Universidade Federal Fluminense Pólo Universitário de Rio das Ostras – PURO Instituto de Humanidade e Saúde A construção dos papéis sociais de pai e mãe em família: uma reflexão sobre a temática contemporânea de gênero Nayla Velberto Til Rio das ostras Rio das Ostras Dezembro de 2011 Universidade Federal Fluminense Pólo Universitário de Rio das Ostras – PURO Instituto de Humanidades e Saúde Departamento interdisciplinar de Rio das Ostras Curso de Serviço Social Nayla Velberto Til A construção dos papéis sociais de pai e mãe em família: uma reflexão sobre a temática contemporânea de gênero Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Serviço Social, pelo curso de Serviço Social do Pólo Universitário de Rio das Ostras – Universidade Federal Fluminense Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Raimunda P. Soares Rio das Ostras 2011 2 Nayla Velberto Til A construção dos papéis sociais de pai e mãe em família: uma reflexão sobre a temática contemporânea de gênero Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Serviço Social, pelo curso de Serviço Social do Pólo Universitário de Rio das Ostras – Universidade Federal Fluminense. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Raimunda P. Soares Monografia aprovada em __/__/__ Banca examinadora Prof.ª Dr.ª Maria Raimunda P. Soares (UFF) Orientadora _______________________________________________________________ Eblin Joseph Farage 1º Examinador Felipe Brito 2º Examinador 3 Dedicatória À minha família e meus amigos, por todo apoio e afeto dedicado, ao meu namorado, por sua contribuição “técnica”, dedicação e paciência. Aos professores, supervisora e especialmente à orientadora Raimunda Soares, por acreditarem neste trabalho, às vezes, mais do que eu. Enfim, a todos, por construírem e desconstruírem comigo todo o processo. Muito obrigada, este trabalho é nosso! 4 Epígrafe Nada é impossível de mudar Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceitais o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar. As tormentas, Bertold Brecht 5 Resumo O presente trabalho se propõe à análise da construção dos papéis sociais de pai e mãe, tendo como eixo central a família como espaço primário para formação de identidades. Pretendemos deste modo, evidenciar os processos históricos com os quais a sociedade se defrontou que possibilitaram neste momento, a compreensão e conformação de sujeitos como hoje observamos e que determinam comportamentos sociais. Faremos ainda, uma análise sobre a realidade social abordando as concepções de identidades sociais de gênero e as formas de apropriação destas pelo Estado sob a forma de institucionalização social. Finalmente, confrontaremos a noção de propriedade privada no capitalismo à formação de vínculos afetivos familiares com vistas a uma nova concepção emancipada de sujeitos e uma nova prática de trabalho para o Serviço Social com famílias. Palavras-chave: papéis sociais de pai e mãe; família; identidades sociais de gênero; propriedade privada; vínculos afetivos; Serviço Social. 6 Abstract This paper proposes an analysis of the construction of the social roles of father and mother, having as central axis the family as a place for primary training of identities. We intend, in this way, to highlight the historical processes society has faced that enabled, at this time, the understanding and conformation of subjects as we see them today and which determine social behaviors. In addition, we will analyse the social reality by addressing the concepts of social identities of gender and the ways the State assumes them under institutionalization. Finally, we will contrast the notion of private property in capitalism with the formation of emotional bonds in families, toward a new emancipated conception of subjects and new practices in Social Work with families. Key words: social roles of father and mother; family; social identities of gender; private property; emotional bonds, Social Work. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................... 1. CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS PAPÉIS DE PAI E MÃE EM SOCIEDADE...................................................................................... 1.1. 8 12 Contribuições de Engels para o entendimento da constituição social da família.................................................................................. 12 1.2. A família no capitalismo: base para a constituição da propriedade privada................................................................................................ 19 1.2.1 Os papéis sociais de pai e mãe no capitalismo......................................................................................... 2. 23 CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS PAPÉIS DE PAI E MÃE NA HISTÓRIA DO BRASIL...................................................................... 29 2.1 A constituição da família no processo de formação sócio-histórica do Brasil: algumas considerações...................................................... 29 2.2 Determinações sociais contemporâneas dos papéis de pai e mãe na sociedade brasileira...................................................................... 2.3 Institucionalização dos papeis de pai e mãe na sociedade brasileira............................................................................................. 2.4 34 37 A abordagem de família pelo Serviço Social: elementos para reflexão............................................................................................... 44 CONCLUSÃO.................................................................................... 52 BIBLIOGRAFIA.................................................................................. 55 8 INTRODUÇÃO Queridos Hildita, Aleidita, Camilo, Célia e Ernesto: Se alguma vez tiverem que ler esta carta, será porque eu não estarei mais entre voçês. Quase não se lembraram de mim e os mais pequenos não recordarão nada.O pai de voçês tem sido um homem que atua, e certamente, leal a suas convicções. Cresçam como bons revolucionários. Estudem bastante para poder dominar as técnicas que permitem dominar a natureza. Sobretudo, sejam sempre capazes de sentir profundamente qualquer injustiça praticada contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. Essa é a qualidade mais linda de um revolucionário. Até sempre, meus filhos. Espero vê-los, ainda. Um beijão e um abraço do Papai. (Carta de Che Guevara aos filhos). O presente trabalho se propõe a analisar a construção dos papéis sociais de “pai” e “mãe” em família, uma vez que estes se tornam indispensáveis para a compreensão da formação da identidade de gênero e o que isto acarreta aos sujeitos na sociedade capitalista. Para iniciar esta análise faremos uma leitura histórica da família, pois este é o núcleo fundamental da construção destes papéis, refletindo tanto na individualidade quanto em instâncias mais coletivas de convívio e intervenção social. Partindo desta premissa, iniciaremos pela análise dos grupos no interior de tribos mais primitivas, até se formarem as noções de monogamia e construção de novos valores, chegando a uma transformação social mais radical, que se refere ao modo de vida capitalista. Sabendo que apenas a mudança do Direito não é suficiente para que se forme uma nova concepção de sujeito, em relação à constituição familiar, nos propomos a analisar as relações sociais que perpassam a formação dos sujeitos e que os conformaram como tal. Observamos que há certas características, e determinado comportamento social pré-estabelecido, que se espera dos sujeitos e que os orientam desde seu nascimento. As mulheres se sobrecarregam com afazeres domésticos e cuidados 9 familiares além de sua jornada de trabalho, por outro lado, os homens encontram-se em sua função primária de provedores do lar, configurando-se uma relação desigual desde sua gênese. Mas se a história é passível de mudança, será que esta relação de gênero no grupo familiar sempre se estabeleceu desta forma? E quanto ao próprio grupo familiar, seria ele fruto da transformação ou agente transformador? Sobre estas questões guiaremos nossa análise. Institucionalmente, a criação das categorias “pai” e “mãe”, está muito além do grupo familiar e demanda do Estado determinado tipo de políticas sociais, estabelecendo uma relação que se reproduz quase automaticamente, em nosso cotidiano, de forma tal que se tornam “naturalizadas”. Estas categorias permitem ainda uma identificação social que corresponde, também, a formas de opressão e limites aos sujeitos em suas escolhas e liberdade. No modo de vida capitalista existe um discurso de liberdade, tanto individual quanto jurídica, que se limita, além das óbvias condições financeiras, pelos valores morais e comportamentos desta sociedade, gerando uma relação baseada em valores econômicos que se “disfarçam” no discurso social de afeto, pertença e proteção dos sujeitos em família. A escolha por esta temática se deu através da experiência de estágio, no Centro Integrado de Convivência Professora Neli Aparecida Tâmara Luiz (CIC III) no município de Rio das Ostras, onde pude observar a existência de muitas mulheres chefes de família, e em contraposição apenas um caso de pai solteiro. Esta observação me fez questionar sobre a real participação dos homens na educação de seus filhos e permitiu ainda notar que havia a conformação de um papel materno (feminino) e um paterno (masculino), e que para cada um destes havia um comportamento esperado e funções a serem cumpridas. Havia também forte desresponsabilização dos pais quanto ao cuidado e educação dos filhos, somado a uma sobrecarga de trabalho feminina que, além disso, em sua maioria, encontravase precariamente inserida no mercado de trabalho, exercendo, por vezes, mais de uma atividade laborativa. No processo de entrevista social, notamos que, via de regra, cabia à mãe o papel de educadora permanente assim como provedora de todos os cuidados que 10 os filhos viessem a precisar (inclusive na fase adulta), ao passo que o pai deveria ser o provedor familiar, responsável pelo sustento e pela imposição de normas e controle. Mas esta é uma “divisão de tarefas” imposta antes mesmo da união destes casais, que está para além de suas escolhas. Nas situações de divórcio, observamos também que os sujeitos não apresentam os mesmos direitos, nem as mesmas responsabilidades sobre seus filhos. Nesta situação muitos pais “abandonavam” as responsabilidades e convivência com os filhos e muitas mães não se queixavam desta situação, embora reconhecessem a contradição. Esta temática se constitui de extrema relevância por se tratar de uma das bases de criação da sociedade em que vivemos, abordando uma realidade que está posta e presente em todos os níveis sociais, de modo visível, embora naturaliza. Avaliamos que existe pouco debate sobre a formação dos papéis sociais e papéis contemporâneos de gênero no meio acadêmico de forma que venha a contribuir para a formação profissional e análise sócio-crítica. O objetivo é propor uma reflexão sobre esta temática, mais especificamente sobre as práticas cotidianas que reforçam as situações de opressão, sobrecarga e desigualdade de gênero, que são também formas de identificação social e de pertença entre os sujeitos, que conformam “papéis sociais” como formas de controle da sociedade sobre os mesmos. A metodologia utilizada neste TCC se constitúi de pesquisa bibliográfica com consulta a fontes de pesquisa como Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por outro lado, algumas reflexões são decorrentes de minha inserção no campo de estágio, donde resultam algumas das análises apresentadas articulando a relação entre teoria e observação prática da realidade social. Desta forma, o presente trabalho se divide em dois capítulos além da introdução e conclusão. O primeiro capítulo tem uma abordagem histórico-reflexiva, intitulado “Construção social dos papéis de pai e mãe em sociedade”, e pretende compreender a formação destas duas categorias centrais, bem como a formação histórica da família, utilizando, especialmente, o auxilio da obra de Friedrich Engels, como base para estas análises. No segundo capítulo, “Construção social dos papéis de pai e mãe na história 11 do Brasil”, faremos uma abordagem mais local e contemporânea, especificando brevemente algumas das características da formação social brasileira que influenciaram, positiva ou negativamente, na formação familiar como hoje a encontramos. Abordaremos as principais características e valores aqui constituídos, além do que acarreta aos sujeitos a conformação em dado papel social e a fuga a esta regra. Ainda neste capítulo discutimos a “Institucionalização dos papeis de pai e mãe” relacionados aos aspectos políticos que envolvem a formação dos sujeitos. Destacamos a participação do Movimento feminista para a obtenção de direitos e uma mudança de perspectiva de gênero. Abordaremos ainda, o enfoque das políticas sociais nesta dinâmica e a institucionalização de gênero, sob o ponto de vista da sociedade capitalista e suas instâncias de controle subjetivo. Por fim, faremos ainda uma breve abordagem sobre o Serviço Social e suas formas de intervenção. Pretendemos propor um debate acerca da questão de gênero, atualmente, para que possamos rever a prática profissional, e sua utilização que tanto pode ser vista como mecanismo de controle como também de acesso, na perspectiva do protagonismo histórico-social. 