som como proprietário, conforme o exemplo anteriormente utilizado. Nesse caso, inviabilizada a prova da convenção, restará a aplicação do disposto no artigo 2279, alínea primeira, do Código Civil francês, que, como regra de prova, ensejará a conclusão de que ao vendedor não se impõe o ônus de comprovar que o aparelho de som é seu, embora não o seja, conforme o exemplo elaborado. E o comprador não disporá de nenhum meio de prova dos fatos constitutivos de seu direito de propriedade, que somente se sabe existente em decorrência da narrativa. Considerados os dois exemplos, a conclusão é de que, quanto aos bens móveis, a posse equivale ao título somente em caso de não comprovação da 72 existência do próprio título pela parte a quem este beneficiaria. No segundo exemplo, em que será aplicada a regra do artigo 2279 do Código Civil francês e será reconhecida a propriedade ao vendedor, pode-se alegar que a solução – injusta – não decorre de um problema do sistema de direito francês de transmissão da propriedade mobiliária, mas sim das regras de prova do referido sistema. Considera-se, entretanto, que se trata de regras de prova decorrentes da aplicação dos próprios institutos de direito material previstos no artigo 2279 do Código Civil francês. A conseqüência é que a regra criada com o objetivo de prestigiar o concreto e beneficiar a situação fática, em detrimento da teoria – da transmissão da propriedade mobiliária por meio da convenção –, pode acabar por beneficiar a má-fé em detrimento da boa-fé. O problema não é exclusivo do sistema que reconhece às convenções a eficácia da transmissão da propriedade, como se verá quando do estudo do sistema brasileiro. 3.4 – Sistema inglês 188 O principal diploma legal referente à transmissão da propriedade 188 A Inglaterra, a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do Norte formam o Reino Unido, cujo sistema de direito é, em tese, uno. No entanto, existem previsões específicas, como por exemplo a Section 11 do Sale of Goods Act 1979, que estabelece que as subseções 2 a 4 e 7 não se aplicam à Escócia e a que a subseção 7 se aplica somente à Escócia. Outro exemplo é o limite de dez libras para que o contrato precise ser celebrado na forma escrita ou tenham sido dadas arras ou exista alguma prova concreta de sua celebração para que esse contrato possa ser discutido em juízo, regra que vigora na Irlanda do Norte, mas não vigora na Inglaterra. Ainda, por se tratar de países de common law, a interpretação das regras pelos tribunais não é necessariamente a mesma. Por tal razão, tendo sido estudada a lei inglesa aplicada aos casos concretos daquele país, a opção foi pela referência exclusiva ao sistema inglês e não ao sistema do Reino Unido. 73 mobiliária na Inglaterra é o Sale of Goods Act 189 , datado de 1893, reeditado em 1979 e emendado em algumas oportunidades desde então. As regras estabelecidas pelo Sale of Goods Act a respeito da transmissão da propriedade mobiliária decorreram da influência comercial vigente no século XIX, ocasionada pelo expansionismo inglês durante a era vitoriana. As regras anteriores à era vitoriana tinham por fundamento exclusivamente os costumes estabelecidos pelas partes nas respectivas regiões onde os contratos eram celebrados. Por causa do expansionismo decorrente do estabelecimento de diversas colônias inglesas ao redor do mundo e do crescimento da indústria inglesa, que ensejou o crescimento do comércio com outros países, os vitorianos decidiram que seria necessário racionalizar. Pretenderam formular regras que tivessem validade para o país e também internacionalmente. Desse pensamento resultaram as regras referentes à transmissão da propriedade mobiliária como se as reconhece atualmente 190 . A propriedade mobiliária é transmitida por meio da manifestação do consentimento das partes, independentemente de qualquer ato externo, ou seja, no caso do contrato de compra e venda, independentemente do pagamento do preço e da entrega do bem, com a ressalva de que o bem objeto do contrato deve ser passível de entrega imediata. O acordo que dá ensejo à transmissão da propriedade mobiliária pode ser inclusive verbal, e não existe limite de valor para que o acordo verbal tenha validade entre as partes e perante terceiros. Isso significa que a propriedade 189 Disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7. 190 Tony Lancaster, Magistrado da Newcastle Upon Tyne Crown Court, em entrevista realizada no dia 26 de julho de 2005, em Newcastle, Inglaterra. 74 mobiliária é transferida pela manifestação da vontade das partes tanto no caso de o objeto ser uma caneta, no valor de uma libra, como no caso de ser um anel de diamante, no valor de dez mil libras. Tony Lancaster, magistrado da Newcastle Upon Tyne Crown Court, apresenta o seguinte exemplo: duas pessoas celebram um contrato de venda de um anel de diamante. O bem objeto do contrato existe e é passível de entrega imediata, o que permite a conclusão de que a própria celebração do contrato transmitiu a propriedade do vendedor ao comprador. Mas o anel é guardado no cofre da casa do vendedor, onde permanecerá até a manhã do dia seguinte ao dia da celebração do contrato e da conseqüente transmissão da propriedade mobiliária, oportunidade em que o comprador passará para buscá-lo, conforme acordo expresso das partes. Se durante a noite o cofre for furtado, considerada a ausência de culpa do vendedor, a perda do bem será do comprador, porque a propriedade do anel lhe havia sido transmitida no momento em que o contrato fora celebrado. Se se tratar de contrato celebrado entre um consumidor e uma joalheria, por exemplo, a regra legal estrita poderia dar lugar à utilização de normas criadas em benefício do comércio e do consumidor, o que ensejaria a utilização do seguro da joalheria para a cobertura do dano decorrente do furto do anel vendido ao consumidor e provavelmente acarretaria a oportunidade ao consumidor de escolher outro anel, que lhe seria entregue no lugar do anel furtado. Mas essa solução caracterizaria exceção e não a aplicação da regra estrita prevista legalmente 191 . As regras específicas para as hipóteses decorrentes do contrato de compra e venda serão estudadas no item 5.4. 191 Tony Lancaster, cit. 75 3.5 – Sistema brasileiro Não há consenso se no direito brasileiro anterior ao Código Civil de 1916 a transmissão da propriedade mobiliária se dava pelo contrato independentemente de qualquer ato externo ou exigia a tradição. Luiz da Cunha Gonçalves afirma que, no Código Civil de 1916, o legislador brasileiro abandonou o princípio tradicional do direito civil, previsto nas Ordenações, e adotou o modelo alemão, ao estabelecer que a propriedade dos bens não se transfere pelo contrato antes da tradição 192 . Sílvio de Salvo Venosa afirma que, no direito vigente anteriormente ao Código Civil de 1916, “proclamava-se a suficiência tão-só do contrato para a aquisição da propriedade, sem necessidade de outra formalidade” 193 . Caio Mário da Silva Pereira, no mesmo sentido, afirma que no direito brasileiro anterior ao Código Civil de 1916 considerava-se que “a propriedade se transmitia exclusivamente pelo contrato, sem a necessidade de qualquer outra exigência” 194 . Darcy Bessone, por sua vez, ao tratar da eficácia do contrato de compra e venda no direito brasileiro anterior à vigência do Código Civil de 1916, afirma que não houve consenso sobre a transmissão da propriedade pelo contrato ou a necessidade do ato dispositivo consistente, no caso dos bens móveis, na tradição 195 . Consignado o dissenso a respeito do direito brasileiro pré-codificado, 192 Da compra e venda no direito comercial brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1950, p. 72. 193 Direitos reais, cit., p. 187. 194 Instituições. Direitos reais, cit., p. 118. 195 Da compra e venda, cit., p. 74-75. Também a respeito da transmissão da propriedade por meio do contrato de compra e venda ou da tradição no Brasil anteriormente à vigência do Código Civil de 1916, conferir o Capítulo 6 – O contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito brasileiro, Item 6.1 – Eficácia. 76 a manifestação da maioria dos juristas comprova que a tese da transmissão contratual da propriedade mobiliária no Brasil jamais obteve real aprovação. A respeito da transmissão da propriedade mediante o contrato e independentemente de qualquer ato externo, escreveu Teixeira de Freitas, na exposição de motivos de seu projeto de Consolidação das Leis Civis: “Estabelecido o direito pessoal, de onde tem de resultar a transmissão da propriedade, e pois que a fé dos contractos deve ser mantida, muitos espiritos não quizerão vêr mais nada; e derão logo a propriedade como transmittida, e como adquirida, só pelo simples poder do concurso das vontades em um momento dado. Tomou-se a propriedade em seu elemento individual somente, não attendeu-se ao seu elemento social; contou-se com a boa fé das convenções, como se má fé não fosse possível, ou não pudesse prejudicar á terceiros. As cousas, que se convenciona transmittir, é possível, que não sejam transmittidas; e a mesma cousa póde sêr vendida a duas differentes pessoas. Se o contracto basta, independente de qualquer manifestação exteriôr da transferência do domínio, o segundo compradôr póde em boa fé transmittir também a cousa, que assim irá sucessivamente passando á outros. Ahi temos um conflicto de direitos, ahi temos uma colisão, onde aparece de um lado o interesse de um só, e do outro lado o interesse de muitos 196 . Também a respeito da transmissão da propriedade mediante tão somente a celebração do contrato, escreveu Manoel Ignacio Carvalho de Mendonça: “Identificar contracto com domínio foi sempre a mais revoltante das aberrações jurídicas. É pelos defeitos reaes e inilludiveis do systema francez que as legislações de outros povos tem-se atido ao principio romano. Este é indubitavelmente mais 196 Augusto Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. Vol. I, p. CXCII-III. 77 accórde com uma concepção social da propriedade” 197 . A partir do Código Civil de 1.916, a corrente predominante foi de que o direito brasileiro adotou o sistema romano para a transmissão da propriedade mobiliária 198 , mediante a exigência, para a sua efetivação, de um título aquisitivo e, além deste, de um modo de aquisição. A respeito da tradição no sistema romano, escreveu Teixeira de Freitas, também na exposição de motivos de seu projeto de Consolidação das Leis Civis: “Pela natureza das cousas, por uma simples operação lógica, por sentimento espontaneo de justiça, pelo interesse da segurança das relações privadas ás que liga-se a prosperidade em geral, como se-queira dizer, decide-se de prompto, que o direito real deve-se manifestar por outros caracteres, por outros signaes, que não sejam os do direito pessoal; e que esses signaes devem ser tão visíveis, tão públicos, quanto fôr possivel. Não se-concebe, que a sociedade esteja obrigada a respeitar um direito, que não tem conhecido. Eis a razão philosophica do grande principio da tradição, que a sabedoria dos Romanos tem fixado, as legislações posteriores reconhecido, e que também passou para o nosso Direito Civil 199 . Segundo Laffayette Rodrigues Pereira, a natureza do domínio exige que o seu deslocamento de uma pessoa a outra seja identificado por um sinal 197 Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça. Doutrina e Prática das Obrigações. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia. Volume I, p. 196. 198 Código Civil de 1916, Art. 620. “O domínio das coisas não se transfere pelos contratos antes da tradição. Mas esta se subentende, quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório (artigo 675)”. A respeito do sistema brasileiro, R. Limongi França afirma que não se pode dizer que adotou o sistema alemão, “porque sempre seguiu a tradição romana, muito antes do aparecimento do Código Alemão, cujo projeto é da última década do Século XIX” (Manual de direito civil, cit., p. 75-76). Ou seja, o doutrinador também afirma que o direito brasileiro pré-codificado já exigia o título aquisitivo e a modo de aquisição para a transmissão da propriedade mobiliária (Conferir as notas 192 a 195). 199 Augusto Teixeira de Freitas, Consolidação, cit., p. CLXXXIII. 78 exterior que o comprove e o confirme perante a sociedade. Como direito absoluto, no sentido de ser oponível erga omnes, é imperioso que se garanta à sociedade o conhecimento da transmissão da propriedade, para a segurança dos interesses sociais e dos interesses ligados à própria propriedade, visando a prevenir as fraudes que a má-fé de alguns, protegida pela clandestinidade que se seguiria decorrente da transmissão da propriedade sem sinal exterior,– poderia causar em prejuízo da boafé da grande maioria 200 . Adotado pelo direito brasileiro o sistema romano, pode-se afirmar que o contrato, por si só, não transmite a propriedade da coisa, mas apenas cria a obrigação de transferir 201 . O título – ao que interessa especificamente ao objetivo do presente trabalho, o contrato de compra e venda – é simplesmente a causa da aquisição e não tem eficácia translativa. Ou seja, o contrato produz somente um direito pessoal: para o alienante, gera a obrigação de entregar a coisa; para o adquirente, gera o direito de exigir do alienante a tradição do bem objeto do contrato. Antes de cumprida a obrigação da entrega pelo alienante não há transmissão do domínio, o que resulta na conclusão de que o alienante detém e retém a propriedade do objeto alienado, bem como na conclusão de que, até o momento da tradição, o adquirente é um mero credor do alienante, com ação pessoal para forçá-lo a entregar a coisa ou a restituir-lhe o preço no caso de ter sido pago. O cumprimento da obrigação do alienante somente se consuma pela tradição, e a tradição, uma vez realizada, desloca o domínio da coisa alienada da pessoa do alienante para a pessoa do 200 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 127. 201 José Osório de Azevedo Júnior. Compra e venda – troca ou permuta. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 19. 79 adquirente. No ensinamento de Manoel Ignacio Carvalho de Mendonça: “Os contractos e as obrigações delles resultantes foram sempre, como são ainda, apenas um justo titulo para a acquisição da propriedade por transferência de um proprietario a outro; só produzem um direito puramente pessôal que, para o alienante é a obrigação de entregar a cousa, e para o adquirente o de exigir a tradição. Antes do alienante cumprir a obrigação que assume, nem-um domínio tem o adquirente. O alienante continúa com a propriedade do objecto alienado, com sua livre disposição” 202 . A respeito do assunto, afirma Orlando Gomes que, embora o título seja indispensável, por ser a fonte da aquisição, ou o negócio jurídico causal, não basta para que esta se efetue, sendo imprescindível o modus, que, em suma, é o fato jurídico lato senso a que a lei atribui o efeito de produzir a aquisição da propriedade. O modo pressupõe um título conforme o direito e só existe se reconhecido por lei 203 . Entendemos que o sistema brasileiro exige para a transmissão da propriedade mobiliária o título aquisitivo e o modo de aquisição. Para os fins do presente trabalho, o contrato de compra e venda e a tradição. 3.6 – Paralelo entre direito estrangeiro e o sistema brasileiro Considerados os sistemas romano, alemão, francês e inglês de transmissão da propriedade mobiliária, afirma-se que o sistema brasileiro tem seu 202 Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça. Doutrina, cit., p. 197. 203 Orlando Gomes. Direitos reais, cit., p. 159. 80 fundamento no direito romano, especificamente na dupla exigência do direito romano de um título aquisitivo e de um modo de aquisição para a transmissão da propriedade mobiliária. O sistema alemão, que, por um lado, apresenta semelhança com o direito brasileiro em razão da duplicidade de momentos necessários à transmissão da propriedade mobiliária, distancia-se do sistema brasileiro, por outro lado, em razão da exigência de dois negócios jurídicos para a transmissão da propriedade, enquanto o sistema brasileiro exige um título causal – o negócio jurídico – e um modo. A distinção entre o negócio jurídico da tradição no direito alemão e a tradição como modo de aquisição no direito brasileiro tem especial relevância no caso de tradição sem justo título. No sistema de direito alemão, em razão da abstração da causa à qual se segue a tradição, esta, efetivada, produzirá seus efeitos, ou seja, a propriedade terá sido transmitida, ainda que sem causa. Por outro lado, no sistema de direito brasileiro, porque o modo está necessariamente ligado ao negócio jurídico causal, que constitui o seu fundamento e subordina a sua validade, como regra a tradição sem justo título não ensejará os seus efeitos, ou seja, o adquirente terá a posse injusta do bem e estará sujeito à sua reivindicação pelo proprietário. Quanto aos sistemas francês e inglês, é inegável que, em princípio, divergem de forma absoluta do sistema brasileiro, considerado especificamente o momento em que se reputa transferida a propriedade, ou seja, o momento da celebração do contrato, nos dois primeiros sistemas, e o momento da tradição do bem objeto do contrato, no sistema nacional. 81 As regras gerais dos sistemas francês e inglês permitem a afirmação inicial e genérica de que a propriedade mobiliária se transmite mediante a mera convenção e independentemente de qualquer ato externo, ou seja, independentemente da tradição. Por outro lado, as diversas regras específicas dos dois sistemas permitem também a conclusão de que ambos, reconhecidas as regras gerais, reconhecem também a insuficiência destas à solução adequada de todas as situações concretas. É sabido que a propriedade é um poder de direito, enquanto a posse é um poder de fato sobre a coisa. Enquanto no juízo possessório se discute o jus possessionis, que é o direito à posse nascido da própria posse, no juízo petitório se discute o jus possidendi, que se caracteriza como o direito à posse nascido do direito de propriedade. O fundamento da discussão da posse há que levar em conta a sua origem, especificamente se foi justa. Isso porque, tratando-se de posse injusta, não poderá ser invocada contra o direito de propriedade, caracterizando violência contra esse, ou será considerada meramente detenção, o que impedirá igualmente seja invocada contra o referido direito de propriedade. Consideradas tais circunstâncias, no sistema francês a regra do artigo 2279 do Código Civil tem especial relevância. A doutrina francesa fundamenta o seu conteúdo (“En fait de meuble, la possession vaut titre” 204 ) na constatação da insuficiência da proteção do adquirente de bem móvel, em razão da inexistência de registro e, portanto, de 204 “Quanto aos bens móveis, a posse equivale ao título”. Acrescenta-se, equivale ao título que fundamenta a propriedade. 82 controle da transmissão de bens dessa natureza. Se, por um lado, não se reconhece que o referido dispositivo legal (re)estabeleu a tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária, como pretendeu Lafayette Rodrigues Pereira 205 , por outro lado é inegável que permitiu uma perspectiva diversa a respeito da situação fática da posse como prova da propriedade. A conclusão é de que no sistema francês a regra geral de que a convenção transmite a propriedade se aplica aos bens móveis. Comprovada a convenção, esta se sobrepõe à posse para o fim de reconhecimento do titular da propriedade. E, não comprovada a convenção, e somente nesse caso, a posse é reconhecida como – equivalente ao – título para fins de reconhecimento da titularidade da propriedade 206 . Por sua vez, no sistema brasileiro, a comprovação da celebração da convenção não ensejará o reconhecimento da titularidade da propriedade ao adquirente, considerando-se que o negócio jurídico causal constitui apenas o título aquisitivo que fundamentará a tradição, por meio da qual a propriedade mobiliária será transmitida. Em conseqüência, diversamente do que ocorre no sistema francês, o sistema brasileiro não reconhece ao comprador o direito de se valer da ação de reivindicação do bem, já que esta é exclusiva do proprietário (e o comprador que não recebeu o bem pela tradição não é proprietário do bem comprado). Afastada a regra geral – a propriedade mobiliária no sistema francês é transmitida pela convenção e a propriedade mobiliária no sistema brasileiro é 205 Conferir a nota 186 206 Conferir 5.3. 83 transmitida pela tradição fundada na convenção – em casos que não comportam a sua aplicação por razões específicas a serem identificadas concretamente, tem-se que os dois sistemas apresentam semelhança quanto à importância da posse do bem móvel para o reconhecimento da titularidade de sua propriedade. Assim é que, no sistema francês, o adquirente pelo constituto possessório não adquirirá a propriedade do bem móvel se o alienante, que mantém a posse do bem, aliená-lo a terceiro de boa-fé e entregá-lo materialmente a esse terceiro. “En fait de meubles, le constitut possessoire n’investit pas l’acheteur de la possession des choses vendues, à l’égard d’un second acquéreur de bonne foi. Ce dernier sera préféré, s’il a été mis em possession réelle” 207 . Portanto, a solução francesa para a situação comprova que, nessa hipótese, a convenção foi suplantada pela tradição. No Brasil, inexiste regra legal com o mesmo conteúdo do artigo 2279 do Código Civil francês, o que se reputa benéfico, considerado o sistema de transmissão da propriedade mobiliária adotado e a incontestável existência de número ilimitado de situações em que as circunstâncias ensejam consideração específica. Sem prejuízo, a posse do bem móvel é, como regra, o primeiro indício a ser considerado para a prova da propriedade do referido bem 208 . Ou seja, 207 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 49 (“Quanto aos bens móveis, o constituto possessório não investe o adquirente na posse das coisas vendidas, considerado um segundo adquirente de boa-fé. Ao último será dada preferência se obteve a posse material dos bens”). 208 “Execução – Penhora – Nomeação de bens – Ordem do artigo 655 do Código de Processo Civil – Pedras preciosas – Prova da propriedade – Desnecessidade – Posse – Admissibilidade. Desnecessária a comprovação da titularidade do bem móvel por quem é possuidor, tendo em vista a presunção 'juris tantum'” (Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º 639.381-00/5 – 8ª Câmara – Relator: Juiz Ruy Coppola – J. 27.7.2000). 84 em princípio o possuidor do bem móvel é tido como o seu proprietário 209 . Dessa regra decorre a conclusão de que, para discussão a respeito da propriedade de bens móveis, incumbe àquele que a alega a comprovação do fundamento da posse exercida pelo atual possuidor, ou seja, incumbe-lhe (àquele que pretende discutir a propriedade de um bem móvel que se encontra na posse de outrem) a comprovação de que a posse atual é exercida mediante título que não prevalece sobre o seu próprio título. Não comprovado o fundamento da alegação, a posse – atual – resiste e comprova a propriedade. Nesse sentido: “Agravo de petição – Embargos de terceiro – Ausência de prova da propriedade – Improvimento – Tratando-se de bens móveis, cuja propriedade se transfere pela simples tradição, presume-se proprietário aquele que detém a posse dos bens, salvo prova em sentido contrário, mormente quando, além de não provar a propriedade, a agravante não apresentou nenhum argumento ou justificativa para os bens que alega serem seus estarem em outro endereço e na posse de outra pessoa” (Tribunal Regional do Trabalho de 20ª Região – Apelação n.º 00136-2005-004-20-00-9 – (2474/05) – Relator: Juiz Eliseu Pereira do Nascimento – J. 30.08.2005) 210 . 209 “Embargos de Terceiro. Penhora sobre bens encontrados na residência do devedor. Propriedade presumida ‘juris tantum’. Alegação do bem pertencer a terceiro residente no mesmo imóvel. Ausência de prova a elidir a presunção. Recurso improvido. Os bens encontrados na residência do devedor presumem-se, até prova em contrário, de sua propriedade, cujo terceiro que habitar na mesma residência deverá para liberar da constrição os bens comprovar ser o titular de sua propriedade” (1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo – Recurso n.º 1528 – J. 24.02.99); “Embargos de Terceiro – Penhora – Incidência sobre bens móveis – Alegação do embargante de que é proprietário do imóvel onde se encontram os bens constritos. Posse inequívoca e propriedade dos bens móveis não demonstradas. Embargos improcedentes. Sentença mantida” (1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo – Acórdão n.º 9834 – Apelação Cível n.º 0000416-0/44 – Origem: Santos – 6ª Câmara – Relator: Carlos Roberto Gonçalves – V.U). 210 No mesmo sentido: “Embargos de terceiro – Alegação de ser o possuidor do bem – Não comprovação – Em se tratando de bem móvel, uma máquina pá carregadeira, a posse se traduz pela tradição do mesmo, mormente quando o bem vem sendo tranqüilamente utilizado nas atividades da empresa executada. Não provando, o embargante, ser o possuidor do bem, não há como garantir-lhe a restituição. Agravo improvido” (Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região – Apelação n.º 003872005-113-08-00-8 – 1ª Turma – Relator: Juiz Marcus Augusto Losada Maia – J. 18.11.2005). 85 Tem-se, portanto, que no sistema de direito brasileiro a posse do bem móvel, embora não comprove por si a propriedade, exerce papel relevante na prova desta e é comumente invocada como fundamento das decisões judiciais em que se afasta uma alegação de propriedade de um bem móvel desacompanhada da posse do referido bem. Quanto ao sistema inglês, embora, como já referido, apresente regra geral que diverge de forma absoluta da regra geral do sistema brasileiro, reconhece às partes maior liberdade do que o sistema francês para a modificação dessa regra geral, por meio dos termos contratuais e da própria intenção das partes, a ser aferida a cada caso concreto. É importante salientar que a Inglaterra é um país de common law, que, portanto, como regra, tem como base de seu direito as decisões proferidas nos casos concretos, que constituem os precedentes a serem aplicados como Também: “Tributário – Apreensão e perdimento de veículo e reboque utilizados em furto de mercadorias acobertadas pelo regime especial de trânsito aduaneiro mantidos – Propriedade incomprovada – Ilegitimidade ativa – Apelação improvida – 1. Não havendo prova segura da transferência do veículo antes da apreensão, resulta daí, no mínimo, indícios de simulação de referida venda para afastar o perdimento do bem, a uma, porque o único documento trazido aos autos para comprovar a alegada propriedade – Certificado de Registro de Veículos – está em nome do proprietário anterior, a duas, porque não há recibo, nota fiscal ou qualquer registro da venda do veículo no Cartório de Títulos e Documentos, a três, porque o reconhecimento de firma constante da Autorização para Transferência do Veículo ocorreu um mês após a data da apreensão do veículo, a quatro, porque não restou comprovada a tradição do automóvel em questão, pois no momento da apreensão, este estava sendo utilizado por terceiro, que segundo a testemunha e demais autuados era o proprietário do automóvel em questão, a cinco, porque as testemunhas judiciais em nada modificaram esse quadro, a seis, porque as Escrituras Públicas de Declaração juntadas aos autos, além de lavradas quase um ano após a data dos fatos, constituem prova unilateral. 