A construção dos papéis sociais de pai e mãe em família

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Universidade Federal Fluminense
Pólo Universitário de Rio das Ostras – PURO
Instituto de Humanidade e Saúde
A construção dos papéis sociais de pai e mãe em
família: uma reflexão sobre a temática
contemporânea de gênero
Nayla Velberto Til
Rio das ostras
Rio das Ostras
Dezembro de 2011
Universidade Federal Fluminense
Pólo Universitário de Rio das Ostras – PURO
Instituto de Humanidades e Saúde
Departamento interdisciplinar de Rio das Ostras
Curso de Serviço Social
Nayla Velberto Til
A construção dos papéis sociais de pai e mãe em família: uma reflexão sobre a
temática contemporânea de gênero
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito
parcial para obtenção do título de Bacharel em Serviço Social,
pelo curso de Serviço Social do Pólo Universitário de Rio das
Ostras – Universidade Federal Fluminense
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Raimunda P. Soares
Rio das Ostras
2011
2
Nayla Velberto Til
A construção dos papéis sociais de pai e mãe em família: uma reflexão sobre a
temática contemporânea de gênero
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção
do título de Bacharel em Serviço Social, pelo curso de Serviço Social do Pólo
Universitário de Rio das Ostras – Universidade Federal Fluminense.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Raimunda P. Soares
Monografia aprovada em __/__/__
Banca examinadora
Prof.ª Dr.ª Maria Raimunda P. Soares (UFF)
Orientadora
_______________________________________________________________
Eblin Joseph Farage
1º Examinador
Felipe Brito
2º Examinador
3
Dedicatória
À minha família e meus amigos, por todo apoio e afeto
dedicado, ao meu namorado, por sua contribuição “técnica”,
dedicação e paciência.
Aos professores, supervisora e especialmente à orientadora
Raimunda Soares, por acreditarem neste trabalho, às vezes,
mais do que eu.
Enfim, a todos, por construírem e desconstruírem comigo todo
o processo. Muito obrigada, este trabalho é nosso!
4
Epígrafe
Nada é impossível de mudar
Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceitais o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural nada deve parecer
impossível de mudar.
As tormentas, Bertold Brecht
5
Resumo
O presente trabalho se propõe à análise da construção dos papéis sociais de
pai e mãe, tendo como eixo central a família como espaço primário para formação
de identidades. Pretendemos deste modo, evidenciar os processos históricos com
os quais a sociedade se defrontou que possibilitaram neste momento, a
compreensão e conformação de sujeitos como hoje observamos e que determinam
comportamentos sociais. Faremos ainda, uma análise sobre a realidade social
abordando as concepções de identidades sociais de gênero e as formas de
apropriação destas pelo Estado sob a forma de institucionalização social.
Finalmente, confrontaremos a noção de propriedade privada no capitalismo à
formação de vínculos afetivos familiares com vistas a uma nova concepção
emancipada de sujeitos e uma nova prática de trabalho para o Serviço Social com
famílias.
Palavras-chave: papéis sociais de pai e mãe; família; identidades sociais de gênero;
propriedade privada; vínculos afetivos; Serviço Social.
6
Abstract
This paper proposes an analysis of the construction of the social roles of father and
mother, having as central axis the family as a place for primary training of identities.
We intend, in this way, to highlight the historical processes society has faced that
enabled, at this time, the understanding and conformation of subjects as we see
them today and which determine social behaviors. In addition, we will analyse the
social reality by addressing the concepts of social identities of gender and the ways
the State assumes them under institutionalization. Finally, we will contrast the notion
of private property in capitalism with the formation of emotional bonds in families,
toward a new emancipated conception of subjects and new practices in Social Work
with families.
Key words: social roles of father and mother; family; social identities of gender;
private property; emotional bonds, Social Work.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................
1.
CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS PAPÉIS DE PAI E MÃE EM
SOCIEDADE......................................................................................
1.1.
8
12
Contribuições de Engels para o entendimento da constituição
social da família.................................................................................. 12
1.2.
A família no capitalismo: base para a constituição da propriedade
privada................................................................................................ 19
1.2.1
Os
papéis
sociais
de
pai
e
mãe
no
capitalismo.........................................................................................
2.
23
CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS PAPÉIS DE PAI E MÃE NA
HISTÓRIA DO BRASIL...................................................................... 29
2.1
A constituição da família no processo de formação sócio-histórica
do Brasil: algumas considerações...................................................... 29
2.2
Determinações sociais contemporâneas dos papéis de pai e mãe
na sociedade brasileira......................................................................
2.3
Institucionalização dos papeis de pai e mãe na sociedade
brasileira.............................................................................................
2.4
34
37
A abordagem de família pelo Serviço Social: elementos para
reflexão............................................................................................... 44
CONCLUSÃO....................................................................................
52
BIBLIOGRAFIA.................................................................................. 55
8
INTRODUÇÃO
Queridos Hildita, Aleidita, Camilo, Célia e Ernesto:
Se alguma vez tiverem que ler esta carta, será porque eu não
estarei mais entre voçês. Quase não se lembraram de mim e
os mais pequenos não recordarão nada.O pai de voçês tem
sido um homem que atua, e certamente, leal a suas
convicções. Cresçam como bons revolucionários. Estudem
bastante para poder dominar as técnicas que permitem
dominar a natureza. Sobretudo, sejam sempre capazes de
sentir profundamente qualquer injustiça praticada contra
qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. Essa é a
qualidade mais linda de um revolucionário. Até sempre, meus
filhos. Espero vê-los, ainda. Um beijão e um abraço do Papai.
(Carta de Che Guevara aos filhos).
O presente trabalho se propõe a analisar a construção dos papéis sociais de
“pai” e “mãe” em família, uma vez que estes se tornam indispensáveis para a
compreensão da formação da identidade de gênero e o que isto acarreta aos
sujeitos na sociedade capitalista. Para iniciar esta análise faremos uma leitura
histórica da família, pois este é o núcleo fundamental da construção destes papéis,
refletindo tanto na individualidade quanto em instâncias mais coletivas de convívio e
intervenção social.
Partindo desta premissa, iniciaremos pela análise dos grupos no interior de
tribos mais primitivas, até se formarem as noções de monogamia e construção de
novos valores, chegando a uma transformação social mais radical, que se refere ao
modo de vida capitalista.
Sabendo que apenas a mudança do Direito não é suficiente para que se
forme uma nova concepção de sujeito, em relação à constituição familiar, nos
propomos a analisar as relações sociais que perpassam a formação dos sujeitos e
que os conformaram como tal.
Observamos que há certas características, e determinado comportamento
social pré-estabelecido, que se espera dos sujeitos e que os orientam desde seu
nascimento. As mulheres se sobrecarregam com afazeres domésticos e cuidados
9
familiares além de sua jornada de trabalho, por outro lado, os homens encontram-se
em sua função primária de provedores do lar, configurando-se uma relação desigual
desde sua gênese. Mas se a história é passível de mudança, será que esta relação
de gênero no grupo familiar sempre se estabeleceu desta forma? E quanto ao
próprio grupo familiar, seria ele fruto da transformação ou agente transformador?
Sobre estas questões guiaremos nossa análise.
Institucionalmente, a criação das categorias “pai” e “mãe”, está muito além do
grupo familiar e demanda do Estado determinado tipo de políticas sociais,
estabelecendo uma relação que se reproduz quase automaticamente, em nosso
cotidiano, de forma tal que se tornam “naturalizadas”. Estas categorias permitem
ainda uma identificação social que corresponde, também, a formas de opressão e
limites aos sujeitos em suas escolhas e liberdade.
No modo de vida capitalista existe um discurso de liberdade, tanto individual
quanto jurídica, que se limita, além das óbvias condições financeiras, pelos valores
morais e comportamentos desta sociedade, gerando uma relação baseada em
valores econômicos que se “disfarçam” no discurso social de afeto, pertença e
proteção dos sujeitos em família.
A escolha por esta temática se deu através da experiência de estágio, no
Centro Integrado de Convivência Professora Neli Aparecida Tâmara Luiz (CIC III) no
município de Rio das Ostras, onde pude observar a existência de muitas mulheres
chefes de família, e em contraposição apenas um caso de pai solteiro. Esta
observação me fez questionar sobre a real participação dos homens na educação de
seus filhos e permitiu ainda notar que havia a conformação de um papel materno
(feminino) e um paterno (masculino), e que para cada um destes havia um
comportamento esperado e funções a serem cumpridas. Havia também forte
desresponsabilização dos pais quanto ao cuidado e educação dos filhos, somado a
uma sobrecarga de trabalho feminina que, além disso, em sua maioria, encontravase precariamente inserida no mercado de trabalho, exercendo, por vezes, mais de
uma atividade laborativa.
No processo de entrevista social, notamos que, via de regra, cabia à mãe o
papel de educadora permanente assim como provedora de todos os cuidados que
10
os filhos viessem a precisar (inclusive na fase adulta), ao passo que o pai deveria
ser o provedor familiar, responsável pelo sustento e pela imposição de normas e
controle. Mas esta é uma “divisão de tarefas” imposta antes mesmo da união destes
casais, que está para além de suas escolhas. Nas situações de divórcio,
observamos também que os sujeitos não apresentam os mesmos direitos, nem as
mesmas responsabilidades sobre seus filhos. Nesta situação muitos pais
“abandonavam” as responsabilidades e convivência com os filhos e muitas mães
não se queixavam desta situação, embora reconhecessem a contradição.
Esta temática se constitui de extrema relevância por se tratar de uma das
bases de criação da sociedade em que vivemos, abordando uma realidade que está
posta e presente em todos os níveis sociais, de modo visível, embora naturaliza.
Avaliamos que existe pouco debate sobre a formação dos papéis sociais e papéis
contemporâneos de gênero no meio acadêmico de forma que venha a contribuir
para a formação profissional e análise sócio-crítica.
O objetivo é propor uma reflexão sobre esta temática, mais especificamente
sobre as práticas cotidianas que reforçam as situações de opressão, sobrecarga e
desigualdade de gênero, que são também formas de identificação social e de
pertença entre os sujeitos, que conformam “papéis sociais” como formas de controle
da sociedade sobre os mesmos.
A metodologia utilizada neste TCC se constitúi de pesquisa bibliográfica com
consulta a fontes de pesquisa como Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Por outro lado, algumas reflexões são decorrentes de minha inserção no
campo de estágio, donde resultam algumas das análises apresentadas articulando a
relação entre teoria e observação prática da realidade social.
Desta forma, o presente trabalho se divide em dois capítulos além da
introdução e conclusão. O primeiro capítulo tem uma abordagem histórico-reflexiva,
intitulado “Construção social dos papéis de pai e mãe em sociedade”, e pretende
compreender a formação destas duas categorias centrais, bem como a formação
histórica da família, utilizando, especialmente, o auxilio da obra de Friedrich Engels,
como base para estas análises.
No segundo capítulo, “Construção social dos papéis de pai e mãe na história
11
do Brasil”, faremos uma abordagem mais local e contemporânea, especificando
brevemente algumas das características da formação social brasileira que
influenciaram, positiva ou negativamente, na formação familiar como hoje a
encontramos. Abordaremos as principais características e valores aqui constituídos,
além do que acarreta aos sujeitos a conformação em dado papel social e a fuga a
esta regra. Ainda neste capítulo discutimos a “Institucionalização dos papeis de pai e
mãe” relacionados aos aspectos políticos que envolvem a formação dos sujeitos.