12 1. CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS PAPÉIS DE PAI E DE MÃE EM SOCIEDADE 1.1 Contribuições de Engels para o entendimento da constituição social da família. O modelo social de família concebido nos moldes atuais, com as denominações de pai, mãe, filhos, tios e avós e suas correlatas definições de parentesco, nem sempre se apresentou desta forma, isto porque a sociedade demandou e constantemente demanda uma nova forma de organização que se adapte tanto à economia quanto aos próprios sujeitos que nela se inserem. Tendo como referência o modelo familiar burguês, podemos afirmar que este serviu como um dos principais pilares para o surgimento e manutenção desta sociedade, economicamente capitalista, como forma de se manter a propriedade privada sob o controle de determinada classe social. Ainda hoje, o modelo de família burguesa, monogâmica patriarcal, é ideologicamente predominante nas sociedades ocidentais, sobretudo nas que tem no cristianismo seu referencial de “culto religioso”, como o Brasil por exemplo, onde segundo o IBGE, este modelo configura-se de forma predominante1. Para entendermos o lugar histórico que a constituição das famílias teve, em decorrência das alterações culturais surgidas, na formação da sociedade de classe, em especial a capitalista, recorremos a leitura de “A origem da família, da propriedade privada e do estado” de F. Engels, que através da análise da obra Ancient Society or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbasism to Civilization, de Lewis Morgan (1810 - 1881), apresenta diferentes configurações familiares, analisando primeiramente tribos indígenas presentes na América, Austrália e na civilização oriental, desde os primórdios da civilização humana. Como resultado desta leitura, observamos que nem sempre os laços familiares se atrelaram aos papéis de pai e mãe como hoje os conhecemos, havia entre os Iroqueses (América), o sistema de pairyng family, casamento facilmente dissolúvel 1 Esta análise será trabalhada aprofundadamente mais adiante, no momento, cabe observar que nas últimas décadas, principalmente a partir dos anos 90, notamos a conformação de novos modelos familiares, com maior participação dos membros nas despesas domésticas, maior inserção feminina no mercado de trabalho, redução da taxa de maternidade, diminuição de casamentos e aumento de uniões consensuais e coabitações, etc. (MIOTO, 1997).Todas as transformações estão relacionadas ao desenvolvimento da ciência, a maior autonomia feminina, mas principalmente aos fatores econômicos e sociais. 13 por ambas as partes, onde todos os irmãos eram pais de um mesmo filho e tios dos filhos de suas irmãs, assim como todas as irmãs, eram mães dos mesmos filhos, e tias dos filhos de seus irmãos. Este modelo contradiz em todos os aspectos os laços familiares efetivos dos quais nos referimos atualmente e todas as noções de família e casamento se alteraram tanto no decorrer deste período, historicamente menos registrado, quanto se compararmos a geração de nossos avôs com a sociedade atual. Morgan (apud: Engels) através da análise de sociedades mais primitivas, como tribos indígenas, deduz que no período da barbárie, tivemos como característica principal a domesticação e criação de animais, bem como o cultivo de plantas; na fase superior, observamos o início da fundição do minério de ferro, o que possibilita grande avanço de produção, o cultivo de campos para pastagens, dentre outras atividades. O período da civilização, a partir desta análise, é marcado pela invenção da escrita, da indústria propriamente dita e da arte. Mas um grande avanço do trabalho de Morgan, retomado por Engels, foi analisar que, no período primitivo, houve a existência, concomitante, da poligamia com a poliandria, ou seja, um grupo onde mulheres e homens pertenciam mutuamente uns aos outros, característica praticamente inexistente no reino animal que se deveu a necessidade de manter a espécie, de acordo com as possibilidades da época, e resultou na concepção de filhos comuns. Este quadro foi se modificando historicamente, por diversos fatores, até chegarmos hoje a monogamia conjugal. A tolerância recíproca entre os machos adultos e a ausência de ciúmes constituíam a primeira condição para se formar esses grupos maiores e duradouros que eram os únicos em cujo seio podia ocorrer a transformação do animal para o homem. E, de fato, que encontramos como forma mais antiga e primitiva da família, cuja existência possamos comprovar irrefutavelmente pela história e que ainda hoje podemos estudar em certos lugares? É o casamento grupal, forma em que os grupos inteiros de homens e grupos inteiros de mulheres se possuem mutuamente, deixando bem pouca margem para os ciúmes. (ENGELS, s.n, p. 50). Segundo Engels, imediatamente após esta fase, passamos para o que Morgam denomina de família consangüínea, fase primitiva em que as determinações 14 de parentesco sofrem uma significativa alteração que permite maior avanço à sociedade na época. Neste modelo, a família se relaciona entre gerações, todos os pais da primeira geração são casados entre si, assim como seus filhos, são irmãos e, conseqüentemente, maridos e esposas e os filhos destes, netos da primeira geração, são também, respectivamente, casados uns com os outros. A próxima evolução2 seria o advento da família Punaluana, onde determinado grupo de homens pertencia a determinado grupo de mulheres, o grande marco desta formação representa a exclusão dos irmãos nos relacionamentos. Segundo Engels, esta transformação foi ocorrendo gradativamente e é ainda mais significativa, tanto do ponto de vista da evolução, quanto do desenvolvimento social. Outra característica importante da família Punaluana3 é o fato de que dela decorre a formação da gens familiar, pois, de fato, somente a descendência materna era certa até então. Por este motivo, primeiro extinguiu-se as relações sexuais entre irmãos maternos e somente mais tarde entre irmãos colaterais, o que para nossa cultura, segundo Engels, refere-se aos primos de segundo e terceiro graus. Possivelmente, a gens familiar determinou a ordem social da família bárbara e causou a cisão de grupos, formando um núcleo familiar a partir de determinadas irmãs uterinas e outro grupo a partir de seus irmãos colaterais. A idéia, agora considerada imoral, de relações sexuais entre irmãos obriga estes grupos à concepção de uma nova categoria familiar, a dos primos (a) e sobrinhos (a), que não possuem nem pai, nem mãe em comum. Este, possivelmente, é o modelo familiar que fundamenta o modelo monogâmico atual. Assim, a gens familiar era determinada por um ancestral feminino, e entre seus membros, parentes, não poderia haver casamento. As gens se tornam mais sólidas, com instituição religiosa e social, e passam a diferir cada vez mais entre si, no interior da tribo. Deste modo, não podendo mais haver relações entre pais, filhos, irmãos maternos e colaterais (primos de segundo, terceiro e mais graus), torna-se 2 3 Segundo a perspectiva de Morgan. Termo cunhado por Morgan, que advém de punalua, segundo Engels, do havaiano, que significa parceiro íntimo, sócio. 15 cada vez mais difícil o casamento, exigindo, em certos casos, o rapto e compra de esposas. Disto deve ter resultado a família pré-monogâmica, com um casamento de vínculos ainda frouxos onde o casal poderia, assim que desejasse, desfazer-se desta união, embora a comunidade fizesse certa pressão para conciliar situações de estresse. É interessante, também, que o homem poderia eventualmente praticar poligamia ou infidelidade, mas sua companheira deveria permanecer fiel até o fim da união, pois do contrário seria severamente punida. Neste modelo, também pertencia às mulheres a propriedade dos filhos. Este pode ser o caminho que possibilitou a passagem da família “préhistórica” para a monogamia, e permitiu com a exclusão de parentes consangüíneos e posterior união entre tribos mais fortes, a “evolução da espécie”4. Como as mulheres é que moviam a economia doméstica e também dos grupos, é certo que delas derivava o poder e a ordem, bem como grande respeito, pois era também delas a única descendência comprovada. Possuíam excessivo trabalho, mas reconhecimento social correspondente. Assim, devido à fragilidade da família pré-monogâmica e das funções desempenhadas pelos sujeitos no interior do grupo, os homens deveriam seguir as determinações de suas companheiras, se não desejassem ser expulsos do grupo. Esta constatação põe por terra todos os estudos que acreditavam serem as mulheres escravas de seus maridos, pois fica claro que neste momento histórico eram as mulheres que desempenhavam funções mais socialmente significativas para a economia comunal, sendo também as responsáveis pela geração dos filhos e recebendo maior respeito e reconhecimento coletivo. É preciso, porém, fazer uma ressalva quanto à questão do afeto, pois, se por um lado, as observações feitas até aqui nos mostram uma organização social completamente diferente das atuais, exige-se ainda certo cuidado de análise, ao salientar que nenhum dado comprova que estas relações se diferem das atualmente 4 Nota-se que há, na análise de Engels, uma tendência evolutiva passível de críticas e que, provavelmente não se aplica a outras dinâmicas da sociedade, mas nem por isto invalidam a importância e contribuição social de sua obra. 16 estabelecidas, em questão de afeto. A análise de Engels não se deteve a este aspecto, o que também não seria possível, mas de modo algum, podemos considerar estes grupos sociais como desprovidos de afeto e cuidado, bem como imorais e depravados, simplesmente por não se organizarem de acordo com os costumes de hoje. O processo que determina a configuração de diferentes sociedades não as impede de igualmente cuidarem de seus membros e que os integrantes destes grupos, ainda que obrigados a se organizarem em determinado modo, possam estar de acordo com os costumes ou refletir sobre uma nova prática. Ou seja, mesmo que atualmente, na reflexão sobre determinados valores da época os julgamos equivocados, os sujeitos daquelas sociedades estavam de acordo com aqueles valores e os reproduziam de acordo com as normas vigentes.5 Deste modo, não se pode falar em relações incestuosas, sem considerar os determinantes históricos da época, se este pudor ainda não se havia fixado em sociedade, nem mesmo dizer que os pais que se relacionavam com seus filhos não possuíam pelos mesmos nenhuma forma de afeto. Antes as famílias se formavam por grupos de maridos e esposas do que de pais e filhos, estes eram seus referenciais, e devemos considerá-los na análise histórica destas sociedades. Por outro lado, não podemos desconsiderar os argumentos contemporâneos que nos fornecem a chave para entendermos estas sociedades. Estas duas questões são consideradas nas análises que nos propomos a fazer sobre o surgimento da família, a partir da Leitura de Engels. A sociedade capitalista de hoje é extremamente conservadora e por isto mesmo, nossas análises devem primar por uma abordagem histórica, entendendo as relações estabelecidas à época a partir da dinâmica daquela sociedade. Michel Lowy6 já demonstrou em suas análises que não existe neutralidade nas ciências sociais, desta forma, a localização histórica das diversas sociedades e do observador, permite um comparativo e uma análise mais precisa dos fatos, situando 5 Não estamos desconsiderando a capacidade de escolha dos indivíduos apenas chamamos atenção para as configurações históricas de determinada sociedade. 6 O autor trabalha com a concepção de visões sociais de mundo, decorrentes da construção histórico-social e das experiências singulares dos sujeitos como perspectivas determinantes de suas análises científicas, explicando assim, a inexistência de neutralidade. 17 o que estes representam para as sociedades, de acordo com os meios e possibilidades que possuíam, evitando assim, que se cometam grandes equívocos de análises. Um exemplo deste juízo de valor que acarretou em grande perda históricodocumental é o fato destacado pelo autor, Engels, de que uma análise mais detalhada poderia ter sido feita se muitos dos povos do chamado “novo mundo” não tivessem sua cultura dizimada pela colonização uma vez considerada civilizadora. O fato real, é que os povos que aqui se fixaram, estavam em busca de uma expansão econômica e os julgavam com base em seus valores, principalmente religiosos, mostravam que consideravam sua cultura superior a que aqui encontraram, sem mesmo tentar analisá-la, e este, do ponto de vista histórico e cultural, foi uma perda inestimável. É importante ressaltar, que nestas sociedades consideradas “selvagens”, as mulheres representavam grande autoridade em seus clãs, bem como em todo o grupo, pois, se por um lado desempenhavam demasiado número de funções e trabalho, por outro, constituiam a grande autoridade destes povos de economia doméstica comunista. Desde esta época remonta o cuidado e responsabilidade materna para com os filhos, que uma vez desconhecendo a figura exclusiva do pai, não poderiam, como em nossa sociedade, cobrar nada do mesmo. Esta é uma regra do chamado direito materno nos casamentos por grupos, e este reforça o papel feminino sobre os filhos e em sociedade. Devemos destacar também, que todas estas transformações no interior das tribos, não ocorreram de modo completo, trata-se de um processo histórico e por isto, por vezes, pode-se observar a convivência concomitante de valores divergentes, ou curtos períodos em que se presencie o culto de valores socialmente superados como resquícios de antigos costumes. A aquisição feminina do direito de se relacionarem sexualmente com apenas um homem de sua escolha também se constituiu em processo, pois os sacrifícios, principalmente religiosos, e outras formas de imposição, se tornaram cada vez menos freqüentes. Em alguns povos, as mulheres possuíam maior liberdade sexual até contraírem matrimônio, que por vezes eram arranjados por seus familiares. 