2. Tendo sido tal reboque apreendido pela Polícia Federal de posse de terceiro, o qual, inclusive, portava seu Certificado de Registro e Licenciamento, e estando o anverso do Certificado de Registro de Veículo (Autorização para Transferência) assinado em branco pelo autor, por óbvio que o mesmo não pertencia mais ao autor reclamante, mas sim ao seu condutor/possuidor, porque a transferência de bem móvel ocorre com a simples tradição, não necessitando de nenhum registro ou formalidade para perfectibilizar-se. 3. Ante a fragilidade da prova de propriedade dos bens apreendidos em questão, não há como restituí-los aos autores ou afastar o perdimento decretado sobre os mesmos, pois aquele que pede a tutela jurisdicional em relação ao litígio deve ser o titular da pretensão formulada ao Poder Judiciário (arts. 3º e 6º do CPC). Precedentes desta Corte. (...)” (Tribunal Regional Federal da 4ª Região – Apelação Cível n.º 1998.04.01.080913-5 – Origem: PR – 2ª Turma – Relator: Juiz Alcides Vettorazzi – DJU 18.12.2002 – p. 706). 86 fundamento para as decisões futuras. E que, apesar dessa natureza histórica, a densidade da matéria consistente na celebração dos contratos de compra e venda e na determinação do momento da transmissão da propriedade mobiliária ensejou a edição de norma específica, o Sale of Goods Act 1979 211 , que prevê uma série de regras a serem aplicadas para a solução das lides decorrentes das questões referidas. Em relação ao sistema brasileiro, o sistema inglês é muito mais aberto, já que permite que muitas variantes sejam consideradas para a aferição do momento da transmissão da propriedade mobiliária, enquanto o sistema brasileiro reconhece, como regra, exclusivamente a transmissão da propriedade mobiliária por meio da tradição. Assim como se dá no sistema francês e no próprio sistema brasileiro, como já referido, a posse de um bem móvel também representa grande diferencial a ser considerado no sistema inglês em caso de discussão a respeito do momento da transmissão da propriedade mobiliária, embora não se verifique nesse sistema nenhuma previsão legal semelhante à do artigo 2279 do Código Civil francês 212 . 211 Lei de Venda de Bens Móveis de 1979. A primeira edição dessa lei é de 1893. 212 “En fait de meubles, la possession vaut titre” (“Quanto aos bens móveis, a posse equivale ao título”). 87 Capítulo 4 – Contrato de compra e venda de bem móvel 4.1 – Definição de contrato Ulpiano, jurisconsulto romano, definiu contrato como “duorum pluriumve in idem placitum consensus”, ou seja, o mútuo consenso de duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto. Para Aristóteles, contrato é “uma lei feita por particulares, tendo em vista determinado negócio”; para Kelsen, “a criação de uma norma jurídica particular” 213 . O direito alemão reconhece como contrato o meio pelo qual “una relación obligatoria puede constituirse (contrato obligatorio), extinguirse (contrato liberatório) o modificarse (contrato de modificación)” 214 . No direito francês, “convention est l’accord de deux ou pluisiers personnes sur um objet d’intérêt juridique” e “la convention qui a pour objet la formation d’une obligation, ou la translation d’un droit, se nomme plus specialement contrat” 215 . O direito inglês aceita a definição de obrigações contratuais como aquelas “obligations, which are voluntarily undertaken and owed to a specific person or persons” 216 . 213 Washington de Barros Monteiro. Curso: obrigações – 2ª Parte, cit., p. 4-5. 214 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 142. 215 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Quatrième, p. 412 (“convenção é o acordo de duas ou mais pessoas sobre um objeto de interesse jurídico” e “a convenção que tem por objeto a formação de uma obrigação ou a transmissão de um direito se denomina mais especificamente contrato”). 216 Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Contract#Comparison_of_contract_and_tort_law. (“obrigações que são voluntariamente assumidas e devidas para uma pessoa ou pessoas específicas”). 88 No Brasil, Clovis Bevilaqua define contrato como o acordo de vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir direitos 217 . De acordo com Orlando Gomes, contrato, na concepção tradicional, é “todo acordo de vontades destinado a constituir uma relação jurídica de natureza patrimonial e eficácia obrigacional” 218 . Caio Mário da Silva Pereira define contrato como o “acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos” 219 . Maria Helena Diniz afirma que o contrato “repousa na idéia de um pressuposto de fato querido pelos contraentes e reconhecido pela norma jurídica como base do efeito jurídico perseguido” 220 . Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, contrato é o “negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, auto-disciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades” 221 . 217 Clovis Bevilaqua. Código, cit., p. 194 (observação 1 ao artigo 1.079). 218 Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 12. O autor também refere duas concepções antagônicas de contrato em relação ao seu conteúdo. De acordo com a concepção subjetiva, o conteúdo do contrato são os direitos e as obrigações das partes. “O contrato é, por definição, fonte de relações jurídicas, sem ser exclusivamente, no entanto, o ato propulsor das relações obrigacionais”. De acordo com a concepção objetiva, o conteúdo do contrato são os preceitos. “As disposições contratuais têm substância normativa, visando a vincular a conduta das partes. Na totalidade, constituem verdadeiro regulamento traçado de comum acordo. Tal, em suma, sua estrutura. É o contrato, portanto, fonte de normas jurídicas, ao lado da lei e da sentença”. 219 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Contratos., cit., p. 7. 220 Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 19ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. 3º volume, p. 23. 221 Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo curso de direito civil – Contratos. São Paulo: Editora Saraiva, 2005. Volume IV. Tomo 1 (Teoria Geral), p. 11-12. 89 Distintas nos vocábulos, as definições têm o mérito de, cada uma a seu modo, definir um dos principais institutos do direito ao longo da história da humanidade. Para os fins do presente estudo da transmissão da propriedade mobiliária a partir do título consistente no contrato de compra e venda, adota-se a definição de contrato de Clovis Bevilaqua, de acordo de vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir direitos. 4.2 – Requisitos de validade No sistema de direito brasileiro, os requisitos ou condições de validade de um contrato podem ser divididos em duas espécies. A primeira espécie diz respeito aos requisitos de ordem geral, que são aqueles comuns a todos os atos e negócios jurídicos e estão previstos do artigo 108 do Código Civil brasileiro, ou seja, agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei. É considerada capaz toda pessoa natural que apresenta condições de exercer pessoalmente seus direitos e de responder também pessoalmente por suas obrigações. O próprio Código Civil estabelece as hipóteses em que uma pessoa não tem capacidade para a prática dos atos da vida civil, dividindo tais hipóteses em duas categorias, de incapacidade absoluta e incapacidade relativa 222 . 222 Código Civil, Art. 3º “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”; Art. 4º “São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos”. 90 Na celebração de contratos, os absolutamente incapazes deverão ser representados e os relativamente incapazes deverão ser assistidos por quem de direito para que o instrumento possa ser considerado válido. Quanto às pessoas jurídicas, devem ser representadas pelas pessoas indicadas em seus contratos ou estatutos sociais. O segundo requisito de ordem geral diz respeito ao objeto do contrato, que há de ser lícito e não ofender a moral e os bons costumes, bem como há de ser possível física e juridicamente. A impossibilidade física é considerada a que decorre das leis físicas ou naturais e deve ser absoluta, ou seja, atingir a todos, indistintamente, reconhecendo-se que a impossibilidade que atinge apenas o devedor não invalida o negócio jurídico. A impossibilidade jurídica decorre da proibição legal do objeto, como a proibição de contrato tendo como objeto a herança de pessoa viva (artigo 426 do Código Civil brasileiro). Quanto à forma, como terceiro e último requisito de validade dos contratos, como regra é livre, o que significa que os contratos se aperfeiçoam mediante a manifestação do consentimento dos contratantes. Em casos específicos se exige forma especial, como a escritura pública para os contratos referentes a direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o salário mínimo (artigo 108 do Código Civil brasileiro). A segunda espécie de requisito ou requisito de ordem especial, próprio dos contratos, é o consentimento recíproco ou acordo de vontades manifestado pelos contratantes. A manifestação de vontade deve ser livre e espontânea, sob pena de o contrato ter a sua validade afetada pelos vícios do consentimento, consistentes em erro (artigos 138 a 144 do Código Civil brasileiro), 91 dolo (artigos 145 a 150 do Código Civil brasileiro), coação (artigos 151 a 155 do Código Civil brasileiro), estado de perigo (artigo 156 do Código Civil brasileiro) e lesão (artigo 157 do Código Civil brasileiro). 4.3 – Princípios orientadores Os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato, da liberdade de contratar ou da autonomia da vontade, da obrigatoriedade e da relatividade dos contratos são especialmente considerados no Brasil. O princípio da boa-fé objetiva tem previsão expressa no artigo 422 do Código Civil brasileiro, que estabelece que “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Afirma-se que se trata de exigência não apenas de boa intenção, mas de manifestação de boa intenção mediante a conduta comprobatória desta. O princípio da função social do contrato tem por fundamento o reconhecimento de que, em que pese a liberdade das partes para a celebração de contratos (o princípio da liberdade de contratar ou da autonomia da vontade representa a força vinculante das convenções e significa que ninguém pode ser obrigado a contratar, mas, se o fizer, deve cumprir a obrigação assumida), o contrato deve atender também aos interesses da sociedade 223 . O princípio da obrigatoriedade dos contratos reconhece o vínculo representado pelo contrato como fundamento jurídico à exigência de seu 223 Código Civil, Art. 421. “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. 92 cumprimento. Por fim, de acordo com o princípio da relatividade dos contratos, como regra apenas os próprios contratantes podem ser atingidos pelas obrigações a partir dele assumidas. 4.4 – Definição de contrato de compra e venda A definição do contrato de compra e venda independe da especificação de seu objeto como imóvel ou móvel. O direito alemão define a compra e venda como “contrato bilateral por el qual una de las partes se obliga a la prestación de una cosa o de un derecho y la outra a una contraprestación en dinero” 224 . No direito francês, “la vente est un contrat par lequel l’une des parties s’oblige à transferer à l’autre la propriété d’une chose, moyennant um prix que celle-ci s’engage à lui payer” 225 . Apesar de a Inglaterra ser um pais de common law, a definição de contrato de compra e venda consta do Sale of Goods Act 1979: “A contract of sale of goods is a contract by which the seller transfers or agrees to transfer the property in goods to the buyer for a money consideration, called the price” 226 . 224 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 14. 225 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 01-02 (“a venda é um contrato pelo qual uma das partes se obriga a transferir à outra uma coisa, mediante um preço que a outra parte se compromete a pagar”). Os autores afirmam que essa definição está de acordo com o artigo 1582 do Código Civil francês, mas que a expressão “tranférer la propriété” deve ser substituída pelo verbo “livrer” (entregar), “afin de mieux faire ressortir le caractère que la nouvelle législation a imprimé au contrat de vente” (a fim de melhor refletir a natureza que a nova legislação deu ao contrato de venda” (cit., p. 01, nota 1). 226 Section 2.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7 (“Um contrato de venda de bens 93 Clovis Bevilaqua define o contrato de compra e venda como “o contrato pelo qual uma pessoa se obriga a transferir a outra o domínio de uma coisa determinada, por certo preço em dinheiro ou em valor fiduciário correspondente” 227 . Eduardo Espínola define o mesmo contrato como aquele “pelo qual uma pessoa se obriga a transferir o domínio de uma coisa a outra pessoa, a qual, por sua vez se obriga, como contra-prestação, a pagar-lhe certo preço em dinheiro” 228 . Caio Mário da Silva Pereira acrescenta que a coisa pode ser corpórea ou incorpórea 229 . Adota-se a definição legal do artigo 481 do Código Civil, que estabelece que “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”. 4.5 – Aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bem móvel Os sistemas de direito alemão, francês e inglês reconhecem o contrato de compra e venda como um contrato consensual, razão pela qual inexiste dúvida de que se o reconhece perfeito quando as partes manifestam seu consentimento quanto ao bem e ao preço 230 . móveis é um contrato por meio do qual o vendedor transfere ou se compromete a transferir a propriedade do bem ao comprador mediante um valor em dinheiro, denominado preço”). 227 Clovis Bevilaqua. Código Civil, cit., p. 236 (observação 1 ao artigo 1.122). 228 Eduardo Espínola. Dos Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro. Campinas: Bookseller, 2002, p. 31. 229 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Contratos, cit., p. 172. 230 No direito alemão, “la compraventa queda concluída tan pronto como las partes se han puesto de acuerdo sobre el contenido del contrato” (Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de 94 No sistema brasileiro, de acordo com o artigo 482 do Código Civil, “(a) compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço”. Os elementos essenciais do contrato de compra e venda são a coisa, o preço e o consentimento. Excetuados os contratos aleatórios, que podem ter como objeto coisa futura e inclusive eventual 231 , a coisa, como regra, deve ter existência atual, já que a sua inexistência enseja o reconhecimento da inviabilidade concreta da efetivação da tradição visando à transmissão da propriedade 232 . O preço deve ser sério e real. Não se exige que reflita o valor de mercado, porque não se pode negar às partes a disponibilidade a respeito de seu obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 20. No direito francês, o contrato de compra e venda é considerado aperfeiçoado “dès que les parties sont d’accord sur la chose et sur le prix” (“desde que as partes estejam de acordo quanto à coisa e quanto a preço”) (C. Aubry e C. Rau. Cours de droit civil français. 6eme ed. Paris: Éditions Techniques S.A., 1947. Tome Cinquième, p. 02). No direito inglês, o aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bens móveis envolve “a conveyance and a contract” (uma transmissão e um contrato”) (Andrew P. Bell. Modern law, cit., p. 236.). 231 Código Civil, Art. 458. “Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos futuros, cujo risco de não virem a existir um dos contratantes assuma, terá o outro direito de receber integralmente o que lhe foi prometido, desde que de sua parte não tenha havido dolo ou culpa, ainda que nada do avençado venha a existir”; Art. 459. “Se for aleatório, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o adquirente a si o risco de virem a existir em qualquer quantidade, terá também direito o alienante a todo o preço, desde que de sua parte não tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade inferior à esperada. Parágrafo único. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienação não haverá, e o alienante restituirá o preço recebido”; Art. 460. “Se for aleatório o contrato, por se referir a coisas existentes, mas expostas a risco, assumido pelo adquirente, terá igualmente direito o alienante a todo o preço, posto que a coisa já não existisse, em parte, ou de todo, no dia do contrato”. Os sistemas alemão, francês e inglês também admitem a compra e venda de coisas futuras, nos mesmos termos do sistema brasileiro. A respeito da compra e venda aleatória nos referidos sistemas de direito estrangeiros, conferir, respectivamente: Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones (por Ludwig Enneccerus), cit., p. 16; Jean-Louis Bergel et AL. Traité – Les Biens, cit., p. 230); e H. W. Wilkinson. Personal property. Londres: Sweet & Maxwell, 1971, p. 75. 232 “Compra e venda – Bem inexistente no patrimônio do alienante – Transferência do domínio – Impossibilidade – Resolução do contrato em perdas e danos – Cabimento – Hipótese, porém, condicionada a prévio pedido da parte interessada – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Relator: Anotonio Marson – Apelação Cível n.º 191.581-1 – Origem: Campinas – 04.08.93). 95 próprio patrimônio. Por outro lado, não pode ser inexistente, sob pena de caracterizar negócio simulado 233 . Embora o preço deva ser fixado em dinheiro, a previsão de que, fixado em dinheiro, seja convertido em bens determinados não invalida o negócio jurídico subordinado, como se depreende da decisão a seguir: “Se houve estipulação, em contrato de compra e venda de imóvel rural, que o preço seria transformado em cabeças de gado, não há falar em contrato vaca-papel, que retrata um mútuo dissimulado em parceria pecuária. (...)” (Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul – Apelação Cível n.º 2003.007285-3/0000-00 – Origem: Rio Negro – 1ª Turma Cível – Relator: Des. Hildebrando Coelho Neto – J. 02.12.2003). O contrato de compra e venda é classificado como consensual – em contraposição ao qualificativo formal – porque se constitui e se aperfeiçoa mediante o simples acordo – consentimento – das partes a respeito do objeto e do preço. A importância do consentimento é explicada por Orlando Gomes: “A compra e venda se forma obviamente pelo consentimento das partes, mas ao enfatizar o consensus como um dos elementos essenciais do contrato, quer-se acentuar a sua natureza simplesmente consensual, para deixar claro que a entrega da coisa vendida não é necessária à sua perfeição. Basta, com efeito, o simples consentimento, do qual surge, para o vendedor, a obrigação de entregar a coisa e para o comprador a de 233 “Compra e venda – Imóvel – Escritura pública – Ato jurídico regular – Transação lícita – Inadmissibilidade – Venda simulada de bens de herança – Utilização de instrumento particular falso – Decretada a anulação da escritura – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 205.479-1 – Origem: São Bento do Sapucaí – Relator: Almeida Ribeiro – 10.03.94); “Embargos de terceiro – Sentença procedente – Penhora incidente em bem que integrou o patrimônio do autor antes da ação de execução. Veículo automotor. Certidão do Detran. Domínio comprovado. Venda simulada. Alegação inconsistente. Recurso desprovido” (Tribunal de Alçada Civil do Estado do Paraná – Apelação Cível n.º 0268399-6 – (224895) – Origem: Londrina – 5ª Câmara Cível – Relator: Juiz Edson Vidal Pinto – DJPR 10.12.2004). . 96 pagar o preço” 234 . A integração da vontade dos contratantes, por meio da proposta e da aceitação, e que resulta no consentimento, constitui elemento essencial à formação do contrato de compra e venda, o que permite a conclusão de que, não identificada (a integração da vontade dos contratantes), não se considera aperfeiçoado o referido contrato. Essa a decisão do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo em caso concreto em que se discutiu o aperfeiçoamento do contrato de compra e venda em leilão: “Compra e venda – Contrato não aperfeiçoado – Ação declaratória da existência de venda e compra de móvel, em leilão – Contrato que não chegou a existir, faltando a integração de vontades – Lanço não aceito pelo leiloeiro, que recebeu os valores condicionalmente, por estarem abaixo do preço estipulado pelo comitente – Mera proposta, dependente de aceitação que não houve – Ação improcedente – Decisão mantida” (Apelação n.º 0570708-2 – Origem: Guarulhos – 1ª Câmara – Relator: Elliot Akel – J. 16/05/1994 – V.U – JTA-EX 147/59). Quanto ao seu aperfeiçoamento, em contraposição à classificação como consensual, que constitui a regra, o contrato de compra e venda pode ser classificado como formal ou solene nos casos em que a lei exige determinada formalidade para o seu aperfeiçoamento, como ocorre, no sistema brasileiro, no caso da exigência da escritura pública para os negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre bens imóveis de valor superior a trinta vezes o salário mínimo vigente (artigo 108 do 234 Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 227. 97 Código Civil de 2002) 235 . O sistema brasileiro também exige a escritura pública para a transferência de determinados bens móveis, como as licenças ou os contratos que tenham como objeto a exploração de distribuição e venda de jornais (artigo 5º do Decreto-lei n.º 4.826/42). Nesses casos, exigida por lei a formalidade, o próprio aperfeiçoamento do contrato de compra e venda fica condicionado ao seu atendimento. A noção do aperfeiçoamento do contrato de compra e venda de bem móvel mediante, como regra, a mera manifestação da vontade das partes, a caracterizar o seu consentimento quanto ao bem e ao preço, é imprescindível à compreensão e à solução dos problemas práticos decorrentes do descumprimento das obrigações contratuais pelos contratantes. 235 O artigo 134, inciso II, do Código Civil de 1916 estabelecia ser da substância do ato a escritura pública nos “contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis de valor superior a Cr$ 50.000 (cinqüenta mil cruzeiros), excetuado o penhor agrícola”. A jurisprudência a respeito do Código Civil de 1916: “(...) A transferência do domínio de bem imóvel é negócio jurídico que para se aperfeiçoar requer forma prescrita em Lei, que, na hipótese, é a escritura pública (Código Civil/1916, art. 134). Portanto, só com a lavratura do documento público considera-se perfeito e acabado o negócio jurídico. (...)” (Tribunal Regional Federal da 1ª Região – Apelação Cível n.º 9501185346 – BA – 3ª Turma Supl. – Relator: Juiz Federal Convocado Wilson Alves de Souza – DJU 23.06.2005 – p. 77); “Dúvida – Transferência de bem imóvel – Requisitos – Na formalização de ato translativo de bem imóvel, segundo o art. 134, II, do Código Civil, é da substância da medida a escritura pública e, para a validade da alienação respectiva é indispensável a outorga uxória, conforme art. 235, I, do Código Civil, com os seus desdobramentos na legislação pertinente aos Registro Públicos” (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – Apelação Cível n.º 000.316.718-6/00 – 2ª C^Mara Cível – Relator: Des. Francisco Figueiredo – J. 17.06.2003); “Compromisso de compra e venda – Imóvel loteado – Aquisição de dois lotes – Passado instrumento particular de um só deles – Pleiteada a declaração de que também adquirido o lote não referido no compromisso – Utilização de prova testemunhal – Inadmissibilidade – Observância da forma legal dos contratos de aquisição de imóveis para que produzam efeitos reais – Inadmitidas as avenças verbais – Artigo 134, inciso II do Código Civil e artigo 26 da Lei n.º 6.766/79 – Recurso não provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Relator: Carlos Ortiz – Apelação Cível n.º 218.635-2 – Origem: São Caetano do Sul – 15.03.94). 98 Capítulo 5 – Contrato de compra e venda de bem móvel nos sistemas de direito estrangeiros 5.1 – Sistema romano A compra e venda, denominada emptio venditio, era o contrato do jus gentium pelo qual o vendedor (venditor) prometia ao comprador (emptor) lhe transferir definitivamente a posse de uma coisa mediante um pagamento em dinheiro, o preço (pretium). Há quem afirme que inicialmente existiu em Roma a compra e venda à vista, celebrada por meio da mancipatio, que transferia ao comprador a propriedade da res mancipi, com a entrega imediata do preço 236 . Por outro lado, há quem negue que essa compra e venda à vista efetivada por meio da mancipatio possa ser tida como compra e venda contratual, geradora de obrigações, já que se tratava de um ato translatício da propriedade da coisa e do preço, razão pela qual não pertencia à teoria dos contratos, mas sim à teoria dos modos de aquisição do domínio 237 . Além da teoria que afirma a compra e venda real como originária da compra e venda consensual como foi posteriormente desenvolvida pelos próprios romanos, diversas outras teorias foram elaboradas. Entendem alguns que o acordo de vontades entre o vendedor e o comprador teria por fundamento exclusivamente o princípio da lealdade, que era observado rigidamente na Roma antiga. Outros 236 A. Santos Justo. Direito Privado Romano, cit., p. 94; Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 239 e 355. Inicialmente o preço na mancipatio era pago mediante a entrega de uma barra de bronze, cujo peso era equivalente ao valor do bem negociado, mas após a cunhagem da moeda o preço passou a ser pago em dinheiro. 237 José Carlos Moreira Alves. Direito romano, cit., p. 156; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 287. A respeito da mancipatio como modo de transmissão da propriedade romana, conferir 1.2.1. 