O Corpuscularismo Mecanicista e a contestação da

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O Corpuscularismo Mecanicista e a contestação da autoridade da tradição:
Galileu, Descartes e a base de uma nova verdade 
Rodrigo Elias Caetano Gomes
Dressed as one, a wolf will betray a lamb.
O objetivo deste ensaio é apresentar, de forma superficial, alguns aspectos
que dizem respeito à filosofia corpuscular mecanicista, expondo alguns elementos
formulados ou retomados por Galileu Galilei e René Descartes que tiveram
importância para a formulação desta nova filosofia, a qual se constituiria em uma
base para o paradigma científico que se instalaria no ambiente intelectual europeu
pouco mais de um século depois – o paradigma ilustrado. A intenção principal é
identificar superficialmente o impacto – no campo científico – da substituição da
autoridade da tradição pela autoridade da experimentação e demonstração, que
será uma das bases para formulações posteriores acerca do progresso, ou seja,
das idéias segundo as quais a sociedade se move inexoravelmente para uma
situação “superior” aquela na qual outrora estivera. A intenção secundária é
relacionar algumas trajetórias pessoais, peripécias, com o movimento geral
conhecido como Revolução Científica, chamando atenção para a possibilidade de
ler a História também como resultado de movimentos imprevistos dos seus
agentes.
A propósito da Revolução mencionada, faz-se necessário alertar para a
concepção desta à qual este trabalho firma alguma identidade. Não defenderei
aqui a proposição de que a ‘ciência moderna’ se constitui enquanto entidade
unitária, monolítica.1 Ao contrário, como procurarei situar ao longo deste breve

Apoio: Faperj – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro.

Mestrando em História Moderna na Universidade Federal Fluminense.

Tuomas Holopainen. “She is my sin”, faixa 1 in Nightwish. Wishmaster. Finlândia, Spinefarm,
2000.
1
Um excelente esclarecimento sobre este ponto pode ser encontrado no eruditíssimo trabalho de
Paolo Rossi. A ciência e a filosofia dos modernos. São Paulo, Editora Unesp, 1992, em especial o
capítulo 5, “Os aristotélicos e os modernos: as hipóteses e a natureza”.
1
texto, acredito que a Revolução Científica se fez em dois níveis principais: o das
‘grandes’ correntes intelectuais (do âmbito das mentalidades) e o da inventividade
individual ou coletiva (coletiva em um âmbito menor do que o das mentalidades).
O primeiro nível diz respeito à mudança no clima de opinião que ocorre nos
círculos eruditos europeus na Época Moderna, no qual o aristotelismo escolástico
perde espaço para explicações acerca da natureza que são baseados não mais
na autoridade da religião (ao contrário, a religião passa a ser objeto de
reelaboração e readaptação ao novo conhecimento do mundo). O segundo nível –
que está ligado ao primeiro mas não pode ser reduzido a mera conseqüência do
mesmo – pode ser notado na mudança da escala de observação. Ao
aproximarmos o olhar aos indivíduos protagonistas deste movimento geral de
mudança no clima de opinião, percebemos que as saídas individuais encontradas
pelos mesmos para os problemas de filosofia que a eles se colocavam – saídas
que estavam, obviamente, de acordo com a cultura dos mesmos – foram de
fundamental importância para a construção de um ‘pensamento científico’. Este
segundo nível não permite que consideremos “a” ciência moderna. Ao contrário,
determina por si só a existência de correntes diversas e, às vezes, antagônicas. É
o caso, por exemplo, do indutivismo e do dedutivismo. A diferença entre ambos
enquanto métodos científicos revela claramente uma dissensão na comunidade de
eruditos. No âmbito individual, argumentamos, por exemplo, que Galileu atuou
exatamente como o lobo ao qual a epígrafe do presente texto se refere. Utilizou-se
da própria estrutura da cultura erudita com o fim de modifica-la. Deixemos, porém,
de pseudofilosofar. Passemos à História.