18 Se estes exemplos não se constituem suficientemente claros, devido a diferença de modelo social, basta salientar que foi necessário a criação de uma lei, para que os senhores da nobreza não mais se sentissem no direito de desposar, na noite de núpcias, as esposas de seus servos e até mesmo suas filhas e filhos, de acordo com sua vontade, mesmo que pagassem por este ato. Sem dúvida alguma, esta análise permite compreender que a passagem para o casamento monogâmico só pode ter surgido através da prática das mulheres, e exclusivamente para elas, uma vez que: Quanto mais as relações sexuais tradicionais, com o desenvolvimento das condições econômicas da vida e, portanto, com o desaparecimento do antigo comunismo e ainda com a crescente densidade populacional, perdiam seu inocente caráter primitivo e selvagem, tanto mais humilhantes e opressivas deviam parecer essas relações para as mulheres que, com maior premência, deviam ansiar pelo direito à castidade, ao casamento temporário ou definitivo com um só homem, como uma libertação. (ENGELS, s.n., p.70) Desta forma salienta-se que a família pré-monogâmica existiu entre o estado selvagem e a barbárie. É característica da barbárie o casamento por grupos e é característico da fase selvagem e a monogamia da civilização. A leitura da obra “A origem da família da propriedade privada e do Estado” se faz em grande parte de fácil compreensão, porém por termos referenciais contemporâneos distantes dos que se apresentavam na época de sua produção, por vezes, torna-se complexa a definição do termo “grupos”, que ora pretendem significar o emaranhado social de cônjuges e ora toda uma tribo. Como, de fato, não fica clara a quantidade de grupos matrimoniais que compunham as tribos em cada época, muitas vezes torna-se desnecessária esta distinção, desde que compreendamos as questões referenciais de família que se pretendem articular e construir ao longo do trabalho. As contribuições de Engels são indispensáveis para entendermos o lugar da família na constituição da propriedade privada e desta última na constituição da sociedade capitalista. Deve-se notar também, como estes valores culturais e econômicos passaram a nortear todos os níveis da formação social, através da 19 imposição de valores e, principalmente, pela determinação de instituições normativas que garantem o status quo. 1.2. A família no capitalismo: base para a constituição da propriedade privada Como pudemos observar no item anterior, para que se passe da família prémonogâmica a monogamia, deve-se considerar que o fator de impulso é externo, é social, embora alguns autores acreditem ser este processo resultado de uma evolução biológica7. Com a domesticação de animais na vida social, houve a necessidade da utilização de práticas de controle e vigilância sobre estes bens que garantissem uma produção abundante. O rebanho, inicialmente, pertencia a uma gens, mas tão logo se estabeleceu a propriedade privada, segundo Engels, esta passou a pertencer aos chefes de família. Como o gado, e outras criações, exigiam muitos cuidados e se multiplicavam com maior velocidade do que os membros familiares foi adotada socialmente a figura do escravo (como hoje definimos), tendo sua mão de obra explorada e comercializada como mercadoria. É neste ponto que ocorre a alteração mais notável na gens familiar. Como a descendência pelo direito materno impõe à mãe o direito aos bens e aos filhos, pois só se reconhece esta descendência, os filhos de um proprietário, nada herdariam de seu pai por não pertencerem a sua gens, mas sim seus sobrinhos, mãe, irmãs e irmãos. Uma vez que a riqueza aumentava, ampliava também a importância da figura masculina, podendo fazer valer sua vontade sobre a propriedade dos filhos, e como no casamento pré-monogâmico, além da figura materna certa, temos também uma figura paterna, ficou mais fácil suprimir a lei da descendência materna e impor a paterna, bastando que os membros da gens paterna nela permanecessem, enquanto que os membros da gens materna passassem para a paterna. Deste modo, tivemos uma das revoluções sociais mais significativas e passivas da história humana, que permitiram, principalmente, a concentração da propriedade privada. 7 Embora as observações sobre a formação histórica familiar de Engels sejam significativamente contributivas, este trabalha, por vezes, com uma perspectiva de cunho evolucionista, que não será considerada em nossas análises e que não invalida a Obra deste autor. 20 A mulher não perde apenas o direito sobre seus filhos, mas parte de sua representatividade, pois tem que se submeter aos homens (agora detentores do poder e da ordem, inclusive no ambiente domiciliar), e passa a ser vista principalmente como procriadora obediente e serviçal. Institui-se assim, a monogamia feminina. Para que todas estas formas de propriedade pudessem ser garantidas criaram-se mecanismos de controle sobre os mesmos, principalmente o direito. A traição feminina se torna passível de pena e somente o homem pode romper sua relação matrimonial e exercer também o direito sobre sua companheira e escravas, concubinas. Deste modo, antes de se pensar nos laços sanguíneos paternos como determinantes das gens familiares, é preciso salientar que esta é uma característica relativamente recente que só pôde ser definida com o desenvolvimento da ciência. Este conhecimento, mais adiante, permitiu a associação entre o ato sexual e a procriação, causando uma transformação na forma como se configuravam as relações familiares, pois se pôde manter os bens familiares em uma mesma gen. Uma vez garantidos quais são os filhos decorrentes de cada relação, pode-se também garantir que a propriedade privada se mantenha sempre sob o controle de uma mesma família passando os bens aos filhos certos em cada geração. Ao se legitimar e restringir a filiação, restringe-se também a divisão dos bens e, conseqüentemente, permite a concentração da riqueza, pois no capitalismo, propriedade privada é também sinônimo de controle dos meios de produção e controle social. É importante lembrar que os bens só podem ser passados aos filhos gerados dentro de uma relação reconhecida pela sociedade, ou seja, o casamento, excluindo qualquer outro tipo de filiação, que passam a ser denominadas “ilegítimas”, e por isto, até hoje observa-se a procura judicial pelo reconhecimento de paternidade, o que garante, entre outras coisas, pensão e parcela na divisão de bens. Por meio do estudo das estruturas elementares do parentesco, LéviStrauss (1976) chegou à tese de que a família surgiu do embricamento entre a natureza e a cultura, com a invenção do tabu do incesto. Essa tese permitiu a supremacia da regra cultural da afinidade sobre a regra natural da consangüinidade (MIOTO, 1997, p. 116) 21 Por este pensamento, entende-se porque fatos e comportamentos anteriormente aceitos tornam-se recrimináveis nesta sociedade e o porquê desta mudança ser necessária, para acompanhar o desenvolvimento da sociedade e da economia, além de mostrar como a sociedade é um fator de regulação presente em todos os espaços, inclusive o privado, familiar e mais sensivelmente, o individual, regulando normas e comportamentos constantemente, além de definir o que é aceito ou social e moralmente recriminável. Estas regulações se fazem em uma dimensão que não pode ser “atingida”, pois se encontram, produzem e reproduzem constantemente através do imaginário social, ou seja, a sociedade que nos reprime e que impõe comportamentos, é construída por nós mesmos. Portanto, somos nós, os sujeitos individuais, que devemos reconstruir o comportamento de modo que nos contemple e não reforçar um modelo que pode ser opressor. Em determinadas camadas sociais, há maior reprodução destes valores, pois estão diretamente relacionados à educação, que tanto pode ser um fator de ampliação de horizontes, como veículo de manutenção da ordem, pois ao não possuírem acesso aos mecanismos de reflexão acabam por reproduzir valores machistas e excludentes. A falta de acesso é mecanismo limitador de direitos que acaba naturalizando e associando estes valores ao modo de vida. Esta não é, porém, uma característica exclusiva de camadas mais pobres da sociedade, na verdade, por se tratar de uma dimensão social e de um mecanismo de controle “invisível”, acaba por ser reproduzido automaticamente por todas as camadas sociais. Por outro lado, quando este é percebido por determinado grupo social, ou ainda contrário a seus valores, há a possibilidade do surgimento de mecanismos de resistência que lutam por uma adaptação do modelo social vigente, ou seja, sua superação enquanto forma opressiva. Porém, há que se salientar o fato de que nem todas as determinações sociais podem ser contestadas (e não precisam), pois é necessário que os sujeitos sigam um comportamento mínimo. Uma vez tratando-se de convívio social, os indivíduos precisam ser reconhecidos e aceitos pelo grupo a que pertencem. Segundo Ariès (1978, apud: Mioto, 1997, p. 116), foi no período da modernidade que observamos uma extensão do modelo familiar burguês a 22 praticamente toda a sociedade, modelo ao qual seguimos ainda nos dias atuais, desenvolvendo a idéia de privacidade e o sentimento familiar. Neste momento, as crianças foram retiradas da vida comum e assim perdem parte de seu cuidado, pois até então apresentavam uma convivência coletiva, ficando sob a responsabilidade de todos os adultos. Deste modo, o novo modelo econômico imposto pela sociedade burguesa impõe também, como forma de manutenção e controle dos bens, um modelo familiar centralizado que diminui o convívio entre sujeitos de diferentes famílias e mantém maior responsabilidade dos pais sobre a educação e cuidado com os filhos, fazendo surgir, assim, os sentimentos de privacidade e individualidade. É no período da industrialização e da divisão social do trabalho, por ela desencadeada, que notamos um aprofundamento na modificação das relações familiares. As mulheres assumem um espaço no mercado de trabalho que antes era predominantemente masculino, mas sem deixar de se responsabilizar pelos serviços domésticos e pelo cuidado com os filhos. O trabalho feminino assume jornadas iguais, mas ainda com remuneração inferior a dos homens, mesmo assim, passa a ter um papel indispensável para a manutenção familiar. É neste momento que observamos a construção familiar nos moldes atuais, com a interferência direta da economia na conformação social e, conseqüentemente, na formação dos sujeitos, pois uma nova consciência passa a ser formada, bem como as noções de público e privado8. Mas se torna indispensável a observação de que em nenhum momento histórico as mulheres deixaram de se constituíram como trabalhadoras, contudo, prioritariamente desenvolviam atividades laborativas no interior de suas residências. Aludindo às classes trabalhadoras mais pobres, estas se apropriaram de ambientes 8 Embora haja variações, as noções de público e privado encontram-se basicamente definidas como instâncias sociais opostas e ao mesmo tempo complementares de acordo com Mioto (1997) e Carvalho (2005). O público se refere ao espaço da vida coletiva, do trabalho e das políticas, já a concepção de privado remete a construção de afetividades, das individualidades, e por vezes, do lar. Há autores, porém, que debatem estas instâncias como formas de controle social através do machismo, sobrepondo o público ao privado, bem como o homem à mulher. Sobre este assunto ler SARTI (2oo7) ”Famílias enredadas”. 23 públicos como espaços de trabalho mais cedo, como estratégia de sobrevivência ou complemento à renda doméstica. 1.2.1. Os papéis sociais de pai e mãe no capitalismo Ao mesmo tempo em que surge o modelo familiar burguês, como parâmetro para a sociedade capitalista, pelos motivos acima apontados, criam-se os papeis sociais de pai e mãe. Estas categorias enceram um outro elemento importante para a manutenção de valores tradicionais e garantia do status quo de uma classe, a burguesia, sobre toda a sociedade. A burguesia sai de sua fase revolucionária (1789) 9 e entra na fase conservadora, “traindo” o proletariado, e necessitando a partir daí da criação de elementos ideológicos que lhe garantissem o poder como tal. Este elemento, presente ainda hoje é o machismo, que está na base das atribuições dos papeis sociais de pai e mãe. Os papeis de pai e mãe, desta forma, apresentam-se ideologicamente bem definidos na sociedade capitalista, mesmo que na prática, às vezes, eles se confundam (em especial com o surgimento de outros modelos familiares na contemporaneidade). À mãe cabe o cuidado e educação dos filhos, bem como o cuidado com a casa e, atualmente, nas classes trabalhadoras, a divisão das despesas domésticas. Ao pai cabe o papel de provedor familiar e impositor da ordem e respeito. Nos últimos anos, as políticas de ajuste neoliberal causaram significativo empobrecimento familiar, o que exigiu cada vez mais a inserção das mulheres no mercado de trabalho causando, com isso, uma transformação societária sem precedentes. Como acentuamos acima, no contexto familiar, as mulheres cumprem o papel de mães, o que corresponde à função social de cuidadoras permanentes, sendo responsáveis não apenas por seus filhos, mas por todo o núcleo familiar (pais, irmãos, sogros, marido, etc.) e ambiente doméstico, além de educadoras primárias. A inserção destas mulheres no mercado de trabalho, faz com que estas assumam 9 Revolução Francesa, ou a chamada “Revolução Burguesa”. 