99 afirmam que a compra e venda consensual teria resultado da venda comercial, realizada no início apenas entre peregrinos e romanos, fundamentada na boa-fé e sancionada pelo pretor peregrino. Ainda, outra teoria sustenta que a compra e venda consensual decorreu de duas estipulações – stipulatio 238 – por meio das quais o vendedor se tornaria credor do preço e o comprador se tornaria credor do bem. Por fim, sustenta-se que a compra e venda consensual teria sua origem na imitação da venda de objetos móveis e imóveis de propriedade do Estado, mediante adjudicação 239 . Todas as teorias são passíveis de fundamentação e encontram apoio nas fontes de direito romano, razão pela qual Zulueta afirma que o contrato de compra e venda consensual moderno é o produto de uma longa evolução, iniciada com a Lei das XII Tábuas 240 e encerrada com Justiniano 241 , para a qual contribuíram várias fontes e circunstâncias históricas, razão pela qual não se pode identificar um critério único por meio do qual se teria processado a passagem da venda real – ou do modo denominado mancipatio –, que transmitia a propriedade romana, para a venda a crédito que passou a dar origem exclusivamente a obrigações 242 . O contrato de compra e venda era classificado no direito romano como nominado, do direito das gentes, de boa-fé, sinalagmático e consensual. 238 Existem diversas teorias a respeito da origem da stipulatio. Tratava-se de um contrato verbal que se formava mediante uma interrogação, feita em caráter solene pelo credor, e a resposta do futuro devedor (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 257). 239 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 355; José Carlos Moreira Alves. Direito romano, cit., p. 156157; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 287-288. 240 451-449 a.C. (Gaetano Sciascia. Direito romano e direito civil brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 1947, p. 15). 241 527-565 d.C. (Gaetano Sciascia. Direito romano, cit., p. 19). 242 F. de Zulueta. The roman law of sale. APUD Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 288. 100 Quanto aos elementos, já se distinguiam os três identificados atualmente: a coisa, o preço e o consentimento. Todas as coisas suscetíveis de entrar no patrimônio do comprador, corpóreas e incorpóreas, desde que não estivessem fora do comércio, podiam ser objeto da compra e venda. A não existência do objeto, o seu perecimento e a impossibilidade de comércio tornavam o contrato nulo 243 . O preço devia consistir em dinheiro 244 e ser certo e verdadeiro. Devia ser fixado por ocasião da venda ou suscetível de ser determinado posteriormente, por critérios fixados, mas nunca podia ser deixado ao arbítrio das partes 245 . Quanto a ser considerado verdadeiro, o preço insignificante ensejava o tratamento da compra e venda como doação simulada. O terceiro elemento do contrato de compra e venda era o consentimento manifestado pelas partes, considerado o elemento mais importante em razão da natureza consensual da compra e venda, ou seja, porque esta se realizava independentemente de qualquer elemento material, como a entrega da coisa ou o pagamento do preço. 243 O contrato de venda também já podia ter por objeto uma coisa futura ou esperada. O comprador ou vendedor poderia aceitar o risco de a coisa nunca vir a ter existência, devendo, nesse caso, ser admitida a emptio venditio, que se baseava na emptio spei. Por exemplo, o produto da pesca que seria realizada em determinado dia podia ser objeto de venda; nesse caso, o comprador correria o risco e seria obrigado ao pagamento do preço mesmo que nenhum peixe fosse apanhado naquele dia (Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 290). 244 O preço devia consistir em dinheiro para que o contrato de compra e venda pudesse ser diferenciado da troca, mas essa distinção só se estabeleceu depois das manifestações divergentes de sabinianos e proculeianos. Os sabinianos consideravam a permuta como uma emptio venditio, mas os proculeianos distinguiam os dois contratos. A doutrina dos proculeianos predominou (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 356-3575; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 290-291). 245 Se a fixação do preço houvesse sido confiada a terceiros, Justiniano considerava a compra e venda condicional, a qual somente se tornaria definitiva quando o terceiro fixasse o preço e, se isso não ocorresse, o contrato seria nulo. O jurisconsulto Proculus considerava válida a venda cujo preço fosse estabelecido por terceiro, desde que o nome desse terceiro constasse do contrato (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 356-357; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 290-291). 101 Com o tempo, as partes passaram a condicionar os contratos de compra e venda tendo como objeto bens considerados mais valiosos à redação de um documento escrito. Nesses casos, a redação do documento se tornava elemento essencial à própria formação do contrato, da qual dependia o seu aperfeiçoamento 246 . Porque a conclusão do contrato ensejava muitas dúvidas quanto ao momento em que se realizava, introduziu-se o costume de assinalar esse momento com um elemento material diferente da prestação. Essa a origem das arras, que consistiam num objeto de pequeno valor ou numa parcela reduzida do próprio preço, que as partes, a partir da entrega, passavam a poder invocar como prova do contrato 247 . Quanto às obrigações do vendedor decorrentes da celebração do contrato de compra e venda, inicialmente lhe incumbia efetuar a transmissão da posse do bem, e não a propriedade deste 248 . Com o passar do tempo e a evolução da teoria contratual, o 246 Se se houvesse convencionado fazer por escrito a compra e venda, esta somente se aperfeiçoaria quando o documento fosse redigido. Nesses contratos de venda cum scriptura, o escrito, que outrora havia sido meio de prova, foi elevado à categoria de elemento necessário à própria formação do contrato. Enquanto não se o redigisse, era lícito às partes retirarem-se do contrato sem outras conseqüências, salvo se tivessem sido dadas as arras, hipótese em que se aplicavam as regras a estas referentes (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 358). 247 Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 358; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 292. 248 Afirma Ebert Chamoun: “Não se sabe, com certeza, qual a origem desse curioso sistema. Pode-se entretanto explicá-lo com o caráter de contrato iuris gentium da compra e venda, o qual, dada a existência de vários tipos de domínio, nem todos acessíveis aos peregrinos e, comuns a todas as coisas, seria prejudicado se se exigisse a transferência da propriedade; ou então com a regra das XII Táboas que condiciona a transferência da propriedade ao pagamento do preço, não podendo, então, o vendedor ser obrigado a transferir a propriedade da coisa enquanto não for pago” (Instituições, cit., p. 358-359). 102 vendedor passou a ter a obrigação de proteger o comprador contra a evicção 249 e contra a presença de vícios ocultos no bem vendido 250 , e o uso acabou tornando 249 A evicção ocorria quando quem adquiria uma coisa ou um direito se via privado dessa coisa ou desse direito em juízo, total ou parcialmente, sem culpa sua, mas sim por vício do direito do alienante. No juízo que se instaurava pelo legítimo titular contra o adquirente sem culpa, este devia chamar à autoria o alienante, para que este lançasse mão dos seus meios de defesa. A evicção era reconhecida, por exemplo, quando o vendedor não era proprietário da coisa e o verdadeiro proprietário a reivindicava do comprador, ou ainda quando o credor hipotecário investisse contra o comprador armado de sua ação hipotecária a fim de fazer valer a sua garantia. Em ambas as hipóteses, que eram as principais, sendo vitorioso o terceiro, que seria o verdadeiro proprietário do bem, o comprador se via desapossado do bem, apesar de haver pago o preço. Se a transferência da coisa houvesse sido feita por mancipatio, o comprador evicto podia, mediante a actio auctoritatis, volver-se contra o vendedor e dele obter a restituição do dobro do preço que havia pago. No caso de res nec mancipi, o vendedor somente era obrigado ao ressarcimento se assumisse a garantia contra a evicção por uma estipulação acessória à compra e venda. Essas estipulações podiam ser: a satisdatio ou repromissio secundum mancipium, conforme essa obrigação fosse garantida por terceiros ou não; a stipulatio duplae, modelada na actio auctoritatis, por força da qual o vendedor de uma res nec mancipi de valor ou de uma res mancipi de que não houvesse sido feita a mancipação se obrigava a pagar o dobro do preço em caso de evicção; e a stipulatio rem habere licere, que funcionava para as res nec mancipi de menor valor e dava direito à restituição apenas do próprio preço. Em homenagem aos ideais de boa fé, considera-se que desde os primeiros séculos do Império Romano o comprador tinha direito a que o vendedor lhe prestasse a stipulatio duplae ou a stipulatio rem habere licere, podendo reclamá-las pela ação do contrato de compra e venda. Com o passar do tempo e a adoção reiterada das garantias, estas passaram a ser presumidas, permitindo ao comprador voltar-se contra o vendedor sempre que sofresse um prejuízo, o que poderia ocorrer mesmo antes da evicção, quando, sob a ameaça de sua ocorrência, pudesse ser caracterizado o dolo do vendedor. Nesse caso, o valor da indenização era arbitrado pelo juiz. No direito justinianeo, a stipulatio rem habere licere deixou de existir, restando apenas os dois remédios da stipulatio duplae e da ação do contrato. Mas a garantia contra a evicção passou a incorporar o próprio contrato de compra e venda como um elemento natural, permitida a sua exclusão apenas mediante a manifestação expressa das partes (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 360-361; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 295-297). 250 Vícios ocultos ou redibitórios eram considerados aqueles existentes no momento da celebração do contrato e que tornavam a coisa imprópria ao seu uso ou lhe diminuíam o valor. A garantia contra os vícios ocultos sofreu evolução semelhante à da garantia contra a evicção. A princípio era assegurada mediante a previsão expressa fora do contrato, mas o seu uso reiterado fez com que fosse integrada ao acordo independentemente de previsão (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 361-363; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 296-297). Ebert Chamoun afirma também que os edis introduziram em seus editos um princípio absolutamente diferente dos seguidos à época e que deu ensejo a uma nova evolução dos contratos. Os edis policiavam os mercados, onde era comum a prática de fraudes por peregrinos contra cidadãos romanos durante a venda de escravos. Para agravar a responsabilidade dos vendedores e evitar as constantes fraudes, os edis estabeleceram que o vendedor responderia pelos vícios ocultos mesmo quando os ignorasse no momento de conclusão do contrato. As ações a que tinha direito o comprador eram a actio redhibitioria, por meio da qual se restituía a coisa e seus acessórios (redhibitio), exigindo-se do vendedor a restituição do preço, ou a actio aestimatoria ou quanti minoris, por meio da qual o comprador obtinha a redução no preço correspondente à desvalorização causada pelo vício apresentado pelo bem adquirido. No direito justinianeo, o sistema de garantias dos vícios criados pelos edis foi generalizado a todas os contratos de compra e venda (Instituições, cit., p. 362). 103 subentendidas essas garantias 251 . Quanto ao comprador, tinha como obrigação principal o pagamento do preço, e essa obrigação era mantida mesmo se, após a conclusão do contrato e antes da entrego bem, este perecesse, desde que sem culpa do vendedor 252 . Considerava-se que, se por um lado se garantia ao comprador o direito ao recebimento dos acréscimos e incrementos incorporados ao bem vendido após a celebração do contrato, mesmo que o bem ainda estivesse na posse do vendedor, por outro lado se lhe exigia que assumisse os riscos do perecimento do objeto, desde que não constatada a culpa do vendedor 253 . Essa regra era inaplicável se o bem perecesse em poder do vendedor quando já estivesse pago o preço, bem como 251 Darcy Bessone afirma que essa complementação do contrato – referente às garantias – repercutiu na sua primitiva concepção, de que deveria restringir-se, exclusivamente, à obrigação de transferir a posse. E que o contrato de compra e venda passou a produzir, na prática, efeitos próximos dos peculiares aos modos de adquirir, inclusive porque contribuía para a aquisição do domínio por usucapião, que se operava em dois anos (Da compra e venda, cit., p. 74). 252 Vandick L. da Nóbrega afirma que vários romanistas puseram em dúvida que essa tenha sido efetivamente a doutrina predominante na época clássica: “Arno afirma que, no direito clássico, os riscos ficavam a cargo do vendedor até a entrega da coisa. No entanto, Rabel julga terem sido os bizantinos que estabeleceram o princípio geral segundo o qual o comprador seria responsável pelos riscos; é verdade, diz êle, que os jurisconsultos clássicos conheceram o periculum emptoris, mas num sentido muito limitado. Em trabalho posterior ao de Rabel, o romanista Emil Seckel (...) retoma a defesa da teoria tradicional, segundo a qual os riscos ficavam a cargo do comprador desde que a venda fosse considerada perfeita. A doutrina clássica do periculum emptoris só pode ser averiguada, diz Seckel, por meditação cuidadosa do que nos foi transmitido. Ela, na verdade, só pode ser compreendida quando três condições preliminares de compreensão se cumprem: primeiro, deve ser incluída a chamada pura compra de espécie; segundo, o periculum emptoris tem seu contrapeso no periculum custodiae do vendedor; terceiro, a doutrina do periculum emptoris não é uma norma arbitrária, mas um princípio sadio, que domina todos os direitos hodiernos” (Compêndio, cit., p. 293). Outras teorias procuraram explicar a aplicação do referido princípio. Uma delas se baseava na suposição de que a compra e venda se processara inicialmente mediante duas estipulações, decorrendo daí o caráter de independência das duas obrigações e a manutenção da obrigação do comprador em caso de perecimento do objeto sem culpa do vendedor. Outra teoria se amparava na consideração de que a regra havia sobrevivido da época em que a compra e venda se fazia à vista, pela mancipatio., para aqueles que a aceitam com natureza contratual. Uma terceira teoria pretendia fundamentar a regra na influência grega (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 364; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 294). 253 O vendedor deveria cuidar da coisa como um bonus paterfamilias, sendo a sua falta observada em abstrato. Como regra, não respondia na hipótese de perda por motivo de força maior, mas apenas no caso de constatação de sua culpa (Ebert Chamoun. Instituições, cit., p. 363-364; Vandick L. da Nóbrega. Compêndio, cit., p. 292-293). 104 quando o vendedor houvesse assumido expressamente a custódia do bem até a tradição, caso em que a responsabilidade seria exclusivamente sua em decorrência do próprio acordo celebrado. Se o contrato de compra e venda fosse condicional, ou seja, subordinado a um evento futuro e incerto, não seria reputado perfeito enquanto a condição não fosse implementada. Se houvesse a perda total da coisa, sem culpa de qualquer das partes, enquanto o contrato não fosse considerado perfeito, a responsabilidade pelos riscos era imputada ao vendedor, ou seja, a este cabiam os prejuízos decorrentes do perecimento do objeto. Mas se a perda fosse parcial ou se se tratasse de deterioração, continuava o comprador obrigado ao pagamento do preço. Porque o contrato de compra e venda não tinha como resultado a transferência da propriedade, o bem vendido podia ser próprio ou alheio 254 . “É precisamente quest’indole dell’obbligazzione del venditore, che faceva ammettere la validità della vendita della cosa altrui; perchè la circostanza che il venditore non era punto proprietário, non essendo um ostacolo a che egli mettesse il compratore in possesso, non poteva autorizzare costui a reclamare, finchè non fosse molestato dal proprietário” 255 . De acordo com Darcy Bessone, a circunstância de por meio do contrato de venda se transferir a posse – e não a propriedade – tinha por 254 Mas do vendedor, embora não se lhe exigisse a propriedade, exigia-se a boa-fé, ou seja, ou ignorava que a coisa não era sua ou, juntamente com o comprador, sabia que não o era. 255 “É essa a natureza da obrigação do vendedor, que permitia reconhecer a validade da venda de coisa alheia; porque a circunstância de o vendedor não ser o proprietário, não sendo um obstáculo a que garantisse a posse do bem pelo comprador, também não autorizava o comprador a reclamar, desde que não fosse molestado na sua posse pelo verdadeiro proprietário” (G. Baudry-Lacantinerie; L. Barde. Trattato teórico-pratico di diritto civil: della vendita e della permuta. Milano: Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1935, p. 4). 105 fundamento o conceito romano de contractus, que impedia a sua utilização como instrumento constitutivo ou transmissivo de direitos reais. 256 Afirma também o doutrinador que os romanos entendiam, por outro lado, que o conceito de contractus não constituía óbice à criação de obrigações que se relacionassem apenas à posse, estabelecendo-se situação segura no juízo possessório. Nesses termos, de acordo com a concepção romana, o contrato podia produzir ao alienante a obrigação de entregar a coisa – vacuam possessionem tradere. E com o tempo, em razão das garantias que passaram a acompanhar a emptio e venditio, 257 esta passou a – ser considerada como passível de – transferir a própria propriedade 258 . A explicação de Darcy Bessone tem por objetivo demonstrar a ausência de fundamento dos doutrinadores brasileiros que, como regra, atribuem ao direito romano a eficácia obrigacional da compra e venda no direito pátrio. E é exatamente essa posição contestada por Darcy Bessone – que reconhece a eficácia obrigacional do contrato de compra e venda como herança do direito romano – a dominante no cenário brasileiro 259 . De acordo com Miguel Maria de Serpa Lopes, o ponto de maior relevo no contrato de compra e venda no direito romano, com profundos reflexos no direito moderno, consistiu no seu efeito meramente obrigatório, ou seja, na circunstância de que dele não derivava a transferência do domínio, cujos meios de 256 A transmissão da propriedade somente se daria por um dos modos de transmissão da propriedade, ou seja, pela mancipatio, pela in iure cessio e pela traditio, estudados no Capítulo 2 – Sistemas de transmissão da propriedade, item 2.1 – Sistema romano. 257 Conferir as notas 249 e 250. 258 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 52-55. 259 A posição dominante no direito brasileiro e a posição divergente de Darcy Bessone a respeito especificamente da eficácia da compra e venda no direito brasileiro serão abordadas no Capítulo 6 – O contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito brasileiro, item 6.1 – Eficácia e conseqüências. 106 transmissão eram a mancipatio e a traditio, e tudo quanto se discutia era acerca do momento em que se deveria de reputar consumada a transferência. Afirma ainda o doutrinador que em todo o movimento de evolução da história do contrato se destaca a idéia romana e fundamental da separação entre os dois atos: o ato causal e o ato da transferência; a obrigação de transferir e o ato da transferência. Portanto, no direito romano, o contrato de compra e venda nada representava como elemento da transferência da propriedade, pois só a traditio podia fazê-lo. Por outro lado, os sistemas que não reconhecem ao contrato a força translativa da propriedade, como o sistema brasileiro, reconhecem o contrato como causa jurídica dessa mesma transferência, o que não se verificava no direito romano, pois a traditio era um ato considerado em si mesmo e desvinculado de qualquer outro ato jurídico precedente 260 . Consideradas as lições dos dois doutrinadores, adotamos o entendimento de que o direito romano legou ao direito brasileiro o contrato de compra e venda de natureza obrigacional, mediante o reconhecimento de que o modo de aquisição da propriedade mobiliária consistente na tradição é imprescindível à garantia da segurança das relações jurídicas e da própria paz social. 5.2 – Sistema alemão No sistema de direito alemão, o contrato de compra e venda é considerado “el contrato bilateral por el cual una de las partes se obliga a la 260 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de Direito Civil – Fontes das Obrigações: Contratos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2001. Volume III, p. 265-266. 107 prestación de una cosa o de un derecho y la outra a una contraprestación en dinero” 261 . Trata-se de “un negocio obligatorio y los efectos inmediatos de la misma son de naturaleza puramente obligatoria” 262 . O sistema de direito alemão não reconhece ao contrato de compra e venda o efeito translativo. A transmissão da propriedade mobiliária exige a conjugação de dois atos, na verdade dois negócios jurídicos, o primeiro consistente no negócio jurídico que fundamenta o título, no presente item considerado o contrato de compra e venda, e o segundo consistente no negócio jurídico da tradição ou entrega, desvinculada do primeiro contrato e para a qual se exigem os mesmos elementos daquele 263 . Portanto, no sistema alemão, o contrato de compra e venda é estranho ao negócio translativo e se situa na área obrigacional. 261 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 14. 262 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 14. A respeito da eficácia da compra e venda no sistema alemão, o autor afirma: “Esto vale también respecto a la compraventa llamada manual, real o natural, o sea, aquella que, sin convenio previo especial, se concluye por el canje immediato de precio y mercancia, y a veces incluso mediante aparato automático. Algunos vem en la compraventa manual una mera prestación recíproca sin prévia obligación, o sea un negocio real o, mas exactamente, dos tradiciones simultáneas, unidas por la causa. Pero este punto de vista no se ajusta ni a la voluntad de las partes ni a la necessidades del tráfico. Si en una compraventa manual se entrega moneda falsa, no será conforme a la intención de las partes, ni a la buena fé, el que la consecuencia sea meramente la de tenerse que restituir las prestaciones, sino que lo oportuno es que el vendedor tenga un crédito dirigido al pago del precio. De igual modo, corresponde al comprador una pretensión dirigida a la prestación de la cosa debida cuando por error se le ha dado una distinta de la que ambas partes querían. Aun en el caso de compraventa manual existe, pues, la intención de vincularse reciprocamentey y así se declara tacitamente por el cambio de la coisa y del precio. No es obstáculo el que en los casos normales la vinculación y el cumplimento seam simultâneos. La questión tiene importancia práctica respecto a la carga de la prueba. Si la compraventa manual tuviesse naturaleza meramente real la affirmación del comprador demandado de haberse concluído una compraventa manual representaria una negación del fundamento de la demanda y la prueba correspondería entonces al vendedor. En cambio, según nuestro punto de vista, el comprador tiene que probar el pago del precio. Pero si se trata de negócios que, de una manera absolutamente regular, sólo se concluyen en el tráfico com pago al contado (billetes de teatro, de ferrocarril, etc), el juez habrá deducir de esto que se pagó al contado salvo prueba em contrario”. 263 Conferir 3.2. 108 As obrigações do vendedor consistem em “proprocionar al comprador na propiedad de la cosa vendida”, além de “entregar la cosa vendida, o sea procurar la posesión immediata corporal” 264 . Quanto ao objeto do contrato, “se pueden vender no sólo las cosas y derechos propios, sino también los ajenos. Em tal caso, si el vendedor no puede procurar las cosas, viene obligado a indemnización” 265 . Porque o contrato de compra e venda não transfere, por si, a propriedade, o vendedor continua proprietário do bem vendido até o negócio jurídico da tradição. Com a propriedade, o vendedor mantém sob a sua responsabilidade também os riscos a que o bem está sujeito. “El vendedor soporta el riesgo. Así, pues, si el objeto perece casualmente antes de la prestación, el comprador no tiene que pagar el precio. Si la prestación si hace imposible solo em parte, el precio se ha de pagar sólo proporcionalmente. El riesgo, prescindiendo del cas de mora accipiendi, solo passa, por lo regular, al comprador com la entrega de la cosa” 266 . Quanto ao comprador, suas obrigações principais são pagar o preço e receber o bem vendido. Há exceções à regra de que os riscos permanecem com o vendedor até a data da tradição, como a hipótese de o vendedor, a pedido do comprador, despachar o bem vendido para lugar diverso do lugar do cumprimento, o que faz com que os riscos passem ao comprador imediatamente após a entrega do bem pelo vendedor ao responsável pelo transporte. 264 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de Obligaciones, cit., p. 29. 265 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 16. 266 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de obligaciones, cit., p. 32. 109 O sistema alemão impõe ao contrato de compra e venda as garantias contra a evicção 267 . As características do contrato de compra e venda alemão guardam relação de semelhança com as características do contrato de compra e venda brasileiro, especialmente quanto à sua eficácia obrigacional. Essa circunstância afasta o interesse da comparação dos contratos, já que as conseqüências são também semelhantes quanto aos objetivos do presente trabalho. Para o estudo do negócio jurídico desvinculado do contrato de compra e venda e apto à transmissão da propriedade mobiliária, consistente na tradição, bem como para o estudo do sistema alemão de transmissão da propriedade mobiliária, remete-se ao Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da propriedade mobiliária, item 3.2 – Sistema alemão. 5.3 – Sistema francês “La vente n’est pas seulement un contrat qui se forme par le seul échange des consentements, première application du príncipe du consensualisme; c’est aussi um contrat que, automatiquement, par le simple échange des consentements et sans aucune formalité, réalise le transfert de la propriété de la chose vendue”. 268 No sistema de direito francês prepondera o critério da unidade 267 Ludwig Enneccerus et AL. Tratado. Derecho de Obligaciones, p. 52-74. 268 Jacques Ghestin et Bernard Desché. Traité – La vente, cit., p. 589 (“A venda não é apenas um contrato que se forma por meio da mera manifestação de consentimento, que é a primeira aplicação do princípio do consensualismo; é também um contrato que, automaticamente, pela simples manifestação de consentimento e sem nenhuma formalidade, concretiza a transferência da propriedade do bem vendido”). 