Cabe, primeiramente, mencionar algumas heranças. Não por acaso. Estou
cada vez mais convencido de que a compreensão das mudanças intelectuais
ocorridas durante a Época Moderna está relacionada com o estudo da apropriação
que alguns indivíduos fazem das próprias tradições a partir das quais formulam
suas
teorias
(sejam
elas
no
campo
político,
econômico,
teológico
ou
cosmogônico). Desta forma, acredito que, mais do que uma ruptura deliberada, as
‘revoluções’ do pensamento acontecem como reformas, ou mesmo como
2
revoluções, se considerarmos estas no sentido astronômico da Idade Moderna,
como retorno ao local de origem.
Quanto à questão da matematização da natureza, ou seja, o rompimento
com uma perspectiva qualitativa aristotélica do mundo, é importante salientar que
esta concepção já fora formulada, antes de fazer parte do sistema criado por
Galileu e elevado à categoria de filosofia natural por Descartes, por Johannes
Kepler.2 É importante, entretanto, que notemos uma tendência geral que se
observou no campo do conhecimento (que ainda não se designava como
“científico) ao longo dos séculos XVI e XVII, que foi a própria mudança no status
da Matemática enquanto suporte para o conhecimento do mundo natural.
De forma geral, podemos afirmar que a utilização do conhecimento
matemático ‘evoluiu’ de uma perspectiva puramente instrumentalista para uma
perspectiva realista. Ou seja, no seio de uma ‘comunidade científica’ impregnada
por uma visão de mundo qualitativa, tributária das “verdades evidentes” do
aristotelismo escolástico, a Matemática só era admitida como um instrumento para
a exemplificação daquilo que já era conhecido (por exemplo, a água ser molhada,
o fogo ser quente, os corpos caírem para baixo etc); em contraposição a esta
corrente, a perspectiva realista na utilização da Matemática advogava à esta a
capacidade de conhecer realmente como se dão as coisas. Se algo era
matematicamente provável, então era verdade, e não possibilidade. O primeiro
grande teórico realista da Época Moderna foi Nicolau Copérnico, que adotou em
parte o sistema ptolomaico de forma não mais hipotética (forma pela qual este se
encaixava ao aristotelismo dominante e que foi fruto de uma longa ‘deturpação’
durante a Idade Média), mas de forma realista (aliás, muito mais próxima à forma
defendida pelo próprio Cláudio Ptolomeu na Grécia do século II).
Este ponto, Copérnico e a Astronomia, é extremamente revelador para o
que nos propomos a entender aqui, a mudança no status da Matemática.
Em sua obra mestra, De revolutionibus orbium coelestium (Sobre a
revolução das esferas celestes), publicada em 1543, Mikolaj Kopernik (original
2
Cf. Luiz Carlos Soares. Do novo mundo ao universo heliocêntrico: os Descobrimentos e a
revolução copernicana. São Paulo, HUCITEC, 1998, pp. 168-184.
3
polonês
da
latinização
Nicolaus
Copernicus)
repudia
veementemente
a
abordagem instrumentalista da Matemática. Andreas Osiander, pastor luterano
que acompanhou de perto a impressão do De revolutionibus, acrescentou ao
mesmo um prefácio – não autorizado – no qual o sistema heliostático do cônego
polonês era apresentado como inconclusivo, sendo apenas uma possibilidade de
explicação. Porém, em seu próprio prefácio, como no resto do trabalho, Copérnico
reivindicava a verdade física do seu sistema, tão legítimo quanto o de Ptolomeu, o
que aliás o colocava em flagrante desalinho com a tradição aristotélica, as
Escrituras e o senso comum (motivo talvez da demora na publicação do livro,
quase trinta anos após de concluído) .3
Copérnico é um meio termo entre os ‘antigos’ e os ‘modernos’, e o De
revolutionibus é prova desta ambigüidade. A demora na publicação do mesmo é
um forte indício da indecisão do cônego-astrônomo em assumir publicamente uma
posição de enfrentamento com o status quo do conhecimento escolástico.