24 uma postura política mais ativa no que se refere à aquisição de direitos sociais e reconhecimento de igualdade, mas no âmbito privado, assistimos a um acúmulo de funções, pois não se abandona, ou divide nenhuma das tarefas acima mencionadas, suas por “obrigação”. Por outro lado, a exigência da maternidade e do casamento continuam se constituindo como determinantes para o reconhecimento e aceitação social destes indivíduos. Aos homens, como dito anteriormente, cumprem a função de provedores do lar, o que significa, principalmente, o sustento, mas também a imposição de normas e conduta que irão servir de base para sua família. Sua função, socialmente, se desvincula de qualquer forma de afeto, são reguladores. Contudo, as demandas do capital influenciaram o comportamento feminino de modo que, atualmente, os pais encontram-se deslocados de sua categoria fundamental no núcleo familiar, porque sozinhos, dificilmente se tornam capazes de suprir as necessidades domésticas, o que exige o acúmulo de vínculos empregatícios, quando possível. A mão de obra feminina ainda é remunerada com salários inferiores, o que reduz postos de trabalho masculinos, causando seu maior desemprego. Estes sujeitos que se encontram desempregados, tem dificuldade de se impor no núcleo familiar, pois se trata de uma questão de identidade, e como não foram educados para manter o lar em “funcionamento”, como papel fundante, podem se encontrar socialmente deslocados, principalmente quando suas parceiras recebem salários mais elevados do que eles. Além disso, o homem/provedor se vê ameaçado diante da recente autonomia conquistada por suas parceiras que, sobretudo, deixam de depender exclusivamente do marido para mediar sua relação com a vida pública, ou o mundo externo, Sarti (2007). No período do pós-guerra, a introdução do modelo fordista de produção fez com que as mulheres se inserissem mais intensamente no mercado de trabalho, tendo maior importância no sustento familiar. Conseqüentemente, observou-se uma alteração no modelo familiar com visível redução da taxa de natalidade. É importante observar que, como parte de uma sociedade, a família e os sujeitos que nela se inserem e que a partir dela se formam, são diretamente afetados pelas transformações do mundo do trabalho. Assim, observamos 25 principalmente a partir dos anos 90, uma intensa transformação no perfil das famílias que se acentuam cada vez mais. As inovações tecnológicas propiciaram os anticoncepcionais, mas também a fertilização e a inseminação, permitindo maior autonomia sobre o melhor momento e a possibilidade ou não da maternidade, separando sexualidade de reprodução, mas infelizmente “...não logram dissociar a noção de família da “natureza biológica do ser humano”” (Sarti, 2007, p. 23). A formação subjetiva dos sujeitos também é afetada pela economia, na medida em que a distribuição da sociedade e do trabalho se baseia em critérios sexistas, classistas, machistas (CARLOTO, s.n), e étnicos. Deste modo, os gêneros se formam através da relação com o outro, com o todo, não apenas fisicamente, mas de acordo com seu contexto histórico, cultural e social em uma rede que articula inclusive os elos de opressão: gênero, classe e etnia. Esta opressão está fortemente representada pela forma através da qual o gênero se insere no mercado, com a divisão sexual e assimétrica do trabalho, mas também na divisão de tarefas deste que se identificam com processos sociais e práticas societárias mais excludentes e que funcionam também como formas de identificação social. Sabendo que a família não é a priori o lugar da felicidade (Mioto, 1997, 117), além dos adoecimentos observados neste contexto, podemos compreender porque nem sempre os sujeitos se desenvolvem livremente em família, possuindo liberdade de expressão e formação subjetiva de modo sadio. É também no interior da família que se observam os tipos mais cruéis de violência e violação de direitos, neste aspecto, a violência de gênero passa muitas vezes despercebida pelos sujeitos, pois se naturaliza nas relações, a ponto de ser reproduzida pelo próprio indivíduo por ela afetado. As mulheres se sobrecarregam com o cuidado dos filhos, trabalho doméstico e laborativo, enquanto que a seus parceiros a única responsabilidade socialmente exigida é o trabalho. Mas o que não se percebe, é que estes homens que se desresponsabilizam com o cuidado de seus filhos, divisão de tarefas domésticas e que ainda por cima crêem que estas sejam tarefas femininas foram educados desta forma. Porém, é preciso cuidar dos filhos, e se os companheiros não se incumbem desta tarefa, as mães acabam por fazê-la, se tornando, neste ponto de vista, as principais responsáveis pela reprodução de uma relação machista. 26 De outro modo, não sendo, em geral, os homens responsáveis pelo cuidado com os filhos, pode-se entender porque muitas vezes ao se divorciarem os casais, os homens deixem de contribuir financeira e afetivamente com os filhos, pois se desfazem na verdade, da família como um todo. Isto obriga as mulheres a desempenharem, muitas vezes, mais de uma atividade laborativa para compensarem a falta dos companheiros e não buscarem auxílio jurídico para receber pensão alimentícia para seus filhos (direito regulamentado pela Constituição Federal e pelo ECA), pois também elas podem não ter sido educadas para entender que pais e mães são igualmente responsáveis pelos filhos que venham a ter. Assim, a relação de “Gênero nos permite identificar a construção social do ser homem e ser mulher na perspectiva da desnaturalização das identidades e das desigualdades entre os sexos, é, portanto, um elemento estruturante das relações sociais” (Saffioti, 1999 e 2000, Castro, 2000; apud: CISNE & GURGEL; 1998, p. 83). Um elemento que permite a diferenciação desigual dos sujeitos, pois a igualdade é condição violada no momento do nascimento e que se reforça ao longo da vida dos sujeitos através de diferentes mecanismos. Se num primeiro momento observamos a constituição do modelo familiar burguês se disseminar em toda a sociedade, com as mulheres responsáveis por atividades do âmbito privado como educação e cuidado com os filhos e ao homem a ocupação do espaço público com desempenho de atividades laborativas e políticas, a divisão social do trabalho interfere não apenas na vida dos sujeitos, mas no modo como estes se reproduzem em sociedade e em suas formas de identificação. Esta sobrecarga feminina gera ainda, como resultado acumulativo e em longo prazo desta relação, situações de adoecimento. Atualmente, as mulheres têm sido, cada vez mais, diagnosticadas com quadros depressivos e síndromes psicológicas, como pânico, devido ao estilo de vida das grandes cidades somado ao modelo familiar com relações de gênero opressivas. Carvalho (2005) trabalha com a concepção de famílias contemporâneas como a representação privada da esfera pública, no que se refere às políticas sociais. Segundo a mesma, ambas as instâncias pretendem a proteção social de seus membros, mas de modo diferenciado, pois se o Estado garante a proteção através 27 da via do direito, a família, por outro lado se vale principalmente do afeto e da socialização. Se, nas comunidades tradicionais, a família se ocupava quase exclusivamente destas funções [a proteção de seus membros], nas comunidades contemporâneas elas são compartilhadas com o estado pelas políticas públicas. (CARVALHO, 2005; p. 267) De outro modo, o Estado tem como prioridade na família atenção à criança e a mãe; o julgamento que se faz é que são as mulheres que, na maioria dos casos, permanecem com seus filhos em situações de dificuldade. Mas a pergunta que se mantém é porque as mães e não os pais? Esta análise se propõe a demonstrar que as mulheres foram criadas/condicionadas a isto, diferentemente dos homens, não é uma condição de abandono, mas basicamente, uma conformação histórica da identidade social de pai e mãe. Ambas as instâncias, família e Estado (no que se refere às políticas sociais), funcionam como normatizadoras, ou seja, regulam direitos, liberdade, impõem regras e costumes, em diferentes esferas, mas igualmente se propondo ao condicionamento e “teoricamente” protegendo seus membros. Segundo Carvalho (2005) se nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial a exigência de um Estado de Bem Estar Social que atendesse às necessidades e reivindicações dos sujeitos, teve como foco o indivíduo portador de direitos, a crise econômica das décadas de 70 e 80 obrigou um retorno ao enfoque da família nas políticas públicas, “... a família volta a ser pensada como coresponsável pelo desenvolvimento dos cidadãos.” (CARVALHO, 2005, p. 267), pois além de funcionarem como âmbito privado do Estado, se configuram como ambientes de proteção, regulação, expressão e socialização. Esta política, na verdade, é uma forma de desresponsabilização do Estado com atenção às famílias, pois o chamado “Estado mínino” delega maior responsabilidade à família com o cuidado de seus membros. Esta nova organização sobrecarrega principalmente os pais, e diminui a liberdade dos sujeitos, cada vez mais dependentes de políticas de assistência social para sua manutenção em sociedade. Uma vez que este cuidado não é mais função do Estado, este atua 28 apenas como auxiliador das famílias, não intervindo diretamente nas questões geradas em seu meio, mas como complemento e até mesmo “ajuda”. Deste modo, a existência de políticas sociais se constitui como mecanismos de inclusão e exclusão das mulheres tanto no mercado de trabalho quanto socialmente, pois diminuem os encargos familiares. Além disso, a participação feminina na vida política permite a transformação de bases sociais através da atenção direta à suas necessidades, o que afeta diretamente nossos referenciais simbólicos (dimensão social que não pode ser reduzida neste processo). 29 2. CONSTRUÇÂO SOCIAL DOS PAPÉIS DE PAI E MÃE NA HISTÓRIA DO BRASIL 2.1. A constituição da família no processo de formação sócio-histórica do Brasil: algumas considerações O Brasil, por sua característica colonial, sofreu grande influência de sociedades externas em sua conformação sociocultural. A cultura indígena foi forçada a se juntar a valores europeus e africanos, dando lugar a um modelo miscigenado predominantemente desigual, machista e conservador. Se por um lado os valores europeus se julgavam mais civilizados, a realidade mostrou que estes se sobrepunham e se impunham com mais força, especialmente com o uso de violência. Em “O povo brasileiro”, Darcy Ribeiro aponta para a passividade das tribos indígenas brasileiras, que representaram pouca ou nenhuma resistência à ocupação portuguesa. Ludibriados com as mercadorias trocadas como escambo, ofertavam inclusive jovens moças aos brancos, que ao se relacionarem com estas, inseriam-se no sistema de cunhadismo10 e automaticamente tornavam-se parentes de toda a tribo. Esses homens tiveram facilidade em se inserir na cultura e por vezes formavam seus próprios grupos onde lideravam. Sabemos então, que os índios só se opuseram a esta dominação efetivamente quando despojados de sua liberdade, tornando-se escravos de baixo custo. Com a introdução da mão-de-obra negra perdeu-se completamente a noção de direito, pois estes eram vistos apenas como mercadorias, deixados inclusive como herança aos familiares, denominados de ”peças”. O que se estimulava era o aliciamento de mais índios trazidos dos matos ou a importação de mais negros trazidos da África, para aumentar a força de trabalho que era a fonte de produção dos lucros da metrópole. Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo o direito elementar de trabalhar para nutrir-se, vestir-se e morar. (RIBEIRO, 2003, p. 447) 10 Sistema segundo o qual, Ribeiro afirma que possibilitou a formação do povo brasileiro, como hábito de incorporar estranhos a sua cultura. 