110 formal, isto é, o próprio contrato, ao mesmo tempo em que cria o vínculo obrigacional, transfere o domínio da coisa vendida. O repúdio ao critério romanista foi uma conseqüência da influência do direito natural, que pretendeu dar cunho filosófico ao princípio da transferência da propriedade, valendo-se de uma ficção, ou seja, a de ser o consentimento elemento bastante para tornar perfeita a obrigação, dispensando-se a tradição 269 . O credor torna-se proprietário sem que haja necessidade de praticar qualquer ato ou realizar qualquer formalidade subseqüente, e sequer há necessidade de adimplemento, qualquer que seja, já que a transmissão da propriedade se situa no momento em que se aperfeiçoa a vontade das partes. É a vontade das partes que opera por si mesma o deslocamento, a transmissão da propriedade 270 . “Il est donc inexact, de façon generale, de considérer ce transfert de la propriété comme une obligation pesant sur le vendeur. Ce transfert se réalise em effet sans nouvelle manifestation de volonté de la part de ce dernier. La vendeur a immédiatement et par le seul effet de l’echange des consentements perdu la propriété de droit vendu, propriété qui a été acquise par l’acheteur” 271 . A obrigação de entrega do bem objeto do contrato pelo vendedor ao comprador “no es traslativa ni de propiedad ni siquiera de posesión; el comprador se ha convertido en propietario por la venta misma, y a contar de ese día, ha adquirido 269 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso – Contratos, cit., p. 267. 270 Victor Hugo Tejerina Velázquez. A Tradição. São Paulo: PUC/SP (Dissertação de Mestrado – PUC/SP), 1996, p. 69. 271 Jacques Ghestin et Bernard Desché. Traité – La vente, cit., p. 589 (“É inexato, de modo geral, considerar a transferência da propriedade como uma obrigação do vendedor. A transferência se realiza de fato sem nova manifestação de vontade deste. O vendedor, imediatamente e por efeito exclusivo da manifestação de seu consentimento, perde a propriedade do bem vendido, propriedade que é adquirida também imediatamente pelo comprador”). 111 el título de poseedor; el vendedor no podia ya tener el animus domini; no era ya más que um poseedor precário, por cuenta de outro” 272 . Dessa regra resulta que o comprador tem ação de reivindicação contra o vendedor. Por outro lado, não a tem contra terceiro, em razão do disposto no artigo 2279 do Código Civil francês (“En fait de meubles, la possession vaut titre”). “Il en résulte, d’une part que, quand une chose mobilière corporelle a été successivement vendue à deux personnes, celle d’entre elles qui en a été mise en possession réelle est préférée, et en demeure propriétaire, encore que son titre soit postérieur en date, pouvru cependant qu’elle ait été de bonne foi. Il en résulte, d’autre part, qu’au cas de collision entre l’acquéreur d’une chose mobilière corporelle et le créancier mis em possession de cette chose à titre de gage, ce dernier doit l’emporter, s’il l’a reçue de bonne foi, encore que la mise en gage soit postérieure à la vente” 273 . Apesar da regra do artigo 2279 do Código Civil francês, “em dehors des cas auxquels s’applique la máxime qu’em fait de meubles possession vaut titre, on doit s’em tenir au príncipe que la propriété de meubles corporels est transmise à l’acquéreur, même au regard des tiers, par le seul effet de la vente” 274 . 272 Louis Josserand. Derecho civil. Contrats. Buenos Aires: Bosch y Cia. Editores, 1950. Tomo II, Volume II, p. 60. 273 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 26 (“Disso resulta, por um lado, que, quando um bem móvel é vendido sucessivamente a duas pessoas, aquele que foi imitida na posse real do bem tem preferência, ainda que o seu título seja posterior em data, desde que se lhe reconheça a boa-fé. Resulta também, por outro lado, que em caso de controvérsia entre o adquirente de um bem móvel e o credor ao qual o bem foi entregue materialmente em garantia, este último deve levar a melhor, se recebeu o bem de boa-fé, ainda que a imissão seja posterior à data da venda”). 274 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 26 (“Fora os casos aos quais se aplica a máxima de que quanto aos bens móveis a posse equivale ao título, é preciso ter em mente o princípio de que a propriedade dos bens móveis é transmitida ao comprador, mesmo em relação a terceiros, tão só pelo efeito do contrato de compra e venda”). 112 Assim como a propriedade, os riscos a que o bem está sujeito são transmitidos ao comprador tão somente pelo efeito do contrato. “Le transfert de la propriété solo consensu crée également um grave danger pour l’acheteur. Em effet devenu immédiatement propriétaire de la chose, l’acheteur va dès la conclusion du contrat devoir supporter les risques de perte ou de détérioration de la chose vendue. Et cela alors même que cette chose ne lui ayant pás été livrée, il ne peut exercer sur elle aucune surveillance. Tout au plus pourra-t-il invoquer lune faute du vendeur dans la surveillance de la chose. Mais il aura à supporter les risques de force majeure. C’est l’applications de la règle res perit domino” 275 . A venda de coisa alheia é considerada anulável, sendo que apenas o comprador tem legitimidade para a sua discussão, e desde que mediante a prova de ignorância de que o vendedor não era o proprietário do bem. Isso porque se a ignorância do comprador decorre de sua própria conduta negligente, deverá suportar uma parte do prejuízo. E a anulabilidade será sanada mediante a ratificação da venda pelo verdadeiro proprietário, bem como pela circunstância de o vendedor se tornar posteriormente sucessor particular ou universal do proprietário. Será também sanada mediante a manifestação da ciência do adquirente a respeito da propriedade do bem. O sistema francês impõe ao contrato de compra e venda as garantias 275 Jacques Ghestin et Bernard Desché. Traité – La vente, cit., p. 590 (“A transferência da propriedade solo consensu cria um grave risco para o comprador. Pelo efeito de se tornar imediatamente proprietário da coisa vendida, o comprador, desde a conclusão do contrato, passa a suportar os riscos da perda ou da deterioração da coisa vendida. E isso se dá mesmo quando a coisa ainda não tenha sido entregue e mesmo que o comprador não possa exercer nenhuma vigilância sobre a coisa. Quando muito, pode o comprador alegar um erro – e a culpa do vendedor – e em relação à vigilância exercida sobre a coisa. Mas o comprador sempre suportará os riscos de caso fortuito e de força maior. É a aplicação da regra res perit domino”). 113 contra a evicção 276 . 5.4 – Sistema inglês Assim como no sistema francês, no sistema inglês o contrato de compra e venda de bem móvel tem eficácia real, ou seja, a transmissão da propriedade mobiliária se dá mediante o consenso do vendedor e do comprador a respeito da coisa e do preço, com a ressalva de que, no sistema inglês, a transmissão da propriedade se verifica, como regra, desde que o bem móvel seja passível de entrega imediata. As previsões a respeito do contrato de compra e venda de bens móveis constam do “Sale of Goods Act 1979” 277 . De acordo com a referida norma, contrato de compra e venda, denominado sale, é o contrato por meio do qual “the seller transfers or agrees to transfer the property in goods to the buyer for a money consideration, called the price” 278 . 276 C. Aubry e C. Rau. Cours. Tome Cinquième, cit., p. 67-93. 277 “Lei de Venda de Bens Móveis”. O texto completo da lei está disponível no endereço eletrônico http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7. O termo “goods” é usado no sentido de produtos ou mercadorias (Durval de Noronha Goyos Jr. Dicionário Jurídico. 5ª ed. São Paulo: Observador Legal Editora Ltda, 2003, p. 164; Michaelis Escolar, disponível em http://cf.uol.com.br/michaelis/dicionar.cfm?dicion_id=8&TextoBusca=goods), ou seja, bens móveis, em oposição ao termo “real estate”, que identifica o bem imóvel (Durval de Noronha Goyos Jr. Dicionário Jurídico, cit., p. 276; Michaelis Escolar, disponível em http://cf.uol.com.br/michaelis/dicionar.cfm?dicion_id=8&TextoBusca=goods). 278 “o vendedor transfere ou se compromete a transferir a propriedade do bem ao comprador mediante um valor em dinheiro, denominado preço” (Section 2.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 114 O sistema inglês diferencia a venda da promessa de venda, mediante a especificação de que se “under a contract of sale the property in the goods is transferred from the seller to the buyer the contract is called a sale” 279 , enquanto que se “under a contract of sale the transfer of the property in the goods is to take place at a future time or subject to some condition later to be fulfilled the contract is called an agreement to sell” 280 , sendo que este o compromisso de venda se torna uma venda quando “the time elapses or the conditions are fulfilled subject to which the property in the goods is to be transferred” 281 . O contrato é considerado consensual e pode ser celebrado “in writing (either with or without seal), or by word of mouth, or partly in writing and partly by word of mouth, or may be implied from the conduct of the parties” 282 . A respeito da transferência da propriedade dos bens móveis objeto do contrato, o sistema inglês distingue entre bens determinados e não determinados, sendo os últimos identificados pelo gênero e quantidade, mas ainda não individualizados. “Where there is a contract for the sale of unascertained goods no property in the goods is transferred to the buyer unless and until the goods are 279 “mediante o contrato a propriedade do bem móvel é transferida do vendedor ao comprador, o contrato é denominado venda” (Section 2.4 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 280 “mediante o contrato a transferência da propriedade do bem móvel é postergada para um momento futuro ou condicionada a uma determinada condição a ser implementada, o contrato é denominado compromisso de venda” (Section 2.5 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 281 “com o transcurso do prazo ou o implemento das condições às quais ficou submetida a transferência da propriedade dos bens móveis objeto do contrato” (Section 2.6 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 282 “por escrito (com ou sem registro), verbalmente ou parcialmente por escrito e parcialmente de forma verbal, bem como também pode ser presumido tendo como base a conduta das partes (Section 4.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 115 ascertained” 283 . Mas se o bem objeto do contrato, apesar de ainda não individualizado, puder ser identificado de forma a ser reconhecido como vinculado ao contrato, as partes podem estabelecer que a propriedade desse bem – mesmo ainda não individualizado e independentemente desse ato – é transferida pelo vendedor ao comprador no momento do pagamento do preço 284 . Tratando-se de bens especificados e individualizados, "the property in them is transferred to the buyer at such time as the parties to the contract intend it to be transferred” 285 . Para a finalidade de se aferir a intenção das partes a respeito da transmissão da propriedade mobiliária, devem ser considerados “the terms of the contract, the conduct of the parties and the circumstances of the case” 286 . Considerada a dificuldade concreta de identificação da intenção das partes, a lei inglesa prevê cinco regras para a sua aferição, as quais são aplicadas aos casos de ausência de identificação da intenção das partes considerados os elementos legais referidos (os termos do contrato, a conduta das partes e as circunstâncias do caso). A primeira regra estabelece que se se trata de “an unconditional contract for the sale of specific goods in a deliverable state the property in the goods passes to the buyer when the contract is made, and it is immaterial whether the time 283 “Se o contrato tem por objeto bens ainda não individualizados, a sua propriedade, como regra, não é transferida ao comprador até que o sejam” (Section 16 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 284 Adrian Jenkala, advogado inglês, em entrevista realizada no dia 31 de julho de 2005, em Durham, Inglaterra. 285 “a sua propriedade é transferida ao comprador quando as partes do contrato pretendem que o seja” (Section 17.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 286 “os termos do contrato, a conduta das partes e as circunstâncias do caso concreto” (Section17.2 do Sale of Goods Act, de 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 116 of payment or the time of delivery, or both, be postponed” 287 . Ou seja, assim que as partes acordam a respeito do bem e do preço, e desde que o bem móvel negociado seja passível de entrega imediata, a propriedade do bem e os riscos respectivos são transferidos ao comprador 288 . Como conseqüência da transmissão da propriedade, se a coisa se perde antes da tradição, sem culpa do vendedor e sem que qualquer das partes esteja em mora, a perda é do comprador, já que este se tornou proprietário do bem anteriormente à tradição e independentemente desta. Nesse caso, incumbe ao comprador o pagamento do preço, já que o contrato produziu seus efeitos validamente 289 . Por outro lado, entregue o bem pelo vendedor ao comprador, o vendedor não tem mais o direito ao bem, mas exclusivamente ao valor acordado. Na prática, isso significa que ao vendedor não se garante a pretensão de desfazimento do negócio e consolidação da propriedade do bem em suas mãos, mas exclusivamente a pretensão ao valor do bem, conforme acordado no contrato 290 . A situação é diversa se o bem móvel objeto do contrato, apesar de ter sido individualizado e especificado, ainda não existir no momento da celebração, ou seja, se o bem móvel objeto do contrato não for passível de entrega imediata. O exemplo é de peças de roupas, especificadas mediante a escolha em um catálogo, 287 “Tratando-se de um contrato incondicional de venda de bens móveis determinados e passíveis de entrega imediata, a propriedade dos bens é transferida ao comprador no momento da celebração do contrato, independentemente de o pagamento e a entrega serem postergados” (Section 18.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 288 Tony Lancaster, cit. 289 Tony Lancaster, cit. 290 Adrian Jenkala, Advogado inglês, em entrevista realizada no dia 31 de julho de 2005, em Durham, Inglaterra. 117 por exemplo, mas ainda não confeccionadas pelo vendedor. Porque as peças de roupa ainda não existem quando da celebração do contrato – e portanto não são passíveis de entrega imediata –, a sua propriedade não é transmitida pelo vendedor ao comprador naquele momento, apesar do consenso a respeito do objeto e do preço. Nesse caso, a propriedade será transmitida assim que as peças de roupa estiverem prontas 291 . De acordo com a segunda regra, tratando-se de um “contract for the sale of specific goods and the seller is bound to do something to the goods for the purpose of putting them into a deliverable state, the property does not pass until the thing is done and the buyer has notice that it has been done” 292 . Nos termos da terceira regra, se se tratar de “contract for the sale of specific goods in a deliverable state but the seller is bound to weigh, measure, test or do some other act or thing with reference to the goods for the purpose of ascertaining the price, the property does not pass until the act or thing is done and the buyer has notice that it has been done” 293 . A quarta regra estabelece que, “When goods are delivered to the buyer on approval or on sale or return or other similar terms the property in the goods passes to the buyer: (a) when he signifies his approval or acceptance to the seller or 291 Tony Lancaster, cit. 292 “contrato de venda de bens móveis determinados e individualizados, mas a respeito dos quais o vendedor precisa tomar alguma providência para que os bens sejam passíveis de entrega, a propriedade desses bens não é transmitida até que a providência seja tomada e o comprador seja informado pelo vendedor de que a providência foi tomada” Section 18.2 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 293 “contrato de venda de bens móveis individualizados, mas que devem ser pesados, medidos ou testados pelo vendedor a fim de que o preço seja fixado, a propriedade desses bens não é transmitida até que a providência seja tomada e o comprador seja informado pelo vendedor de que a providência foi tomada” (Section 18.3 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 118 does any other act adopting the transaction; (b) if he does not signify his approval or acceptance to the seller but retains the goods without giving notice of rejection, then, if a time has been fixed for the return of the goods on the expiration of that time, and if no time has been fixed, on the expiration of a reasonable time” 294 . A quinta regra, dividida em duas partes, prescreve, na primeira parte, que, no caso de um “contract for the sale of unascertained or future goods by description, and goods of that description and in a deliverable state are unconditionally appropriated to the contract, either by the seller with the assent of the buyer or by the buyer with the assent of the seller, the property in the goods then passes to the buyer; and the assent may be express or implied, and may be given either before or after the appropriation is made”, e, na segunda parte, que ”Where, in pursuance of the contract, the seller delivers the goods to the buyer or to a carrier or other bailee or custodier (whether named by the buyer or not) for the purpose of transmission to the buyer, and does not reserve the right of disposal, he is to be taken to have unconditionally appropriated the goods to the contract” 295 . 294 “Quando os bens são entregues ao comprador mediante consignação ou mediante outros termos semelhantes, a propriedade dos bens é transferida ao comprador: (a) quando ele sinaliza sua aprovação ou sua aceitação ao vendedor, ou tem qualquer conduta que demonstra que ele aceitou o negócio jurídico; (b) se ele não sinalize sua aprovação ou aceitação ao vendedor, mas retém os bens sem manifestar sua rejeição, considerado, nesse caso, o prazo fixado, se o foi, ou o decurso de tempo razoável, se não houve fixação de prazo” (Section 18.4 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 295 “No contrato que tem como objeto bens indeterminados ou bens futuros, que tenham sido contratados mediante descrição, e bens com a descrição exata do contrato e passíveis de entrega imediata fora vinculados ao contrato, ou pelo vendedor com o consentimento do comprador, ou pelo comprador com o consentimento do vendedor, a propriedade dos bens é transferida ao comprador, e o consentimento pode ser expresso ou implícito, e pode ser dado antes ou depois que a vinculação é feita”; “Quando, em cumprimento do contrato, o vendedor entrega os bens móveis ao comprador ou a um depositário ou detentor – que podem ter sido nomeados pelo comprador ou não – com o objetivo de transmissão dos bens ao comprador, e não se reserva o domínio dos bens, considera-se que os vinculou incondicionalmente ao contrato (Section 18.5 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 119 O sistema inglês admite a reserva de domínio nos contratos de venda de bens especificados ou de bens que são posteriormente vinculados ao contrato. Nesse caso, o vendedor pode, “by the terms of the contract or appropriation, reserve the right of disposal of the goods until certain conditions are fulfilled; and in such a case, notwithstanding the delivery of the goods to the buyer, or to the carrier or other bailee or custodier for the purpose of transmission to the buyer, the property in the goods does not pass to the buyer until the conditions imposed by the seller are fulfilled” 296 . Uma das situações mais comuns nas quais é necessária uma decisão judicial a respeito da transferência da propriedade se dá quando uma das partes se torna insolvente e é necessário estabelecer se os bens móveis objeto do contrato podem ser considerados parte do ativo da parte insolvente para o fim de quitação de seus débitos. Dois casos são considerados paradigma para a solução da transmissão da propriedade mobiliária dos bens objeto do contrato. Em Aldridge v. Johnson 297 , o contrato de venda teve por objeto quinhentas toneladas de trigo, do total de mil toneladas que se encontravam embarcadas em um navio. O comprador inspecionou os grãos e deixou as embalagens para a sua colocação. Depois da embalagem e antes da entrega efetiva dos grãos ao comprador, o vendedor tornouse insolvente. A decisão estabeleceu que a propriedade dos grãos havia sido 296 o vendedor pode, pelos termos do contrato”ou da vinculação, reservar-se o domínio dos bens até que determinadas condições sejam implementadas; nesse caso, ainda que os bens sejam entregues ao comprador, ao transportador ou outro depositário ou detentor com o objetivo de transmissão dos bens ao comprador, a propriedade dos bens não é transmitida ao comprador até que as condições impostas pelo comprador sejam implementadas” (Section 19.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 297 (1857) 7 E & B 885, disponível em http://www.singaporelaw.sg/content/9saleofgds.pdf. 120 transmitida ao comprador assim que os grãos haviam sido embalados pelo vendedor, já que esse havia sido o ato por meio do qual o vendedor havia vinculado incondicionalmente os grãos ao contrato. Em 1957, Carlos Federspiel & Co SA v Charles Twigg & Co Ltd 298 constituiu um marco no regramento a respeito da transferência da propriedade dos bens móveis em caso de insolvência. O contrato de venda dizia respeito a bicicletas de crianças, que haviam sido embaladas e identificadas com o nome do comprador. Em resposta à remessa das faturas contendo os detalhes da remessa e do pagamento das taxas de embarque, o comprador enviou um cheque para fins de pagamento. Quatro semanas depois, mas ainda antes de as bicicletas serem encaminhadas ao porto para o efetivo embarque, o vendedor tornou-se insolvente e a entrega não foi efetivada. O comprador ajuizou uma ação pleiteando a entrega das bicicletas. A decisão estabeleceu que a mera separação dos bens não é suficiente à transmissão da propriedade, porque o vendedor poderia mudar de opinião e usar aqueles bens para o cumprimento de outro contrato. Estabeleceu ainda que o ato de determinação dos bens, ou seja, o ato por meio do qual os bens passam de indeterminados a determinados e se vinculam incondicionalmente ao contrato é o último ato a ser praticado pelo vendedor, no caso a entrega dos bens para embarque. E que, como as bicicletas não haviam sido entregues para embarque, a sua propriedade não havia sido transferida ao comprador. Em 1976, outro caso considerado paradigma foi decidido pela Corte Inglesa de Apelação 299 . Em Aluminium Industrie Vaassen BV v. Romalpa Aluminium 298 1 Lloyd's Rep. 240, disponível trade/passage%20of%20property.htm. 299 em http://www1.doshisha.ac.jp/~tradelaw/international- English Court of Appeal. 121 Ltd. 300 , a autora era uma empresa que havia vendido folhas metálicas de alumínio à empresa requerida. A autora/vendedora havia elaborado um contrato de venda com uma cláusula que estabelecia que a propriedade dos bens vendidos não seria transmitida à requerida/compradora até que o preço fosse pago integralmente, e que até a implementação do pagamento a requerida/compradora manteria os bens manufaturados com as folhas de alumínio como proprietária fiduciária. O contrato também estabelecia que a requerida/compradora estocaria os bens vendidos de forma a poderem ser claramente identificados como propriedade da autora/vendedora até a data do pagamento. A requerida/compradora se tornou insolvente antes do pagamento do preço, mas havia vendido produtos manufaturados a partir das folhas de alumínio. A Corte de Apelação decidiu que a propriedade das folhas de alumínio não havia sido transmitida à requerida/compradora e que esta havia revendido os bens como mera representante da autora/vendedora, razão pela qual esta estava legitimada a receber o valor da venda no varejo com preferência em relação aos demais credores da requerida/compradora insolvente. Nada impede que as partes estabeleçam uma cláusula contratual por meio da qual se determine que a propriedade é transferida, quanto aos bens indeterminados, mediante o pagamento parcial ou integral do preço. A presunção res perit domino se aplica ao sistema inglês, razão pela qual se justifica a importância da especificação do momento em que a propriedade mobiliária é transferida do vendedor ao comprador. 300 (1976) 2 All ER 552, disponível em http://www.ebc-india.com/lawyer/articles/671.htm. 122 A solução pode ser determinante para a fixação dos direitos decorrentes de um contrato de venda de um veículo, por exemplo. É passível de discussão se a regra atende às expectativas das partes. O vendedor pode não ter a intenção de transferir a propriedade do veículo até que o pagamento tenha sido feito pelo comprador. E o comprador pode não ter a intenção de adquirir a propriedade e, conseqüentemente, responsabilizar-se pelos riscos, antes da entrega efetiva do veículo, considerando-se que nesse caso ele próprio arcará com os prejuízos decorrentes da perda ou deterioração do veículo se uma ou outra hipótese ocorrer sem culpa do vendedor e antes da entrega efetiva. Quanto aos riscos, como regra geral são transmitidos pelo vendedor ao comprador juntamente com a propriedade. “Unless otherwise agreed, the goods remain at the seller's risk until the property in them is transferred to the buyer, but when the property in them is transferred to the buyer the goods are at the buyer's risk whether delivery has been made or not” 301 . Mas se a entrega do bem vendido houver sido atrasada “through the fault of either buyer or seller the goods are at the risk of the party at fault as regards any loss which might not have occurred but for such fault” 302 . Em 1827, em Taling v. Baxter, o comprador adquiriu um monte de feno, mas antes da entrega efetiva houve um incêndio, sem culpa de qualquer das 301 “A menos que acordado de outra forma pelos contratantes, os bens são mantidos sob o risco do vendedor até que a propriedade seja transmitida ao comprador, mas quando a propriedade é transmitida, os bens passam a estar sob o risco do comprador,s o são conjuntamente, ainda que os bens não tenham sido entregues materialmente ao comprador, independentemente de a entrega ter sido efetivada ou não” (Section 20.1 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 302 “por culpa do vendedor ou do comprador, os bens serão considerados sob o risco da parte culposa, com relação a quaisquer perdas que não teriam ocorrido senão pela ocorrência da culpa” (Section 20.2 do Sale of Goods Act 1979, disponível em http://www.jus.uio.no/lm/england.sale.of.goods.act.1979/doc#7). 