Destacamos a participação do Movimento feminista para a obtenção de direitos e
uma mudança de perspectiva de gênero. Abordaremos ainda, o enfoque das
políticas sociais nesta dinâmica e a institucionalização de gênero, sob o ponto de
vista da sociedade capitalista e suas instâncias de controle subjetivo.
Por fim, faremos ainda uma breve abordagem sobre o Serviço Social e suas
formas de intervenção. Pretendemos propor um debate acerca da questão de
gênero, atualmente, para que possamos rever a prática profissional, e sua utilização
que tanto pode ser vista como mecanismo de controle como também de acesso, na
perspectiva do protagonismo histórico-social.
12
1. CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS PAPÉIS DE PAI E DE MÃE EM SOCIEDADE
1.1 Contribuições de Engels para o entendimento da constituição social da
família.
O modelo social de família concebido nos moldes atuais, com as denominações
de pai, mãe, filhos, tios e avós e suas correlatas definições de parentesco, nem
sempre se apresentou desta forma, isto porque a sociedade demandou e
constantemente demanda uma nova forma de organização que se adapte tanto à
economia quanto aos próprios sujeitos que nela se inserem. Tendo como referência
o modelo familiar burguês, podemos afirmar que este serviu como um dos principais
pilares para o surgimento e manutenção desta sociedade, economicamente
capitalista, como forma de se manter a propriedade privada sob o controle de
determinada classe social. Ainda hoje, o modelo de família burguesa, monogâmica
patriarcal, é ideologicamente predominante nas sociedades ocidentais, sobretudo
nas que tem no cristianismo seu referencial de “culto religioso”, como o Brasil por
exemplo, onde segundo o IBGE, este modelo configura-se de forma predominante1.
Para entendermos o lugar histórico que a constituição das famílias teve, em
decorrência das alterações culturais surgidas, na formação da sociedade de classe,
em especial a capitalista, recorremos a leitura de “A origem da família, da
propriedade privada e do estado” de F. Engels, que através da análise da obra
Ancient Society or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery
through Barbasism to Civilization, de Lewis Morgan (1810 - 1881), apresenta
diferentes configurações familiares, analisando primeiramente tribos indígenas
presentes na América, Austrália e na civilização oriental, desde os primórdios da
civilização humana.
Como resultado desta leitura, observamos que nem sempre os laços familiares
se atrelaram aos papéis de pai e mãe como hoje os conhecemos, havia entre os
Iroqueses (América), o sistema de pairyng family, casamento facilmente dissolúvel
1
Esta análise será trabalhada aprofundadamente mais adiante, no momento, cabe observar que nas últimas
décadas, principalmente a partir dos anos 90, notamos a conformação de novos modelos familiares, com maior
participação dos membros nas despesas domésticas, maior inserção feminina no mercado de trabalho, redução
da taxa de maternidade, diminuição de casamentos e aumento de uniões consensuais e coabitações, etc.
(MIOTO, 1997).Todas as transformações estão relacionadas ao desenvolvimento da ciência, a maior autonomia
feminina, mas principalmente aos fatores econômicos e sociais.
13
por ambas as partes, onde todos os irmãos eram pais de um mesmo filho e tios dos
filhos de suas irmãs, assim como todas as irmãs, eram mães dos mesmos filhos, e
tias dos filhos de seus irmãos. Este modelo contradiz em todos os aspectos os laços
familiares efetivos dos quais nos referimos atualmente e todas as noções de família
e casamento se alteraram tanto no decorrer deste período, historicamente menos
registrado, quanto se compararmos a geração de nossos avôs com a sociedade
atual.
Morgan (apud: Engels) através da análise de sociedades mais primitivas, como
tribos indígenas, deduz que no período da barbárie, tivemos como característica
principal a domesticação e criação de animais, bem como o cultivo de plantas; na
fase superior, observamos o início da fundição do minério de ferro, o que possibilita
grande avanço de produção, o cultivo de campos para pastagens, dentre outras
atividades. O período da civilização, a partir desta análise, é marcado pela invenção
da escrita, da indústria propriamente dita e da arte.
Mas um grande avanço do trabalho de Morgan, retomado por Engels, foi analisar
que, no período primitivo, houve a existência, concomitante, da poligamia com a
poliandria, ou seja, um grupo onde mulheres e homens pertenciam mutuamente uns
aos outros, característica praticamente inexistente no reino animal que se deveu a
necessidade de manter a espécie, de acordo com as possibilidades da época, e
resultou na concepção de filhos comuns.
Este quadro foi se modificando
historicamente, por diversos fatores, até chegarmos hoje a monogamia conjugal.
A tolerância recíproca entre os machos adultos e a ausência de
ciúmes constituíam a primeira condição para se formar esses grupos
maiores e duradouros que eram os únicos em cujo seio podia ocorrer
a transformação do animal para o homem. E, de fato, que
encontramos como forma mais antiga e primitiva da família, cuja
existência possamos comprovar irrefutavelmente pela história e que
ainda hoje podemos estudar em certos lugares? É o casamento
grupal, forma em que os grupos inteiros de homens e grupos inteiros
de mulheres se possuem mutuamente, deixando bem pouca margem
para os ciúmes. (ENGELS, s.n, p. 50).
Segundo Engels, imediatamente após esta fase, passamos para o que
Morgam denomina de família consangüínea, fase primitiva em que as determinações
14
de parentesco sofrem uma significativa alteração que permite maior avanço à
sociedade na época. Neste modelo, a família se relaciona entre gerações, todos os
pais da primeira geração são casados entre si, assim como seus filhos, são irmãos
e, conseqüentemente, maridos e esposas e os filhos destes, netos da primeira
geração, são também, respectivamente, casados uns com os outros.
A próxima evolução2 seria o advento da família Punaluana, onde determinado
grupo de homens pertencia a determinado grupo de mulheres, o grande marco desta
formação representa a exclusão dos irmãos nos relacionamentos. Segundo Engels,
esta transformação foi ocorrendo gradativamente e é ainda mais significativa, tanto
do ponto de vista da evolução, quanto do desenvolvimento social.
Outra característica importante da família Punaluana3 é o fato de que dela
decorre a formação da gens familiar, pois, de fato, somente a descendência materna
era certa até então. Por este motivo, primeiro extinguiu-se as relações sexuais entre
irmãos maternos e somente mais tarde entre irmãos colaterais, o que para nossa
cultura, segundo Engels, refere-se aos primos de segundo e terceiro graus.
Possivelmente, a gens familiar determinou a ordem social da família bárbara e
causou a cisão de grupos, formando um núcleo familiar a partir de determinadas
irmãs uterinas e outro grupo a partir de seus irmãos colaterais.
A idéia, agora considerada imoral, de relações sexuais entre irmãos obriga
estes grupos à concepção de uma nova categoria familiar, a dos primos (a) e
sobrinhos (a), que não possuem nem pai, nem mãe em comum. Este,
possivelmente, é o modelo familiar que fundamenta o modelo monogâmico atual.
Assim, a gens familiar era determinada por um ancestral feminino, e entre
seus membros, parentes, não poderia haver casamento. As gens se tornam mais
sólidas, com instituição religiosa e social, e passam a diferir cada vez mais entre si,
no interior da tribo. Deste modo, não podendo mais haver relações entre pais, filhos,
irmãos maternos e colaterais (primos de segundo, terceiro e mais graus), torna-se
2
3
Segundo a perspectiva de Morgan.
Termo cunhado por Morgan, que advém de punalua, segundo Engels, do havaiano, que significa parceiro
íntimo, sócio.
15
cada vez mais difícil o casamento, exigindo, em certos casos, o rapto e compra de
esposas.
Disto deve ter resultado a família pré-monogâmica, com um casamento de
vínculos ainda frouxos onde o casal poderia, assim que desejasse, desfazer-se
desta união, embora a comunidade fizesse certa pressão para conciliar situações de
estresse. É interessante, também, que o homem poderia eventualmente praticar
poligamia ou infidelidade, mas sua companheira deveria permanecer fiel até o fim da
união, pois do contrário seria severamente punida. Neste modelo, também pertencia
às mulheres a propriedade dos filhos.
Este pode ser o caminho que possibilitou a passagem da família “préhistórica” para a monogamia, e permitiu com a exclusão de parentes consangüíneos
e posterior união entre tribos mais fortes, a “evolução da espécie”4.
Como as mulheres é que moviam a economia doméstica e também dos
grupos, é certo que delas derivava o poder e a ordem, bem como grande respeito,
pois era também delas a única descendência comprovada. Possuíam excessivo
trabalho, mas reconhecimento social correspondente.
Assim, devido à fragilidade da família pré-monogâmica e das funções
desempenhadas pelos sujeitos no interior do grupo, os homens deveriam seguir as
determinações de suas companheiras, se não desejassem ser expulsos do grupo.
Esta constatação põe por terra todos os estudos que acreditavam serem as
mulheres escravas de seus maridos, pois fica claro que neste momento histórico
eram as mulheres que desempenhavam funções mais socialmente significativas
para a economia comunal, sendo também as responsáveis pela geração dos filhos e
recebendo maior respeito e reconhecimento coletivo.
É preciso, porém, fazer uma ressalva quanto à questão do afeto, pois, se por
um lado, as observações feitas até aqui nos mostram uma organização social
completamente diferente das atuais, exige-se ainda certo cuidado de análise, ao
salientar que nenhum dado comprova que estas relações se diferem das atualmente
4
Nota-se que há, na análise de Engels, uma tendência evolutiva passível de críticas e que,
provavelmente não se aplica a outras dinâmicas da sociedade, mas nem por isto invalidam a
importância e contribuição social de sua obra.
16
estabelecidas, em questão de afeto. A análise de Engels não se deteve a este
aspecto, o que também não seria possível, mas de modo algum, podemos
considerar estes grupos sociais como desprovidos de afeto e cuidado, bem como
imorais e depravados, simplesmente por não se organizarem de acordo com os
costumes de hoje.
O processo que determina a configuração de diferentes sociedades não as
impede de igualmente cuidarem de seus membros e que os integrantes destes
grupos, ainda que obrigados a se organizarem em determinado modo, possam estar
de acordo com os costumes ou refletir sobre uma nova prática. Ou seja, mesmo que
atualmente, na reflexão sobre determinados valores da época os julgamos
equivocados, os sujeitos daquelas sociedades estavam de acordo com aqueles
valores e os reproduziam de acordo com as normas vigentes.5
Deste modo, não se pode falar em relações incestuosas, sem considerar os
determinantes históricos da época, se este pudor ainda não se havia fixado em
sociedade, nem mesmo dizer que os pais que se relacionavam com seus filhos não
possuíam pelos mesmos nenhuma forma de afeto. Antes as famílias se formavam
por grupos de maridos e esposas do que de pais e filhos, estes eram seus
referenciais, e devemos considerá-los na análise histórica destas sociedades. Por
outro lado, não podemos desconsiderar os argumentos contemporâneos que nos
fornecem a chave para entendermos estas sociedades. Estas duas questões são
consideradas nas análises que nos propomos a fazer sobre o surgimento da família,
a partir da Leitura de Engels.
A sociedade capitalista de hoje é extremamente conservadora e por isto
mesmo, nossas análises devem primar por uma abordagem histórica, entendendo
as relações estabelecidas à época a partir da dinâmica daquela sociedade. Michel
Lowy6 já demonstrou em suas análises que não existe neutralidade nas ciências
sociais, desta forma, a localização histórica das diversas sociedades e do
observador, permite um comparativo e uma análise mais precisa dos fatos, situando
5
Não estamos desconsiderando a capacidade de escolha dos indivíduos apenas chamamos atenção para as
configurações históricas de determinada sociedade.