30 Como vimos, a mercantilização da vida tornou-se objeto primário na formação brasileira, onde os escravos explorados em sua força de trabalho representavam o oposto de seus “donos”, que nada faziam de esforço exceto se impor. Os colonizadores não trabalhavam, mas mantinham sua dominação através do controle sobre a vida alheia. Além disso, no início da ocupação territorial havia a falta de mulheres brancas e o isolamento dos povos, posteriormente, somou-se a estes fatos, a morte prematura das moças no momento do parto. Com isso, as escravas foram obrigadas a se tornar instrumentos sexuais de seus “donos”, e como deveria-se aumentar o número de peças, leia-se escravos, tornou-se freqüente a existência de escravos filhos de seus senhores. Os negros, por outro lado, também se inseriram na vida familiar e cultural de seus proprietários de outras formas mais representativas, como: mucamas, amas de criar, mães-pretas, irmãos-pretos e significativamente como amas de leite. Estas últimas se tornavam responsáveis não apenas pela alimentação das crianças de seus senhores, mas se ocuparam do ambiente familiar participando da criação e cuidado destas, e na maioria das vezes, segundo Freyre (2006), de modo mais zeloso e afetuoso que as verdadeiras mães consangüíneas, precoces e despreparadas para tal aos 13, 14 anos. Como observamos, esta relação valorizava uma cultura em detrimento da outra, impondo a miscigenação como alternativa e, ainda que tenha sofrido alterações e assumido especificidades ao se configurar, deixou uma forte influência e marca na sociedade brasileira, possibilitando a gestação de movimentos de contestação e resistência, mesmo que determinadas parcelas sociais tivessem pouca, ou nenhuma reflexão sobre as relações estabelecidas. Houve também, um movimento de resignificação cultural e religiosa para que estas pudessem se incorporar aos valores predominantes europeus para serem livremente veiculadas e aceitas pela sociedade. A educação referente ao gênero, historicamente, também se apresentou de modo diferenciado e separado na maioria das sociedades que tem o cristianismo 31 como referencial religioso11. É sabido que esta religião tem em Maria o principal exemplo dos atributos femininos, mas até meados do séc. XVIII, onde as mulheres desempenhavam prioritariamente o papel de reprodutoras da família e donas do lar recatadas e obedientes, havia ainda o agravante cultural, pois em toda Europa e países desta cultura dependentes, como o Brasil, este comportamento estava justificado pelo saber científico e filosófico de que as mulheres representavam o ser inferior, intelectual e fisicamente, nas relações humanas. Devido a estas influências, as mulheres tinham menor tempo de estudo e seus saberes eram orientados ao exercício e bom funcionamento do lar. Uma educação voltada ao bom casamento, segundo a sociedade católica, com uma mãe dedicada, abnegada e passiva em relação a seu marido. No Brasil, como em boa parte do mundo, as filhas eram retiradas das escolas entre 13 e 14 anos para contraírem casamento. Os meninos permaneciam por mais tempo no ensino e desenvolviam habilidades administrativas para o desempenho da vida pública, o que também auxiliava em seu perfil independente. Deste modo, as raízes da violência simbólica se estabeleceram no seio da família e cultura brasileira, oprimindo as mulheres ainda em sua formação identitária. Esta submissão compreende ainda outros meios da vida social como a linguagem e a história, perpassada no discurso do natural. O Movimento Feminista surgiu na Europa, devido aos acontecimentos históricos, políticos e científicos que permitiram o maior conhecimento sobre o corpo e sexualidade humana e que, devido a dominação burguesa, que insere precariamente as mulheres nos espaços públicos, permite ao sexo feminino uma tomada de consciência política, organizando e manifestando-se em prol da aquisição de direitos iguais, da perspectiva socialista. No Brasil, como reflexo desta mobilização, notamos significativa atuação no sentido da emancipação feminina em 1830, que assim como na Europa, constituíram uma imprensa feminina, mas com algumas participações muito mais limitadas, tendo foco na educação ainda com resquícios patriarcais de valorização do papel de mãe 12. Mas havia ainda a defesa 11 É indispensável para esta análise pontuar a influência católica e seu comportamento em relação ao papel submisso feminino neste dado momento social. 12 Sobre este assunto consultar: COSTA, Emília V. da. Patriarcalismo e patronagem: mitos sobre a mulher no 32 da independência econômica e da aquisição de direitos civis e políticos (SOIHET, 1997). As feministas, em todo mundo, configuravam a representação oposta aos valores femininos da época, e logo se tornaram alvo de ofensas que cunharam novos termos para definia-las, bem como aos homens que comungavam de seus ideais. A conquista de espaços políticos e a aquisição de alguns direitos se configuraram como grande vitória deste movimento, mas sabe-se também, que as vitórias estão condicionadas aos interesses do capital que se beneficiou com mão de obra mais barata. Por outro lado, a ocupação de novos espaços e criação de profissões, dentre elas o Serviço Social, possibilitaram a ampliação de horizontes e demonstraram socialmente a capacidade feminina de trabalho e competência administrativa, antes questionadas. Deste modo, é de forma conservadora e tardia que observamos a (re)construção de identidades sociais de gênero (originais) no Brasil, baseadas na moralidade religiosa que tolhe os sujeitos em instâncias primárias de convívio, por outra ótica, também se torna objeto de reflexão e contestação, com adesão a lutas internacionais que vislumbram a emancipação dos sujeitos, mas para isso, a cultura, no sentido de acesso a educação ainda se torna um entrave, pois tanto pode ser mecanismo de superação quanto de afirmação da ordem. Com o advento da globalização, esta relação submissa tornou-se mais intensa, para países periféricos como o Brasil, pois uma quantidade maior de economias passou a influenciar sobre nós, e além de ordens econômicas, definiram comportamentos e valores sociais que interferiram diretamente na constituição familiar e consequentemente nos papéis sociais de pai e mãe, mais especificamente, do que se espera deles em dado momento histórico. Mészáros (apud SHEROBINI 2011) argumenta que a família nuclear se constitui como o “microcosmo da reprodução” social, pois se tornou ideologicamente dominante neste sistema, sendo responsável pela reprodução e reforço de seus século XX. IN: Da monarquia à república: momentos decisivos. 33 valores. Neste contexto também, compreende que o macrocosmo corresponde ao momento predominante do capitalismo. Deste modo, sabendo que a família é o primeiro espaço de socialização humana (MIOTO, 1997) objetivamos a compreensão do modo pelo qual os valores capitalistas podem ser inseridos na formação familiar, pois compreendem parte primária do processo de social, em uma relação quase que simbiótica entre formação social e formação capitalista. De acordo com Cherobini, segundo Mészáros ainda, o Estado pode se caracterizar sob diferentes formas de acordo com o contexto social, transmutando-se pois, Por ser uma mediação constituinte indispensável da base material do referido complexo...sua função principal acaba sendo a de viabilizar, por meios diretos ou indiretos, a reprodução dessa mesma estrutura de controle hierárquica e discriminatória da qual ele é um dos elementos essenciais. Assim, o capital, nos mementos favoráveis para sua expansão, é até capaz de acolher por meio do Estado algumas das demandas sociais particulares de cada conjuntura histórica, desde que estas não modifiquem a estrutura mais íntima do “macrocosmo” do capital – ele não pode, portanto, proporcionar nada mais do que igualdade formal entre as pessoas. (CHEROBINI, 2011, p. 93. grifos do autor) Deste modo, torna-se mais compreensível o porquê de nos governos neoliberais (SADER, 2011), incluindo o Brasil13, as políticas sociais adotadas, embora propusessem uma melhora na qualidade de vida das classes mais pobres, não pudessem efetivamente possibilitar a superação de suas questões. Observando a realidade social, estes governos adquirem maior apoio e popularidade, ficando claro que a real função do Estado é a garantia da manutenção do sistema capitalista, que tem como base a exploração através do trabalho, e para isto, necessita da contradição para se manter em funcionamento, mas permite que por vezes esta contradição seja tão acirrada. 13 De modo algum negamos a efetiva melhoria das condições de vida das famílias atendidas pelas políticas sociais brasileiras, o que pretendemos, porém, é analisar o motivo pelo qual estas foram, ou puderam ser, adotadas pelo Estado e sua real viabilidade com referência à emancipação feminina e a sociedade como um todo. 34 2.2. Determinações sociais contemporâneas dos papéis de pai e mãe na sociedade brasileira. Desde os anos 90, com a modernização da sociedade brasileira, observa-se uma intensa mudança na configuração familiar que, segundo Mioto (1997), são principalmente: a redução do número de filhos; o aumento da co-habitação e da união consensual; aumento significativo de mulheres chefes de família; aumento da expectativa de vida e maior convívio entre gerações; e entre outros, o aumento de famílias recompostas, mas ainda assim predominantemente nucleares. Todas estas transformações decorrem principalmente da exigência da inclusão das mulheres no mercado de trabalho e do aumento de casamentos civis em contraposição aos religiosos, que mostram uma mudança nos costumes sociais, já em processo, relativos à religiosidade e a sexualidade, a invenção da pílula anticoncepcional, mas principalmente devido ao modelo econômico adotado pelo Estado nos anos 80 que acarretou uma intensa pauperização das famílias brasileiras. Dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE) apontam ainda para uma intensificação deste processo social. Segundo dados do Censo 2010, no que se refere às uniões entre casais observa-se um aumento na taxa de divórcio, o mais alto desde 1984, atingindo hoje o percentual de 1,8 para cada mil pessoas com vinte anos ou mais, porém, reduziu-se o número de separações a 0,5‰. Houve ainda, um aumento da taxa de casamentos que subiram 4,5% em relação a 2009, concomitantemente, os recasamentos 14 aumentaram 11,7% em relação ao ano de 2000, totalizando 18,3% das uniões registradas em cartórios. No que tange a guarda dos filhos menores é maior o índice de compartilhamento desta entre casais divorciados, que passou de 2,7% em 2000 para 5,5% no ano de 2010. Mas ainda observamos a predominância das mulheres na responsabilidade pela guarda dos filhos. Registramos em 2010 87,3% dos divórcios com a responsabilidade dos filhos delegada às mulheres. Houve ainda o aumento de dissoluções entre casais sem filhos, chegando a 40,3%. De todas as dissoluções ocorridas a maior parte se deu em casamentos com 14 Consideradas neste caso, uniões onde pelo menos um dos cônjuges já havia contraído matrimônio anteriormente. 35 média de 16 anos de duração, e os menores percentuais foram observados até o primeiro ano da união e os posteriores a 28 anos. A pesquisa observou também uma queda no percentual de divórcios com regime de comunhão universal de bens, passando de 29,9%, em 2000, para 13,9%, em 2010. A pesquisa mostrou ainda, que a partir dos 30 anos de idade, as taxas de nupcialidade para homens, em todos os grupos etários foram maiores em 2010 que em 2000, e que a partir dos 60 anos de idade, estes índices se tornam duas vezes maior entre os homens do que para o sexo feminino. Segundo a Pesquisa Nacional Amostras Domiciliares (PENAD) 2008, o índice de fecundidade feminina vem diminuindo cada vez mais, chegando a 1,95, com queda de 17,5% do número de crianças e adolescentes nos últimos 10 anos. Houve também, considerável aumento da população idosa, que representa agora 4,7% da população total. Do total de família pesquisadas, 48,9% são do tipo casal com filhos, que cada vez mais vem se reduzindo devido, principalmente, à queda da fecundidade. As famílias constituídas por casal sem filhos cresceu, passando para 16,0%, em 2007. Acentua-se ainda o índice de pessoas que vivem só, principalmente mulheres e idosos, além do aumento de famílias monoparentais com filhos, aumento da participação feminina no mercado de trabalho e aumento de famílias recompostas. Os casamentos, agora solúveis, se limitam pelo desejo de estar junto, de compartilhar e não mais a obrigação moral, permitindo, principalmente à mulher trabalhadora, maior liberdade de expressão sexual e a redefinição de seu papel na família, redefinindo, consequentemente, a relação homem/mulher. A alteração no âmbito dos casamentos acarretou também a fragilização familiar, pois se as mulheres se identificam como mães e trabalhadoras, os homens, em grande parte, não se identificam mais como pais ao se desfazerem de uma relação. Passam a se desresponsabilizar com o cuidado com os filhos, isto quando reconhecem que este é mesmo seu papel, além do afastamento causar a redução dos laços afetivos e dificuldade de identificação familiar. Por este motivo, também, é grande o número de processos nos cartórios de mães requerendo pensão 36 alimentícia aos pais de seus filhos, pois muitas vezes é necessário acionar um mecanismo que os faça reconhecer sua obrigação, neste caso a Justiça. Assim, a relação de gênero também se altera, pois a maternidade, a criação e o cuidado com os filhos deixam de ser os únicos motivos da vida feminina para se tornarem uma etapa programada, parte do processo, ou até mesmo uma opção. Em minha experiência de estágio, observei muitos casos de mães que haviam solicitado pensão alimentícia a ex-companheiros e que ao não receberem mensalmente o valor estipulado pela justiça, afirmavam que os pais realmente não pagavam pensão porque não queriam e/ou porque não era sua obrigação, além de não terem o menor interesse com o cuidado e desenvolvimento dos filhos. Estas mesmas mulheres achavam por bem que os pais destas crianças não contribuíssem com o sustento dos mesmos para evitar problemas, além de boa parte delas desconhecerem a obrigação masculina com os filhos provenientes do relacionamento. Assim, notamos uma naturalização da relação familiar no que diz respeito ao cuidado e provento dos filhos, pois principalmente em camadas mais pobres da sociedade, as mulheres têm maior responsabilidade familiar e no desempenho de tarefas do que seus companheiros. E isto é socialmente aceito e cotidianamente reafirmado por estes grupos, e por ambas as partes. Segundo Santos (2008), devido as transformações apresentadas no modelo familiar, o IBGE adotou na segunda fase do censo de 2000 uma nova definição para o termo “chefe de família”, que passou a ser “pessoa responsável”, que diz respeito ao sujeito de referência do domicílio para a pesquisa e reconhecido como tal pelos demais membros do grupo familiar. Desta forma, há uma redefinição prática da organização familiar nas últimas décadas no Brasil, em especial, como decorrência da pauperização da classe da trabalhadora, do aumento da violência, que tira a vida ou encarcera pais jovens, “chefes de família” e de conquistas das mulheres quanto ao seu “papel” na sociedade. 