123 partes, e o feno queimou completamente e se perdeu. A decisão estabeleceu que a propriedade havia sido transmitida ao comprador no momento da celebração do contrato, já que se tratava de bem determinado e passível de entrega imediata 303 . Em 1922, em Underwood Ltd. V. Burgh Castle Brick and Cement Syndicate, o objeto da venda era uma máquina de grande porte, que pesava trinta toneladas e estava montada sobre uma estrutura de concreto. Antes de ser entregue pelo vendedor à companhia de estrada de ferro que faria o transporte até o local em que seria recebida pelo comprador, a máquina teve de ser desmontada e, ao ser colocada no caminhão de transporte, foi danificada. O comprador se recusou a recebê-la e o vendedor ajuizou uma ação para o fim de obrigá-lo a receber a máquina e cobrar-lhe o preço acordado. A decisão estabeleceu que, como a máquina tinha de ser desmontada para ser entregue à transportadora, a propriedade não havia sido transmitida no momento do acidente 304 . Em 1949, em Demby Hamilton & Co Ltd. v. Barden, o contrato teve por objeto trinta toneladas de suco de maçã, que seriam entregues em carregamentos semanais. O suco foi estocado em barris, prontos para a entrega. Depois de algumas semanas o comprador se recusou a aceitar novos carregamentos pelo tempo que o próprio comprador estabeleceria. Antes que o comprador permitisse o recomeço das entregas, o suco estragou e teve de ser jogado fora. A decisão foi de que, embora a propriedade ainda não houvesse passado, os riscos eram do comprador, considerada a culpa deste ao não receber o objeto do contrato no tempo combinado. 303 Andrew P. Bell. Modern Law of Personal Property in England and Ireland. Londres/Edimburgo: Butterworths, 1989, p. 316. 304 Disponível em WEB.DLL?DocumentBody?1154214136&ELR_1922_32_1_123. http://www.justis.com/J-Net/J- 124 Se o comprador tem a intenção de revender os bens e o vendedor aceita mantê-los sob a sua posse enquanto o negócio é finalizado, os riscos são considerados para o comprador. Ou seja, os riscos do contrato deixam de estar com o vendedor assim que este deixa de agir como vendedor (no exemplo o vendedor deixou de agir como tal e passou a agir como depositário dos bens a serem entregues pelo comprador primitivo, que estão sob a detenção do vendedor primitivo) ao novo comprador. A solução será diferente se o contrato tem por objeto bens especificados a serem entregues em data posterior, e antes da entrega os bens se perdem mediante a negligência do vendedor. Nesse caso, embora a propriedade e os riscos tenham sido transmitidos para o comprador, o vendedor terá agido com culpa enquanto ainda no papel de vendedor, o que faz com que se conclua que assumiu os riscos. Se o vendedor de um bem móvel não é o proprietário do bem objeto do contrato, e se a venda não é celebrada mediante a autorização ou o consentimento do proprietário, o comprador não adquire um título melhor do que o título do vendedor, a menos que exista fundamento para que se reconheça o impedimento ao proprietário do bem objeto do contrato para negar que o vendedor tivesse sua autorização para a realização da venda. Mas essa norma não impede a aplicação de outras normas que garantam ao proprietário aparente o direito de dispor dos respectivos bens como verdadeiro proprietário, bem como não impede a validade de qualquer contrato celebrado sob regras reconhecidas pelo costume, sob regras específicas previstas 125 em outras normas ou sob a autorização de tribunal competente para a apreciação do caso. O terceiro adquirente do bem por meio de um título anulável tem a sua propriedade protegida, desde que a tenha adquirido de boa-fé. “When the seller of goods has a voidable title to them, but his title has not been avoided at the time of the sale, the buyer acquires a good title to the goods, provided he buys them in good faith and without notice of the seller's defect of title” 305 . 305 Section 23 do Sale of Goods Act 1979 (“Se o vendedor do bem móvel tem um título anulável, mas esse título não foi anulado até a data da venda, o comprador adquire validamente a propriedade do bem objeto do contrato, desde que o faça de boa-fé e sem conhecimento do defeito do título”). 126 Capítulo 6 – Contrato de compra e venda de bem móvel no sistema de direito brasileiro 6.1 – Eficácia e conseqüências Como referido no Capítulo 3 – Sistemas de aquisição da propriedade mobiliária, item 3.5 – Sistema brasileiro, inexiste consenso a respeito da eficácia real ou obrigacional do contrato de compra e venda no sistema de direito brasileiro anterior ao Código Civil de 1916 306 . Nas Ordenações Filipinas, o conceito da compra e venda era expresso no Livro IV, título 2: "Fazendo-se compra e venda de alguma certa cousa por certo preço, depois que o contracto he acordado e firmado pelas partes, não se pode mais alguma dellas arrepender sem consentimento da outra. Porque, tanto que o comprador e o vendedor são acordados na compra e venda de alguma certa cousa por certo preço, logo esse contracto he perfeito e acabado, em tanto que dando, ou offerecendo o comprador ao vendedor o dito preço, que seja seu, será elle obrigado de lhe entregar a cousa vendida, se fôr seu poder; e se em seu poder não fôr, pagar-lhe-ha todo o interesse, que lhe pertencer, assi por respeito do ganho, como por respeito da perda" 307 . Darcy Bessone afirma que o texto transcrito permitia a conclusão de 306 Afirmam a eficácia real do contrato de compra e venda no direito brasileiro pré-codificado: Luiz da Cunha Gonçalves. Da compra e venda, cit., p. 72; Sílvio de Salvo Venosa. Direitos reais, cit., p. 187; e Caio Mário da Silva Pereira. Instituições. Direitos reais, cit., p. 118 (conferir notas 192 a 195). Por sua vez, R. Limongi França afirma a eficácia brigacional do contrato de compra e venda inclusive na fase anterior ao Código Civil de 1916 (Manual de direito civil, cit., p. 75-76). 307 Darcy Bessone. Da Compra e venda, cit., p. 74, nota 77. 127 que o contrato, por si, transmitia a propriedade, mas conclui que essa possibilidade era afastada pelo parágrafo primeiro do referido dispositivo legal, que autorizava o arrependimento, com a perda das arras dadas. O doutrinador transcreve também o texto do título 7 das mesmas Ordenações – "Se o que fôr senhor de alguma cousa, a vender duas vêzes a desvairadas pessoas, o que primeiro houver a entrega della será della feito verdadeiro senhor, se della pagou o preço, por que lhe foi vendida, ou se se houve e o vendedor por pago della, por concorrendo assi na dita venda entrega da cousa e paga do preço, o fazeram senhor della" – para concluir que a transmissão da propriedade não se perfazia pela convenção, exigindo-se o modo para a sua efetivação 308 . Ainda antes da vigência do Código Civil de 1916, a Lei n.º 1.237, de 24 de setembro de 1.864, em seu artigo 8º, estabeleceu que "a transmissão intervivos dos imóveis, por titulo oneroso ou gratuito, não opera seus efeitos a respeito de terceiro, senão pela transcrição e desde a data dela" 309 , o que gerou discussão a respeito do momento da transmissão da propriedade, que, de acordo com o referido dispositivo legal, seria reputada transferida ao adquirente tão somente pelo efeito da celebração do contrato. Lafayette Rodrigues Pereira, comentando o referido dispositivo legal e a possibilidade levantada, de transmissão da propriedade por meio da convenção e independentemente do modo, afirmou: "O domínio é um direito absoluto, erga omnes. Se não existe em relação a terceiro, também não pode existir entre as 308 Darcy Bessone. Da Compra e venda, cit., p. 74-75, nota 77. 309 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 138, nota 44; Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 75, nota 77. 128 próprias partes contratantes. Um domínio que só é domínio entre os contratantes, mas que não o é em relação a terceiro, também não pode existir entre as próprias partes contratantes. Um domínio que só é domínio entre os contratantes, mas que não o é em relação a terceiros, é uma monstruosidade, que repugna à razão" 310 . Consideradas as posições contraditórias manifestadas pelos estudiosos e a inexistência de decisões reiteradas que possam atestar o entendimento jurisprudencial à época, Darcy Bessone afirma que não se pode extrair do direito pré-codificado brasileiro um principio sólido quanto à eficácia real ou obrigaciaonal do contrato de compra e venda 311 . A partir da vigência do Código Civil de 1916, o entendimento majoritário foi de que a eficácia do contrato de compra e venda no sistema de direito brasileiro é meramente obrigacional 312 , embora tenham sido emitidas opiniões divergentes. Luiz da Cunha Gonçalves afirmou que a interpretação conjunta dos artigos 1.126 e 1.127 do Código Civil de 1916 313 permitia a conclusão de que o contrato de compra e venda, considerado perfeito a partir do momento em que as partes acordassem sobre o objeto e o preço a ser pago, ensejava, por si, a 310 Lafayette Rodrigues Pereira. Direito das coisas, cit., p. 138, nota 45. 311 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 74-75 (notas omitidas). 312 A tese dominante se baseou na previsão do artigo 1.122, do Código Civil de 1916 (“Pelo contrato de compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”), sob o fundamento de que, se a lei estabeleceu que da compra e venda resulta a obrigação de transferir o domínio, a conclusão somente pode ser de que o vendedor não o transfere, mas apenas se obriga a transferi-lo. 313 Código Civil, Art. 1126. “A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objetivo e no preço”; Art. 1127. “Até ao momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”. 129 transmissão da propriedade e dos riscos ao comprador 314 . Darcy Bessone também manifestou opinião divergente da maioria e desenvolveu uma tese para afirmar a eficácia real do contrato de compra e venda no sistema de direito brasileiro. O texto do Código Civil de 1916 (Artigo 1122. “Pelo contrato de compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”) é equivalente ao do Código Civil francês (Article 1582. “La vente est une convention par laquelle l’un s’oblige a livrer une chose et l’outre la payer” 315 ) quanto à obrigação do vendedor, de entrega do bem objeto do contrato. Ou seja, nenhuma das disposições estabelece que o próprio contrato transfere a propriedade do bem vendido. No entanto, a corrente vitoriosa na França afirmou que não se podia extrair o sistema francês de um único dispositivo legal com a desconsideração de vários outros, que fixavam o caráter real do contrato 316 . Com fundamento nessa visão do direito francês, Darcy Bessone analisou diversos artigos do Código Civil de 1916, visando a comprovar a eficácia real do contrato de compra e venda no direito brasileiro. O primeiro objeto da análise foi o artigo 134, inciso II (“É, outrossim, da substância do ato a escritura pública: I – (...); II – nos contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis de valor superior a Cr$ 50.000 (cinqüenta 314 Luiz da Cunha Gonçalves. Da compra e venda, cit., p. 72. 315 “A venda é uma convenção pela qual alguém se obriga a entregar uma coisa e outrem a pagá-la”. 316 “Article 1.583. La vente est parfaite entre les parties, et la propriété est acquise de droit à l’acheteur à l’egard du vendeur, dès qu’on est convenu de la chose et du prix, quoique la chose n’ait pas encore été livrée ni le prix payé” (Artigo 1.583. A venda se considera perfeita entre as partes, e a propriedade é adquirida pelo comprador em relação ao vendedor, desde que sejam convencionados a coisa e o preço, embora a coisa ainda não tenha sido entregue nem o preço pago). 130 mil cruzeiros), excetuado o penhor agrícola 317 ). Afirma o doutrinador: “Não é possível maior clareza, quanto à existência, entre nós, de contratos constitutivos ou translativos de direitos reais (...). O conceito moderno do contrato admite, ao contrário do que supunham os romanos, que êle é hábil para constituir e transmitir direitos reais, não se cingindo, assim, à produção de obrigações. Ninguém duvidaria de que, entre os contratos constitutivos ou translativos de direitos reais, destaca-se, como o principal dêles, precisamente a compra e venda, cuja forma, sempre que o imóvel seja de valor superior a dez mil cruzeiros, é, por fôrça apenas do invocado art. 134, a escritura pública. Então, não se pode, sem afronta a êsse inciso, negar à compra e venda o caráter translativo ou constitutivo de direito real, o que equivale a reconhecer-lhe eficácia real, isto é, a incluí-lo entre os contratos reais pelos efeitos” 318 . A seguir, Darcy Bessone compara o texto dos artigos 1.122 (“Pelo contrato de compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”) e 1.165 (“Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outro, que os aceita”) para ressaltar no segundo dispositivo legal a redação que não refere a obrigação de transferir a propriedade, mas sim a própria transferência desta: “A diferença da expressão, nos arts. 1122 e 1165, definidores da compra e venda e da doação, teria sido intencional, visando a conferir caráter obrigacional à primeira, e caráter real, à segunda? Dificilmente, 317 Embora o dispositivo legal se refira a bens imóveis, a explicação do doutrinador diz respeito não à qualidade do bem em si, mas sim à eficácia do contrato de compra e venda, genericamente considerado. 318 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 76. 131 poder-se-ia, em face de figuras tão afins, admitir tal diversidade de tratamento. Mais facilmente, admitir-se-á, sobretudo em face do texto do art. 134, que faltou ao legislador, apenas, uma visão penetrante do tema, deixando-se influir, possivelmente, pela redação do art. 1582, do Code Civil francês. Este, não obstante, foi, na própria França, cotejado com outros incisos legais, em um trabalho de exegese sistemática e teleológica, que acabou afirmando a eficácia real da compra e venda francesa 319 . Na seqüência, o doutrinador estuda os artigos 533 (“Os atos sujeitos à transcrição (artigos 531 e 532, nºs. II e III) não transferem o domínio, senão da data em que lhe transcreverem (artigos 856 e 860, parágrafo único) e 620 (“O domínio das coisas não se transfere pelos contratos antes da tradição”) para fundamentar a sua tese. De acordo com a sua conclusão, os dois dispositivos legais “afirmam, embora sob forma indireta, que a transferência do domínio deriva do contrato. Com efeito, o primeiro, convertido em proposição afirmativa, teria o seguinte texto: os atos sujeitos a transcrição, transferem o domínio, na data em que se transcreverem; o segundo, submetido a idêntica operação, afirmaria que o domínio das coisas, no momento da tradição, se transfere pelos contratos. A forma negativa de expressão, adotada pelo legislador nos artigos 533 e 620, pode, à primeira vista, desligar, do ato ou contrato, o efeito translativo, para lhe fixar a origem na transcrição ou tradição. Mas a análise lógica precisará o verdadeiro sentido dos dois preceitos 320 . Darcy Bessone faz ainda uma análise do acordo de vontades, 319 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 77-78. 320 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 78. 132 considerado a base da compra e venda brasileira, para o fim de comparar o referido contrato aos contratos de compra e venda nos outros sistemas de direito. Afirma que a tese de que a compra e venda brasileira produz apenas a obrigação de transferir o domínio significa que o objeto do acordo de vontades é a criação dessa obrigação de transferir o domínio e não a própria transferência deste. E que essa afirmação poderia ser admitida no direito alemão, cujo sistema estabelece que o contrato de compra e venda é estranho ao negócio translativo, já que este tem por base um outro contrato, que é abstrato e, pelos efeitos, real. Ou no direito romano, porque, de acordo com o doutrinador, os romanos se valiam de modos de adquirir de natureza contratual, embora não o percebessem ou não o admitissem. “Mas, entre nós, não se pode aceitar a aludida tese, por ser certo que não dispomos de um segundo acôrdo de vontades, de um segundo contrato, integrativo do negócio de transmissão dominical. No direito brasileiro, é a própria compra e venda que o integra. Então, apresenta-se esta incontornável alternativa: ou o acôrdo de vontades sôbre a transferência do domínio (não sôbre a obrigação de transferi-lo) está na compra e venda, ou não está em parte alguma, não existe” 321 . O doutrinado afirma que o sistema de direito brasileiro somente pode ser entendido mediante a conclusão de que o acordo de vontades a respeito da transmissão do domínio da propriedade está no próprio contrato de compra e venda. A respeito da comparação entre o sistema brasileiro e os sistemas francês e alemão, o doutrinar conclui: “o direito brasileiro aproxima-se do francês e do italiano, que consideram a compra e venda como um acôrdo de vontades sôbre a própria transferência do domínio, não sôbre a obrigação de transferi-lo. 321 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 79. 133 Aproximando-se, não se identifica com êles, entretanto, porque, aqui, a transcrição no Registro Imobiliário, em relação aos bens imóveis, e a tradição, quanto aos bens móveis, são, ao contrário do que ocorre na França e na Itália, atos integradores do negócio translativo. Sob êsse aspecto, filia-se o nosso direito ao germânico. Mas, também, não se identifica com êste, porque, como já foi repetidamente assinalado, no direito alemão, o acôrdo de vontades sôbre a transferência do domínio, embora seja essencial, não se estabelece na compra e venda, que é simplesmente obrigacional e encerra autêntica promessa de alienar, mas sim em um segundo contrato, real pelos efeitos translatícios que suscita. (...) Admitindo-se, principalmente, em face do art. 134, do Código Civil, que, em nosso direito, o acôrdo de vontades, constante da compra e venda, abrange os efeitos obrigacionais e reais do negócio, far-se-á honra ao legislador pátrio, que teria, assim, se adiantado ao alemão, na unificação dos dois acôrdos de vontades. (...) Mesmo em relação aos bens móveis, não se poderia ver apenas na tradição o ato translativo. A tradição, como forma de entrega da coisa, ocorre a vários títulos: pode fazer-se a título de transmissão do domínio (art. 620, do Código Civil), ou de transmissão da posse (art. 520, II), como na locação, no mútuo, no comodato, no penhor, na anticrese, na enfiteuse, no usufruto, no depósito, etc. Então, a simples entrega material nada define, por si mesma. É ato de sentido equívoco, que só se torna unívoco, através do título fundamental. Logo se vê que decisivo é o título, não a materialidade da entrega, tanto que o parágrafo único, do art. 622, do Código Civil, preceitua que, sendo, nulo o título, o domínio não se transfere pela tradição. (...) Então, o acôrdo sôbre a transferência do domínio é essencial. No, caso brasileiro, êsse acôrdo se 134 exprime na compra e venda, título originador da tradição e que lhe confere o exato alcance” 322 . A discussão proposta por Darcy Bessone não se prolongou e a tese defendida pelo doutrinador não prosperou no direito brasileiro, merecendo poucas referências nas obras dos demais doutrinadores. Orlando Gomes refere a posição de Darcy Bessone, mas não a reconhece como passível de acolhimento no direito brasileiro: “O Direito pátrio seguiu a orientação romana ao atribuir à compra e venda efeitos meramente obrigacionais. Esta a opinião predominante. Contudo, não é inteiramente pacífica, porque a referência legal a contratos constitutivos de direitos reais dá a impressão de que estes podem ser constituídos ou transmitidos por efeitos exclusivos de obrigação, sustentando alguns escritores que a perda do domínio de uma coisa pela alienação verifica-se em conseqüência do título transmissivo, embora os efeitos se subordinem à transcrição deste no lugar do imóvel. Em reforço da tese de que, entre nós, o contrato pode ter efeito real, invocam-se disposições concernentes à doação 323 . Prevalece, no entanto, a opinião de que o Direito nacional não atribui ao contrato de compra e venda efeitos reais, como se depreende, sem esforço, das disposições concernentes ao registro da propriedade imóvel” 324 . 322 Darcy Bessone. Da compra e venda, cit., p. 79-81. 323 Em nota de rodapé, Orlando Gomes refere a explicação de Darcy Bessone quanto à identidade do momento da transmissão da propriedade nos contratos de compra e venda e de doação (conferir a nota 325). 324 Orlando Gomes. Contratos, cit., p. 225-226. Embora Orlando Gomes não especifique a quais dispositivos referentes concernentes ao registro da propriedade imóvel se refere, é possível presumir que se refere ao artigo 533 do Código Civil de 1916 (“Os atos sujeitos à transcrição (artigos 531 e 532, nºs. II e III) não transferem o domínio, senão da data em que lhe transcreverem (artigos 856 e 860, parágrafo único)”). Vale consignar, pela oportunidade, mas apenas a título de reiteração, que Darcy Bessone estendeu retroativamente a eficácia do registro da propriedade imóvel à data da celebração do contrato de compra e venda (conferir a nota 326). A tese de Darcy Bessone, como 135 Silvio Rodrigues também cita Darcy Bessone: “A despeito da excelência e fulgor da argumentação, não me convenci de sua razão. Ademais, o ponto de vista majoritário que empresta apenas efeitos pessoais ao contrato de compra e venda, a meu ver, revela-se mais convincente e melhor consulta o regra, não foi aceita pela jurisprudência brasileira, como se constata das decisões sob a vigência do Código Civil de 1916: “Bem imóvel – Transferência de propriedade – Nos termos do art. 530, I, do atual Código Civil Brasileiro, ‘adquire-se a propriedade imóvel pela transcrição do título de transferência no registro do imóvel’. Essa regra não foi revogada, ao contrário, foi repetida no art. 1.245 e §§, da Lei nº 10.406, de 10.1.2002, que aprovou o novo Código Civil que vai entrar em vigor no dia 11 de janeiro próximo. Estando ali previsto que ‘enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel’” (Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região – Apelação n.º 5148/2002 – 2ª Turma – Relator: Juiz José Edílsimo Eliziário Bentes – J. 18.12.2002); “(...) Como se sabe, no direito brasileiro a aquisição de propriedade imóvel se dá mediante a transcrição do título de transferência no registro competente, conforme artigos 530, I; 531; 533 e 860 do CCB, estabelecendo o referido diploma legal regras de publicidade dos atos, exatamente para se conferir segurança às relações jurídicas atinentes a bens imóveis. (...)” (Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região – Apelação n.º 5254/02 – 2ª Turma – Relatora: Juíza Alice Monteiro de Barros – DJMG 02.10.2002 – p. 10); “(...) 1 – Tendo o autor provado a propriedade do bem imóvel e não ocorrendo qualquer das hipóteses elencadas no art. 530, do CCB, outra não poderia ter sido a solução encontrada. 2 – A documentação apresentada pelos apelantes, não atendeu aos requisitos legais para fazer prova da aquisição da propriedade e, a única escritura apresentada por um deles não foi levada a registro. 3 – Não se discute a existência de posse de boa-fé, pois, segundo informou o apelado, que morava em outro estado, a pessoa que tomava conta do terreno morreu, não sendo certo o período em que o imóvel permaneceu sem vigilância. 4 – Correta a determinação de indenização das benfeitorias edificadas sobre o imóvel do apelado, após a perfeita individualização do mesmo. 5 – Sentença mantida. Apelação conhecida e improvida” (Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo – Apelação Cível n.º 035980118992 – 1ª Câmara Cível – Relatora: Des. Arione Vasconcelos Ribeiro – J. 10.12.2003). Também a título de consignação, o Código Civil de 2002 alterou a redação a respeito da transcrição, nos termos do atual artigo 1.245: “Art. 1245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. § 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”. A jurisprudência a respeito do dispositivo atual, mediante rejeição da tese de Darcy Bessone: “(...) A aquisição da propriedade imobiliária ocorre mediante a transcrição do título de transferência no registro de imóveis, sendo titular do direito aquele cujo nome estiver transcrito o bem imóvel. - Constando na certidão de registro de imóveis que o INSS é o proprietário do imóvel objeto da presente lide, legitimado está para figurar no pólo passivo da demanda. – Caso ocorra a alienação do bem, obrigatório será o registro da escritura de compra e venda no competente registro de imóveis, por força da norma inserta no art. 530, I, do CC. – Recurso não provido. Sentença mantida” (Tribunal Regional Federal da 2ª Região – Apelação Cível n.º 2001.51.01.013149-0 – 6ª Turma Especial – Relator: Des. Fed. Benedito Goncalves – DJU 10.11.2005 – p. 203); “Embargos de terceiro – Prova da propriedade – Bem imóvel – A propriedade de bem imóvel é adquirida com a transcrição do título de transferência no cartório de registro de imóveis, conforme preceituado no art. 1245 do Código Civil. Assim, havendo prova do registro legalmente exigido, considera-se a Agravante como proprietária do bem penhorado” (Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região – Apelação n.º 01639-2003-016-05-00-1 – (30.985/04) – 4ª Turma – Relatora: Juíza Débora Machado – J. 30.11.2004); “Penhora de imóvel – Registro – Propriedade – Somente é dono de bem imóvel aquele que detém o respectivo registro da propriedade no cartório de registro de imóveis, nos termos do art. 1245 do Código Civil/2002. Agravo de petição conhecido e nele não provido, por unanimidade” (Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região – Apelação n.º 0922/2003-002-24-00-0 – Relator: Juiz Nicanor de Araújo Lima – J. 04.08.2004). 136 interesse geral” 325 . Manoel Inácio Carvalho de Mendonça afirma a eficácia obrigacional do contrato de compra e venda no sistema brasileiro mediante a fundamentação do sistema nacional no sistema de direito romano, que reconhecia que o contrato de compra e venda não transferia a propriedade e tampouco fundava direitos reais, mas apenas dava lugar a direitos de crédito 326 . J. M. Carvalho Santos, ao comentar o artigo 1.122 do Código Civil de 1916, leciona: “Pelo contrato de compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa... Note-se bem: um dos contraentes, o vendedor, não transfere; obriga-se, sim, a transferir o domínio de certa coisa. É que a compra e venda, no sistema do nosso Código, não opera, de si só, a transferência do domínio. (...) Os mestres não divergem: em nenhum caso, adquire o comprador o domínio sobre a coisa, antes da tradição” 327 . E, ao comentar o artigo 620 do mesmo Código Civil de 1916, o doutrinador reitera a eficácia obrigacional do contrato de compra e venda: “Sem a tradição, na verdade, existe apenas o contrato e êste destinado a 325 Silvio Rodrigues. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume 3, p. 142, nota 188. Nesse sentido: “Recurso especial – Civil – Embargos de terceiro – Tradição de coisa semovente não caracterizada – Boa-fé do adquirente não demonstrada – 1. O contrato de compra e venda produz efeitos meramente obrigacionais, não conferindo poderes de proprietário àquele que não obteve a entrega do bem adquirido. In casu, não tendo havido a tradição, conforme relatado pelas instâncias ordinárias, e não tendo havido o pagamento do preço, não se concluiu a primeira compra e venda. 2. Boa-fé do segundo adquirente não demonstrada. 3. Recurso não conhecido” (Superior Tribunal de Justiça – RESP n.º 200401636417 – (704170 GO) – 4ª Turma – Relator: Ministro Jorge Scartezzini – DJU 07.11.2005 – p. 00305). 326 Manoel Inácio Carvalho de Mendonça. Contratos, cit., p. 314. Nesse sentido: “Recurso especial – Civil – Embargos de terceiro – Tradição de coisa semovente não caracterizada – Boa-fé do adquirente não demonstrada – 1. O contrato de compra e venda produz efeitos meramente obrigacionais, não conferindo poderes de proprietário àquele que não obteve a entrega do bem adquirido. In casu, não tendo havido a tradição, conforme relatado pelas instâncias ordinárias, e não tendo havido o pagamento do preço, não se concluiu a primeira compra e venda. 2. Boa-fé do segundo adquirente não demonstrada. 3. Recurso não conhecido” (STJ – RESP 200401636417 – (704170 GO) – 4ª T. – Rel. Min. Jorge Scartezzini – DJU 07.11.2005 – p. 00305). 327 J. M. Carvalho Santos. Código Civil. Volume XVI, cit., p. 10. 137 criar direitos de obrigação só acarreta a de entregar, a de fazer a tradição, não criando nenhum direito à coisa, nenhum direito ad rem. Não havendo nenhuma discrepância na doutrina sôbre êsse ponto” 328 . Washington de Barros Monteiro comunga do mesmo entendimento e afirma que o contrato de compra e venda, por si só, não opera a transmissão da propriedade. Corrobora que para que se efetive a transferência da propriedade são necessárias a tradição (para os bens móveis) e o registro (para os imóveis), sendo que antes desses fatos, o comprador só tem contra o vendedor um direito pessoal, já que a tradição e o registro é que dão origem ao direito real 329 . Caio Mário da Silva Pereira, após referir a definição legal do contrato de compra e venda, afirma a sua posição de que a eficácia do referido contrato é obrigacional: “Desta noção fazemos ressaltar, desde logo, o ponto essencial, que marca a posição do nosso direito: o caráter meramente obrigatório do contrato. Seguindo, como se vê, a tradição romana, e fiel à nossa determinação histórica, a compra e venda não opera, segundo o nosso Código, a transmissão do domínio” 330 . 328 J. M. Carvalho Santos. Código Civil. Volume VIII, cit., p. 277. Nesse sentido: “Ilegitimidade ‘ad causam’ – Compra e venda de coisa móvel – Mercadoria não entregue – Pretensão à satisfação do direito por meio de ação de imissão de posse – Inadmissibilidade – Legitimação para essa ação conferida, apenas, ao proprietário – Inexistência de transferência de domínio da coisa, pela ausência de tradição – Incidência do artigo 620 do Código Civil – Ilegitimidade ativa reconhecida – Extinção do processo mantida - Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Sumária n.º 0865431-9 – Origem: São José dos Campos – 8ª Câmara de Férias Julho – Relator: Maurício Ferreira Leite – J. 02/07/1999). 329 Washington de Barros Monteiro. Curso: obrigações – 2ª Parte, cit., p. 90. 330 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições – Contratos, cit., p. 172. O doutrinador também manifestou sua posição no seu “Anteprojeto de Código de Obrigações”, em cuja exposição de motivos afirmou que havia mantido as características tradicionais, “milenares”, do contrato de compra e venda. Continua: “Foi-lhe conservada a natureza de título causal da transferência do domínio, dentro do que constitui a linha fundamental do instituto entre nós. O princípio da escola francesa, segundo o qual a venda opera desde logo a mutação da propriedade não vinga. Por isso, o contrato habilita a transmissão, mediante a formalidade essencial do registro, ou tradição” (Anteprojeto de Código de Obrigações. Rio de Janeiro: sem editora indicada, 1964, p. 26). 138 Maria Helena Diniz manifesta seu entendimento no mesmo sentido: “O contrato de compra e venda dá aos contratantes tão-somente um direito pessoal, gerando para o vendedor apenas uma obrigação de transferir o domínio; conseqüentemente, produz efeitos meramente obrigacionais, não conferindo poderes de proprietário àquele que não obteve a entrega do bem adquirido. Não opera, portanto, de per si, a transferência da propriedade, que só se perfaz pela tradição, se a coisa for móvel, ou pela transcrição do título aquisitivo no registro competente, se for imóvel” 331 . Reconhecida a eficácia obrigacional do contrato de compra e venda no direito brasileiro, conforme entendimento que, se não se pode afirmar pacífico, é absolutamente majoritário, identifica-se a grande dificuldade de transposição da teoria para a prática nos casos em que o contrato de compra e venda e a transmissão da propriedade são simultâneos. Pontes de Miranda desenvolveu uma explicação sobre os dois atos distintos – a celebração do contrato de compra e venda e a transmissão da propriedade mobiliária – que, ocorridos simultaneamente, fundamentam a dúvida a respeito da eficácia do contrato de compra e venda de bem móvel no Brasil: “A compra e venda à vista, ou a compra e venda a prazo, pela qual o vendedor desde 331 Maria Helena Diniz. Tratado Teórico e Prático dos Contratos. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1996, p. 333. Ainda no mesmo sentido se manifesta Sebastião de Souza: “No sistema adotado pelo nosso direito, o contrato de compra e venda não transfere o domínio da coisa. Dele surgem apenas obrigações pessoais” (Da compra e venda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1956, p. 33). E também Carlos Alberto Bittar, que afirma que o regime brasileiro aproximou-se do alemão, ao estabelecer que o laço contratual implica apenas no nascimento de direitos pessoais entre as partes, impondo-lhe obrigações de dar, diversamente do que prevê a legislação codificação francesa, que estabelece que o próprio contrato de compra e venda cria o vínculo pelo qual se opera a transferência de domínio da coisa alienada. Afirma ainda que, em conseqüência da eficácia obrigacional do contrato de compra e venda, o comprador não dispõe de mecanismos de reação próprios de proprietário, como a ação de reivindicação, resolvendo-se normalmente em perdas e danos os litígios com o vendedor decorrentes da não entrega do bem vendido, salvo nos casos em que se faz possível o cumprimento do contrato (Contratos Civis. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1991, p. 16). 139 logo transfere a propriedade ou a posse, é contrato consensual, como qualquer outro. Apenas o vendedor se obrigou a prestar imediatamente, e a imediatidade dá a ilusão da simultaneidade e, o que é mais delicado, da causação da transferência pelo contrato de compra e venda. Mesmo se o comprador recebe o bem (propriedade e posse) ao concluir o contrato, ou se já o havia recebido, o que passa é que ele foi figurante de dois negócios jurídicos: o contrato de compra e venda e o acordo de transmissão; ou de três: o contrato de compra e venda, o acordo de transmissão da propriedade e o acordo de transmissão da posse” 332 . Arnaldo Rizzardo também faz menção à duplicidade de atos, ao afirmar que, mediante a celebração do contrato de compra e venda, o vendedor somente se obriga a transferir a propriedade do bem mediante a contraprestação do preço em dinheiro. Enfatiza que o aperfeiçoamento do contrato se dá independentemente da tradição do bem móvel que consiste no seu objeto e que, acaso não consumada a tradição, os direitos decorrentes do contrato serão exclusivamente obrigacionais, já que a constituição do direito real depende necessariamente daquele ato 333 . Adotamos a posição majoritária de que no direito brasileiro o contrato de compra e venda tem eficácia meramente obrigacional. A tese desenvolvida por Darcy Bessone, reconhecido o seu inegável valor histórico e acadêmico, desconsidera os distintos caminhos trilhados, por um lado, pelo direito francês e pelo direito inglês e, por outro, pelo direito brasileiro. O reconhecimento, pelo sistema brasileiro, da tradição simbólica e 332 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1962. Tomo XXXIX, p. 55. 333 Arnaldo Rizzardo. Contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 293-294. 140 da tradição ficta, ambas referidas pela doutrina francesa – a partir do princípio de dessaisine-saisine 334 – como o caminho por meio do qual a tradição deixou de ser essencial à transmissão da propriedade mobiliária naquele sistema de direito, não tem como conseqüência a desconsideração ou o afastamento da necessidade do ato de exteriorização da transmissão da propriedade mobiliária. Trata-se exclusivamente do reconhecimento de que, de forma excepcional e desde que caracterizada uma das situações expressamente previstas 335 , dispensa-se a entrega material do bem objeto do contrato de compra e venda e se reconhece a um determinado ato jurídico ou a uma conduta das partes o mesmo efeito daquela entrega material. O contrato de compra e venda, por si e independentemente da tradição, enseja exclusivamente direitos obrigacionais aos contratantes. Dessa circunstância decorre a inegável conclusão de que, ainda que pago o preço, o comprador – que não é proprietário do bem móvel porque não obteve a tradição – não pode se valer dos interditos garantidos apenas ao proprietário para obter a posse do bem. Quanto aos riscos a que o bem está sujeito, consideram-se-nos transmitidos ao comprador mediante a tradição do referido bem. Ou seja, até o 334 Conferir 3.3. 335 As hipóteses de tradição simbólica decorrem de atos reputados válidos para a transmissão da propriedade mobiliária, como a entrega das chaves simbolizando a entrega do veículo que se encontra em local diverso; as hipóteses de tradição ficta estão previstas no artigo 1267 do Código Civil (A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição. Parágrafo único. Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico”) e em diversos outros dispositivos legais, referidos no Capítulo 2 – Modos de aquisiçào da propriedade mobiliária, item 2.2 – Tradição. 141 momento da tradição os riscos correm por conta do vendedor 336 . Isso significa que, ocorrido o caso fortuito ou de força maior 337 , o vendedor, como proprietário do bem, sofrerá a perda, mediante a aplicação da máxima res perit domino. Excepcionalmente, a perda decorrente do caso fortuito ou de força maior será imputada ao comprador, desde que verificada durante o “ato de contar, marcar ou assinalar coisas, que comumente se recebem, contando, pesando, medindo ou assinalando, e que já tiverem sido postas à disposição do comprador, correrão por conta deste” (artigo 492, parágrafo 1º, do Código Civil). Por fim, os riscos a que se sujeita o bem objeto do contrato são considerados à conta do comprador se este estiver em mora de recebê-lo, desde que posto à sua disposição no tempo, lugar e pelo modo ajustados (artigo 492, parágrafo 2º, do Código Civil). Ou seja, desde que o bem seja posto, da forma estipulada no contrato, à disposição do comprador, será este responsável pelos danos a partir de então decorrentes e que não tenham qualquer ligação com a conduta do vendedor anterior à efetivação da entrega. Nesse sentido a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em acórdão em que se analisou a conduta do comprador do bem que se perdeu após ter sido posto à disposição deste: “Direito civil – Embargos à execução – Morte de animal objeto do contrato de compra e venda – Prejuízo pela perda da coisa deve ser suportado pelo dono – Prescrição do direito de ação referente ao vício redibitório – Recurso improvido – Unânime – Nas obrigações de dar, a tradição é um dos requisitos indispensáveis para a efetiva 336 Código Civil, Art. 492. “Até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”. 337 Nos termos do artigo 393, parágrafo único do Código Civil, caso fortuito ou de força maior é o “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. 142 realização do negócio, e esta se consubstancia na entrega do bem ao adquirente, com a intenção de lhe transferir o domínio, em razão de título translativo de propriedade. Comprovado que foi efetuada a entrega do cavalo, mesmo que o comprador tenha decidido deixá-lo naquele local, deve suportar o prejuízo, pois assumiu todos os direitos, ônus e obrigações, que competem ao titular da coisa adquirida. O vício redibitório somente pode ser alegado em até seis meses após a compra do bem, à luz do Código Civil de 1916, ou a partir da ciência da existência do vício oculto, sob pena de prescrição do direito de ação” (Tribunal de Justiça do Distrito Federal – Apelação Cível n.º 1998.04.1.004383-9 – 4ª Turma Cível – Relator: Des. Lecir Manoel da Luz – DJU 26.02.2004 – p. 60). Considerando que a propriedade mobiliária é transmitida pela tradição, a celebração do contrato, por si, não enseja a modificação da sua titularidade, o que permite a aplicação, ao contrato de compra e venda de bem móvel, das regras gerais a respeito das obrigações de dar. Se o bem móvel objeto do contrato de compra e venda se perder antes da tradição, sem culpa 338 do vendedor, será considerada extinta a obrigação de dar (artigo 234 do Código Civil) e, conseqüentemente, será considerado resolvido 338 Para os fins de identificação da conduta culposa do devedor da obrigação de dar, assim como para as hipóteses de obrigação de fazer e de não fazer, utiliza-se a definição de culpa em sentido amplo, utilizada como regra no direito civil, o que compreende o dolo e a culpa em sentido estrito. O dolo se verifica na conduta voluntária do agente, voltada especificamente à prática de um determinado ato. Por sua vez, a culpa em sentido estrito é identificada nas hipóteses de imprudência, negligência e imperícia. A imprudência se caracteriza pela conduta positiva do agente – in committendo ou in faciendo – de enfrentamento desnecessário do perigo, ou seja, o indivíduo se conduz positivamente, deixando de tomar os cuidados objetivos básicos para evitar a ocorrência de um resultado danoso. A negligência se caracteriza pela conduta negativa do agente (in ommittendo), o qual se abstém quando deveria agir de forma a evitar um determinado resultado. Por fim, a imperícia decorre da falta de habilidade específica para a prática de uma atividade técnica ou científica. Em se tratando de relação contratual, o lesado pelo inadimplemento da obrigação tem o ônus exclusivo de comprovar o referido descumprimento, mas não tem o ônus de comprovar a culpa da parte inadimplente, que é presumida em decorrência do descumprimento da obrigação regularmente pactuada. À parte inadimplente incumbe o ônus da prova da inexistência de sua culpa. 143 o contrato e extinta, como contraprestação, a obrigação do comprador de pagar o preço. Se o preço já houver sido pago, o comprador terá o direito de reavê-lo na sua integralidade 339 . Se o bem móvel se perder antes da tradição, mas com culpa do vendedor, e o comprador já houver pago o preço, poderá este optar entre desfazer o negócio, exigindo a devolução do valor pago, ou exigir que o vendedor cumpra o contrato, mediante a entrega de bem equivalente, se houver possibilidade. Se o preço não houver sido pago, o comprador ficará exonerado de seu pagamento se pretender o desfazimento do contrato. Pretendendo o cumprimento do contrato pelo vendedor, em caso de possibilidade de entrega de bem equivalente, deverá comprovar o cumprimento de sua obrigação, mediante a consignação do pagamento, se o caso. Em todas as hipóteses, terá o direto de ser indenizado por perdas e danos, desde que comprovados (artigo 234 do Código Civil). Se o bem móvel se deteriorar antes da tradição, sem culpa do vendedor, ao comprador será garantido optar pela resolução do contrato de compra e venda, mediante a devolução do preço, ou aceitar o bem móvel deteriorado nas condições em que se encontrar, nesse último caso mediante o abatimento em seu preço do valor que se perdeu (artigo 235 do Código Civil). Se o bem móvel se deteriorar antes da tradição, mas com culpa do vendedor, o comprador poderá desfazer o negócio, já que não é obrigado a aceitar bem diverso ou em condições diversas daquelas em que se encontrava quando da 339 A devolução da integralidade do preço poderá ser objeto de discussão em casos específicos. Por exemplo, se o vendedor teve gastos para a manutenção do bem, os quais, embora tenham sido efetuados para a manutenção de bem de sua propriedade, já que a propriedade somente seria transmitida com a tradição, tenham constado especificamente de contrato como passíveis de dedução quando do pagamento do preço, posteriormente à tradição que não chegou a ocorrer. 144 celebração do contrato 340 . Poderá ainda optar entre exigir o equivalente, se houver possibilidade, ou aceitar o bem no estado em que se encontra, mediante o abatimento em seu preço do valor que se perdeu. Tratando-se de hipóteses de deterioração com o reconhecimento da culpa do vendedor, o comprador terá o direto de ser indenizado por perdas e danos, desde que comprovados (artigo 236 do Código Civil). Considerada a regra de que a propriedade do bem móvel no Brasil não se transfere do vendedor ao comprador por meio do contrato de compra e venda, mas sim por meio da tradição 341 , como modo de transmissão da propriedade, sob o fundamento do título consubstanciado no referido contrato, tem-se que, também como regra, a insolvência de uma das partes não enseja, por si, dificuldade quanto à aferição de a qual delas pertence o bem objeto do contrato, já que o bem será do vendedor se ainda não efetivada a tradição e será do credor se já efetivada a tradição. Mas poderão ser identificadas situações específicas em que a solução dependerá da consideração de circunstâncias diversas. De acordo com o artigo 159 do Código Civil, os contratos onerosos celebrados pelo devedor insolvente são anuláveis, desde que a insolvência seja notória ou desde que exista motivo para ser conhecida do outro contratante. Tratase de regra cuja aplicação depende da comprovação, no caso concreto, das circunstâncias especificadas. 340 Código Civil, Art. 313. “O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa”. 341 Código Civil, Art. 1226. “Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição”; Art. 1267. “A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”. 145 Em caso de insolvência do vendedor, se o bem móvel não houver sido entregue ao comprador, a sua propriedade será do próprio vendedor insolvente. Consigna-se que, não entregue o bem pelo vendedor ao comprador na data estabelecida no contrato, a solução será a mesma independentemente de ter sido ou não decretada a insolvência do vendedor ou de se tratar de situação notória ou em que se presume a ciência dessa situação pelo eventual adquirente. Se o comprador já houver pago o preço e o bem ainda estiver sob a posse do vendedor, poderá o primeiro optar entre executar o contrato, mediante a exigência da entrega do bem móvel objeto da compra e venda 342 , ou desfazê-lo, mediante a cobrança do valor pago 343 . Se o bem não mais estiver sob a posse do vendedor porque este o alienou a terceiro, o comprador poderá resolver o contrato, mediante a exigência da devolução do valor pago 344 , ou poderá pretender a 342 A ação de execução poderá ser ajuizada desde que o contrato preencha os requisitos do artigo 585, inciso II, do Código de Processo Civil. Caso o contrato não preencha os requisitos legais (artigo 585, combinado com o artigo 586, ambos do Código de Processo Civil), o que se verifica na grande maioria dos casos de contratos celebrados por leigos em decorrência da ausência de assinatura de duas testemunhas, ao credor será garantida a ação de obrigação de dar, prevista no artigo 461-A do Código de Processo Civil. 343 “Cobrança – Compra de elevadores para entrega futura, com preço pago – Desavença, quando da época da entrega quanto à diferença de preço, a autorizar, por ambas as partes, denúncia do contrato – Obrigação da vendedora de devolver, de imediato, após notificação, o preço recebido – Ilicitude da retenção do dinheiro, pela ré – Procedência da ação confirmada – Recurso não provido. (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 22.765-4 – Origem: São Paulo – 3ª Câmara de Direito Privado – Relator: Alfredo Migliore – 18.02.97 – V. U.). 344 O direito do comprador de ser indenizado por perdas e danos somente poderá ser aferido no caso concreto, mediante a sua comprovação por aquele que os alega. Se o bem não foi utilizado pelo comprador, como na hipótese aventada no texto, já que o comprador não obteve a sua posse, o direito de ser indenizado por perdas e danos é mais remoto, exigida a prova de evento concreto a demonstrar a sua ocorrência, como, por exemplo, a celebração de contrato preliminar tendo como objeto o bem comprado e não recebido. A propósito, especificamente, dos valores passíveis de exigência de devolução pelo alienante ao adquirente: “(...) Se o recorrente, malgrado tenha adquirido terreno a ‘non domino’, nunca o ocupou, nem o utilizou de qualquer forma, o "quantum" da indenização em decorrência da ilicitude, deve corresponder à devolução do preço pago, com as correções devidas, não se havendo de cogitar de lucros cessantes” (Superior Tribunal de Justiça – RESP n.º 151306/PR (199700727521) – 1ª Turma – Relator: Ministro Demócrito Reinaldo – J. 15/12/1998). 146 decretação da ineficácia 345 ou da anulação 346 da alienação do vendedor a terceiro, mediante a comprovação da ciência do terceiro a respeito da situação de insolvência do vendedor. Por outro lado, também no caso de insolvência do vendedor, se o comprador não houver pago o preço e o bem ainda não lhe houver sido entregue, (o comprador) poderá optar entre desfazer o contrato (e não pagar o preço) ou exigirlhe o cumprimento. Pretendendo o cumprimento do contrato, poderá comprovar o cumprimento de sua obrigação de pagamento mediante o depósito do preço em juízo, com a citação de todos os interessados (artigo 160 do Código Civil), embora esse procedimento não lhe garanta a entrega do bem objeto do contrato, que pode eventualmente ser utilizado para o pagamento de outros credores que se encontrem em situação mais privilegiada que a sua 347 . 345 “Ação pauliana - Transferência de imóvel de filho para pai - Contrato de arrendamento celebrado antes da transferência - Distrato prevendo pagamento da dívida, vencido no mesmo dia do registro da escritura pública de compra e venda do imóvel - Notificação, expedida no dia seguinte ao vencimento das obrigações previstas no distrato – Descumprimento das obrigações assumidas, no prazo concedido – Ajuizamento de ação de rescisão contratual cumulada com perdas e danos e reintegração de posse – Redução dos devedores ao estado de insolvência – Negócio entre familiares – Presunção de o pai conhecer o estado de insolvência do filho e da nora, os devedores – ‘Consilium fraudis’ evidente – Caracterização de defeito do ato jurídico – Aplicação do artigo 106 c. c. o artigo 147, II, ambos do Código Civil – Hipótese de declaração de ineficácia do ato, com relação ao credor, e, não, de anulação – (...) Ação julgada procedente – Recurso não provido, com recomendação” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 79.716-4 – Origem: Fernandópolis – 8ª Câmara de Direito Privado – Relatora: Zélia Maria Antunes Alves – 15.09.99 – V.U.). 346 “Ação pauliana – Sentença monocrática substanciosa, bem elaborada e com fundamentação adequada, inclusive com embasamento em entendimentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito do ‘thema decidendum’ – Matéria discutida amplamente pelas partes, pelo que correta a conclusão de que as alienações dos imóveis apontados, nos autos, foram feitas sob o pálio de fraude contra credor, pois presentes os requisitos do ‘eventus dammi’ e do ‘consilium fraudis’ que conduzem à anulação daqueles atos jurídicos (artigo 106 e seguintes do Código Civil Brasileiro) – Recurso improvido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 60.955-4 – Origem: Presidente Prudente – 3ª Câmara de Direito Privado – Relator: Antonio Manssur – 03.11.98 – V. U.). 347 Art. 957. Não havendo título legal à preferência, terão os credores igual direito sobre os bens do devedor comum. Art. 958. Os títulos legais de preferência são os privilégios e os direitos reais. Art. 959. Conservam seus respectivos direitos os credores, hipotecários ou privilegiados: I - sobre o preço do seguro da coisa gravada com hipoteca ou privilégio, ou sobre a indenização devida, havendo responsável pela perda ou danificação da coisa; II - sobre o valor da indenização, se a coisa obrigada a hipoteca ou privilégio for desapropriada. Art. 960. Nos casos a que se refere o artigo antecedente, o 147 Considerada a hipótese de o bem já haver sido entregue pelo vendedor ao comprador, tendo como fundamento o contrato de compra e venda, a transmissão da propriedade mobiliária terá sido efetivada e, como regra, não será atingida pela decretação da insolvência do vendedor. Considerada a hipótese de o comprador já haver cumprido a sua obrigação de pagamento do preço, o contrato terá sido extinto pelo cumprimento e a sua discussão restará prejudicada 348 . Nesse caso, a anulação do contrato somente será possível mediante a aplicação da regra do artigo 159 do Código Civil quanto à caracterização da má-fé devedor do seguro, ou da indenização, exonera-se pagando sem oposição dos credores hipotecários ou privilegiados. Art. 961. O crédito real prefere ao pessoal de qualquer espécie; o crédito pessoal privilegiado, ao simples; e o privilégio especial, ao geral. Art. 962. Quando concorrerem aos mesmos bens, e por título igual, dois ou mais credores da mesma classe especialmente privilegiados, haverá entre eles rateio proporcional ao valor dos respectivos créditos, se o produto não bastar para o pagamento integral de todos. Art. 963. O privilégio especial só compreende os bens sujeitos, por expressa disposição de lei, ao pagamento do crédito que ele favorece; e o geral, todos os bens não sujeitos a crédito real nem a privilégio especial. Art. 964. Têm privilégio especial: I - sobre a coisa arrecadada e liquidada, o credor de custas e despesas judiciais feitas com a arrecadação e liquidação; II - sobre a coisa salvada, o credor por despesas de salvamento; III - sobre a coisa beneficiada, o credor por benfeitorias necessárias ou úteis; IV - sobre os prédios rústicos ou urbanos, fábricas, oficinas, ou quaisquer outras construções, o credor de materiais, dinheiro, ou serviços para a sua edificação, reconstrução, ou melhoramento;V - sobre os frutos agrícolas, o credor por sementes, instrumentos e serviços à cultura, ou à colheita;VI - sobre as alfaias e utensílios de uso doméstico, nos prédios rústicos ou urbanos, o credor de aluguéis, quanto às prestações do ano corrente e do anterior;VII - sobre os exemplares da obra existente na massa do editor, o autor dela, ou seus legítimos representantes, pelo crédito fundado contra aquele no contrato da edição;VIII - sobre o produto da colheita, para a qual houver concorrido com o seu trabalho, e precipuamente a quaisquer outros créditos, ainda que reais, o trabalhador agrícola, quanto à dívida dos seus salários. Art. 965. Goza de privilégio geral, na ordem seguinte, sobre os bens do devedor: I - o crédito por despesa de seu funeral, feito segundo a condição do morto e o costume do lugar; II - o crédito por custas judiciais, ou por despesas com a arrecadação e liquidação da massa; III - o crédito por despesas com o luto do cônjuge sobrevivo e dos filhos do devedor falecido, se foram moderadas; IV - o crédito por despesas com a doença de que faleceu o devedor, no semestre anterior à sua morte; V - o crédito pelos gastos necessários à mantença do devedor falecido e sua família, no trimestre anterior ao falecimento; VI - o crédito pelos impostos devidos à Fazenda Pública, no ano corrente e no anterior; VII - o crédito pelos salários dos empregados do serviço doméstico do devedor, nos seus derradeiros seis meses de vida; VIII - os demais créditos de privilégio geral. 