Copérnico fez poucas observações astronômicas (não era um empirista como
alguns ingleses, que confluiriam na criação da Royal Society of London), titubeou
na questão das esferas celestes (hesitou entre vê-las como sólidos cristalinos ou
puras elucubrações geométricas descritivas dos movimentos dos astros), além de
ter considerado absurda a idéia de que os corpos celestes podiam se mover de
forma a não descreverem círculos perfeitos, o quê violava o princípio da unidade e
da perfeição da Criação.4 Todavia, o cosmólogo polonês, conforme vimos acima,
contribuiu de forma decisiva para o desenvolvimento posterior de um pensamento
científico que podemos chamar de moderno, uma vez que elevou a Matemática
(fundamental para a explicação do seu sistema heliostático) ao status da filosofia
natural. Este último aspecto da empreitada copernicana no interior do movimento
maior que conhecemos como “Revolução Científica” merece um pouco de
atenção. Há um aspecto social que não pode ser negligenciado. Copérnico,
conforme nos revela Robert Westman, fazia parte de um grupo maior de
praticantes da Matemática (praticantes mesmo, não apenas teóricos), grupo de
3
Cf. John Henry. A revolução científica e as origens da ciência moderna. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1998, p. 23.
4 Cf. Idem, p. 22.
4
humanistas que se empenhou grandemente no sentido de recuperar os textos dos
principais matemáticos gregos antigos, o que obviamente contribuiu para uma
tentativa deste grupo – dentro do qual o próprio Nicolau Copérnico – de elevar o
status social da disciplina matemática, o que é visível na negação que o autor do
De revolutionibus faz ao caráter instrumentalista da Matemática atribuído por
Osiander no prefácio de sua obra.5 Porém, um autor cujo nome foi mencionado há
alguns parágrafos acima é de fundamental importância para a compreensão deste
processo de mudança na categoria explicativa que sofre o conhecimento
matemático na explicação do mundo natural.
Johannes Kepler publicou a Astronomia Nova em 1609. Nesta obra, o
astrônomo alemão (nascido em Weil, no Sacro Império, atual Alemanha) defende
com veemência a consideração do matemático como filósofo natural, oferecendo
inclusive suporte matemático para alguns princípios astronômicos defendidos por
Galileu. Retomando os escritos de Copérnico, Kepler os sistematizou e construiu a
primeira grande explicação heliocêntrica do universo. Refinando o sistema
delineado pelo cosmólogo polonês, Johannes Kepler definiu baseado em
princípios matemáticos as trajetórias elípticas dos planetas em torno do Sol. A
Matemática alcançou definitivamente, a partir das exposições cosmológicas de
Kepler, lugar de destaque nas explicações da natureza (cabe lembrar que a
Matemática estava, neste período, indelevelmente ligada à tradição astrológica, da
qual os grandes pensadores do período faziam parte).
Outro elemento que confluiu decisivamente para a nascente tradição
científica moderna foi o próprio experimentalismo, que obteve sucesso
diferenciado nas comunidades eruditas européias entre o final do século XVI e o
início do XVIII. Este, o experimentalismo, esteve por sua vez indelevelmente
ligado à aceitação da Matemática como modo de explicação plausível da
realidade, à medida em que os matemáticos foram alçados à condição de filósofos
naturais.
O grande empecilho para a aceitação da Matemática como livro da
natureza foi sua artificialidade. Este campo de conhecimento era composto
5
Apud idem, ibidem.
5
basicamente por vários sistemas (às vezes desconexos) criados pelo homem, e
por isso eram apenas tentativas de compreensão de uma verdade evidente, da
qual apenas o sistema aristotélico poderia dar conta, afinal de contas, este
baseava-se em um experimentalismo largamente aceito pelas autoridades
intelectuais escolásticas. A natureza era sensivelmente conhecida. Seco,
molhado, quente, frio.
Os matemáticos do final do século XVI e início do XVII passaram então a
estabelecer novos princípios para a própria noção de experiência. A noção
sensível desta última, base da filosofia natural escolástica, deveria ser substituída
por uma outra, baseada em um “conhecimento demonstrado por experimentos
especificamente concebidos para este propósito”6, o de relacionar demonstrações
matemáticas com a realidade das coisas.
A relação entre o novo experimentalismo e o processo de matematização
da natureza pode ser notado na própria utilização de instrumentos científicos. Se
antes do final do século XVI apenas alguns instrumentos faziam a relação entre
conhecimento matemático e o mundo físico, como o astrolábio, o quadrante e a
esfera armilar, a partir do início do século XVII novos instrumentos foram
inventados, desenvolvidos e utilizados sistematicamente no próprio âmbito da
filosofia natural, como o microscópio, o barômetro, o termômetro e, talvez o mais
significativo, o telescópio. Este último instrumento, ‘curiosamente’, ficou famoso na
história da Revolução Científica como de especial estima de Galileu, praticante da
Matemática com grande ambição em ser reconhecido como filósofo natural.