37 2.3. Institucionalização dos papeis de pai e mãe na sociedade brasileira. Segundo Cisne e Gurgel (CISNE; GURGEL. 1998), O feminismo teve suas primeiras expressões ainda em 1789, na França, quando as mulheres, ao reconhecerem sua condição de oprimidas, se reuniram em praça pública para reivindicar direitos de igualdade de gênero. Este movimento, embora haja especificidades de acordo com a conjuntura histórica e social, tem por base a contestação da ordem patriarcal capitalista, que se reafirma através de instituições sociais e simbólicas, como Igreja, Estado, família e valores morais, que produzem a opressão de gênero. A autora argumenta que o debate amplo dos governos continentais sobre a temática de gênero nas políticas públicas em meados dos anos 80 permitiu que no fim desta década fosse criado, (...) um conjunto de organismos de controle social e de elaboração de políticas, que passou a ser mais um espaço de participação política dos movimentos sociais e das ONGs. Estas inclusiva contavam com um grupo de “profissionais ativistas” em seu perfil técnico e de organização institucional. (Alvarez, 1998; apud: CISNE; GURGEL, p. 75, 1998). Os “profissionais ativistas” possibilitavam uma maior atenção às demandas destes movimentos uma vez que tinham participação direta nos mesmos, e conheciam a realidade social dos sujeitos que as pleiteavam, atendendo ao papel de participação da sociedade civil que propunham os governos da época, e propiciando uma atualização de suas demandas e questionamentos. Porém, os representantes dos movimentos, e não ativistas, punham em cheque esta representatividade e atenção no interior das Organizações não-governamentais (ONGs) com as quais estabeleciam parecerias. Neste ponto, inclusive no Brasil, o movimento feminista se depara com a questão da autonomia, “A questão da autonomia político-organizativa do movimento se expressa na necessidade histórica de se estabelecer canais de interlocução com o estado, objetivado nas políticas públicas e ações governamentais.” (CISNE; GURGEL, 1998, p. 80), mas também no sentido de sua desvinculação com os interesses institucionais, seja das ONGs, partidários ou estatais. A categoria das 38 relações sociais de gênero, também teve grande introdução nas ONGs do país, se tornando objeto de intervenção e incorporando novas formas de concepção, em uma perspectiva de totalidade, ou “nó”. (SAFFIOTI, apud: CISNE; GURGEL, 1998) O direito ao aborto sempre foi uma forte bandeira do movimento, principalmente se observarmos o período histórico de inserção feminina no mercado de trabalho, mas outros valores como equidade de gênero, autonomia e emancipação humana também estão em sua pauta de lutas na América latina. Com a precarização das políticas sociais e o chamado fenômeno da terceirização, ocorrido nos anos 1990, a autora afirma que estas alterações também acarretaram sérias questões para a efetividade do movimento feminista. No que se refere a seu financiamento, este passa a ser veiculado pelas ONGs, e não mais diretamente pelo Estado ou organismos internacionais de fomento. Este processo põe em cheque as produções intelectuais e também sociais do Movimento feminista, pois o comprometimento das ONGs está, quase sempre, com o capital, assim, no critério de seleção de movimentos sociais contemplados com o financiamento, além das expectativas da instituição, estes precisam atender a critérios mínimos que garantam sua permanência e questionam os valores fundantes dos movimentos sociais. Deste modo, as reivindicações do Movimento feminista, atualmente, financiados por ONGs, nem sempre podem ser atendidas devido a uma demanda superior do capital, atendendo pontual, focalizada e precariamente a direitos sociais que deveriam ser garantidos pelo Estado. Outro fator relevante é o fato deste processo encobrir as reais causas dos fenômenos em um processo alienado socialmente, pois os sujeitos que participam dos movimentos e que fazem as reivindicações são excluídos do processo de atenção e desconhecem os meios e mecanismos pelos quais são atendidos, ou não, como ocorre com a maioria das políticas sociais e principalmente com a Assistência Social. Segundo Farah (FARAH, 2004, p. 64, apud: CISNE & GURGEL, 1998), o atual perfil do movimento feminista na América Latina se caracteriza pelo enfrentamento de estratégias governamentais e de políticas sociais que submetem o papel feminino à ordem de dominação patriarcal masculina, no interior das famílias, mas também como forma de inserção precarizada no mercado de trabalho, e 39 capacitação para o desempenho de funções desvalorizadas socialmente, o que favorece a manutenção do status quo. É preciso para tanto, que haja maior articulação entre as demandas do movimento feminista e as políticas sociais e de gênero, de modo que estes sujeitos possam participar ativamente dos processos sociais que atendem às questões de exploração que os afetam, ou seja, uma relação mais “orgânica” entre a vida social e políticas dos sujeitos, mas também da vida produtiva e reprodutiva. O Brasil, como uma economia tardia e dependente, tem pouco histórico de protagonismo social sofrendo, com frequência, os reflexos de sociedades “dominantes”. Assim, o próprio movimento feminista, aqui surgiu como um “braço” do movimento francês e inglês, mas assumiu características específicas e propicionou uma identificação social nacional através de suas reivindicações. Refletindo particularmente sobre a experiência brasileira,é possível observar que, nos anos 70, a opção das políticas sociais recai sobre a mulher no grupo familiar. Tratava-se de ofertar-lhe as condições e o desenvolvimento de habilidades e atitudes para melhor gerir o lar, do ponto de vista da economia doméstica e do planejamento familiar. [...] Concomitantemente, e cada vez mais, tratou-se de ofertar capacitação para o seu ingresso no mercado de trabalho. É preciso relembrar o contexto vivido nos anos 60 e 70, um tempo de boom econômico e carência de mão de obra; de emergência do movimento feminista e de libertação sexual... (CARVALHO, 2005, p. 267-268) A constituição de 1988 estabelece igualdade conjugal entre os casais e com a introdução do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), também reconhece a eqüidade entre filhos legítimos e ilegítimos, que podem ainda, se necessário, ser retirados do convívio familiar para sua segurança e proteção como sujeitos de direitos Sarti (2007). Demonstrando que a família não é mais concebida exclusivamente como espaço saudável de felicidade e formação dos sujeitos, mas que pode, e por vezes necessita, de intervenção. É preciso observar que todas estas transformações sociais referentes ao mundo feminino, eclodiram quase que simultaneamente em todo o mundo, o que demandou maior força a suas reivindicações e maior importância ao movimento feminista. No Brasil durante a década de 70, observamos um investimento das políticas sociais no papel das “mães”, tratou-se de uma capacitação para a gestão 40 doméstica, mas ao mesmo tento houve uma capacitação para o mercado de trabalho devido a necessidade de mão de obra à época. Segundo Carvalho (2007), este pode ter sido a causa da eclosão de movimento sociais compostos por mulheres, posteriormente à ditadura. De outro modo, a dimensão masculina encontra entraves a sua concepção afetiva e de cuidado na família, pois, de fato, os homens foram excluídos destes espaços. Segundo Lyra (2007) este fenômeno se apresenta de forma tão forte, que atualmente, praticamente apenas mulheres trabalham em instituições de ensino como creches e escolas. Devemos somar a isto, o imaginário de que como seres mais agressivos, os homens podem se tornar mais violentos com crianças, representando risco às mesmas e, por isto, menos indicados e contratados para este tipo de trabalho. Badinter, afirma que para que a mulher possa adquirir sua independência é preciso primeiro autonomia econômica, segundo autonomia biológica (adquirida pelos métodos contraceptivos) e finalmente o fim do casamento ou de sua concepção atual. Para ela, esta terceira dimensão é o passo decisivo que ainda falte na sociedade brasileira, para se equivaler à França15. É importante também, que se reconheçam as diferenças individuais, além das de gênero, para que se possa trabalhar com a equidade entre os sujeitos, em uma divisão sexual do trabalho, e não simplesmente com a igualdade. A equidade compreende todos os processos que tornam os sujeitos diferentes, mas os reconhece como iguais no que se refere aos direitos constitucionais, sociais e de escolha pessoal, que interferem diretamente nas condições de trabalho, se considerarmos a luta por direitos e o fim da dominação masculina. O imaginário sócio-cultural também define diferentes tarefas a serem desempenhadas pelo gênero determinando caracteríticas relacionadas ao feminino e ao masculino. Porém, a divisão sexual do trabalho, vem sofrendo diferentes 15 Aqui a autora se refere a seu país de moradia, onde observa maior liberdade feminina ao (des)estabelecer matrimônio sem prejuízo moral. Entretanto, não vislumbra, em sua concepção, outro modelo societário para os sujeitos das sociedades de hoje. 41 alterações e influências que determinam novas áreas de atuação para ambos os sexos, cada vez mais equitativas. Se a divisão sexual do trabalho vem sendo significativamente alterada, o imaginário social é uma dimensão que não se pode regular com tanta precisão, considerando-se que se define diferentemente entre os sujeitos, que se relaciona a experiência de vida individual e que se trata de um processo cultural auto-regulável, pode ser mais conservador e machista, do que se considere. Portanto, pode-se caracterizar um processo histórico, por vezes mais decisivo do que um fato em si como determinante de transformação, pois depende igualmente do momento em que se processa e igualmente da capacidade de reflexão que possibilita. Mesmo com todas estas transformações, as mulheres ainda apresentam grande sobrecarga com o cuidado familiar e dos dependentes. Esta característica, ainda que dotada de raízes históricas, apresenta-se fortemente ligada às políticas públicas, uma vez que não atendem à totalidade das demandas e precarizadas no contexto neoliberal acabam por impor, novamente, mais uma tarefa às mulheres. Se o Estado não atende às demandas de educação, saúde, assistência social, cuidado com idosos, previdência, etc., é para as mulheres que estas tarefas recaem. Neste caso, por sua condição histórica e papel social de “cuidadoras”. O tempo de trabalho despedido com o cuidado dos filhos e trabalhos domésticos ainda não é contabilizado como trabalho propriamente dito,e se somam a uma jornada média de 8 horas de serviço, acumulando e dificultando ainda mais a capacidade de se manter estudando, ou de se aprimorar na área desejada. Ainda que os homens participem mais ativamente destas atividades, não alcançam, ainda, uma divisão equitativa, mas parcial. O papel protagonista feminino na luta por uma divisão sexual do trabalho mais equitativa é uma característica indispensável para que as políticas sociais também se adaptem a este perfil, uma vez que público e privado se constituem como espaços de influência mútua, embora desigual. Sobre este assunto, Santos (SANTOS, 1998), afirma que: 42 O gênero configura papéis diferenciados e hierárquicos no mercado de trabalho, nas estruturas sociais e no seio da família, espaços nos quais a mulher desempenha tarefas consideradas mais “femininas”, decorrente de determinações socioculturais incorporadas no imaginário de ambos os gêneros. No entanto, a dicotomia femininomasculino e a rígida divisão sexual do trabalho entre mulheres e homens, tanto na esfera doméstica quanto na profissional vêem sendo modificadas nos últimos anos ao se constatar maior inserção de mulheres em espaços tradicionalmente masculinos e maior envolvimento de homens em tarefas domésticas. (SANTOS, 1998; p. 98) Neste ponto, discordo dos argumentos utilizados pela autora uma vez que é possível compreender a significativa conquista e avanço feminino, no que se refere ao trabalho doméstico e vida familiar, mas atualmente, a forma como apreendemos este processo se faz de forma equivocada, pois, o fato é que os homens que desempenham atividades domésticas necessitam sempre justificar este comportamento, o que demonstra o fato de que, socialmente, este comportamento ainda não seja aceito, é uma fuga à regra, o que se aceita é que os homens desempenhem determinadas funções femininas, mas não que ocupem estes espaços como seus. De outro modo, o desempenho de tarefas domésticas se faz