348 “O contrato que já se finalizou, por ter sido integralmente cumprido pelas partes, caracteriza-se como ato jurídico perfeito, impassível, portanto, de ter suas cláusulas discutidas judicialmente. Deve ser decretada a carência de ação quando a pretensão aviada cingir-se à discussão de obrigações previstas em contrato findo, tendo em vista a impossibilidade jurídica deste, extinguindo-se o processo sem julgamento do mérito, com base no inciso VI do art. 267 do Código de Processo Civil” (Tribunal de Alçada de Minas Gerais – Apelação Cível n.º 0405605-3 – (83353) – Origem: Patos de Minas – 3ª Câmara Cível – Relatora: Juíza Teresa Cristina da Cunha Peixoto – J. 17.12.2003). 148 do comprador em relação aos demais credores do vendedor 349 . E se o bem houver sido entregue e o comprador não houver pago o preço, poderá cumprir a sua obrigação de pagamento mediante o depósito do preço em juízo, com a citação de todos os interessados (artigo 160 do Código Civil), embora esse procedimento também não lhe garanta a manutenção da propriedade do bem, em razão dos procedimentos específicos da ação em que se processa a insolvência, na qual poderá ser eventualmente apurada a má-fé do vendedor na entrega do bem ao comprador 350 . Em caso de insolvência do comprador, se o peço já houver sido pago e o bem móvel já lhe houver sido entregue sob o fundamento do contrato de compra e venda, o contrato terá sido cumprido e a transmissão da propriedade mobiliária terá sido efetivada, o que torna prejudicada qualquer discussão a respeito 351 . 349 Presumido o conhecimento do estado de insolvência do vendedor pelo comprador e a ineficácia da alienação: “Ação pauliana - Fraude contra credores - Contrato oneroso do devedor insolvente Parentesco próximo - Presunção de fraude - Suficiência para justificar a ação revocatória - Artigo 107 do Código Civil - Prova em contrário a cargo do devedor não demonstrada - Ação procedente Recurso desprovido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 119.328-4/4 – Origem: Santo André – 7ª Câmara de Direito Privado – Relator: De Santi Ribeiro – 16.05.01 – V.U.). Em sentido contrário, mediante o reconhecimento de ausência de provas de que os adquirentes tinham conhecimento do estado de insolvência dos alienantes: “Ação pauliana – Fraude contra credores - Caracterização - Consilium fraudis - Inocorrência - Adquirentes que antes da compra se acautelaram com buscas de ações e protestos contra os clientes e ônus sobre o imóvel - Constituição do crédito só após a alienação do bem - Improvado motivo para ser reconhecida a insolvência pelo outro contraente - Sentença procedente - Recurso provido” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação Cível n.º 60.977-4 – Origem: Barretos - 7ª Câmara de Direito Privado - Relator: Oswaldo Breviglieri - 04.11.98 - V. U.). 350 Código Civil, Art. 956. “A discussão entre os credores pode versar quer sobre a preferência entre eles disputada, quer sobre a nulidade, simulação, fraude, ou falsidade das dívidas e contratos”. 351 Conferir a nota 348. Sem prejuízo, em caso de notória disparidade entre o valor de mercado do bem adquirido pelo comprador (muito mais baixo) e o preço pretensamente pago por este (muito mais alto), os credores do comprador insolvente poderão discutir em juízo eventual dissimulação caracterizadora do negócio jurídico realizado, nos termos do artigo 167, caput, combinado com o seu parágrafo 1º, inciso II, do Código Civil. 149 Ainda em caso de insolvência do comprador, mesmo que o preço não tenha sido pago, se o bem móvel já lhe houver sido entregue a transmissão da propriedade mobiliária terá sido efetivada, e o vendedor poderá optar entre executar o contrato, mediante a cobrança do valor acordado 352 , ou desfazê-lo, sob o fundamento do inadimplemento e mediante o requerimento de reintegração de posse. Também no caso de insolvência do comprador, se o bem ainda não houver sido entregue e tampouco o preço houver sido pago, o vendedor poderá sobrestar-lhe a entrega do bem móvel objeto do contrato até que o comprador lhe dê caução de pagar o preço ajustado no prazo fixado (artigo 495 do Código Civil). Porque o contrato é reconhecido no sistema brasileiro como título causal da transmissão da propriedade mobiliária, para cuja efetivação se exige a tradição, a conclusão é de que o terceiro adquirente do bem móvel alienado validamente pelo primitivo vendedor não é atingido pelo descumprimento desse contrato 353 . Ou seja, celebrado validamente um contrato de compra e venda de um bem móvel e entregue esse bem móvel pelo vendedor ao comprador, sob o 352 Em situação excepcional: “Medida cautelar – Seqüestro – Bens móveis – Cabimento, ante o risco de o requerente, vendedor, não obter a satisfação de seu crédito, diante dos sinais de insolvência do comprador e do receio de não recuperar os bens, após a solução da demanda rescisória do contrato, e do perigo de desaparecimento destes, em razão de venda a terceiros – Reconhecida a presença dos requisitos do artigo 822 do Código de Processo Civil – Extinção do processo afastada – Determinação do prosseguimento do feito com a análise do pedido liminar – Recurso provido para esse fim” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação n.º 0851058-1 – Origem: Tupã – 3ª Câmara – Relator: Itamar Gaino – Revisor: Roque Mesquita – J. 24/10/2000 – V.U.). 353 “Compra e venda – Bem móvel – Pretensão do vendedor à sua rescisão ao fundamento de que o pagamento foi efetuado com cheque sem provisão de fundos – Veículo em poder de terceiro de boafé – Possibilidade apenas da condenação dos compradores ao pagamento do valor do veículo – Existência de pedido alternativo nesse sentido – Procedência – Sentença mantida” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0000388126 – Origem: Araraquara – 2ª Câmara – Relator: Jacobina Rabello – J. 08/06/1988 – V.U). 150 fundamento do contrato de compra e venda, a propriedade do referido bem móvel é transmitida validamente ao comprador. Em conseqüência, se o comprador celebra um contrato de compra e venda com um terceiro e lhe entrega o bem sob o fundamento desse novo contrato de compra e venda, a propriedade do bem objeto do contrato também é transmitida validamente, dessa vez ao terceiro, que, portanto, passa a ser o proprietário do bem 354 . Quaisquer problemas decorrentes do descumprimento do contrato de compra e venda celebrado entre os primitivos vendedor e comprador não atingem o terceiro, que, a partir da tradição efetivada sob o fundamento do segundo contrato de compra e venda, passa a ser o novo proprietário do bem móvel. Nesse sentido: “(...) Embargos de terceiro – Medida cautelar – Busca e apreensão – Veículo apreendido fora vendido pelo autor ao réu - Transferência do domínio ocorreu com a tradição - Não pagamento do preço pelo adquirente - Irrelevância - Réu também vendeu o veículo a terceiro, ao embargante e, com a tradição, houve igualmente a transferência do domínio - Inexistência de prova de que o embargante agiu de má-fé - Embargos de terceiro procedentes - Recurso desprovido” (1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo – Apelação n.º 0944228-4 – (57467) – Origem: Americana – 5ª Câmara – Relator: Juiz Álvaro Torres Júnior – J. 15.12.2004). Também: “(...). Contrato – Compra e venda de gado – Reconhecimento da boa-fé dos segundos adquirentes, eis que demonstram o regular pagamento, de acordo com o preço de mercado, não podendo ser prejudicados pela imprevidência dos 354 “Embargos de terceiro – Compra e venda – Bem móvel – Caminhão transacionado anteriormente em que parte do preço não foi paga – Negócio consumado – Circunstância que exclui o embargante, terceiro de boa-fé, daquela relação – Art. 620 do Código Civil e art. 1046 do Código de Processo Civil –Embargos procedentes – Sentença mantida” (Primeiro Tribunal de Alçada Civel de São Paulo – Apelação Cível n.º 0432593-5 – Origem: Ribeirão Preto –10ª Câmara – Relator: Jacobina Rabello – J. 03/09/1990 – V.U). 151 autores que procederam a entrega imediata do gado àquele último, possibilitando o aperfeiçoamento do contrato e a transferência do domínio dos bens, quando poderiam retê-los, apenas os entregando após a efetivação do pagamento, nos termos do art. 1130 do Código Civil – Exame da jurisprudência – Prejudicado o pedido de perdas e danos – Ação improcedente – Apelo improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação n.º 0825234-8 – Origem: Jaboticabal – 3ª Câmara – Relator: Itamar Gaino – J. 14/08/2001) 355 . Merece referência a situação verificada no caso de reconhecimento de nulidade do primeiro contrato de compra e venda. Considerando-se que de um ato jurídico eivado de nulidade não se concebe a decorrência de qualquer efeito 356 , em tese não se reconheceria eficácia e sequer validade ao segundo contrato de compra e venda tendo como objeto o bem alienado por meio do contrato nulo, restando ao segundo comprador voltar-se contra o segundo vendedor visando a ser indenizado pelo preço e eventuais perdas e danos. Mas a decisão a seguir reconhece a prevalência da posse de boa-fé do terceiro adquirente do bem alienado inicialmente por título – contrato de compra e venda – nulo, considerada a assinatura 355 Ainda no mesmo sentido: “Compra e venda – Bem móvel – Pagamento efetuado através de cheque sem suficiente provisão de fundos – Veículo em poder de terceiro, boa-fé deste presumida – Exegese do art. 521 do Código Civil – Recurso provido para revogar a liminar” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º 0000398346 – Origem: São Paulo – 1ª Câmara – Relator: Celso Bonilha – J. 03/10/1988 – V.U). Também: “Compra e venda – Bem móvel – Veículo alienado sucessivamente – Preço pago mediante cheque devolvido por insuficiência de fundos – Pretensão à restituição do bem – Desacolhimento, uma vez adquirido validamente do emitente da cambial –Art. 1046, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil – Embargos de terceiro procedentes – Recurso desprovido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0000404037 – Origem: Taubaté – 4ª Câmara – Relator: Octaviano Lobo – J. 22/02/1989 – V.U). 356 “Ato jurídico – Vício – Manifestação de vontade – Outorga de procuração por pessoa em estado de coma – Obtenção do documento com a posição das impressões digitais em livro próprio – Inexistência de ato em face da ausência do consentimento – Hipótese em que o negocio não é anulável, mas sim nulo, não gerando efeitos nem permitindo ratificação – Declaratória de nulidade procedente, provido o recurso adesivo, prejudicado o apelo de ré e improvido o do co-réu” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0700628-2 – Origem: Ourinhos – 4ª Câmara – Relator: Carlos Bittar – J. 11/12/1996 – V.U.). 152 falsa aposta no certificado de propriedade, resguardado à vítima do falso o direito de se voltar contra o autor do ato ilícito: “Compra e venda – Bem móvel – Proprietário vítima de apropriação indébita – Alegação da falsidade de assinatura deste, lançada no certificado de propriedade – Bem, no entanto, apreendido em mãos de terceiro de boa-fé – Prevalência do direito deste, resguardando o direito da vitima, em ação autônoma de voltar-se contra o autor do ato ilícito – Inaplicabilidade do art. 521 do Código Civil – Reivindicatória improcedente – Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0528126-7 – Origem: São Paulo – 6ª Câmara – Relator: Carlos Roberto Gonçalves – J. 29/11/1994 – V.U.) 357 . 6.2 – Questões específicas decorrentes da eficácia obrigacional do contrato de compra e venda de bem móvel no direito brasileiro 6.2.1 – Transmissibilidade da propriedade mobiliária pela tradição independentemente do pagamento do preço O principal problema com o qual se depara o vendedor de um bem móvel é o não pagamento do preço pelo comprador. A conjugação dos artigos 481 (“Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”), 482 (“A compra e venda, quando pura, 357 Em sentido inverso apenas quanto à nulidade do negócio jurídico em razão da assinatura falsa aposta no documento de venda, mas sem menção a terceiro: “Compra e venda – Bem móvel – Requisitos – Lançamento de assinatura falsa no documento de venda – Negócio absolutamente ineficaz ante a ausência de consentimento – Nulidade reconhecida – Declaratória integralmente procedente – Recurso provido para esse fim” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Civil n.º 0487759-8 – Origem: Atibaia – 4ª Câmara – Relator: Carlos Bittar – J. 10/11/1993 – V.U). 153 considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço”), 1226 (“Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição”) e 1267 (“A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”), todos do Código Civil, permite o delineamento do aperfeiçoamento e da eficácia do contrato de compra e venda, conforme já estudado no Capítulo 5 do presente trabalho, bem como a identificação da tradição como o modo – e o momento – de transmissão da propriedade mobiliária. Embora o artigo 491 (“Não sendo a venda a crédito, o vendedor não é obrigado a entregar a coisa antes de receber o preço”) garanta ao vendedor o direito de manter o bem consigo até a entrega do preço, é sabido que no dia-a-dia os negócios são celebrados mediante a consideração do interesse imediato das partes e muitas vezes em desacordo com as regras legais pertinentes. Assim é que se verifica a situação comum de entrega do bem móvel pelo vendedor ao comprador, fundada a tradição no contrato de compra e venda regularmente celebrado. A celebração do contrato, nos termos do artigo 481 do Código Civil, cria obrigações recíprocas às partes, ao vendedor a obrigação de entrega do bem móvel ao comprador e ao comprador a obrigação de pagamento do preço ao vendedor. Regularmente celebrado o contrato, a entrega do bem móvel pelo vendedor ao comprador caracteriza cumprimento da obrigação do primeiro e enseja a transmissão da propriedade mobiliária ao segundo. A partir da tradição, o comprador passa a ser o legítimo proprietário 154 do bem móvel, independentemente do pagamento do preço. Nesse sentido: “Posse – Reintegração – Coisa móvel – Liminar pretendida – Inexistência de esbulho – Posse justa do réu, como dominus, derivada de contrato de compra e venda Recurso não provido. Estando o réu na posse de veículo, na qualidade de proprietário, em decorrência de negócio de compra e venda, tem posse a justo título, não podendo estar cometendo esbulho na posse do autor, que não a tem, pois transferiu em negócio regular” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Agravo de Instrumento n. 62.683-4 - Barueri - 9ª Câmara de Direito Privado - Relator: Ruiter Oliva - 21.10.97 - V. U.) 358 . O pagamento do preço, que consiste na obrigação do comprador decorrente do mesmo contrato de compra e venda, não guarda relação com a transmissão da propriedade mobiliária, que, repita-se, efetivou-se mediante a entrega do bem pelo vendedor. Porque a partir da tradição o vendedor não é mais o proprietário do bem móvel vendido e entregue, não pode se valer dos meios postos à disposição do proprietário para ser reintegrado na posse do referido bem. A propósito: “Possessória – Reintegração de posse – Compra e venda de bem móvel a prestação, sem reserva de domínio e pacto comissório – Comprador inadimplente – Hipótese em que cabia à parte lesada requerer a rescisão do contrato, com perdas e danos – Artigos 1056 e 1092, parágrafo único do Código Civil – Via escolhida 358 No mesmo sentido: ”(...) Transmissão de domínio de bem móvel opera-se pela tradição – A transferência de veículo junto ao Detran somente após o aforamento da ação de execução é irrelevante, porquanto o referido registro tem fins meramente administrativos, não refletindo a situação jurídica da propriedade de bem móvel, cuja transferência ocorre pela tradição do bem, nos termos do art. 620, do Código Civil de 1916, especialmente em decorrência de contrato. (...)” (Tribunal de Alçada do Estado do Paraná – Apelação Cível n.º 0277781-3 – (232903) – Origem: Cândido de Abreu – 14ª Câmara Cível – Relator: Juiz Fernando Wolff Bodziak – DJPR 01.04.2005). 155 inadequada – Extinção do processo decretada – Recurso improvido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0562058-2 – Origem: São Paulo – 12ª Câmara – Relator: Matheus Fontes – J. 01/11/1995 – V.U.) 359 . 6.2.2 – Intransmissibilidade da propriedade mobiliária mediante o pagamento do preço em caso de não efetivação da tradição A dificuldade principal com a qual se defronta o comprador de um bem móvel se consubstancia na recusa de entrega do referido bem pelo vendedor. Como enfatizado anteriormente, porque a propriedade mobiliária é transmitida pela tradição, o pagamento do preço pelo comprador não lhe enseja a transmissão da propriedade do bem comprado e inclusive pago. Ainda, porque o comprador não é o dono do bem, já que não o recebeu, não pode se valer dos meios postos à disposição do proprietário para que o bem lhe seja entregue. A propósito: “Compra e venda – Bem móvel – Medida cautelar – Busca e apreensão – Ajuizamento objetivando a entrega da coisa pago o preço, sob a alegação de que o vendedor estaria prestes a deixar a cidade – Inadmissibilidade – Artigos 1056 do Código Civil e 287 do Código de Processo Civil – Cabimento de ação de indenização ou ação para a entrega de bem – Carência decretada – Recurso provido para esse fim. (...)” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil 359 Também a propósito: “Possessória – Reintegração de posse – Compra e venda de bem móvel (caminhão) – Preço não pago – Liminar não concedida – Impossibilidade de reaver os bens antes de rescindir ou anular o negócio havido – Inteligência do art. 521 do Código Civil – Carência reconhecida – De ofício, julga-se extinta a ação, prejudicado o exame do recurso” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Agravo de Instrumento n.º 1069641-6 – Origem: São José do Rio Preto –12ª Câmara – Relator: Beretta da Silveira – J. 05/03/2002). Ainda: “Possessória – Reintegração de posse – Bem móvel (veículo) objeto de compra e venda não cumprido integralmente – Descabimento enquanto não rescindido o contrato – Ausência de interesse processual – Carência decretada – Recurso desprovido” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo – Apelação Cível n.º 0399041-0 – Origem: Indaiatuba – 7ª Câmara – Donaldo Armelin – J. 30/08/1988 – Publicação: JTA 115/121). 156 de São Paulo – Apelação Cível n.º 0420162-9 – Origem: Franca – 2ª Câmara – Relator: Jacobina Rabello – J. 06/12/1989 – V. U.). 6.2.3 – Questões processuais Após o estudo dos sistemas de transmissão da propriedade mobiliária e do aperfeiçoamento e da eficácia do contrato de compra e venda, bem como de algumas questões práticas a respeito da aplicação daquela teoria, o presente item tem por objetivo específico a análise de problemas estritamente processuais, que afirmamos decorrentes da desconsideração do direito material, especificamente da desconsideração do contrato como título ou negócio jurídico causal e da tradição como modo de aquisição da propriedade mobiliária. Afirmamos que a desconsideração do direito material é o fundamento da dificuldade de identificação, pelo profissional do direito, do instrumento processual adequado à solução do problema concreto decorrente do descumprimento do contrato de compra e venda de bem móvel. Foram pesquisadas decisões dos tribunais do Estado de São Paulo entre 1989 e 2005. Em razão das regras internas de distribuição de competência, durante o período pesquisado o tema foi de competência do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo 360 . Os acórdãos escolhidos o foram por tratarem especificamente da questão abordada no presente trabalho, de equívoco na identificação do momento 360 Atualmente, com a unificação dos tribunais em decorrência da Emenda Constitucional n.º 45, a competência é do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 157 da transmissão da propriedade mobiliária como causa de escolha inadequada do instrumento processual. Nos autos da Apelação n.º 414.253/8, da Comarca de Mogi das Cruzes, a Sétima Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, relator Régis de Oliveira, por votação unânime, aos 26 de setembro de 1989, negou provimento ao recurso, nos seguintes termos: “Através da medida cautelar, objetivou o credor a busca e apreensão de veículo adquirido mediante uso de cheque sem fundos. Ora, tendo ocorrido a tradição, não haveria mais como evitar a aquisição do veiculo e futura alienação, uma vez que ocorrera a tradição. O vendedor não tomou as cautelas devidas, deixando de providenciar a exigência de cheque visado. (...) Poderia haver alguma providência cautelar. Todavia, a pretensão do autor é de que haja apreensão do veículo. Tal pedido não pode ser aceito. Falta ao autor interesse processual”. No caso concreto, pretendeu o requerente/apelante o deferimento de medida cautelar de busca e apreensão contra terceiro, a quem fora alienado o veículo que o próprio requerente/apelante vendera ao comprador inadimplente. Celebrado o contrato de compra e venda de bem móvel, no caso o veículo, e entregue o bem pelo vendedor ao comprador, como se verificou no caso, a propriedade do referido veículo foi validamente – tendo como título o contrato de compra e venda e como modo a tradição – transferida ao comprador. Estivesse o veículo ainda na posse do comprador, seria possível ao vendedor o desfazimento do contrato em razão do inadimplemento da obrigação de pagamento pelo comprador – no caso concreto porque o cheque emitido não foi compensado por insuficiência de fundos – com a reintegração do veículo na sua posse. No entanto, considerada a 158 compra e venda válida e eficaz, a alienação do veículo pelo comprador a terceiro não pode ser considerada, por si, maculada. Não se desconsidera que eventual simulação entre o comprador e o terceiro adquirente poderia ser levada em conta em benefício do vendedor, mas tal questão sequer foi levantada no caso concreto, em que a única pretensão do requerente/apelante consistiu na apreensão do veículo que, até prova em contrário, encontrava-se validamente na posse de um terceiro. Reconhecida a tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária, o vendedor lesado poderia ser ressarcido por meio de uma ação de cobrança do preço não pago, ou por meio de uma ação de resolução contratual, nesse caso a ser resolvida em perdas e danos, já que a apreensão do veículo restaria inequivocamente prejudicada em razão estar na posse de quem não participara do contrato de compra e venda celebrado. Nos autos da Apelação n.º 417.880/7, da Comarca de Garça, a mesma Sétima Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, relator Francisco de Assis Vasconcellos Pereira da Silva, por votação unânime, aos 14 de novembro de 1989, negou provimento ao recurso, nos seguintes termos: “Com a busca e apreensão quer a apelante ingressar desde logo na posse, recuperando-a, de bens móveis transferidos ao apelado em virtude de contrato de compra e venda, sob o fundamento de falta de cumprimento do preço ajustado. Pretende, no fundo, o mesmo efeito de medida liminar de reintegração de posse, contemplada no artigo 928 do Código de Processo Civil. Sucede, todavia, que a busca e apreensão não se presta tão singelamente à tutela possessória de bens móveis, especialmente quando, a exemplo dos autos, mostra-se visível a inexistência do perigo da mora e da aparência ou verossimilhança do direito material invocado. Ao deferimento da 159 cautela. em apreço, costuma-se ponderar que basta, além do perigo, a mera probabilidade de a ação futura vir a declarar o direito em favor de quem a persegue, conquanto outros entendam que o fumus boni iuris tem ligação com o próprio pedido cautelar, não com o mérito do processo principal. Seja como for, na hipótese concreta dos autos observa-se, imediatamente, não dispor a apelante do direito de busca e apreensão como autentica tutela possessória que antecipa o resultado da ação principal. Nota-se, ainda, que a própria ação possessória depende da prévia resolução do contrato de compra e venda dos bens móveis. A r. sentença apelada realça adequadamente que a petição inicial vem desacompanhada de prova documental referente à propriedade dos móveis; assim também da posse, vale acrescentar. Ademais, como a só falta de pagamento do preço de venda não é capaz de outorgar de pronto o reingresso do vendedor na posse, especialmente por via de busca e apreensão cautelar, segue-se que tampouco existe o periculum in mora. Do raciocínio exposto conclui-se: a apelante lançou mão de provimento jurisdicional inadequado, inútil até, à pretensão de natureza possessória sobre os bens alienados ao apelado que, pela tradição, tornou-se titular do domínio. Em conseqüência, é caso de indeferimento da petição inicial por ausência de interesse processual, extinguindo-se o processo com fundamento nos artigos 295, III e 267, ambos do Código de Processo Civil”. No caso concreto, mesmo narrando ter vendido bens móveis ao apelado e ter, sob o fundamento e em cumprimento do contrato, entregue os referidos bens móveis ao apelado, a apelante se afirma proprietária dos referidos bens. Pretende a utilização da ação cautelar de busca e apreensão como 160 medida satisfativa, a fim de, como proprietária desapossada dos bens móveis que se encontram injustamente na posse do apelado, tê-los de volta, consolidando-se nas suas mãos o domínio e a posse plenos e exclusivos dos referidos bens. Reconhecido o contrato válido e eficaz celebrado pelas partes, bem como reconhecida a transmissão da propriedade mobiliária pela tradição, para o desfazimento do contrato seria necessário o ajuizamento de ação de resolução de contrato, na qual, reconhecido o inadimplemento da compradora, seria decretado o seu desfazimento (do contrato de compra e venda de bem móvel) e seria garantida à vendedora, a seu requerimento, a reintegração de posse dos bens móveis objeto daquele contrato desfeito. Mais uma vez, a desconsideração da transmissão da propriedade mobiliária pela tradição, independentemente do pagamento do preço, ensejou a escolha de instrumento inadequado ao exercício do direito da vendedora. Nos autos da Apelação n.