Conforme afirmou John Henry, “foi a tradição matemática que forneceu o primeiro
estímulo para o uso de instrumentos na pesquisa científica”.7
Esta nova tendência experimentalista ocorreu paralelamente em diversas
áreas do conhecimento, e um grande indício desta é a formação em diversas
partes da Europa de academias científicas, dentre as quais a mais significativa –
6
7
Cf. Idem, p. 36.
Cf. Idem, p. 37.
6
dentro de um novo experimentalismo – é a Royal Society of London, formada em
meados do século XVII.8
Ainda quanto às heranças, cabe também mencionar que os fundadores da
ciência moderna foram buscar algumas formulações na antiguidade, sobretudo
aquilo que seria uma das principais características da nova filosofia sobre a qual
nos propusemos no início do presente esboço de ensaio a ponderar sobre, o
corpuscularismo, ou seja, a concepção segundo a qual a matéria era constituída
por partes pequenas, os corpúsculos, concepção esta extraída do Atomismo.9 Tal
princípio não foi originalmente proposto por Galileu, assim como por nenhum outro
pensador moderno. Longe disto, estes últimos a retomaram, conforme indicamos
no início do presente parágrafo, dos filósofos antigos. Demócrito e Epicuro. Estes
formularam – ao menos de acordo com a tradição escrita que até nós chegou – na
Grécia clássica o princípio das partes pequenas, dos corpúsculos. Não nos
deteremos, todavia, na análise destes princípios na Antigüidade. Voltemos à
Europa da Idade Moderna.
Falemos dos nossos protagonistas, Galileu e Descartes, pois, como
sabemos, a História se faz com documentos. Porém, estes últimos são feitos por
mulheres e homens.
Primeiramente, Galileu.
8
Reunida pela primeira vez em 1645, a Royal Society of London, nome que passaria a ter com a
aprovação do rei Carlos II em 1662, baseava-se na busca do conhecimento através da filosofia
experimental, bem diferente do pensamento científico em voga nas suas congêneres continentais,
que baseava-se em afirmações universais sobre o mundo natural. Firmada no empirismo, a
Sociedade – que surgiu de forma autônoma, apesar do título de “Real” – realizava encontros
periódicos, discutindo as experiências dos seus membros e recolhendo relatos de experiências que
eram realizadas em todo o mundo, como indica o próprio subtítulo do seu jornal informativo,
“dando alguma notícia dos presentes acontecimentos, estudos e trabalhos do engenho em várias
partes do mundo”. Por ter um status relativamente diferente das demais organizações científicas de
sua época (como a Académie Royale des Sciences, que era dirigida pelo Estado francês), a Royal
Society desfrutou de certa liberdade de ações, havendo também o florescimento de uma
concepção de comunidade científica mais associativa, ocorrendo inclusive grandes contribuições
de amadores. A produção dos membros e dos colaboradores desta sociedade científica, como
Boyle, Newton, Halley e outros menos famosos, contribuiu grandemente para o estabelecimento de
um pensamento científico, não mais baseado nas “verdades evidentes” das autoridades
escolásticas, mas sim nas “verdades filosófico-naturais” das experiências científicas.
Segundo Soares, “Galileu Galilei e René Descartes não foram os únicos defensores do Atomismo
na primeira metade do século XVII (pode-se incluir entre eles Pierre Gassendi, Martin Marsenne,
Isaac Beeckman, etc.), mas tornaram-se, pela repercussão de suas obras, os nomes mais notáveis
e que serviram de referência para o desenvolvimento posterior da ciência moderna.” Idem, p. 185.