muito mais por necessidade do que por compreensão de sua parcela de responsabilidade no processo, ou ainda, para “ajudar” suas parceiras, ou seja, esta é uma consciência que não foi completamente alterada embora haja representações de seu oposto. De outro modo, é necessário retomar a questão de que vivendo em uma sociedade capitalista e que, como tal, todo trabalho não remunerado é desvalorizado, isto também significa dizer que se não se desempenha atividade doméstica como profissão, estes sujeitos não possuem meios para se manter em sociedade. Deste modo, a ocupação destes espaços não pode ser feita voluntariamente, mas por questões de necessidade. Os homens ainda se casam mais cedo e mais vezes após os divórcios, do que as mulheres, este fato não pode ser simplesmente afirmado, mas a experiência histórica pode ter contribuído para mostrar que a mulher não necessita mais exclusivamente da presença masculina para se afirmar em sociedade, adquirindo maior independência, social e política, mas nos padrões atuais de capitalismo, há 43 ainda a sobrecarga de trabalho doméstico e educação dos filhos e dependentes. Os homens por outro lado, não foram adaptados a desempenharem atividades domésticas e acabam necessitando mais de uma companheira que supra esta necessidade. A associação entre maternidade e feminino, paternidade e masculino, também dificulta a aceitação das uniões homo afetivas, que necessitam sempre recorrer a mecanismos de justiça para sua aceitação. No Brasil, estas uniões só foram oficialmente aceitas neste ano, 2011, e ainda é necessário um código civil que puna atos preconceituosos para que estas uniões possam ser estabelecidas. Outra questão gerada pela associação da propriedade privada ao grupo familiar é o direito que os filhos adotivos têm enquanto herdeiros dos bens. Se entendermos que a concepção de família está mais atrelada a questão do afeto do que somente aos laços sanguineos, está é uma questão inexistente. Sabemos que a associação da consanguineidade, na sociedade capitalista, se justifica pela concentração da propriedade privada e obriga a aceitação de comportamentos contraditórios, que não garantem a sobrevivência do grupo familiar. Se o objetivo prioritário de uma sociedade for a atenção aos sujeitos e o reconhecimento de suas individualidades, este é um modelo social que não pode ser mantido como base, pois demonstra historicamente sua contradição e ineficiência. Neste sentido, a família seguindo moldes capitalistas de configuração, sem a consideração do afeto e de individualidades, está fadada ao adoecimento, seguindo muito mais a exceção do que a regra. Se a família se torna objeto de intervenção pelos motivos equivocados, fica claro também, que a questão demandada não é interna deste grupo, mas sim devida a fatores externos, sociais e econômicos de adaptação e aceitação ao novo, estranho e alheio. Para que se possa chegar a uma sociedade livre de práticas sociais de subordinação hierárquica que discriminam as mulheres em relação ao homem, é preciso pensar em uma sociedade na perspectiva da emancipação humana. Uma perspectiva igualitária, pois, segundo Cherobini (2011), o que Mészáros nos ajuda a compreender, sobre a subordinação feminina sobre o homem, é que: 44 (...) O capital, historicamente não foi o responsável por produzir esse tipo peculiar de relacionamento contraditório. Contudo, uma vez que o sistema se tornou dominante sobre o metabolismo social humano, passou a englobar tal conflito e a se servir dele para realizar seus propósitos de exploração material. Daí, a impossibilidade de, no interior do sistema do capital, as mulheres conseguiram mais do que uma igualdade meramente formal em relação aos homens e de atingirem, enfim, uma emancipação verdadeiramente digna deste nome. (CHEROBINI; 2011; p. 15-16, grifos do autor) Deste modo, percebemos que para se construir uma nova sociedade há que se mudar o modelo familiar, mas também todos os mecanismos de opressão dos sujeitos que impossibilitam a realização ampliada de liberdade social e igualdade substantiva baseados em “....um plano geral de indivíduos livremente combinados” (MÉSZÁROS, apud: CHEROBINI, 2011, p.97, grifos do autor). Isto porque, não é o capitalismo que impõe a opressão feminina, mas a propriedade privada. Esta, como já observado, é muito anterior ao capitalismo e se impõe de forma velada nas relações familiares. Ao mesmo tempo, configura-se como mecanismo indispensável à manutenção do modelo capitalista vigente, que tem como princípio a exploração do trabalho para obtenção de mais-valia, cada vez mais concentrada. Deste modo, a mudança deve ser mais profunda, atingindo não apenas os mecanismos de controle, mas todo o sistema. 2.4. A abordagem de família pelo Serviço Social: alguns elementos para reflexão O trabalho do Serviço Social com famílias tem sido muito requisitado devido aos transtornos, sofrimentos e situações de abandono que se identificam no trabalho com crianças e adolescentes segundo Mioto (2008). Este fato põe a família como foco de atenção se compreendida como locos de formação social, identitária e de proteção aos indivíduos quando constituídos em ambientes saudáveis. Mas a diversidade de propostas de intervenção sociofamiliar e de setores de aplicação (sociedade civil, Estado e organismos internacionais), tem permitido a manutenção de valores conservadores e um serviço social assistencialista, 45 destinados as classes populares na atenção de indivíduos-problema. Se torna assim, uma ação pontual que atende a conseqüência e não a causa da demanda, sem uma perspectiva de totalidade. O Estado culpabiliza os sujeitos por sua situação, mesmo que na Constituição Federal as tenha como base social de proteção especial. Assim, este possibilita um apoio, financeiro ou de serviço, quando considera as famílias incapazes de atender às suas necessidades básicas. Mas estas políticas empregadas pelo Estado podem, ainda que minimamente, garantir uma melhoria na qualidade de vida dos sujeitos, que as utilizam como estratégia de autonomia em situações contraditórias. Neste cenário atual, onde as famílias devem ser capazes de prover seus membros independentemente de suas condições objetivas e subjetivas, torna-se difícil a ruptura de valores ideológicos e de controle que pautam não só o trabalho sócioassistencial às famílias, mas opõem as questões de privacidade e proteção. Deste modo, o trabalho está pautado “...na predominância de concepções estereotipadas de família e papéis familiares, a prevalência de propostas residuais e a centralização de ações em situações-limite e não em situações cotidianas”. (MIOTO, 2008, p. 52) A mãe, sob esta análise, pode ser justificada como foco central de trabalho, pois como principal responsável pela manutenção da família como grupo estável, é entendida na concepção de estereótipo materno, podendo ser o ideal ou fator de risco. Ao analisar uma característica do trabalho profissional com famílias, Mioto (2008) discute que embora se tenha rompido com práticas assistencialistas conservadoras, no Serviço Social ainda utiliza-se a categorização de famílias entre capazes e incapazes. O uso do termo “desestruturadas” para caracterizar famílias em situação de vulnerabilidade social que necessitam da intervenção do Estado está fortemente vinculado a esta questão. Segundo a autora, não é apenas “...uma questão semântica” (MIOTO, 2008, p. 56), mas está relacionado à forma como estas famílias historicamente vem sendo compreendidas pelos Estado. Este conceito tem como prerrogativa, a idéia de que toda família possui, “naturalmente” um modelo pré-determinado de configuração, ou 46 seja, uma estrutura que as ordene. O que a autora observa é que para a maioria dos assistentes sociais que empregam este tipo de vocábulo em suas definições, estas famílias realmente não possuem uma estrutura que garanta sua permanência, justificando assim o uso da terminologia em relatos, trabalhos, pareceres, etc. Em consonância com a autora, entendo, que a definição “desestruturadas”, apesar dos elementos apontados, não abrange toda a realidade que compreende o trabalho sóciofamiliar, nem mesmo os fatores que realmente interferem em situações específicas. Deste modo, compreendo ainda, que a definição de família está para além de suas configurações estruturais, de suas formas, pois são definidas por laços afetivos (que impossibilitam uma configuração uniforme) e que, além disso, sofrem múltiplas e constantes interferências de fatores externos, principalmente econômicos, afetando, pois, sua configuração em diferentes níveis e intensidade e podendo alterar toda sua estrutura. Assim definido, por falta de melhor vocábulo, proponho a utilização do termo “desestabilizadas” para definir famílias que sofrem diferentes interferências em sua estrutura, independente de qual seja esta, que as tornam socialmente vulneráveis demandando, assim, intervenção do Estado. Acredito que este seja o termo que abranja mais fielmente a realidade com a qual estas famílias se deparam e que melhor as define para o trabalho profissional, pois não denota forma e sim um processo que pode ser temporário ou permanente. Não considera ainda, apenas uma característica específica (estrutura) do grupo familiar para classificar o todo como objeto de intervenção, alcançando maior abrangência. Outro equívoco muito cometido pelos Assistentes Sociais, segundo Mioto (2008), é realizar o trabalho com famílias partindo de nossas próprias experiências, como se todos vivenciassem a experiência familiar de um mesmo modo simplesmente por todos a possuírem, retomando uma concepção padronizada. O fato de a vida familiar fazer parte do mundo (real e/ou simbólico) de todas as pessoas e estar perpassada fortemente por valores morais, religiosos e ideológicos, tem feito com que muitas vezes se tenha a ilusão de que as discussões sobre a família estão assentadas sobre bases comuns. (MIOTO, 1997, p. 115) 47 Este, como julgamento de valor, equivocado por se basear no senso comum, aponta para uma relação que se naturaliza, até compreensivelmente, pelo fato da própria família ser passada como algo natural (embora seja cultural) aos indivíduos nesta sociedade, ainda que se configurem de modo diferenciado, pois a experiência sensível aos sujeitos, as condições materiais e seus valores as tornam singulares. É preciso relembrar que a família é uma construção cultural, uma instituição historicamente condicionada (MIOTO, 1997, p.115), e por isto mesmo dependente de valores e relações múltiplas que as configuram. Este é o grande ponto de julgamento feito pelo profissional, a estereotipação do ser pai ou ser mãe com base em suas próprias experiências ou da ideologia burguesa ocultando o caráter histórico da família e suas múltiplas configurações. É no seio familiar que os sujeitos se desenvolvem objetiva e subjetivamente, e sabendo que este nem sempre é um espaço seguro para seus membros, e que as relações sociais se naturalizam quase que involuntariamente, compreende-se porque os papéis sociais de pai e mãe não são, em sua maioria, construídos crítica e coletivamente, mas sim induzidos aos sujeitos, como comportamentos prédeterminados e como forma de serem socialmente aceitos. Assim, a família se relaciona dialeticamente com o meio ao qual se insere e, na sociedade capitalista, tendo a economia como regulador social, a família, além de tudo, tem o papel de formar, ou conformar os sujeitos nos moldes estabelecidos, de modo a reafirmar esta ordem. As mulheres não possuem como os homens os mesmos direitos de escolha e liberdade, são inúmeros os casos de divórcio, só para citar um exemplo, mas quase insignificantes os de mães que abrem mão da guarda de seus filhos, mesmo que identifiquem que este seria o mais adequado. É preciso ainda hoje cumprir certos comportamentos para que a mulher possa se afirmar em sociedade e ser reconhecida pela mesma, ainda que este comportamento vá de encontro a seus projetos pessoais. Embora judicialmente pais e mães tenham os mesmos direitos sobre a guarda e tutela de seus filhos e que ambos possam em situação de divórcio abrir mão deste direito em favor do companheiro, é ainda muito baixo o número de situações em que as mães assumam este comportamento. O que indica que socialmente, ainda se 48 reproduz o ideário de mulheres responsáveis pelo lar e pelos filhos, e a cobrança deste comportamento ocorre em grande parte delas mesmas, ainda que inseridas no mercado de trabalho, é preciso cumprir um papel social de mãe que as afasta de julgamentos. Por isto é muito mais fácil para os companheiros abrirem mão da convivência com seus filhos, o que a princípio, nunca foi sua função. Também a questão do aborto no Brasil ainda se constitui em tabu, e judicialmente condenada, entre outros motivos, por estarmos em um Estado conservador, que se supõe laico, mas que por muitas décadas foi guiado pela moralidade católica, o que nos imputa, nos dias de hoje, por exemplo, a concepção do aborto como questão moral e religiosa e não como uma escolha pessoal ou uma questão de saúde, ou mesmo cogitando as possibilidades de acesso da população aos métodos preventivos, mesmo sabendo que este é um dos maiores motivos de incidência de óbitos entre mulheres jovens. Esta concepção nega a limitação que o Estado tem em fazer com que a Assistência Social se concretize, atendendo a toda a sociedade que dela necessita, além de creches, escolas, hospitais, saneamento básico, e todo o aparato social a que os sujeitos têm direito desde sua concepção, mas não pleno acesso. Este aparato social é o que garante a qualidade de vida dos sujeitos, a manutenção no mercado de trabalho em caso de maternidade, o acesso aos métodos contraceptivos para o planejamento familiar, e principalmente a educação como mecanismo de superação de situações de opressão. Se por um lado observamos uma sobrecarga feminina ao acumular funções de âmbito público e privado, por outro lado aos homens é relegada uma função coadjuvante no cuidado com os filhos. A todo o tempo, a sociedade reforça a ideia do amor materno e a importância do contato e convívio feminino com os filhos, além de todas as cobranças com a educação dos mesmos. Não é á toa que se utilizam expressões populares como: “sua mãe não te deu educação?”, porém quando se trata de alguma infração cometida pelos filhos, é papel dos pais puni-los, daí ouvimos: “espere só até seu pai chegar em casa!”