6
O autor trabalha com a concepção de visões sociais de mundo, decorrentes da construção histórico-social e
das experiências singulares dos sujeitos como perspectivas determinantes de suas análises científicas,
explicando assim, a inexistência de neutralidade.
17
o que estes representam para as sociedades, de acordo com os meios e
possibilidades que possuíam, evitando assim, que se cometam grandes equívocos
de análises.
Um exemplo deste juízo de valor que acarretou em grande perda históricodocumental é o fato destacado pelo autor, Engels, de que uma análise mais
detalhada poderia ter sido feita se muitos dos povos do chamado “novo mundo” não
tivessem sua cultura dizimada pela colonização uma vez considerada civilizadora. O
fato real, é que os povos que aqui se fixaram, estavam em busca de uma expansão
econômica e os julgavam com base em seus valores, principalmente religiosos,
mostravam que consideravam sua cultura superior a que aqui encontraram, sem
mesmo tentar analisá-la, e este, do ponto de vista histórico e cultural, foi uma perda
inestimável.
É importante ressaltar, que nestas sociedades consideradas “selvagens”, as
mulheres representavam grande autoridade em seus clãs, bem como em todo o
grupo, pois, se por um lado desempenhavam demasiado número de funções e
trabalho, por outro, constituiam a grande autoridade destes povos de economia
doméstica comunista. Desde esta época remonta o cuidado e responsabilidade
materna para com os filhos, que uma vez desconhecendo a figura exclusiva do pai,
não poderiam, como em nossa sociedade, cobrar nada do mesmo. Esta é uma regra
do chamado direito materno nos casamentos por grupos, e este reforça o papel
feminino sobre os filhos e em sociedade.
Devemos destacar também, que todas estas transformações no interior das
tribos, não ocorreram de modo completo, trata-se de um processo histórico e por
isto, por vezes, pode-se observar a convivência concomitante de valores
divergentes, ou curtos períodos em que se presencie o culto de valores socialmente
superados como resquícios de antigos costumes.
A aquisição feminina do direito de se relacionarem sexualmente com apenas
um homem de sua escolha também se constituiu em processo, pois os sacrifícios,
principalmente religiosos, e outras formas de imposição, se tornaram cada vez
menos freqüentes. Em alguns povos, as mulheres possuíam maior liberdade sexual
até contraírem matrimônio, que por vezes eram arranjados por seus familiares.
18
Se estes exemplos não se constituem suficientemente claros, devido a
diferença de modelo social, basta salientar que foi necessário a criação de uma lei,
para que os senhores da nobreza não mais se sentissem no direito de desposar, na
noite de núpcias, as esposas de seus servos e até mesmo suas filhas e filhos, de
acordo com sua vontade, mesmo que pagassem por este ato.
Sem dúvida alguma, esta análise permite compreender que a passagem para
o casamento monogâmico só pode ter surgido através da prática das mulheres, e
exclusivamente para elas, uma vez que:
Quanto mais as relações sexuais tradicionais, com o
desenvolvimento das condições econômicas da vida e, portanto, com
o desaparecimento do antigo comunismo e ainda com a crescente
densidade populacional, perdiam seu inocente caráter primitivo e
selvagem, tanto mais humilhantes e opressivas deviam parecer
essas relações para as mulheres que, com maior premência, deviam
ansiar pelo direito à castidade, ao casamento temporário ou definitivo
com um só homem, como uma libertação. (ENGELS, s.n., p.70)
Desta forma salienta-se que a família pré-monogâmica existiu entre o estado
selvagem e a barbárie. É característica da barbárie o casamento por grupos e é
característico da fase selvagem e a monogamia da civilização.
A leitura da obra “A origem da família da propriedade privada e do Estado” se
faz em grande parte de fácil compreensão, porém por termos referenciais
contemporâneos distantes dos que se apresentavam na época de sua produção, por
vezes, torna-se complexa a definição do termo “grupos”, que ora pretendem
significar o emaranhado social de cônjuges e ora toda uma tribo. Como, de fato, não
fica clara a quantidade de grupos matrimoniais que compunham as tribos em cada
época,
muitas
vezes
torna-se
desnecessária
esta
distinção,
desde
que
compreendamos as questões referenciais de família que se pretendem articular e
construir ao longo do trabalho.
As contribuições de Engels são indispensáveis para entendermos o lugar da
família na constituição da propriedade privada e desta última na constituição da
sociedade capitalista. Deve-se notar também, como estes valores culturais e
econômicos passaram a nortear todos os níveis da formação social, através da
19
imposição de valores e, principalmente, pela determinação de instituições
normativas que garantem o status quo.
1.2. A família no capitalismo: base para a constituição da propriedade privada
Como pudemos observar no item anterior, para que se passe da família prémonogâmica a monogamia, deve-se considerar que o fator de impulso é externo, é
social, embora alguns autores acreditem ser este processo resultado de uma
evolução biológica7. Com a domesticação de animais na vida social, houve a
necessidade da utilização de práticas de controle e vigilância sobre estes bens que
garantissem uma produção abundante. O rebanho, inicialmente, pertencia a uma
gens, mas tão logo se estabeleceu a propriedade privada, segundo Engels, esta
passou a pertencer aos chefes de família.
Como o gado, e outras criações, exigiam muitos cuidados e se multiplicavam
com maior velocidade do que os membros familiares foi adotada socialmente a
figura do escravo (como hoje definimos), tendo sua mão de obra explorada e
comercializada como mercadoria.
É neste ponto que ocorre a alteração mais notável na gens familiar. Como a
descendência pelo direito materno impõe à mãe o direito aos bens e aos filhos, pois
só se reconhece esta descendência, os filhos de um proprietário, nada herdariam de
seu pai por não pertencerem a sua gens, mas sim seus sobrinhos, mãe, irmãs e
irmãos. Uma vez que a riqueza aumentava, ampliava também a importância da
figura masculina, podendo fazer valer sua vontade sobre a propriedade dos filhos, e
como no casamento pré-monogâmico, além da figura materna certa, temos também
uma figura paterna, ficou mais fácil suprimir a lei da descendência materna e impor a
paterna, bastando que os membros da gens paterna nela permanecessem,
enquanto que os membros da gens materna passassem para a paterna. Deste
modo, tivemos uma das revoluções sociais mais significativas e passivas da história
humana, que permitiram, principalmente, a concentração da propriedade privada.
7
Embora as observações sobre a formação histórica familiar de Engels sejam significativamente contributivas,
este trabalha, por vezes, com uma perspectiva de cunho evolucionista, que não será considerada em nossas
análises e que não invalida a Obra deste autor.
20
A mulher não perde apenas o direito sobre seus filhos, mas parte de sua
representatividade, pois tem que se submeter aos homens (agora detentores do
poder e da ordem, inclusive no ambiente domiciliar), e passa a ser vista
principalmente como procriadora obediente e serviçal. Institui-se assim, a
monogamia feminina. Para que todas estas formas de propriedade pudessem ser
garantidas criaram-se mecanismos de controle sobre os mesmos, principalmente o
direito. A traição feminina se torna passível de pena e somente o homem pode
romper sua relação matrimonial e exercer também o direito sobre sua companheira e
escravas, concubinas.
Deste modo, antes de se pensar nos laços sanguíneos paternos como
determinantes das gens familiares, é preciso salientar que esta é uma característica
relativamente recente que só pôde ser definida com o desenvolvimento da ciência.
Este conhecimento, mais adiante, permitiu a associação entre o ato sexual e a
procriação, causando uma transformação na forma como se configuravam as
relações familiares, pois se pôde manter os bens familiares em uma mesma gen.
Uma vez garantidos quais são os filhos decorrentes de cada relação, pode-se
também garantir que a propriedade privada se mantenha sempre sob o controle de
uma mesma família passando os bens aos filhos certos em cada geração. Ao se
legitimar e restringir a filiação, restringe-se também a divisão dos bens e,
conseqüentemente, permite a concentração da riqueza, pois no capitalismo,
propriedade privada é também sinônimo de controle dos meios de produção e
controle social. É importante lembrar que os bens só podem ser passados aos filhos
gerados dentro de uma relação reconhecida pela sociedade, ou seja, o casamento,
excluindo qualquer outro tipo de filiação, que passam a ser denominadas
“ilegítimas”, e por isto, até hoje observa-se a procura judicial pelo reconhecimento de
paternidade, o que garante, entre outras coisas, pensão e parcela na divisão de
bens.
Por meio do estudo das estruturas elementares do parentesco, LéviStrauss (1976) chegou à tese de que a família surgiu do
embricamento entre a natureza e a cultura, com a invenção do tabu
do incesto. Essa tese permitiu a supremacia da regra cultural da
afinidade sobre a regra natural da consangüinidade (MIOTO, 1997, p.
116)
21
Por
este
pensamento,
entende-se
porque
fatos
e
comportamentos
anteriormente aceitos tornam-se recrimináveis nesta sociedade e o porquê desta
mudança ser necessária, para acompanhar o desenvolvimento da sociedade e da
economia, além de mostrar como a sociedade é um fator de regulação presente em
todos os espaços, inclusive o privado, familiar e mais sensivelmente, o individual,
regulando normas e comportamentos constantemente, além de definir o que é aceito
ou social e moralmente recriminável.
Estas regulações se fazem em uma dimensão que não pode ser “atingida”,
pois se encontram, produzem e reproduzem constantemente através do imaginário
social, ou seja, a sociedade que nos reprime e que impõe comportamentos, é
construída por nós mesmos. Portanto, somos nós, os sujeitos individuais, que
devemos reconstruir o comportamento de modo que nos contemple e não reforçar
um modelo que pode ser opressor. Em determinadas camadas sociais, há maior
reprodução destes valores, pois estão diretamente relacionados à educação, que
tanto pode ser um fator de ampliação de horizontes, como veículo de manutenção
da ordem, pois ao não possuírem acesso aos mecanismos de reflexão acabam por
reproduzir valores machistas e excludentes. A falta de acesso é mecanismo limitador
de direitos que acaba naturalizando e associando estes valores ao modo de vida.
Esta não é, porém, uma característica exclusiva de camadas mais pobres da
sociedade, na verdade, por se tratar de uma dimensão social e de um mecanismo de
controle “invisível”, acaba por ser reproduzido automaticamente por todas as
camadas sociais. Por outro lado, quando este é percebido por determinado grupo
social, ou ainda contrário a seus valores, há a possibilidade do surgimento de
mecanismos de resistência que lutam por uma adaptação do modelo social vigente,
ou seja, sua superação enquanto forma opressiva.
Porém, há que se salientar o fato de que nem todas as determinações sociais
podem ser contestadas (e não precisam), pois é necessário que os sujeitos sigam
um comportamento mínimo. Uma vez tratando-se de convívio social, os indivíduos
precisam ser reconhecidos e aceitos pelo grupo a que pertencem.
Segundo Ariès (1978, apud: Mioto, 1997, p. 116), foi no período da
modernidade que observamos uma extensão do modelo familiar burguês a
22
praticamente toda a sociedade, modelo ao qual seguimos ainda nos dias atuais,
desenvolvendo a idéia de privacidade e o sentimento familiar. Neste momento, as
crianças foram retiradas da vida comum e assim perdem parte de seu cuidado, pois
até então apresentavam uma convivência coletiva, ficando sob a responsabilidade
de todos os adultos.