9
7
Nascido em Pisa no dia 15 de fevereiro de 1564, Galileu começou a estudar
medicina na Escola de Artes de sua cidade, onde matriculou-se em 1581. Quatro
anos depois, em 1585, Galileu muda o rumo de seus estudos, tornando-se, em
1589, catedrático de Matemática na Universidade de Pisa, cargo que ocupa até
1592, quando vai para a Universidade de Pádua, ainda como professor de
Matemática. Nesta região também ministrará aulas particulares de Astronomia e
Mecânica Prática, sobretudo para aristocratas ou membros de famílias ricas. Em
1596, publica um tratado intitulado Da Mecânica, obra na qual se dedica aos
instrumentos e máquinas que desenvolveu.
Em 1604, numa carta a Paolo Sarpi, Galileu elabora a lei da queda livre dos
corpos, desenvolvida a partir de experiências repetidas.
Cinco anos depois, em 1609, uma mudança importante na Astronomia:
Galileu, a partir de informações que recebera acerca de um instrumento de
aproximação de visão utilizado nos Países Baixos, o reproduz e o aperfeiçoa.
Nesta ocasião, Galileu é homenageado pelo Senado da República de Veneza e
começa a entrar em conflito com os aristotélicos da Universidade de Pádua.
Porém, a maior inovação de Galileu quanto a este aspecto seria o fato dele
apontar o perspicilium para o céu, observando os corpos celestes, que até então
eram observados a olho nu. A partir deste momento, a Astronomia deixava de ser
uma ciência especulativa e passava a ser uma ciência instrumental, surgindo uma
Astrofísica teórica e empiricamente fundamentada, já que a partir daquele
momento a quantidade de dados qualitativamente novos acumulados com as
observações telescópicas de Galileu possibilitava tal fato.
Em 1610 Galileu publica em Veneza o seu trabalho intitulado Sidereus
Nuntius (O Mensageiro das Estrelas), no qual demonstra os resultados das suas
observações astronômicas. Galileu, que há algum tempo já era um copernicano,
acreditando ser o Sol o centro de nosso sistema, descobrira, entre outras coisas,
alterações na superfície solar, além da rotação do Sol em torno do seu eixo,
destruindo a crença dos próprios copernicanos segundo a qual o centro do seu
sistema era imóvel. Ainda assim, as observações de Galileu contribuíram para o
fortalecimento do sistema heliocêntrico copernicano, o que, com a publicação do
8
Sidereus Nuntius, contribuiu para que sua relação com os peripatéticos de Pádua
ficasse ainda mais desgastada, culminando com o retorno de Galileu para a
Universidade de Pisa.
A esta altura, o trabalho de Galileu já é notório em toda a Europa, quando
em 1611 este se desloca até Roma para demonstrar suas descobertas aos
jesuítas do Colégio Romano, conseguindo inclusive agradar a muitos religiosos.
Na Academia dei Lincei, que congregava a elite intelectual italiana (vale dizer,
excluídos os membros de ordens religiosas), recebeu grande apreço por partes
dos membros. Nesta ocasião, Galileu foi aprovado como um Lince.
No ano seguinte, em 1612, Galileu publica dois trabalhos que irão
congregar, de forma mais elaborada, o Copernicanismo e a Filosofia corpuscular.
O primeiro é intitulado Discorso Intorno alle Cose Che Stano in Sull`Acqua
(Discurso Sobre as Coisas que Estão Sobre a Água), no qual Galileu, segundo
Pietro Redondi, “confirma sua inclinação por uma filosofia natural em polêmica
contra a tradição aristotélica”10, combatendo a Física qualitativa dos aristotélicos,
chamados também de “peripatéticos”. O segundo é intitulado Istoria e
Dimostrazioni Intorno alle Macchie Solari (História e Demonstrações Sobre as
Manchas Solares), trabalho no qual Galileu entra diretamente em conflito com o
padre Cristopher Scheiner, um respeitável cientista da Companhia de Jesus.
Neste trabalho, Galileu ataca frontalmente a Física aristotélica. “As hostilidades
para com a filosofia oficial jesuítica tiveram assim início”11.
Ainda em 1612, o Copernicanismo é denunciado como doutrina herética, o
que acarreta problemas para Galileu, que é denunciado ao Santo Ofício em 1615,
pelo dominicano Niccolo Lorini. Porém, para os jesuítas, um dos piores problemas
nos escritos de Galileu seria o seu parentesco com algumas idéias protestantes,
como, por exemplo, o chamamento que Galileu faz à leitura direta do “livro da
natureza”, que, segundo Redondi, soaria como “uma bofetada na tradição católica
escolástica e uma mão estendida aos hereges que haviam feito da leitura daquele
livro, assim como da Bíblia, um de seus preceitos”12. Em 1616 Galileu vai até
10
Cf. Pietro Redondi. Galileu herético. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 44.