. Deste modo toda parte afetiva se vincula à mãe, enquanto que o controle e as formas de punição são características socialmente destinadas ao pai, que desempenha no grupo familiar uma representação do estado. Embora, hoje em dia, haja pais muito mais presentes na educação de seus filhos, suas atividades desempenhadas funcionam mais como apoio e não como 49 obrigação, pois estes sujeitos não foram historicamente criados para serem responsáveis por seus filhos, mas prioritariamente provedores domésticos. Por este fato, entende-se porque é muito mais fácil para um homem abandonar os cuidados com seus filhos em situações de divórcio, pois para eles, o cuidado só é sua função enquanto ocuparem o mesmo espaço de convivência. Há também uma dimensão masculina aviltante onde suas emoções são limitadas ao que a sociedade permite, o que se constitui também em uma violência contra o sujeito. Um homem, adulto, deve manter uma postura firme e se privar de emoções, que o limitam a certa parte da experiência de convívio com os filhos, principalmente a parte da diversão, brincadeira e afeto que constituem parte do desenvolvimento infantil. Mas se sua função é principalmente o provento familiar e se as mulheres encontram-se inseridas no mercado de trabalho e cada vez mais disputando igualmente cargos e funções, há na dimensão subjetiva destes homens, certo vazio no que se refere a sua função social e familiar. A mudança deve ocorrer a partir de nós mesmos, sujeitos sociais, através da educação de nossos filhos e futuras gerações. As mulheres, como categoria oprimida, também são reprodutoras desta ordem nas práticas sociais cotidianas, e como mães, podem reforçar o machismo velado na educação de seus filhos. Os meninos, quando crianças podem igualmente cuidar de seus brinquedos e demonstrarem afeto, bem como meninas podem aprender artes marciais. É preciso desatrelar a idéia de que a orientação sexual dos filhos está diretamente relacionada à sua criação, mas sua autonomia, seus valores e sua moralidade, estes sim, são cotidianamente constituídos nas relações familiares. Oprimimos nossas crianças impondo brincadeiras sexistas e depois questionamos o porquê de homens não saberem cuidar de seus filhos e mulheres não serem aptas, por exemplo, a direção. O trabalho do Serviço social com famílias deve ser analisado a partir de uma perspectiva crítica que permita a compreensão da realidade dos sujeitos sociais através de suas determinações históricas e materiais de constituição. Somente com a análise da realidade social e individual dos sujeitos atendidos, podemos observar que as famílias da classe trabalhadora tem menos condições objetivas de se desenvolver e de se adaptar a realidade na qual se inserem. Santos (2008) argumenta que neste segmento social são maiores os casos de mulheres que 50 com o nascimento dos filhos, se vêem obrigadas a abandonar o emprego temporária ou permanentemente, o que se agrava se considerarmos os índices de escolaridade e qualificação profissional, já inferiores nas classes mais pauperizadas. Por outro lado, se estas classes se tornam um lócus de desigualdade social e de gênero, dando mais nitidez às expressões da questão social, propicia a formação de ricos espaços de debate e análise. Deste modo, condições adversas podem tanto ser geradoras de conflitos quanto viabilizar novas formas de compreensão e superação de sua realidade social e a exigência de políticas que atendam aos sujeitos, políticas sociais mais equitativas. Como profissionais a serviço da classe trabalhadora, é preciso que se realize uma análise dos sujeitos sociais, mas também do grupo familiar a que pertencem que vá além da realidade apresentada e desvele suas condições históricas e materiais de formação subjetiva, chegando ao real para que, coletivamente, se possa propiciar a reformulação de políticas públicas. Sabendo que muitas vezes o trabalho profissional com famílias é orientado a se desenvolver na perspectiva do usuário-problema, segundo Mioto (1997), este modelo se limita por muitos fatores, não contemplando a realidade na qual os sujeitos se inserem, além de não compreendê-los em sua totalidade pois os excluem do contexto familiar ou, no máximo, compreendem também a família como problema. O foco desta intervenção, não é a família, mas sim a solução de um problema segmentado, pois o que chega às instituições são sujeitos isolados, mesmo que toda a família seja atendida por diferentes projetos sociais da mesma secretaria, o que é muito comum. Este fato é muito comum devido á dificuldade que a assistência, em geral, tem de comunicação de modo que interligue seus vários projetos. Isto facilita a utilização da assistência Social como mecanismo de controle social e mesmo de cooptação dos sujeitos, que só recorrem às instituições em situações-limite. Nesta perspectiva, a família como objeto de intervenção, perde seu caráter de sujeito político. É preciso analisar o trabalho profissional de modo que sua atuação não interfira negativamente no contexto familiar, julgando seus valores, mas 51 reconhecendo sua multiplicidade formacional. A própria crise no mundo do trabalho, que afeta diretamente famílias pobres e aprofunda questões de desigualdade impõe uma nova prática no trabalho do serviço social com famílias, pois novas demandas são impostas e estes grupos encontram diferentes formas de se organizarem, o que exige uma nova concepção não apenas de trabalho, mas também de família que não pode mais se restringir aos ideais conservadores da sociedade burguesa. 52 CONCLUSÃO Queridos viejos: Uma vez mais sinto sob os calcanhares as costelas de Rocinante. Retorno para a estrada com o escudo no braço. Nada de especial mudou, exceto que estou mais cônscio, meu marxismo está mais arraigado e mais cristalizado. Creio na luta armada como única solução para os povos que lutam para se libertarem e sou coerente com minhas crenças. Muitos me chamarão de aventureiro, e o sou, mas de um tipo diferente, sou daqueles que colocam a vida em jogo para demonstrar as suas verdades. É possível que esta seja definitiva. Não estou buscando por ela, mas está dentro dos cálculos lógicos das probabilidades. Se tiver que ser, então este é o meu último abraço. Amei-os muito, só que não soube mostrar o meu amor. Sou extremamente rígido em meus atos e creio que houve ocasiões em que vocês não me entenderam. Por outro lado, não era fácil entender-me (...).Agora, a força de vontade que aprimorei com o deleite de um artista levará para diante minhas pernas fracas e meus pulmões cansados. Vou conseguir Lembrem-se de vez em quando deste pequeno condottiere do século XX (...).Para vocês, um abraço grande e apertado de um recalcitrante filho pródigo. (Carta de Che Guevara à seus Pais). Como pudemos observar ao longo do trabalho, as determinações sociais de gênero são fruto das relações históricas humanas, e estas relações desde nossa formação permitem a conformação dos papéis sociais de pai e mãe. Estabelecem ainda, um comportamento pré-determinado naturalizado pelos sujeitos, tornando-se objeto de pouca reflexão. A introdução da propriedade privada nas sociedades humanas gerou a perda de direitos femininos, instituindo para isso, uma legislação que as regule e puna ainda na dimensão privada. Neste ponto observamos a supremacia masculina, pois até então os homens dependiam exclusivamente de suas companheiras para se manterem nos grupos matrimoniais. Com a associação do capitalismo esta relação desigual se intensifica e com o aumento da necessidade de mão-de-obra para a produção, temos os escravos e, finalmente, a mulher submissa aos ditames machistas, tornando-se mãe e esposa obediente, e passível até mesmo de violência por parte de seu companheiro, como direito matrimonial. 53 O feminismo e a introdução da mulher no mercado de trabalho possibilitaram a formação de uma nova consciência feminina, a partir de então as mulheres podem se observar como sujeitos de direitos. A igualdade política e o direito a não serem abusadas por seus companheiros representam uma grande conquista no sentido de igualdade, mas ainda é preciso que muito mais seja feito, pois os homens ainda se dedicam muito menos ao trabalho doméstico e a educação e cuidado com os filhos e familiares. Embora, após os anos 90, as mulheres tenham adquirido maior espaço no ambiente público, antes exclusivamente masculino, os dados ainda apontam para uma sobrecarga feminina de trabalho, salários inferiores aos dos homens em funções iguais, e a auto-imposição de comportamentos maternos para se afirmarem socialmente. O imaginário sócio-cultural representa a dimensão responsável pela produção e reprodução destes valores que aprisionam não apenas o universo feminino, mas também o masculino, uma vez que estes sujeitos foram excluídos da dimensão afetiva e de cuidado, se vendo obrigados a uma autoridade inflexível e formados historicamente para serem dominantes. Nesta sociedade a imposição institucionalizada do modelo de família, torna-se um entrave emocional, tanto para a construção dos sujeitos quanto para vida coletiva. De outro modo, é preciso retomar o fato de que no sistema capitalista patriarcal, desenvolvido, necessitamos de bens materiais para garantir nossa reprodução, e por este fato a busca por um patrimônio para deixar aos familiares se torna uma constante, como garantia, ou possibilidade de qualidade de vida. O sistema capitalista patriarcal atrela os conceitos de pai/reprodutor, mãe/reprodutora, como se fossem indissociáveis, impondo a formação de afetos, como isto fosse possível. Os sentimentos de maternidade e paternidade estão muito além do que nosso modelo sócio-econômico pode compreender, criando para si categorias de famílias desestruturadas, que fogem a seu modelo e comportamento pré-estabelecido. Os afetos não podem ser regulados, como fatores econômicos, estes laços se estabelecem de modo autônomo, diariamente na dimensão subjetiva, e, portanto, de modo diferenciado entre os sujeitos, não podendo ser impedidos por determinações 54 jurídicas. Assim, a imposição social pode inclusive afetar a formação de laços afetivos, pois desde cedo regulam emoções, vínculos e o modo como estes devem se estabelecer. Nada impede que os sujeitos tenham por seus amigos o mesmo apreço ou consideração que dedicam a seus familiares, e do mesmo modo, o simples fato de possuímos vínculos consangüíneos não nos obriga a determinado tipo de afeto. Existe uma associação forçada entre família e propriedade privada, mas que em nada comprova a associação entre afeto e bens materiais, estas duas instâncias não podem ser associadas, pois, de fato, não estão. Esta associação equivocada põe o afeto em segundo plano, bem como põe os pais, primeiramente como trabalhadores para a manutenção de seus familiares, e posteriormente, como provedores de cuidado e afeto. Ademais, a imposição de um modelo familiar imputa a parcela da sociedade que estabeleçam seus laços afetivos de forma realmente livre, gerando preconceito social aos novos padrões, que necessitam se impor para a criação de uma legislação que os proteja, como foi o caso das uniões homoafetivas no Brasil. Sabendo que esta é de fato uma construção histórica, compreendemos porque a transformação de valores arcaicos para a sociedade atual se faz de modo tão vagaroso. É preciso ainda lembrar a coexistência de valores sociais e morais divergentes que conflitam em sociedade, devido também ao maior convívio entre gerações. Portanto, é preciso mais do que uma transformação dos valores, é preciso uma transformação social ampliada que possa realmente compreender os sujeitos como iguais, mas equivalentes como sujeitos sociais em suas diferenciações, para que o ambiente familiar (ou de convivência) possa se organizar de acordo com as relações estabelecidas entre os sujeitos, tornando-se um ambiente saudável para a construção de sujeitos livres. 55 BIBLIOGRAFIA ALENCAR, Mônica Maria T. Transformações econômicas e sociais no Brasil dos anos 1990 a seu impacto no âmbito da família. In: Política social, família e juventude: uma questão de direitos. SALES, Mione Apolinário; MATOS, Maurílio Castro de; LEAL, Maria Cristina (orgs.). - 3. ed. – São Paulo : Cortez, 2008. BADINTER, E. Homem & Mulher: solidários, não solitários. Revista Claudia. (1991/ Out), pp. 82-92. BRECHT, Bertold. As tormentas. http://www.astormentas.com/brecht.htm. Acessado em: 09/12/02011 BRAVO, Maria Inês S. Prefácio. 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