Deste modo, o novo modelo econômico imposto pela sociedade burguesa
impõe também, como forma de manutenção e controle dos bens, um modelo familiar
centralizado que diminui o convívio entre sujeitos de diferentes famílias e mantém
maior responsabilidade dos pais sobre a educação e cuidado com os filhos, fazendo
surgir, assim, os sentimentos de privacidade e individualidade.
É no período da industrialização e da divisão social do trabalho, por ela
desencadeada, que notamos um aprofundamento na modificação das relações
familiares. As mulheres assumem um espaço no mercado de trabalho que antes era
predominantemente masculino, mas sem deixar de se responsabilizar pelos serviços
domésticos e pelo cuidado com os filhos. O trabalho feminino assume jornadas
iguais, mas ainda com remuneração inferior a dos homens, mesmo assim, passa a
ter um papel indispensável para a manutenção familiar.
É neste momento que observamos a construção familiar nos moldes atuais,
com a interferência direta da economia na conformação social e, conseqüentemente,
na formação dos sujeitos, pois uma nova consciência passa a ser formada, bem
como as noções de público e privado8.
Mas se torna indispensável a observação de que em nenhum momento
histórico as mulheres deixaram de se constituíram como trabalhadoras, contudo,
prioritariamente desenvolviam atividades laborativas no interior de suas residências.
Aludindo às classes trabalhadoras mais pobres, estas se apropriaram de ambientes
8
Embora haja variações, as noções de público e privado encontram-se basicamente definidas como instâncias
sociais opostas e ao mesmo tempo complementares de acordo com Mioto (1997) e Carvalho (2005). O público
se refere ao espaço da vida coletiva, do trabalho e das políticas, já a concepção de privado remete a construção
de afetividades, das individualidades, e por vezes, do lar. Há autores, porém, que debatem estas instâncias
como formas de controle social através do machismo, sobrepondo o público ao privado, bem como o homem à
mulher. Sobre este assunto ler SARTI (2oo7) ”Famílias enredadas”.
23
públicos como espaços de trabalho mais cedo, como estratégia de sobrevivência ou
complemento à renda doméstica.
1.2.1. Os papéis sociais de pai e mãe no capitalismo
Ao mesmo tempo em que surge o modelo familiar burguês, como parâmetro
para a sociedade capitalista, pelos motivos acima apontados, criam-se os papeis
sociais de pai e mãe. Estas categorias enceram um outro elemento importante para
a manutenção de valores tradicionais e garantia do status quo de uma classe, a
burguesia, sobre toda a sociedade. A burguesia sai de sua fase revolucionária
(1789)
9
e entra na fase conservadora, “traindo” o proletariado, e necessitando a
partir daí da criação de elementos ideológicos que lhe garantissem o poder como tal.
Este elemento, presente ainda hoje é o machismo, que está na base das atribuições
dos papeis sociais de pai e mãe.
Os papeis de pai e mãe, desta forma, apresentam-se ideologicamente bem
definidos na sociedade capitalista, mesmo que na prática, às vezes, eles se
confundam (em especial com o surgimento de outros modelos familiares na
contemporaneidade). À mãe cabe o cuidado e educação dos filhos, bem como o
cuidado com a casa e, atualmente, nas classes trabalhadoras, a divisão das
despesas domésticas. Ao pai cabe o papel de provedor familiar e impositor da ordem
e respeito.
Nos últimos anos, as políticas de ajuste neoliberal causaram significativo
empobrecimento familiar, o que exigiu cada vez mais a inserção das mulheres no
mercado de trabalho causando, com isso, uma transformação societária sem
precedentes.
Como acentuamos acima, no contexto familiar, as mulheres cumprem o papel
de mães, o que corresponde à função social de cuidadoras permanentes, sendo
responsáveis não apenas por seus filhos, mas por todo o núcleo familiar (pais,
irmãos, sogros, marido, etc.) e ambiente doméstico, além de educadoras primárias.
A inserção destas mulheres no mercado de trabalho, faz com que estas assumam
9
Revolução Francesa, ou a chamada “Revolução Burguesa”.
24
uma postura política mais ativa no que se refere à aquisição de direitos sociais e
reconhecimento de igualdade, mas no âmbito privado, assistimos a um acúmulo de
funções, pois não se abandona, ou divide nenhuma das tarefas acima mencionadas,
suas por “obrigação”. Por outro lado, a exigência da maternidade e do casamento
continuam se constituindo como determinantes para o reconhecimento e aceitação
social destes indivíduos.
Aos homens, como dito anteriormente, cumprem a função de provedores do
lar, o que significa, principalmente, o sustento, mas também a imposição de normas
e conduta que irão servir de base para sua família. Sua função, socialmente, se
desvincula de qualquer forma de afeto, são reguladores. Contudo, as demandas do
capital influenciaram o comportamento feminino de modo que, atualmente, os pais
encontram-se deslocados de sua categoria fundamental no núcleo familiar, porque
sozinhos, dificilmente se tornam capazes de suprir as necessidades domésticas, o
que exige o acúmulo de vínculos empregatícios, quando possível.
A mão de obra feminina ainda é remunerada com salários inferiores, o que
reduz postos de trabalho masculinos, causando seu maior desemprego. Estes
sujeitos que se encontram desempregados, tem dificuldade de se impor no núcleo
familiar, pois se trata de uma questão de identidade, e como não foram educados
para manter o lar em “funcionamento”, como papel fundante, podem se encontrar
socialmente deslocados, principalmente quando suas parceiras recebem salários
mais elevados do que eles. Além disso, o homem/provedor se vê ameaçado diante
da recente autonomia conquistada por suas parceiras que, sobretudo, deixam de
depender exclusivamente do marido para mediar sua relação com a vida pública, ou
o mundo externo, Sarti (2007).
No período do pós-guerra, a introdução do modelo fordista de produção fez
com que as mulheres se inserissem mais intensamente no mercado de trabalho,
tendo maior importância no sustento familiar. Conseqüentemente, observou-se uma
alteração no modelo familiar com visível redução da taxa de natalidade.
É importante observar que, como parte de uma sociedade, a família e os
sujeitos que nela se inserem e que a partir dela se formam, são diretamente
afetados pelas transformações do mundo do trabalho. Assim, observamos
25
principalmente a partir dos anos 90, uma intensa transformação no perfil das famílias
que se acentuam cada vez mais. As inovações tecnológicas propiciaram os
anticoncepcionais, mas também a fertilização e a inseminação, permitindo maior
autonomia sobre o melhor momento e a possibilidade ou não da maternidade,
separando sexualidade de reprodução, mas infelizmente “...não logram dissociar a
noção de família da “natureza biológica do ser humano”” (Sarti, 2007, p. 23).
A formação subjetiva dos sujeitos também é afetada pela economia, na
medida em que a distribuição da sociedade e do trabalho se baseia em critérios
sexistas, classistas, machistas (CARLOTO, s.n), e étnicos. Deste modo, os gêneros
se formam através da relação com o outro, com o todo, não apenas fisicamente,
mas de acordo com seu contexto histórico, cultural e social em uma rede que
articula inclusive os elos de opressão: gênero, classe e etnia. Esta opressão está
fortemente representada pela forma através da qual o gênero se insere no mercado,
com a divisão sexual e assimétrica do trabalho, mas também na divisão de tarefas
deste que se identificam com processos sociais e práticas societárias mais
excludentes e que funcionam também como formas de identificação social.
Sabendo que a família não é a priori o lugar da felicidade (Mioto, 1997, 117),
além dos adoecimentos observados neste contexto, podemos compreender porque
nem sempre os sujeitos se desenvolvem livremente em família, possuindo liberdade
de expressão e formação subjetiva de modo sadio. É também no interior da família
que se observam os tipos mais cruéis de violência e violação de direitos, neste
aspecto, a violência de gênero passa muitas vezes despercebida pelos sujeitos, pois
se naturaliza nas relações, a ponto de ser reproduzida pelo próprio indivíduo por ela
afetado.
As mulheres se sobrecarregam com o cuidado dos filhos, trabalho doméstico
e laborativo, enquanto que a seus parceiros a única responsabilidade socialmente
exigida é o trabalho. Mas o que não se percebe, é que estes homens que se
desresponsabilizam com o cuidado de seus filhos, divisão de tarefas domésticas e
que ainda por cima crêem que estas sejam tarefas femininas foram educados desta
forma. Porém, é preciso cuidar dos filhos, e se os companheiros não se incumbem
desta tarefa, as mães acabam por fazê-la, se tornando, neste ponto de vista, as
principais responsáveis pela reprodução de uma relação machista.
26
De outro modo, não sendo, em geral, os homens responsáveis pelo cuidado
com os filhos, pode-se entender porque muitas vezes ao se divorciarem os casais,
os homens deixem de contribuir financeira e afetivamente com os filhos, pois se
desfazem na verdade, da família como um todo. Isto obriga as mulheres a
desempenharem,
muitas
vezes,
mais
de
uma
atividade
laborativa
para
compensarem a falta dos companheiros e não buscarem auxílio jurídico para
receber pensão alimentícia para seus filhos (direito regulamentado pela Constituição
Federal e pelo ECA), pois também elas podem não ter sido educadas para entender
que pais e mães são igualmente responsáveis pelos filhos que venham a ter.
Assim, a relação de “Gênero nos permite identificar a construção social do ser
homem e ser mulher na perspectiva da desnaturalização das identidades e das
desigualdades entre os sexos, é, portanto, um elemento estruturante das relações
sociais” (Saffioti, 1999 e 2000, Castro, 2000; apud: CISNE & GURGEL; 1998, p. 83).
Um elemento que permite a diferenciação desigual dos sujeitos, pois a igualdade é
condição violada no momento do nascimento e que se reforça ao longo da vida dos
sujeitos através de diferentes mecanismos.
Se num primeiro momento observamos a constituição do modelo familiar
burguês se disseminar em toda a sociedade, com as mulheres responsáveis por
atividades do âmbito privado como educação e cuidado com os filhos e ao homem a
ocupação do espaço público com desempenho de atividades laborativas e políticas,
a divisão social do trabalho interfere não apenas na vida dos sujeitos, mas no modo
como estes se reproduzem em sociedade e em suas formas de identificação.
Esta sobrecarga feminina gera ainda, como resultado acumulativo e em longo
prazo desta relação, situações de adoecimento. Atualmente, as mulheres têm sido,
cada vez mais, diagnosticadas com quadros depressivos e síndromes psicológicas,
como pânico, devido ao estilo de vida das grandes cidades somado ao modelo
familiar com relações de gênero opressivas.
Carvalho (2005) trabalha com a concepção de famílias contemporâneas como
a representação privada da esfera pública, no que se refere às políticas sociais.
Segundo a mesma, ambas as instâncias pretendem a proteção social de seus
membros, mas de modo diferenciado, pois se o Estado garante a proteção através
27
da via do direito, a família, por outro lado se vale principalmente do afeto e da
socialização.
Se, nas comunidades tradicionais, a família se ocupava quase
exclusivamente destas funções [a proteção de seus membros], nas
comunidades contemporâneas elas são compartilhadas com o
estado pelas políticas públicas. (CARVALHO, 2005; p. 267)
De outro modo, o Estado tem como prioridade na família atenção à criança e
a mãe; o julgamento que se faz é que são as mulheres que, na maioria dos casos,
permanecem com seus filhos em situações de dificuldade. Mas a pergunta que se
mantém é porque as mães e não os pais? Esta análise se propõe a demonstrar que
as mulheres foram criadas/condicionadas a isto, diferentemente dos homens, não é
uma condição de abandono, mas basicamente, uma conformação histórica da
identidade social de pai e mãe.