Cf. Idem, p. 45.
12 Cf. Idem, ibidem.
11
9
Roma para defender-se, onde o Cardeal Roberto Bellarmino, o famoso inquisidor
e teórico político, aconselha-o a abandonar as idéias copernicanas, encerrando-se
assim o processo judiciário contra Galileu.
Porém, este “abandono” das idéias copernicanas por parte de Galileu não
durou muito. A Companhia de Jesus publica, em 1619, um estudo acerca dos
cometas surgidos no inverno daquele ano, baseado nas idéias de Tycho Brahe e
de autoria do padre Orazio Grassi. Galileu não se manteve passivo diante de tal
fato, instruindo um de seus discípulos a rebater, na Academia de Florença, o
estudo de Grassi. Este discurso, orientado por Galileu, é imediatamente publicado
sob o título de Discorso delle comete. Não demora muito e, em dezembro daquele
mesmo ano, o padre Orazio Grassi, sob pseudônimo de Lotario Sarsi, publica uma
resposta intitulada Libra astronomica ac philosophica, onde invoca a autoridade da
tradição, passando os ataques a serem frontais. Galileu não se dá por satisfeito e,
em maio de 1623, motivado pela Academia dos Linces, publica uma carta
destinada ao seu amigo, Cardeal Virginio Cesarini, carta esta intitulada Il
Saggiatore (O Experimentador). Neste trabalho Galileu irá, além de reafirmar a
idéia de matematização da natureza, articular a Astronomia copernicana com a
Filosofia corpuscular.
A recusa de submissão dogmática ao princípio de autoridade no
campo filosófico, a reivindicação de uma linguagem nova, os
direitos de pesquisa e de livre discussão intelectual contra a
prevaricação da cultura institucional: eis os elementos que faziam
do Saggiatore o manifesto de uma nova filosofia em Roma. O livro
foi um acontecimento literário porque, mais ainda do que os
jesuítas, mais ainda do que o pensamento escolástico, ele parecia
contestar toda uma tradição intelectual.13
Pouco tempo depois desta publicação um amigo florentino de Galileu, o
Cardeal Maffeo Barberini, foi eleito papa, o que favoreceu também a criação de
13
Cf. Idem. Op. Cit., p. 59.
10
um ambiente mais “liberal” para a Igreja Católica, não havendo, por conta disto,
nenhum problema para Galileu quanto à censura do Experimentador.
Galileu, aproveitando-se da liberalidade trazida pelo novo papa e em função
do funeral do Cardeal Virginio Cesarini, dirige-se novamente a Roma em 1624,
quando pede autorização ao papa Urbano VIII para a elaboração e publicação de
um livro sobre Cosmologia. Com a autorização concedida, Galileu publica em
1632 um trabalho intitulado Dialogo Sopra i Due Massimi Sistemi Del Mondo
(Diálogo Sobre os Dois Maiores Sistemas do Mundo), que se constitui
basicamente em um diálogo entre três personagens, um representando um
homem moderno, de ciência, outro representando um homem de espírito aberto,
receptivo às novas idéias, e um que representava o velho Aristotelismo dogmático.
Porém, o cenário político no momento da publicação deste livro é
extremamente desfavorável a Galileu. Neste momento, a Guerra dos Trinta anos
entrava em uma fase crítica, quando as forças protestantes da Suécia avançavam
sobre a Europa ocidental. Justamente na época da publicação do Diálogo a
França estabeleceu uma aliança com o Rei Gustavo Adolfo da Suécia, o que
causou problemas para o Papa Urbano VIII, acusado de compactuar com os
hereges, já que este havia desenvolvido uma política favorável à França de
Richelieu. Dentro deste contexto, nota-se um fortalecimento dos partidários de um
endurecimento da Igreja em relação aos hereges e protestantes, o que forçou a
uma reorientação política por parte de Urbano VIII, que cedeu às pressões
daquele grupo – mais conservador.