º 777.381/3, da Comarca de Marília, a Primeira Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, relator Plínio Tadeu do Amaral Malheiros, por votação unânime, aos 24 de agosto de 1998, negou provimento ao recurso, nos seguintes termos: “Insurgiu-se a autora, ora apelante, dizendo que a presente ação tem caráter satisfativo, conforme expressamente constou do pedido inicial, razão pela qual não há que se falar em ajuizamento de qualquer outra ação, no prazo de trinta dias. Asseverou que com a recuperação dos bens, a demanda já atingiu seu objetivo e, assim, a sentença deveria ter apreciado o seu mérito, concluindo pela procedência, tendo em vista a prova produzida. (...) O apelo interposto pela autora desmerece provimento. A ação de busca e apreensão, prevista no art. 839 e seguintes do Código de Processo Civil, é medida cautelar e, 161 como tal, revestida das características de instrumentalidade, autonomia, provisoriedade e revogabilidade. (...) Assim, competia à autora indicar em sua petição inicial qual a ação principal a ser proposta (providência, aliás, que não foi tomada), assim como ajuizá-la no prazo máximo de trinta dias do cumprimento da medida liminar deferida. Não o tendo feito, a extinção da ação era de rigor. (...) Ainda que assim não fosse, é de se observar que a ação cautelar não é via adequada para a obtenção da solução de contrato celebrado entre as partes e não cumprido”. Mais uma vez, no caso concreto, sob o fundamento de que o apelado/comprador descumpriu sua obrigação de pagamento, a apelante/vendedora se afirma proprietária dos bens móveis cuja propriedade foi validamente transferida ao apelado pela tradição, tendo como causa o contrato – válido e eficaz – de compra e venda. A consideração do momento do aperfeiçoamento do contrato de compra e venda – mediante a mera manifestação, pelas partes, de consentimento a respeito do objeto e do preço – e a consideração da transmissão da propriedade mobiliária pela tradição permitiriam a conclusão correta de que, tendo a propriedade dos bens sido validamente transferida ao comprador, não se reconhecia à vendedora a titularidade dessa propriedade. Conseqüentemente, a ação cautelar de busca e apreensão com natureza satisfativa não se lhe apresentava como instrumento adequado ao exercício de seu direito. Como um dos elementos da condição da ação consistente no interesse de agir, a adequação significa que o exercício da atividade jurisdicional deve ficar condicionado, em cada caso concreto, à efetiva utilidade que o provimento pretendido pelo autor terá para atingir a finalidade de atuação da vontade concreta 162 da lei, bem como à justiça da submissão da parte contrária aos resultados e aos rigores específicos de cada tipo de processo 361 . Afirma-se que utilização do meio inadequado não decorre necessariamente do desconhecimento dos instrumentos processuais, mas sim do desconhecimento do direito material, mais especificamente do desconhecimento do momento específico da transmissão da propriedade mobiliária do vendedor ao comprador, a partir de quando o primeiro deverá, anteriormente à manifestação da pretensão de reaver a posse dos bens, pleitear o desfazimento do contrato sob o fundamento do inadimplemento do comprador quanto ao pagamento do preço. Ou seja, no caso concreto, celebrado validamente o contrato e transferida validamente a propriedade dos bens pela vendedora ao comprador, incumbia à vendedora, que não recebeu o preço o ajuizamento de ação de resolução do contrato, na qual, reconhecido o inadimplemento do comprador, seria decretado o seu desfazimento (do contrato de compra e venda) e seria garantida à vendedora a reintegração de posse dos bens móveis objeto daquele contrato. Nos autos da Apelação n.º 830.223/8, da Comarca de Campinas, a mesma Primeira Câmara do Primeiro Tribunal da Alçada Civil, relator Elliot Akel, por votação unânime, aos 07 de junho de 1999, negou provimento ao recurso, nos seguintes termos: “Foram julgadas improcedentes as ações, cautelar e principal, à consideração de que, em se tratando de venda e compra de bem móvel, aperfeiçoou-se o contrato na medida em que as partes manifestaram seu consentimento a respeito da coisa e do preço, servindo ele de causa para a transferência da propriedade, que se consumou com a tradição. (negritei) Não tendo, 361 Cândido Rangel Dinamarco. Execução Civil. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 406. 163 o adquirente Eduardo Minatel, cumprido a obrigação assumida no contrato, de pagar o preço, mesmo assim o autor não tem título para exigir a reintegração na posse do bem cuja propriedade e posse transferiu com a tradição, devendo o inadimplemento da obrigação de Eduardo ser resolvido em perdas e danos, nos termos do artigo 1.056 do Código Civil’. Verifica-se que o autor, nominando a ação ajuizada de ‘principal declaratória de busca e apreensão’ (sic), ali narrou haver vendido a Eduardo Minatel o veiculo indicado pelo preço de Cr$ 8.800.000,00 (oito milhões e oitocentos mil cruzeiros), recebendo do comprador três cheques, no valor total de Cr$ 5.000.000,00 (cinco milhões de cruzeiros), acrescentando que nos restantes Cr$ 3.800.000,00 entraram por conta de acerto de negócios anteriores. Na seqüência, afirmou haverem os cheques sido devolvidos pelo sacado com a informação de divergência de assinaturas, dizendo que tentando receber os valores correspondentes diretamente do comprador, foi informado de que o caminhão havia sido transferido já para seu irmão Edvaldo Minatel. Argumentou: ‘em razão do exposto, conclui-se que a avença não se completou, sendo certo que Edvaldo Minatel adquiriu coisa alheia, a venda de coisa alheia é negócio inexistente’. (fl. 04). Instado a aditar a Inicial, que não conteria pedido declaratório apesar da denominação dada à ação, o autor apresentou a petição de fl. 12, pedindo ‘seja aditada à inicial o pedido declaratório quanto ao direito do autor com referência à devolução de seu veículo a nulidade da transação e dos cheques emitidos como pagamento’ (in verbis). Da análise do teor da inicial e das razões recursais (em que se faz referência a ‘contrato de compromisso de compra e venda’, nelas encontrando-se ainda as afirmações de que ‘res significa a entrega da coisa pelo vendedor ao comprador, o pretium significa o pagamento do preço pelo comprador e 164 finalmente o consensum, ou seja, a concordância de ambas as partes em fazer a transação’) chega-se à conclusão de que o autor desconhece ou procura ignorar conceitos básicos atinentes à própria natureza do contrato de venda e compra. Certo é que constituem elementos essenciais da venda e compra, segundo clássica ensinança de nossos doutrinadores, res, pretium et consensum. Res, contudo, não significa a entrega da coisa pelo vendedor ao comprador, mas sim a própria coisa suscetível de apreciação econômica a cuja tradição obriga-se o vendedor através do contrato. Pretium, por outro lado, não é o pagamento do preço pelo comprador, mas sim a expressão pecuniária da coisa devida pelo comprador. Finalmente, consensum traduz o acordo de vontades a respeito da coisa e de seu preço. Sendo contrato consensual, a compra e venda torna-se perfeita e acabada com o acerto de seu objeto, do preço e da modalidade de pagamento. Entrega da coisa e pagamento do preço dizem respeito á execução do contrato de compra e venda. A exigência dessa entrega e desse pagamento pressupõem a existência de contrato perfeito e acabado. Certo que como todo negócio jurídico, o contrato de venda e compra pode ser anulado, uma vez demonstrado vício do consentimento (erro, dolo ou coação) ou vício social (simulação ou fraude). Mas não foi a defeito do negócio jurídico que se referiu a Inicial, razão pela qual no curso da instrução nem mesmo se cuidou de perquirir a respeito. De qualquer forma, se a pretensão do autor era a de obter a resolução do contrato, seja pela atuação de eventual cláusula resolutória tácita implícita nos contratos comutativos, seja pelo reconhecimento de defeito na formação do contrato, impunha-se o direcionamento da ação contra quem dele participou, no caso o comprador, Eduardo Minatel. Ao Invés disso, acabou por direcionar, contra o réu Edvaldo Minatel, estranho àquela relação contratual, ação 165 que, apesar de rotulada de declaratória, tem evidente natureza possessória, sem titulo algum para tanto. Como se constata das referências do acórdão às alegações do apelante, no caso concreto não apenas a eficácia do contrato de compra e venda de bem móvel foi desconsiderada, mas os próprios elementos do contrato também o foram. Pretendeu o vendedor/apelante o deferimento da medida cautelar contra terceiro que – sendo terceiro – não participou do contrato de compra e venda. Na ação principal, reiterou a alegação de que o terceiro adquiriu a non domino, razão pela qual não se lhe poderia reconhecer a propriedade do bem objeto do contrato”. Mais uma vez, a consideração do aperfeiçoamento do contrato de compra e venda permitiria a conclusão correta de que, diversamente do alegado pelo vendedor/apelante, res, pretium e consensus não constituem elementos do cumprimento do contrato, mas sim do seu aperfeiçoamento. E a consideração da transmissão da propriedade mobiliária pela tradição permitiria a conclusão correta de que, também diversamente do alegado pelo vendedor/apelante, a entrega dos bens móveis – tecnicamente, a tradição – ensejara a transmissão da propriedade desses bens ao comprador, não se reconhecendo mais ao vendedor a titularidade dessa propriedade. Ou seja, no caso concreto, ainda uma vez, celebrado validamente o contrato e transferida validamente a propriedade dos bens pelo vendedor ao comprador, incumbia ao vendedor, que não recebeu o preço, o ajuizamento de ação de resolução do contrato, na qual, reconhecido o inadimplemento do comprador, seria decretado o seu desfazimento (do contrato de compra e venda) e seria garantida ao vendedor a reintegração de posse dos bens móveis objeto daquele contrato. 166 Nos autos do Agravo de Instrumento n.º 1.139.734/7, da Comarca de Sorocaba, a Quarta Câmara do Primeiro Tribunal da Alçada Civil, relator José Marcos Marrone, por votação unânime, aos 22 de setembro de 2004, indeferiu, de ofício, a petição inicial da ação cautelar e julgou prejudicado o agravo de instrumento, nos seguintes termos: “1. A agravante, em 12.52004, por telefone, vendeu à agravada ‘Elson José Xavier –ME’, pelo preço de R$ 3.884,00, as seguintes mercadorias: ‘629,34 kgs de vergalhão CA50 10.0mm AM 0,85; 808,92 kgs de vergalhão CA50 12,5mm AM 0,70; 34 painéis de malha CA60 3,4mm 15x15 média’ (fl. 08). Tais mercadorias foram entregues no endereço indicado pela agravada (fl. 09). Com base na respectiva nota fiscal (fl. 22), a agravante emitiu duas duplicatas, a primeira das quais não foi paga no vencimento pela agravada (fl. 09). Logo, a aludida venda encontrava-se aperfeiçoada, uma vez que houve acordo sobre a coisa e sobre o preço, nos termos do art. 482 do atual Código Civil, correspondente ao art. 1.126 do anterior Código Civil. Por outro lado, consoante dispõe o art. 1.267, caput, do atual Código Civil, correspondente ao art. 620 do anterior Código Civil, a propriedade dos bens móveis transmite-se pela tradição. (...) Assim, para que se efetivasse a transferência de propriedade daquelas mercadorias, bastava a tradição, que se deu pela entrega das mesmas. Considerando-se que a tradição já se verificara (fl. 22), incumbia à agravante: ou cobrar da agravada, pelas vias próprias, o débito existente; ou ajuizar ação de rescisão contratual, colimando o retorno das partes ao estado em que se encontravam anteriormente. 2.2. Ademais, a agravante ingressou com medida cautelar de busca e apreensão (fl. 08), objetivando reaver as mercadorias que foram vendidas e entregues, sob essas alegações: de que emitiu as duplicatas com vencimentos para 27.5.2004 e 11.6.2004, não tendo, 167 no primeiro vencimento, o pagamento sido efetuado; de que diligenciou no local da entrega das mercadorias, tendo obtido a informação de que a pessoa que assinou a nota fiscal era desconhecida no local, onde existia uma serralheria, pertencente ao agravado Lázaro Aparecido de Godoi; de que as mercadorias encontravam-se em um depósito, para onde foram levadas pelo próprio Lázaro Aparecido de Godoi (fl. 09). Ao ajuizar a referida cautelar, a agravante baseou-se nos arts. 839 e seguintes do CPC (fl. 08). Todavia, conforme se infere da inicial (fls. 08/10), a medida pretendida tem caráter eminentemente satisfativo, o que somente se admite quando expressamente prevista na legislação. (...) Inadequada, portanto, revelou-se a via processual eleita pela agravante, impondo-se o indeferimento da petição inicial, com fulcro no art. 295, inciso III, do CPC, e a conseqüente extinção do processo, nos termos do art. 267, incisos I e VI, do CPC, ante a ausência de interesse processual. 3. Nessas condições, de ofício (art. 267, § 3º, do CPC), indefere-se a petição inicial da ação cautelar e julga-se extinto o respectivo processo sem a análise do mérito, reputando-se como prejudicado o agravo de instrumento contraposto. A última decisão traz em seu próprio bojo a explicação da razão pela qual não se reconhece ao vendedor prejudicado pelo descumprimento da obrigação de pagamento do preço pelo comprador a possibilidade de ajuizamento da ação cautelar de busca e apreensão dos bens móveis objeto do contrato de compra e venda descumprido. As referências do acórdão à tradição como modo de transmissão da propriedade mobiliária, a exigir a conclusão de que o contrato descumprido fora validamente celebrado e de que a tradição transmitira validamente a propriedade ao comprador tornam desnecessária a repetição dos ensinamentos. Os acórdãos analisados demonstram os grandes prejuízos causados 168 às partes em decorrência da desconsideração de lições e preceitos de direito material. Considerados os prazos previstos 362 para a distribuição das ações e para a prática dos atos formais de publicação após a decisão proferida, o indeferimento de uma petição inicial pode acarretar, e na maioria das vezes acarreta a perda definitiva do direito material a ser discutido. Por essa razão, reiteramos a necessidade da identificação do contrato de compra e venda como título ou negócio jurídico causal, e da tradição como modo de aquisição da propriedade mobiliária. O desfazimento do negócio jurídico causal – contrato de compra e venda – validamente celebrado é condição essencial à reintegração do bem vendido na posse do vendedor prejudicado pelo descumprimento da obrigação de pagamento do preço pelo comprador. O pedido de reintegração de posse somente preencherá a condição da ação consistente no interesse de agir se o bem objeto do contrato estiver na posse do comprador, ou seja, se o bem objeto do contrato não houver sido alienado – validamente – pelo comprador a terceiro de boa-fé. Constatada a transmissão da propriedade do bem objeto do contrato pelo comprador ao terceiro de boa-fé, restará afastada a possibilidade de reintegração de posse ao vendedor, que não tem relação de direito material com o terceiro. Ao vendedor prejudicado restará exclusivamente a cobrança do preço não pago e de eventuais perdas e danos. Afirmamos que a escolha do instrumento processual adequado para a garantia da efetividade do direito material passa necessariamente pelo estudo do 362 No Estado de São Paulo, os prazos em que os andamentos processuais devem ser efetuados constam das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça. 169 próprio direito material, no caso concreto pelo estudo do contrato como título ou negócio jurídico causal e da tradição como modo de aquisição da propriedade mobiliária. 170 CONCLUSÕES Ao final do estudo, apresentamos a síntese das conclusões que obtivemos: 1 – A propriedade vem sendo estudada ao longo dos séculos pelas diversas áreas do conhecimento humano e a sua importância é universalmente reconhecida como medida de riqueza e poder. 2 – O direito romano antigo não reconheceu a classificação dos bens em imóveis e móveis, mas sim, pelo critério de utilidade e independentemente de serem imóveis ou móveis, reconheceu a distinção entre res mancipi e res nec mancipi. As primeiras eram os bens com valor para a organização agrícola da Roma antiga; as últimas eram todos os demais bens. 3 – A propriedade romana era classificada em quiritária, pretoriana ou bonitária, provincial e peregrina. A propriedade quiritária era a mais importante, adquirida por modos solenes e originariamente apenas por cidadãos romanos. A propriedade pretoriana ou bonitária era garantida por ato do pretor e considerada como forma de abrandamento dos rigores da transmissão da propriedade quiritária. A propriedade provincial referia-se às terras localizadas fora dos limites romanos originais e a propriedade peregrina era garantida àquelas pessoas que não se qualificavam como cidadãos romanos. 171 4 – No sistema romano, a transmissão da propriedade das res mancipi se dava por dois modos solenes, a mancipatio e a in iure cessio, e a transmissão da propriedade das res nec manicpi se dava pela in iure cessio e pela traditio. 5 – A mancipatio consistia num instituto de jus civile, que podia ser utilizado exclusivamente pelos cidadãos romanos e dava ensejo à aquisição da propriedade quiritária. A sua realização exigia a presença do alienante, do adquirente, de cinco cidadãos romanos púberes que serviam como testemunhas e do libripens, que carregava a balança em que era pesado o bronze que funcionava como pagamento. O adquirente tomava em suas mãos a própria res ou algo que a simbolizasse e pronunciava palavras solenes, após o que libripens tocava a balança com o bronze e o entregava ao alienante como preço. Posteriormente o bronze foi substituído pela moeda cunhada e a mancipatio se tornou um ato abstrato, passível de utilização em qualquer caso que implicasse uma alienação. 6 – A in iure cessio consistia num instituto de jus civile que ensejava a transmissão da propriedade quiritária tanto das res manicipi quanto da res nec mancipi. Era realizada perante o magistrado, presentes o alienante e o adquirente. O adquirente tomava em suas mãos a res, se fosse móvel, ou um símbolo, se fosse imóvel, e o reivindicava. Mediante a negativa de contestação do alienante, o bem era adjudicado ao adquirente. Foi pouco utilizada mesmo na época clássica, devido à dificuldade concreta de comparecimento das partes perante o magistrado. A última referência ao instituto consta do ano de 293. 172 7 – A traditio era considerada um modo não formalista de aquisição da propriedade. Por se tratar de um instituto do ius gentium e não do ius civile, podia ser utilizado tanto pelos romanos como pelos não romanos. Consistia na entrega material do bem com a finalidade de transferir o seu domínio, o que exigia a conjugação da entrega material da coisa com a justa causa. Inicialmente se exigia a efetiva apreensão do bem pelo adquirente, ainda que de forma simbólica, no caso de bens imóveis. Com o tempo, passou-se a admitir a entrega ficta, mediante a criação dos institutos da traditio longa manu, da traditio brevi manu e do constituto possessório. A justa causa consistia no negócio jurídico anterior e válido, em virtude do qual a transferência da posse do bem produzia a transferência de sua respectiva propriedade. À época de Justiniano, a traditio se tornou o modo único de transmissão da propriedade romana. 8 – No sistema romano, a compra e venda, denominada emptio et venditio, era o contrato pelo qual o vendedor prometia ao comprador transferir-lhe definitivamente a posse de uma coisa mediante o pagamento de certo preço. Há quem sustente que a compra e venda, quando à vista, dava-se pela mancipatio, enquanto outra corrente afirma a inexistência de ligação entre os institutos, já que a mancipatio constituía modo de transmissão da propriedade, enquanto a emptio et venditio se destinava à transmissão da posse. À parte as diversas teorias a respeito de sua origem, a emptio et venditio era um contrato do direito das gentes, que, portanto, podia ser celebrado por romanos e não romanos, que se aperfeiçoava mediante o consentimento das partes a respeito do objeto e do preço. A efetiva transmissão da posse e/ou da propriedade somente se dava por um dos modos de 173 aquisição previstos, ou seja, pela mancipatio ou pela traditio. 9 – A partir do sistema romano, foram desenvolvidos outros sistemas atualmente vigentes quanto à transmissão da propriedade mobiliária, cujo interesse de estudo repousa na identificação da circunstância de a propriedade mobiliária ser transferida por meio do próprio contrato de compra e venda ou exigir, além do título representado pelo contrato, o modo de aquisição, ou seja, o ato de exteriorização da transferência da propriedade, consistente na tradição. 10 – A tradição, como modo de transferência da propriedade mobiliária do vendedor ao comprador, pode ser real, simbólica, consensual ou virtual e ficta ou jurídica. A tradição real se realiza mediante a entrega efetiva do bem pelo vendedor ao comprador. A tradição simbólica ocorre mediante a entrega, pelo vendedor ao comprador, de um objeto que represente o bem cuja propriedade se transfere, como as chaves de um carro. A tradição ficta se opera por força de uma norma jurídica, independentemente de ato que a exteriorize. Dá-se nas hipóteses de constituto possessório, de cessão de direito à restituição da coisa que se encontra em poder de terceiro e de traditio brevi manu. 11 – O sistema alemão se baseia na prática de dois negócios jurídicos independentes para a transmissão da propriedade mobiliária. O negócio causal consistente no contrato de compra e venda não transfere, por si, a propriedade do bem alienado, sendo necessária a tradição ou entrega, que, por sua vez, consiste num contrato real. A tradição independentemente do negócio causal é 174 considerada eficaz, embora se tenha aperfeiçoado sem causa jurídica. 12 – No sistema de direito alemão, o contrato de compra e venda tem eficácia obrigacional. 13 – O sistema francês reconhece às convenções, por si mesmas, o efeito translativo da propriedade mobiliária, independentemente de qualquer formalidade extrínseca e de qualquer ato de execução, não apenas em relação às partes contratantes, mas também em relação aos terceiros em relação aos quais a convenção seria oponível. Por outro lado, o artigo 2279 do Código Civil francês estabelece que, quanto aos bens móveis, a posse equivale ao título, o que enseja o reconhecimento de que, concretamente, a tradição pode suplantar a eficácia real das convenções. 14 – No sistema de direito francês, o contrato de compra e venda tem eficácia real. Celebrado o contrato de compra e venda de um bem móvel, a propriedade mobiliária é transmitida imediatamente do vendedor ao comprador, independentemente da exteriorização da entrega do bem. 15 – No sistema inglês, a propriedade mobiliária é transmitida por meio da manifestação do consentimento das partes, independentemente de qualquer ato externo, desde que o bem cuja propriedade se transfere por meio da convenção seja passível de entrega imediata. 175 16 – No sistema de direito inglês, o contrato de compra e venda tem eficácia real, com a consignação de que, para a transmissão imediata da propriedade mobiliária do vendedor ao comprador, é imprescindível que o bem móvel seja passível de entrega imediata. 17 – O sistema brasileiro exige, para a transmissão da propriedade mobiliária, um título e um modo. O título constitui a causa da aquisição e não tem eficácia translativa, para o que se exige o modo. 18 – No sistema de direito brasileiro, o contrato de compra e venda tem eficácia obrigacional. Por meio do contrato, o vendedor de obriga a transferir a propriedade do bem ao comprador, e este se obriga a pagar ao vendedor determinado preço em dinheiro. O contrato de compra e venda constitui o título que fundamenta a tradição, esta o modo pelo qual a propriedade mobiliária é efetivamente transferida do vendedor ao comprador. 19 – No sistema de direito brasileiro, a posse não faz, por si, prova da propriedade, mas se consubstancia no primeiro indício para a sua comprovação. Constitui ônus daquele que alega a propriedade de um bem móvel que não se encontra sob a sua posse a comprovação de que a posse atual é exercida mediante título que não prevalece sobre o seu próprio título. 20 – Celebrado o contrato de compra e venda, a entrega do bem móvel – que caracteriza o modo de transmissão da propriedade mobiliária 176 consistente na tradição – pelo vendedor ao comprador transfere a este a propriedade mobiliária, independentemente do pagamento do preço. 21 – O pagamento do preço pelo comprador não lhe enseja a transmissão da propriedade mobiliária se, apesar do pagamento, o bem não lhe foi entregue. 22 – O vendedor que entregou o bem móvel ao comprador como decorrência do contrato de compra e venda, mas não recebeu o preço, e o comprador que pagou o preço ao vendedor, mas não recebeu deste o bem móvel, não são proprietários do bem móvel objeto do contrato – no primeiro caso porque houve a tradição e no segundo caso porque não houve a tradição – e não podem fazer uso dos instrumentos processuais postos à disposição exclusivamente do proprietário para a (re)tomada da posse do bem. 23 – O contrato de compra e venda validamente celebrado e não desfeito por resilição bilateral – distrato – somente pode ser desfeito por ação ordinária de resolução de contrato, cabível a reintegração liminar do bem móvel na posse do vendedor. 24 – A alienação onerosa do bem móvel pelo comprador a terceiro de boa-fé impede a reintegração do referido bem na posse do vendedor, considerada a inexistência de relação de direito material entre o vendedor e o terceiro. 177 25 – Inviabilizada a reintegração do bem móvel na posse do vendedor, em razão de a propriedade do referido bem haver sido validamente transmitida pelo comprador a terceiro de boa-fé, resta ao vendedor cobrar do comprador o preço e indenização por eventuais perdas e danos. 178 – BIBLIOGRAFIA ALTAVILA, Jayme de. 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