Ambas as instâncias, família e Estado (no que se refere às políticas sociais),
funcionam como normatizadoras, ou seja, regulam direitos, liberdade, impõem
regras e costumes, em diferentes esferas, mas igualmente se propondo ao
condicionamento e “teoricamente” protegendo seus membros.
Segundo Carvalho (2005) se nas décadas seguintes à Segunda Guerra
Mundial a exigência de um Estado de Bem Estar Social que atendesse às
necessidades e reivindicações dos sujeitos, teve como foco o indivíduo portador de
direitos, a crise econômica das décadas de 70 e 80 obrigou um retorno ao enfoque
da família nas políticas públicas, “... a família volta a ser pensada como coresponsável pelo desenvolvimento dos cidadãos.” (CARVALHO, 2005, p. 267), pois
além de funcionarem como âmbito privado do Estado, se configuram como
ambientes de proteção, regulação, expressão e socialização.
Esta política, na verdade, é uma forma de desresponsabilização do Estado
com atenção às famílias, pois o chamado “Estado mínino” delega maior
responsabilidade à família com o cuidado de seus membros. Esta nova organização
sobrecarrega principalmente os pais, e diminui a liberdade dos sujeitos, cada vez
mais dependentes de políticas de assistência social para sua manutenção em
sociedade. Uma vez que este cuidado não é mais função do Estado, este atua
28
apenas como auxiliador das famílias, não intervindo diretamente nas questões
geradas em seu meio, mas como complemento e até mesmo “ajuda”.
Deste modo, a existência de políticas sociais se constitui como mecanismos
de inclusão e exclusão das mulheres tanto no mercado de trabalho quanto
socialmente, pois diminuem os encargos familiares. Além disso, a participação
feminina na vida política permite a transformação de bases sociais através da
atenção direta à suas necessidades, o que afeta diretamente nossos referenciais
simbólicos (dimensão social que não pode ser reduzida neste processo).
29
2. CONSTRUÇÂO SOCIAL DOS PAPÉIS DE PAI E MÃE NA HISTÓRIA DO
BRASIL
2.1. A constituição da família no processo de formação sócio-histórica do
Brasil: algumas considerações
O Brasil, por sua característica colonial, sofreu grande influência de
sociedades externas em sua conformação sociocultural. A cultura indígena foi
forçada a se juntar a valores europeus e africanos, dando lugar a um modelo
miscigenado predominantemente desigual, machista e conservador. Se por um lado
os valores europeus se julgavam mais civilizados, a realidade mostrou que estes se
sobrepunham e se impunham com mais força, especialmente com o uso de
violência.
Em “O povo brasileiro”, Darcy Ribeiro aponta para a passividade das tribos
indígenas brasileiras, que representaram pouca ou nenhuma resistência à ocupação
portuguesa. Ludibriados com as mercadorias trocadas como escambo, ofertavam
inclusive jovens moças aos brancos, que ao se relacionarem com estas, inseriam-se
no sistema de cunhadismo10 e automaticamente tornavam-se parentes de toda a
tribo. Esses homens tiveram facilidade em se inserir na cultura e por vezes
formavam seus próprios grupos onde lideravam.
Sabemos então, que os índios só se opuseram a esta dominação
efetivamente quando despojados de sua liberdade, tornando-se escravos de baixo
custo. Com a introdução da mão-de-obra negra perdeu-se completamente a noção
de direito, pois estes eram vistos apenas como mercadorias, deixados inclusive
como herança aos familiares, denominados de ”peças”.
O que se estimulava era o aliciamento de mais índios trazidos
dos matos ou a importação de mais negros trazidos da África,
para aumentar a força de trabalho que era a fonte de produção
dos lucros da metrópole. Nunca houve aqui um conceito de
povo, englobando todos os trabalhadores e atribuindo-lhes
direitos. Nem mesmo o direito elementar de trabalhar para
nutrir-se, vestir-se e morar. (RIBEIRO, 2003, p. 447)
10
Sistema segundo o qual, Ribeiro afirma que possibilitou a formação do povo brasileiro, como hábito de
incorporar estranhos a sua cultura.
30
Como vimos, a mercantilização da vida tornou-se objeto primário na formação
brasileira, onde os escravos explorados em sua força de trabalho representavam o
oposto de seus “donos”, que nada faziam de esforço exceto se impor. Os
colonizadores não trabalhavam, mas mantinham sua dominação através do controle
sobre a vida alheia.
Além disso, no início da ocupação territorial havia a falta de mulheres brancas
e o isolamento dos povos, posteriormente, somou-se a estes fatos, a morte
prematura das moças no momento do parto. Com isso, as escravas foram obrigadas
a se tornar instrumentos sexuais de seus “donos”, e como deveria-se aumentar o
número de peças, leia-se escravos, tornou-se freqüente a existência de escravos
filhos de seus senhores. Os negros, por outro lado, também se inseriram na vida
familiar e cultural de seus proprietários de outras formas mais representativas, como:
mucamas, amas de criar, mães-pretas, irmãos-pretos e significativamente como
amas de leite. Estas últimas se tornavam responsáveis não apenas pela alimentação
das crianças de seus senhores, mas se ocuparam do ambiente familiar participando
da criação e cuidado destas, e na maioria das vezes, segundo Freyre (2006), de
modo mais zeloso e afetuoso que as verdadeiras mães consangüíneas, precoces e
despreparadas para tal aos 13, 14 anos.
Como observamos, esta relação valorizava uma cultura em detrimento da
outra, impondo a miscigenação como alternativa e, ainda que tenha sofrido
alterações e assumido especificidades ao se configurar, deixou uma forte influência
e marca na sociedade brasileira, possibilitando a gestação de movimentos de
contestação e resistência, mesmo que determinadas parcelas sociais tivessem
pouca, ou nenhuma reflexão sobre as relações estabelecidas. Houve também, um
movimento de resignificação cultural e religiosa para que estas pudessem se
incorporar aos valores predominantes europeus para serem livremente veiculadas e
aceitas pela sociedade.
A educação referente ao gênero, historicamente, também se apresentou de
modo diferenciado e separado na maioria das sociedades que tem o cristianismo
31
como referencial religioso11. É sabido que esta religião tem em Maria o principal
exemplo dos atributos femininos, mas até meados do séc. XVIII, onde as mulheres
desempenhavam prioritariamente o papel de reprodutoras da família e donas do lar
recatadas e obedientes, havia ainda o agravante cultural, pois em toda Europa e
países desta cultura dependentes, como o Brasil, este comportamento estava
justificado pelo saber científico e filosófico de que as mulheres representavam o ser
inferior, intelectual e fisicamente, nas relações humanas.
Devido a estas influências, as mulheres tinham menor tempo de estudo e
seus saberes eram orientados ao exercício e bom funcionamento do lar. Uma
educação voltada ao bom casamento, segundo a sociedade católica, com uma mãe
dedicada, abnegada e passiva em relação a seu marido. No Brasil, como em boa
parte do mundo, as filhas eram retiradas das escolas entre 13 e 14 anos para
contraírem casamento. Os meninos permaneciam por mais tempo no ensino e
desenvolviam habilidades administrativas para o desempenho da vida pública, o que
também auxiliava em seu perfil independente.
Deste modo, as raízes da violência simbólica se estabeleceram no seio da
família e cultura brasileira, oprimindo as mulheres ainda em sua formação identitária.
Esta submissão compreende ainda outros meios da vida social como a linguagem e
a história, perpassada no discurso do natural.
O Movimento Feminista surgiu na Europa, devido aos acontecimentos
históricos, políticos e científicos que permitiram o maior conhecimento sobre o corpo
e sexualidade humana e que, devido a dominação burguesa, que insere
precariamente as mulheres nos espaços públicos, permite ao sexo feminino uma
tomada de consciência política, organizando e manifestando-se em prol da aquisição
de direitos iguais, da perspectiva socialista. No Brasil, como reflexo desta
mobilização, notamos significativa atuação no sentido da emancipação feminina em
1830, que assim como na Europa, constituíram uma imprensa feminina, mas com
algumas participações muito mais limitadas, tendo foco na educação ainda com
resquícios patriarcais de valorização do papel de mãe 12. Mas havia ainda a defesa
11
É indispensável para esta análise pontuar a influência católica e seu comportamento em relação ao
papel submisso feminino neste dado momento social.
12
Sobre este assunto consultar: COSTA, Emília V. da. Patriarcalismo e patronagem: mitos sobre a mulher no
32
da independência econômica e da aquisição de direitos civis e políticos (SOIHET,
1997).
As feministas, em todo mundo, configuravam a representação oposta aos
valores femininos da época, e logo se tornaram alvo de ofensas que cunharam
novos termos para definia-las, bem como aos homens que comungavam de seus
ideais.
A conquista de espaços políticos e a aquisição de alguns direitos se
configuraram como grande vitória deste movimento, mas sabe-se também, que as
vitórias estão condicionadas aos interesses do capital que se beneficiou com mão de
obra mais barata. Por outro lado, a ocupação de novos espaços e criação de
profissões, dentre elas o Serviço Social, possibilitaram a ampliação de horizontes e
demonstraram socialmente a capacidade feminina de trabalho e competência
administrativa, antes questionadas.
Deste modo, é de forma conservadora e tardia que observamos a
(re)construção de identidades sociais de gênero (originais) no Brasil, baseadas na
moralidade religiosa que tolhe os sujeitos em instâncias primárias de convívio, por
outra ótica, também se torna objeto de reflexão e contestação, com adesão a lutas
internacionais que vislumbram a emancipação dos sujeitos, mas para isso, a cultura,
no sentido de acesso a educação ainda se torna um entrave, pois tanto pode ser
mecanismo de superação quanto de afirmação da ordem.
Com o advento da globalização, esta relação submissa tornou-se mais
intensa, para países periféricos como o Brasil, pois uma quantidade maior de
economias passou a influenciar sobre nós, e além de ordens econômicas, definiram
comportamentos e valores sociais que interferiram diretamente na constituição
familiar e consequentemente nos papéis sociais de pai e mãe, mais especificamente,
do que se espera deles em dado momento histórico.
Mészáros (apud SHEROBINI 2011) argumenta que a família nuclear se
constitui como o “microcosmo da reprodução” social, pois se tornou ideologicamente
dominante neste sistema, sendo responsável pela reprodução e reforço de seus
século XX. IN: Da monarquia à república: momentos decisivos.
33
valores. Neste contexto também, compreende que o macrocosmo corresponde ao
momento predominante do capitalismo. Deste modo, sabendo que a família é o
primeiro
espaço
de
socialização
humana
(MIOTO,
1997)
objetivamos
a
compreensão do modo pelo qual os valores capitalistas podem ser inseridos na
formação familiar, pois compreendem parte primária do processo de social, em uma
relação quase que simbiótica entre formação social e formação capitalista.
De acordo com Cherobini, segundo Mészáros ainda, o Estado pode se
caracterizar sob diferentes formas de acordo com o contexto social, transmutando-se
pois,
Por ser uma mediação constituinte indispensável da base material do
referido complexo...sua função principal acaba sendo a de viabilizar,
por meios diretos ou indiretos, a reprodução dessa mesma estrutura
de controle hierárquica e discriminatória da qual ele é um dos
elementos essenciais. Assim, o capital, nos mementos favoráveis
para sua expansão, é até capaz de acolher por meio do Estado
algumas das demandas sociais particulares de cada conjuntura
histórica, desde que estas não modifiquem a estrutura mais íntima do
“macrocosmo” do capital – ele não pode, portanto, proporcionar nada
mais do que igualdade formal entre as pessoas. (CHEROBINI, 2011,
p. 93. grifos do autor)
Deste modo, torna-se mais compreensível o porquê de nos governos
neoliberais (SADER, 2011), incluindo o Brasil13, as políticas sociais adotadas,
embora propusessem uma melhora na qualidade de vida das classes mais pobres,
não pudessem efetivamente possibilitar a superação de suas questões. Observando
a realidade social, estes governos adquirem maior apoio e popularidade, ficando
claro que a real função do Estado é a garantia da manutenção do sistema capitalista,
que tem como base a exploração através do trabalho, e para isto, necessita da
contradição para se manter em funcionamento, mas permite que por vezes esta
contradição seja tão acirrada.