Com isto, os inimigos de Galileu encontram respaldo para denunciá-lo ao
Santo Ofício, girando as acusações, sobretudo, em torno do Experimentador e do
Diálogo. Porém, Urbano VIII e seu sobrinho, o Cardeal Francisco Barberini, ambos
amigos de Galileu, conseguiram desviar a acusação da Filosofia Corpuscular de
Galileu para o heliocentrismo copernicano, o que resultou apenas na “farsa da
abjuração da doutrina copernicana”14 por parte de Galileu. Após este episódio,
Galileu volta para Florença, proibido de falar sobre aqueles assuntos filosóficos
que lhe renderam algumas agitações. Porém, na prática isto não ocorre, já que
14
Cf. Luiz Carlos Soares. Op. Cit., p. 193.
11
Galileu continua estudando e discutindo estes mesmos assuntos com os amigos,
até que publica um livro sobre os princípios da dinâmica em 1638,
clandestinamente, em Leyden, intitulado Discorsi Intorno a Due Nuove Scienze
(Discurso Sobre Duas Ciências Novas).
Seu último trabalho é concluído em 1640, quando ele já estava com a
cegueira bem avançada. É um estudo que trata da luz secundária da Lua que é
causada pela reflexão terrestre, estudo este intitulado Sul Candore Lunare.
No inverno de 1642, com 78 anos de idade e com a saúde
consideravelmente debilitada, morre Galileu em Florença.
Cabe ressaltar agora alguns pontos importantes quanto à pertinência do
pensamento galileano para consolidação da ciência moderna, falando justamente
da consolidação do pensamento de Galileu.
Primeiramente, pode-se falar da importância de Galileu na própria
complementação do sistema copernicano, visto que o mecanicismo fornecia uma
base para a explicação do heliocentrismo, já que as leis englobavam tanto os
fenômenos ocorridos na terra quanto os fenômenos ocorridos com os corpos
celestes.
Segundo Rupert Hall, o “grande princípio” em que Galileu se apoiou para
desenvolver a sua idéia de ciência foi, além da idéia de matematização da
natureza, o princípio segundo o qual o universo é fisicamente homogêneo,
estando a natureza submetida às leis desde que foi criada por Deus15.
Para Galileu, as leis da natureza eram exteriores ao homem, não
dependendo dele para que existissem, cabendo pois ao homem desenvolver os
métodos para que este conseguisse compreender as essências da natureza. As
essências seriam as leis matemáticas.
Ainda quanto à importância do pensamento galileano, é preciso dizer algo
sobre o método. Galileu, ainda segundo Rupert Hall, não se propôs a oferecer
uma teoria explicativa geral para todos os segredos da natureza, ele não era um
“sistematizador”. A maior importância de Galileu para o estabelecimento daquela
nova ciência teria sido, na realidade, o desenvolvimento de uma metodologia
15
Apud Luiz Carlos Soares. Op. Cit., p. 196.
12
baseada na experimentação, onde as explicações acerca da natureza só
poderiam ser feitas mediante a comprovação através das experiências.16
Cabe agora uma menção à importância do pensamento de René Descartes
na concepção desta nova filosofia.
Descartes, nascido em La Haye, França, em 1596, foi quem elaborou “o
primeiro grande sistema geral (universal) de interpretação da Natureza (...).”17 Foi
enviado para o colégio jesuíta de La Flèche por seu pai em 1606, onde se
alimentou da concepção aristotélica do mundo até 1614, indo posteriormente para
Poitiers onde estudou Direito entre 1614 e 1616. Porém, Descartes não ficou
satisfeito com esta visão de mundo concebida na autoridade da tradição, e
rompeu com este aristotelismo. Descartes ingressou no serviço militar em 1618,
na Holanda, sob o comando de Maurício de Nassau. Nesta época, teve contato
com Isaac Beeckman, o que provavelmente influenciou o seu gosto pela Física e
pela Matemática. Em 1620 Descartes abandona a carreira militar em benefício das
suas atividades filosóficas e científicas. Em 1623 viaja para a Itália onde mantém
contato coma a Academia dei Lincei. Em 1628, em Paris, Descartes escreve
Règles pour la Direction de l’Espirit (Regras para a Direção do Espírito), que seria
publicado em 1701. Entre 1632 e 1633, Descartes escreve alguns trabalhos onde
revela sua adoção da teoria corpuscular e copernicana. Um destes trabalhos, Le
Monde, terá a sua publicação adiada, visto que Galileu havia sido condenado pelo
Santo Ofício devido ao conteúdo de sua obra, notadamente o heliocentrismo
copernicano. Em 1637 Descartes publica pela primeira vez um trabalho seu, o
Discours de la Méthode pour Bien Conduire sa Raison et Chercher la Verité dans
les Sciences. Plus la Dioptrique, les Météores et la Géometrie (Discurso do
Método para Bem Conduzir a Própria Razão e Procurar a Verdade nas Ciências.