13
De modo algum negamos a efetiva melhoria das condições de vida das famílias atendidas pelas
políticas sociais brasileiras, o que pretendemos, porém, é analisar o motivo pelo qual estas foram, ou
puderam ser, adotadas pelo Estado e sua real viabilidade com referência à emancipação feminina e a
sociedade como um todo.
34
2.2. Determinações sociais contemporâneas dos papéis de pai e mãe na
sociedade brasileira.
Desde os anos 90, com a modernização da sociedade brasileira, observa-se
uma intensa mudança na configuração familiar que, segundo Mioto (1997), são
principalmente: a redução do número de filhos; o aumento da co-habitação e da
união consensual; aumento significativo de mulheres chefes de família; aumento da
expectativa de vida e maior convívio entre gerações; e entre outros, o aumento de
famílias recompostas, mas ainda assim predominantemente nucleares. Todas estas
transformações decorrem principalmente da exigência da inclusão das mulheres no
mercado de trabalho e do aumento de casamentos civis em contraposição aos
religiosos, que mostram uma mudança nos costumes sociais, já em processo,
relativos à religiosidade e a sexualidade, a invenção da pílula anticoncepcional, mas
principalmente devido ao modelo econômico adotado pelo Estado nos anos 80 que
acarretou uma intensa pauperização das famílias brasileiras.
Dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE)
apontam ainda para uma intensificação deste processo social. Segundo dados do
Censo 2010, no que se refere às uniões entre casais observa-se um aumento na
taxa de divórcio, o mais alto desde 1984, atingindo hoje o percentual de 1,8 para
cada mil pessoas com vinte anos ou mais, porém, reduziu-se o número de
separações a 0,5‰. Houve ainda, um aumento da taxa de casamentos que subiram
4,5% em relação a 2009, concomitantemente, os recasamentos 14 aumentaram
11,7% em relação ao ano de 2000, totalizando 18,3% das uniões registradas em
cartórios.
No que tange a guarda dos filhos menores é maior o índice de
compartilhamento desta entre casais divorciados, que passou de 2,7% em 2000 para
5,5% no ano de 2010. Mas ainda observamos a predominância das mulheres na
responsabilidade pela guarda dos filhos. Registramos em 2010 87,3% dos divórcios
com a responsabilidade dos filhos delegada às mulheres.
Houve ainda o aumento de dissoluções entre casais sem filhos, chegando a
40,3%. De todas as dissoluções ocorridas a maior parte se deu em casamentos com
14
Consideradas neste caso, uniões onde pelo menos um dos cônjuges já havia contraído matrimônio
anteriormente.
35
média de 16 anos de duração, e os menores percentuais foram observados até o
primeiro ano da união e os posteriores a 28 anos.
A pesquisa observou também uma queda no percentual de divórcios com
regime de comunhão universal de bens, passando de 29,9%, em 2000, para 13,9%,
em 2010.
A pesquisa mostrou ainda, que a partir dos 30 anos de idade, as taxas de
nupcialidade para homens, em todos os grupos etários foram maiores em 2010 que
em 2000, e que a partir dos 60 anos de idade, estes índices se tornam duas vezes
maior entre os homens do que para o sexo feminino.
Segundo a Pesquisa Nacional Amostras Domiciliares (PENAD) 2008, o índice
de fecundidade feminina vem diminuindo cada vez mais, chegando a 1,95, com
queda de 17,5% do número de crianças e adolescentes nos últimos 10 anos. Houve
também, considerável aumento da população idosa, que representa agora 4,7% da
população total. Do total de família pesquisadas, 48,9% são do tipo casal com filhos,
que cada vez mais vem se reduzindo devido, principalmente, à queda da
fecundidade. As famílias constituídas por casal sem filhos cresceu, passando para
16,0%, em 2007. Acentua-se ainda o índice de pessoas que vivem só,
principalmente mulheres e idosos, além do aumento de famílias monoparentais com
filhos, aumento da participação feminina no mercado de trabalho e aumento de
famílias recompostas.
Os casamentos, agora solúveis, se limitam pelo desejo de estar junto, de
compartilhar e não mais a obrigação moral, permitindo, principalmente à mulher
trabalhadora, maior liberdade de expressão sexual e a redefinição de seu papel na
família, redefinindo, consequentemente, a relação homem/mulher.
A alteração no âmbito dos casamentos acarretou também a fragilização
familiar, pois se as mulheres se identificam como mães e trabalhadoras, os homens,
em grande parte, não se identificam mais como pais ao se desfazerem de uma
relação. Passam a se desresponsabilizar com o cuidado com os filhos, isto quando
reconhecem que este é mesmo seu papel, além do afastamento causar a redução
dos laços afetivos e dificuldade de identificação familiar. Por este motivo, também, é
grande o número de processos nos cartórios de mães requerendo pensão
36
alimentícia aos pais de seus filhos, pois muitas vezes é necessário acionar um
mecanismo que os faça reconhecer sua obrigação, neste caso a Justiça.
Assim, a relação de gênero também se altera, pois a maternidade, a criação e
o cuidado com os filhos deixam de ser os únicos motivos da vida feminina para se
tornarem uma etapa programada, parte do processo, ou até mesmo uma opção.
Em minha experiência de estágio, observei muitos casos de mães que haviam
solicitado pensão alimentícia a ex-companheiros e que ao não receberem
mensalmente o valor estipulado pela justiça, afirmavam que os pais realmente não
pagavam pensão porque não queriam e/ou porque não era sua obrigação, além de
não terem o menor interesse com o cuidado e desenvolvimento dos filhos. Estas
mesmas mulheres achavam por bem que os pais destas crianças não contribuíssem
com o sustento dos mesmos para evitar problemas, além de boa parte delas
desconhecerem
a
obrigação
masculina
com
os
filhos
provenientes
do
relacionamento.
Assim, notamos uma naturalização da relação familiar no que diz respeito ao
cuidado e provento dos filhos, pois principalmente em camadas mais pobres da
sociedade, as mulheres têm maior responsabilidade familiar e no desempenho de
tarefas do que seus companheiros. E isto é socialmente aceito e cotidianamente
reafirmado por estes grupos, e por ambas as partes.
Segundo Santos (2008), devido as transformações apresentadas no modelo
familiar, o IBGE adotou na segunda fase do censo de 2000 uma nova definição para
o termo “chefe de família”, que passou a ser “pessoa responsável”, que diz respeito
ao sujeito de referência do domicílio para a pesquisa e reconhecido como tal pelos
demais membros do grupo familiar.
Desta forma, há uma redefinição prática da organização familiar nas últimas
décadas no Brasil, em especial, como decorrência da pauperização da classe da
trabalhadora, do aumento da violência, que tira a vida ou encarcera pais jovens,
“chefes de família” e de conquistas das mulheres quanto ao seu “papel” na
sociedade.
37
2.3. Institucionalização dos papeis de pai e mãe na sociedade brasileira.
Segundo Cisne e Gurgel (CISNE; GURGEL. 1998), O feminismo teve suas
primeiras expressões ainda em 1789, na França, quando as mulheres, ao
reconhecerem sua condição de oprimidas, se reuniram em praça pública para
reivindicar direitos de igualdade de gênero. Este movimento, embora haja
especificidades de acordo com a conjuntura histórica e social, tem por base a
contestação da ordem patriarcal capitalista, que se reafirma através de instituições
sociais e simbólicas, como Igreja, Estado, família e valores morais, que produzem a
opressão de gênero.
A autora argumenta que o debate amplo dos governos continentais sobre a
temática de gênero nas políticas públicas em meados dos anos 80 permitiu que no
fim desta década fosse criado,
(...) um conjunto de organismos de controle social e de elaboração
de políticas, que passou a ser mais um espaço de participação
política dos movimentos sociais e das ONGs. Estas inclusiva
contavam com um grupo de “profissionais ativistas” em seu perfil
técnico e de organização institucional. (Alvarez, 1998; apud: CISNE;
GURGEL, p. 75, 1998).
Os “profissionais ativistas” possibilitavam uma maior atenção às demandas
destes movimentos uma vez que tinham participação direta nos mesmos, e
conheciam a realidade social dos sujeitos que as pleiteavam, atendendo ao papel de
participação da sociedade civil que propunham os governos da época, e propiciando
uma atualização de suas demandas e questionamentos. Porém, os representantes
dos movimentos, e não ativistas, punham em cheque esta representatividade e
atenção no interior das Organizações não-governamentais (ONGs) com as quais
estabeleciam parecerias.
Neste ponto, inclusive no Brasil, o movimento feminista se depara com a
questão da autonomia, “A questão da autonomia político-organizativa do movimento
se expressa na necessidade histórica de se estabelecer canais de interlocução com
o estado, objetivado nas políticas públicas e ações governamentais.” (CISNE;
GURGEL, 1998, p. 80), mas também no sentido de sua desvinculação com os
interesses institucionais, seja das ONGs, partidários ou estatais. A categoria das
38
relações sociais de gênero, também teve grande introdução nas ONGs do país, se
tornando objeto de intervenção e incorporando novas formas de concepção, em uma
perspectiva de totalidade, ou “nó”. (SAFFIOTI, apud: CISNE; GURGEL, 1998)
O direito ao aborto sempre foi uma forte bandeira do movimento,
principalmente se observarmos o período histórico de inserção feminina no mercado
de trabalho, mas outros valores como equidade de gênero, autonomia e
emancipação humana também estão em sua pauta de lutas na América latina. Com
a precarização das políticas sociais e o chamado fenômeno da terceirização,
ocorrido nos anos 1990, a autora afirma que estas alterações também acarretaram
sérias questões para a efetividade do movimento feminista. No que se refere a seu
financiamento, este passa a ser veiculado pelas ONGs, e não mais diretamente pelo
Estado ou organismos internacionais de fomento. Este processo põe em cheque as
produções intelectuais e também sociais do Movimento feminista, pois o
comprometimento das ONGs está, quase sempre, com o capital, assim, no critério
de seleção de movimentos sociais contemplados com o financiamento, além das
expectativas da instituição, estes precisam atender a critérios mínimos que garantam
sua permanência e questionam os valores fundantes dos movimentos sociais.
Deste modo, as reivindicações do Movimento feminista, atualmente,
financiados por ONGs, nem sempre podem ser atendidas devido a uma demanda
superior do capital, atendendo pontual, focalizada e precariamente a direitos sociais
que deveriam ser garantidos pelo Estado. Outro fator relevante é o fato deste
processo encobrir as reais causas dos fenômenos em um processo alienado
socialmente, pois os sujeitos que participam dos movimentos e que fazem as
reivindicações são excluídos do processo de atenção e desconhecem os meios e
mecanismos pelos quais são atendidos, ou não, como ocorre com a maioria das
políticas sociais e principalmente com a Assistência Social.
Segundo Farah (FARAH, 2004, p. 64, apud: CISNE & GURGEL, 1998), o
atual perfil do movimento feminista na América Latina se caracteriza pelo
enfrentamento de estratégias governamentais e de políticas sociais que submetem o
papel feminino à ordem de dominação patriarcal masculina, no interior das famílias,
mas também como forma de inserção precarizada no mercado de trabalho, e
39
capacitação para o desempenho de funções desvalorizadas socialmente, o que
favorece a manutenção do status quo.
É preciso para tanto, que haja maior articulação entre as demandas do
movimento feminista e as políticas sociais e de gênero, de modo que estes sujeitos
possam participar ativamente dos processos sociais que atendem às questões de
exploração que os afetam, ou seja, uma relação mais “orgânica” entre a vida social e
políticas dos sujeitos, mas também da vida produtiva e reprodutiva.
O Brasil, como uma economia tardia e dependente, tem pouco histórico de
protagonismo social sofrendo, com frequência, os reflexos de sociedades
“dominantes”. Assim, o próprio movimento feminista, aqui surgiu como um “braço” do
movimento francês e inglês, mas assumiu características específicas e propicionou
uma identificação social nacional através de suas reivindicações.
Refletindo particularmente sobre a experiência brasileira,é possível
observar que, nos anos 70, a opção das políticas sociais recai sobre
a mulher no grupo familiar. Tratava-se de ofertar-lhe as condições e o
desenvolvimento de habilidades e atitudes para melhor gerir o lar, do
ponto de vista da economia doméstica e do planejamento familiar.
[...] Concomitantemente, e cada vez mais, tratou-se de ofertar
capacitação para o seu ingresso no mercado de trabalho. É preciso
relembrar o contexto vivido nos anos 60 e 70, um tempo de boom
econômico e carência de mão de obra; de emergência do movimento
feminista e de libertação sexual... (CARVALHO, 2005, p. 267-268)
A constituição de 1988 estabelece igualdade conjugal entre os casais e com a
introdução do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), também reconhece a
eqüidade entre filhos legítimos e ilegítimos, que podem ainda, se necessário, ser
retirados do convívio familiar para sua segurança e proteção como sujeitos de
direitos Sarti (2007). Demonstrando que a família não é mais concebida
exclusivamente como espaço saudável de felicidade e formação dos sujeitos, mas
que pode, e por vezes necessita, de intervenção.
É preciso observar que todas estas transformações sociais referentes ao
mundo feminino, eclodiram quase que simultaneamente em todo o mundo, o que
demandou maior força a suas reivindicações e maior importância ao movimento
feminista. No Brasil durante a década de 70, observamos um investimento das
políticas sociais no papel das “mães”, tratou-se de uma capacitação para a gestão
40
doméstica, mas ao mesmo tento houve uma capacitação para o mercado de
trabalho devido a necessidade de mão de obra à época. Segundo Carvalho (2007),
este pode ter sido a causa da eclosão de movimento sociais compostos por
mulheres, posteriormente à ditadura.
De outro modo, a dimensão masculina encontra entraves a sua concepção
afetiva e de cuidado na família, pois, de fato, os homens foram excluídos destes
espaços. Segundo Lyra (2007) este fenômeno se apresenta de forma tão forte, que
atualmente, praticamente apenas mulheres trabalham em instituições de ensino
como creches e escolas. Devemos somar a isto, o imaginário de que como seres
mais agressivos, os homens podem se tornar mais violentos com crianças,
representando risco às mesmas e, por isto, menos indicados e contratados para este
tipo de trabalho.
Badinter, afirma que para que a mulher possa adquirir sua independência é
preciso primeiro autonomia econômica, segundo autonomia biológica (adquirida
pelos métodos contraceptivos) e finalmente o fim do casamento ou de sua
concepção atual. Para ela, esta terceira dimensão é o passo decisivo que ainda falte
na sociedade brasileira, para se equivaler à França15.
É importante também, que se reconheçam as diferenças individuais, além das
de gênero, para que se possa trabalhar com a equidade entre os sujeitos, em uma
divisão sexual do trabalho, e não simplesmente com a igualdade. A equidade
compreende todos os processos que tornam os sujeitos diferentes, mas os
reconhece como iguais no que se refere aos direitos constitucionais, sociais e de
escolha pessoal, que interferem diretamente nas condições de trabalho, se
considerarmos a luta por direitos e o fim da dominação masculina.
O imaginário sócio-cultural também define diferentes tarefas a serem
desempenhadas pelo gênero determinando caracteríticas relacionadas ao feminino
e ao masculino. Porém, a divisão sexual do trabalho, vem sofrendo diferentes
15
Aqui a autora se refere a seu país de moradia, onde observa maior liberdade feminina ao (des)estabelecer
matrimônio sem prejuízo moral. Entretanto, não vislumbra, em sua concepção, outro modelo societário para os
sujeitos das sociedades de hoje.
41
alterações e influências que determinam novas áreas de atuação para ambos os
sexos, cada vez mais equitativas.
Se a divisão sexual do trabalho vem sendo significativamente alterada, o
imaginário social é uma dimensão que não se pode regular com tanta precisão,
considerando-se que se define diferentemente entre os sujeitos, que se relaciona a
experiência de vida individual e que se trata de um processo cultural auto-regulável,
pode ser mais conservador e machista, do que se considere. Portanto, pode-se
caracterizar um processo histórico, por vezes mais decisivo do que um fato em si
como determinante de transformação, pois depende igualmente do momento em
que se processa e igualmente da capacidade de reflexão que possibilita.
Mesmo com todas estas transformações, as mulheres ainda apresentam
grande sobrecarga com o cuidado familiar e dos dependentes. Esta característica,
ainda que dotada de raízes históricas, apresenta-se fortemente ligada às políticas
públicas, uma vez que não atendem à totalidade das demandas e precarizadas no
contexto neoliberal acabam por impor, novamente, mais uma tarefa às mulheres.
Se o Estado não atende às demandas de educação, saúde, assistência
social, cuidado com idosos, previdência, etc., é para as mulheres que estas tarefas
recaem. Neste caso, por sua condição histórica e papel social de “cuidadoras”.
O tempo de trabalho despedido com o cuidado dos filhos e trabalhos
domésticos ainda não é contabilizado como trabalho propriamente dito,e se somam
a uma jornada média de 8 horas de serviço, acumulando e dificultando ainda mais a
capacidade de se manter estudando, ou de se aprimorar na área desejada. Ainda
que os homens participem mais ativamente destas atividades, não alcançam, ainda,
uma divisão equitativa, mas parcial.
O papel protagonista feminino na luta por uma divisão sexual do trabalho mais
equitativa é uma característica indispensável para que as políticas sociais também
se adaptem a este perfil, uma vez que público e privado se constituem como
espaços de influência mútua, embora desigual. Sobre este assunto, Santos
(SANTOS, 1998), afirma que:
42
O gênero configura papéis diferenciados e hierárquicos no mercado
de trabalho, nas estruturas sociais e no seio da família, espaços nos
quais a mulher desempenha tarefas consideradas mais “femininas”,
decorrente de determinações socioculturais incorporadas no
imaginário de ambos os gêneros. No entanto, a dicotomia femininomasculino e a rígida divisão sexual do trabalho entre mulheres e
homens, tanto na esfera doméstica quanto na profissional vêem
sendo modificadas nos últimos anos ao se constatar maior inserção
de mulheres em espaços tradicionalmente masculinos e maior
envolvimento de homens em tarefas domésticas. (SANTOS, 1998; p.
98)
Neste ponto, discordo dos argumentos utilizados pela autora uma vez que é
possível compreender a significativa conquista e avanço feminino, no que se refere
ao trabalho doméstico e vida familiar, mas atualmente, a forma como apreendemos
este processo se faz de forma equivocada, pois, o fato é que os homens que
desempenham
atividades
domésticas
necessitam
sempre
justificar
este
comportamento, o que demonstra o fato de que, socialmente, este comportamento
ainda não seja aceito, é uma fuga à regra, o que se aceita é que os homens
desempenhem determinadas funções femininas, mas não que ocupem estes
espaços como seus. De outro modo, o desempenho de tarefas domésticas se faz
muito mais por necessidade do que por compreensão de sua parcela de
responsabilidade no processo, ou ainda, para “ajudar” suas parceiras, ou seja, esta é
uma consciência que não foi completamente alterada embora haja representações
de seu oposto.
De outro modo, é necessário retomar a questão de que vivendo em uma
sociedade capitalista e que, como tal, todo trabalho não remunerado é
desvalorizado, isto também significa dizer que se não se desempenha atividade
doméstica como profissão, estes sujeitos não possuem meios para se manter em
sociedade. Deste modo, a ocupação destes espaços não pode ser feita
voluntariamente, mas por questões de necessidade.
Os homens ainda se casam mais cedo e mais vezes após os divórcios, do
que as mulheres, este fato não pode ser simplesmente afirmado, mas a experiência
histórica pode ter contribuído para mostrar que a mulher não necessita mais
exclusivamente da presença masculina para se afirmar em sociedade, adquirindo
maior independência, social e política, mas nos padrões atuais de capitalismo, há
43
ainda a sobrecarga de trabalho doméstico e educação dos filhos e dependentes. Os
homens por outro lado, não foram adaptados a desempenharem atividades
domésticas e acabam necessitando mais de uma companheira que supra esta
necessidade.
A associação entre maternidade e feminino, paternidade e masculino, também
dificulta a aceitação das uniões homo afetivas, que necessitam sempre recorrer a
mecanismos de justiça para sua aceitação. No Brasil, estas uniões só foram
oficialmente aceitas neste ano, 2011, e ainda é necessário um código civil que puna
atos preconceituosos para que estas uniões possam ser estabelecidas.
Outra questão gerada pela associação da propriedade privada ao grupo
familiar é o direito que os filhos adotivos têm enquanto herdeiros dos bens. Se
entendermos que a concepção de família está mais atrelada a questão do afeto do
que somente aos laços sanguineos, está é uma questão inexistente. Sabemos que a
associação da consanguineidade, na sociedade capitalista, se justifica pela
concentração da propriedade privada e obriga a aceitação de comportamentos
contraditórios, que não garantem a sobrevivência do grupo familiar.
Se o objetivo prioritário de uma sociedade for a atenção aos sujeitos e o
reconhecimento de suas individualidades, este é um modelo social que não pode ser
mantido como base, pois demonstra historicamente sua contradição e ineficiência.
Neste sentido, a família seguindo moldes capitalistas de configuração, sem a
consideração do afeto e de individualidades, está fadada ao adoecimento, seguindo
muito mais a exceção do que a regra.
Se a família se torna objeto de intervenção pelos motivos equivocados, fica
claro também, que a questão demandada não é interna deste grupo, mas sim devida
a fatores externos, sociais e econômicos de adaptação e aceitação ao novo,
estranho e alheio.