Mais a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria). Posteriormente, em 1641,
Descartes publica, sob a supervisão de Martin Marsenne, Meditationes de Prima
Philosophia (Meditações sobre a Filosofia Primeira), tentando, segundo o próprio
Descartes, demonstrar “a existência de Deus e a imortalidade da alma”.18 Em
16
Apud idem, p. 197.
Cf. Idem, ibidem.
18 Apud idem, p. 199.
17
13
1644, Descartes publica Principia Philosophiae (Princípios de Filosofia), onde irá
defender concisamente o sistema heliocêntrico copernicano. Em 1649 publica o
seu último livro, Les Passions de l’Âme (As Paixões da Alma), morrendo em 1650,
aos 54 anos, após contrair pneumonia em Estocolmo.
De forma geral, a importância da obra de Descartes para a consolidação da
filosofia corpuscular mecanicista é resumida por Luís Carlos Soares da seguinte
forma:
o princípio fundamental do sistema cartesiano afirmava que a
ciência, como um todo, era uma Matemática maior, cunhando a
consagrada fórmula ‘reductione scientiae ad mathematicam’. Isso
quer dizer que as diversas ciências teriam uma unidade orgânica e
deveriam ser estudadas conjuntamente através de um método geral
de natureza matemática, que requeria a existência de duas etapas
do processo real de conhecimento: a intuição e a dedução.
Entretanto, esta concepção cartesiana de ciência apoiava-se numa
perspectiva dualista que separava o mundo da extensão (Res
Extensa), que era o mundo material exterior (objetivo) considerado
como uma enorme máquina matemática, do mundo dos espíritos
pensantes ou racionais (Res Cogitans), que era o mundo interior
(subjetivo) e não possuía nenhuma característica material ou da
extensão. Esta separação estabelecia, na realidade, uma total
independência do mundo objetivo da extensão em relação ao
mundo subjetivo do ser humano, que se tornaria, de acordo com
Edwin Burtt, num outro elemento importante na constituição da
ciência positivista.19
Com isto, têm-se as bases para uma nova filosofia, agregando e
combinando elementos da matematização e do corpuscularismo desenvolvidos ou
retomados por Galileu Galilei e René Descartes. Segundo Soares, alguns
problemas
19
existentes
no
método
cartesiano
só
seriam
solucionados
Cf. idem, p. 201.
14
posteriormente, com a Física de Isaac Newton, porém, “bem antes de Newton,
com Galileu e Descartes, a Natureza e o Universo já tinham sido dessacralizados
e transformados numa fria máquina matemática”.20 A dessacralização e a
matematização da natureza, juntas, se constituiriam nos principais pilares da
hegemônica noção de “verdade” que propulsionaria os mais diversos campos de
atuação humana, “iluminando-os”, no século XVIII no ocidente. Mas isto é uma
outra história...
BIBLIOGRAFIA
DESCARTES, René. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
GALILEI, Galileu. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
HENRY, John. A revolução científica e as origens da ciência moderna. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
REDONDI, Pietro. Galileu herético. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos. São Paulo: Editora Unesp,
1992.
SOARES, Luiz Carlos. Do novo mundo ao universo heliocêntrico: os
Descobrimentos e a revolução copernicana. São Paulo: HUCITEC, 1998.
TARTON, René. História Geral das Ciências. T. 3, v. 6. São Paulo: Difel, s.d.
20
Cf. idem, p. 204.
15
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