Para que se possa chegar a uma sociedade livre de práticas sociais de
subordinação hierárquica que discriminam as mulheres em relação ao homem, é
preciso pensar em uma sociedade na perspectiva da emancipação humana. Uma
perspectiva igualitária, pois, segundo Cherobini (2011), o que Mészáros nos ajuda a
compreender, sobre a subordinação feminina sobre o homem, é que:
44
(...) O capital, historicamente não foi o responsável por produzir esse
tipo peculiar de relacionamento contraditório. Contudo, uma vez que
o sistema se tornou dominante sobre o metabolismo social humano,
passou a englobar tal conflito e a se servir dele para realizar seus
propósitos de exploração material. Daí, a impossibilidade de, no
interior do sistema do capital, as mulheres conseguiram mais do que
uma igualdade meramente formal em relação aos homens e de
atingirem, enfim, uma emancipação verdadeiramente digna deste
nome. (CHEROBINI; 2011; p. 15-16, grifos do autor)
Deste modo, percebemos que para se construir uma nova sociedade há que
se mudar o modelo familiar, mas também todos os mecanismos de opressão dos
sujeitos que impossibilitam a realização ampliada de liberdade social e igualdade
substantiva baseados em “....um plano geral de indivíduos livremente combinados”
(MÉSZÁROS, apud: CHEROBINI, 2011, p.97, grifos do autor). Isto porque, não é o
capitalismo que impõe a opressão feminina, mas a propriedade privada. Esta, como
já observado, é muito anterior ao capitalismo e se impõe de forma velada nas
relações familiares. Ao mesmo tempo, configura-se como mecanismo indispensável
à manutenção do modelo capitalista vigente, que tem como princípio a exploração
do trabalho para obtenção de mais-valia, cada vez mais concentrada. Deste modo,
a mudança deve ser mais profunda, atingindo não apenas os mecanismos de
controle, mas todo o sistema.
2.4. A abordagem de família pelo Serviço Social: alguns elementos para
reflexão
O trabalho do Serviço Social com famílias tem sido muito requisitado devido
aos transtornos, sofrimentos e situações de abandono que se identificam no trabalho
com crianças e adolescentes segundo Mioto (2008). Este fato põe a família como
foco de atenção se compreendida como locos de formação social, identitária e de
proteção aos indivíduos quando constituídos em ambientes saudáveis.
Mas a diversidade de propostas de intervenção sociofamiliar e de setores de
aplicação (sociedade civil, Estado e organismos internacionais), tem permitido a
manutenção de valores conservadores e um serviço social assistencialista,
45
destinados as classes populares na atenção de indivíduos-problema. Se torna
assim, uma ação pontual que atende a conseqüência e não a causa da demanda,
sem uma perspectiva de totalidade.
O Estado culpabiliza os sujeitos por sua situação, mesmo que na Constituição
Federal as tenha como base social de proteção especial. Assim, este possibilita um
apoio, financeiro ou de serviço, quando considera as famílias incapazes de atender
às suas necessidades básicas. Mas estas políticas empregadas pelo Estado podem,
ainda que minimamente, garantir uma melhoria na qualidade de vida dos sujeitos,
que as utilizam como estratégia de autonomia em situações contraditórias.
Neste cenário atual, onde as famílias devem ser capazes de prover seus
membros independentemente de suas condições objetivas e subjetivas, torna-se
difícil a ruptura de valores ideológicos e de controle que pautam não só o trabalho
sócioassistencial às famílias, mas opõem as questões de privacidade e proteção.
Deste modo, o trabalho está pautado “...na predominância de concepções
estereotipadas de família e papéis familiares, a prevalência de propostas residuais e
a centralização de ações em situações-limite e não em situações cotidianas”.
(MIOTO, 2008, p. 52)
A mãe, sob esta análise, pode ser justificada como foco central de trabalho,
pois como principal responsável pela manutenção da família como grupo estável, é
entendida na concepção de estereótipo materno, podendo ser o ideal ou fator de
risco.
Ao analisar uma característica do trabalho profissional com famílias, Mioto
(2008) discute que embora se tenha rompido com práticas assistencialistas
conservadoras, no Serviço Social ainda utiliza-se a categorização de famílias entre
capazes e incapazes. O uso do termo “desestruturadas” para caracterizar famílias
em situação de vulnerabilidade social que necessitam da intervenção do Estado está
fortemente vinculado a esta questão.
Segundo a autora, não é apenas “...uma questão semântica” (MIOTO, 2008,
p. 56), mas está relacionado à forma como estas famílias historicamente vem sendo
compreendidas pelos Estado. Este conceito tem como prerrogativa, a idéia de que
toda família possui, “naturalmente” um modelo pré-determinado de configuração, ou
46
seja, uma estrutura que as ordene. O que a autora observa é que para a maioria dos
assistentes sociais que empregam este tipo de vocábulo em suas definições, estas
famílias realmente não possuem uma estrutura que garanta sua permanência,
justificando assim o uso da terminologia em relatos, trabalhos, pareceres, etc.
Em consonância com a autora, entendo, que a definição “desestruturadas”,
apesar dos elementos apontados, não abrange toda a realidade que compreende o
trabalho sóciofamiliar, nem mesmo os fatores que realmente interferem em situações
específicas. Deste modo, compreendo ainda, que a definição de família está para
além de suas configurações estruturais, de suas formas, pois são definidas por laços
afetivos (que impossibilitam uma configuração uniforme) e que, além disso, sofrem
múltiplas
e
constantes
interferências
de
fatores
externos,
principalmente
econômicos, afetando, pois, sua configuração em diferentes níveis e intensidade e
podendo alterar toda sua estrutura.
Assim definido, por falta de melhor vocábulo, proponho a utilização do termo
“desestabilizadas” para definir famílias que sofrem diferentes interferências em sua
estrutura, independente de qual seja esta, que as tornam socialmente vulneráveis
demandando, assim, intervenção do Estado. Acredito que este seja o termo que
abranja mais fielmente a realidade com a qual estas famílias se deparam e que
melhor as define para o trabalho profissional, pois não denota forma e sim um
processo que pode ser temporário ou permanente. Não considera ainda, apenas
uma característica específica (estrutura) do grupo familiar para classificar o todo
como objeto de intervenção, alcançando maior abrangência.
Outro equívoco muito cometido pelos Assistentes Sociais, segundo Mioto
(2008), é realizar o trabalho com famílias partindo de nossas próprias experiências,
como se todos vivenciassem a experiência familiar de um mesmo modo
simplesmente por todos a possuírem, retomando uma concepção padronizada.
O fato de a vida familiar fazer parte do mundo (real e/ou simbólico)
de todas as pessoas e estar perpassada fortemente por valores
morais, religiosos e ideológicos, tem feito com que muitas vezes se
tenha a ilusão de que as discussões sobre a família estão
assentadas sobre bases comuns. (MIOTO, 1997, p. 115)
47
Este, como julgamento de valor, equivocado por se basear no senso comum,
aponta para uma relação que se naturaliza, até compreensivelmente, pelo fato da
própria família ser passada como algo natural (embora seja cultural) aos indivíduos
nesta sociedade, ainda que se configurem de modo diferenciado, pois a experiência
sensível aos sujeitos, as condições materiais e seus valores as tornam singulares. É
preciso relembrar que a família é uma construção cultural, uma instituição
historicamente condicionada (MIOTO, 1997, p.115), e por isto mesmo dependente
de valores e relações múltiplas que as configuram. Este é o grande ponto de
julgamento feito pelo profissional, a estereotipação do ser pai ou ser mãe com base
em suas próprias experiências ou da ideologia burguesa ocultando o caráter
histórico da família e suas múltiplas configurações.
É no seio familiar que os sujeitos se desenvolvem objetiva e subjetivamente, e
sabendo que este nem sempre é um espaço seguro para seus membros, e que as
relações sociais se naturalizam quase que involuntariamente, compreende-se
porque os papéis sociais de pai e mãe não são, em sua maioria, construídos crítica e
coletivamente, mas sim induzidos aos sujeitos, como comportamentos prédeterminados e como forma de serem socialmente aceitos.
Assim, a família se relaciona dialeticamente com o meio ao qual se insere e,
na sociedade capitalista, tendo a economia como regulador social, a família, além de
tudo, tem o papel de formar, ou conformar os sujeitos nos moldes estabelecidos, de
modo a reafirmar esta ordem.
As mulheres não possuem como os homens os mesmos direitos de escolha e
liberdade, são inúmeros os casos de divórcio, só para citar um exemplo, mas quase
insignificantes os de mães que abrem mão da guarda de seus filhos, mesmo que
identifiquem que este seria o mais adequado. É preciso ainda hoje cumprir certos
comportamentos para que a mulher possa se afirmar em sociedade e ser
reconhecida pela mesma, ainda que este comportamento vá de encontro a seus
projetos pessoais.
Embora judicialmente pais e mães tenham os mesmos direitos sobre a guarda
e tutela de seus filhos e que ambos possam em situação de divórcio abrir mão deste
direito em favor do companheiro, é ainda muito baixo o número de situações em que
as mães assumam este comportamento. O que indica que socialmente, ainda se
48
reproduz o ideário de mulheres responsáveis pelo lar e pelos filhos, e a cobrança
deste comportamento ocorre em grande parte delas mesmas, ainda que inseridas no
mercado de trabalho, é preciso cumprir um papel social de mãe que as afasta de
julgamentos. Por isto é muito mais fácil para os companheiros abrirem mão da
convivência com seus filhos, o que a princípio, nunca foi sua função.
Também a questão do aborto no Brasil ainda se constitui em tabu, e
judicialmente condenada, entre outros motivos, por estarmos em um Estado
conservador, que se supõe laico, mas que por muitas décadas foi guiado pela
moralidade católica, o que nos imputa, nos dias de hoje, por exemplo, a concepção
do aborto como questão moral e religiosa e não como uma escolha pessoal ou uma
questão de saúde, ou mesmo cogitando as possibilidades de acesso da população
aos métodos preventivos, mesmo sabendo que este é um dos maiores motivos de
incidência de óbitos entre mulheres jovens. Esta concepção nega a limitação que o
Estado tem em fazer com que a Assistência Social se concretize, atendendo a toda a
sociedade que dela necessita, além de creches, escolas, hospitais, saneamento
básico, e todo o aparato social a que os sujeitos têm direito desde sua concepção,
mas não pleno acesso. Este aparato social é o que garante a qualidade de vida dos
sujeitos, a manutenção no mercado de trabalho em caso de maternidade, o acesso
aos métodos contraceptivos para o planejamento familiar, e principalmente a
educação como mecanismo de superação de situações de opressão.
Se por um lado observamos uma sobrecarga feminina ao acumular funções
de âmbito público e privado, por outro lado aos homens é relegada uma função
coadjuvante no cuidado com os filhos. A todo o tempo, a sociedade reforça a ideia
do amor materno e a importância do contato e convívio feminino com os filhos, além
de todas as cobranças com a educação dos mesmos. Não é á toa que se utilizam
expressões populares como: “sua mãe não te deu educação?”, porém quando se
trata de alguma infração cometida pelos filhos, é papel dos pais puni-los, daí
ouvimos: “espere só até seu pai chegar em casa!”. Deste modo toda parte afetiva se
vincula à mãe, enquanto que o controle e as formas de punição são características
socialmente destinadas ao pai, que desempenha no grupo familiar uma
representação do estado.
Embora, hoje em dia, haja pais muito mais presentes na educação de seus
filhos, suas atividades desempenhadas funcionam mais como apoio e não como
49
obrigação, pois estes sujeitos não foram historicamente criados para serem
responsáveis por seus filhos, mas prioritariamente provedores domésticos. Por este
fato, entende-se porque é muito mais fácil para um homem abandonar os cuidados
com seus filhos em situações de divórcio, pois para eles, o cuidado só é sua função
enquanto ocuparem o mesmo espaço de convivência.
Há também uma dimensão masculina aviltante onde suas emoções são
limitadas ao que a sociedade permite, o que se constitui também em uma violência
contra o sujeito. Um homem, adulto, deve manter uma postura firme e se privar de
emoções, que o limitam a certa parte da experiência de convívio com os filhos,
principalmente a parte da diversão, brincadeira e afeto que constituem parte do
desenvolvimento infantil. Mas se sua função é principalmente o provento familiar e
se as mulheres encontram-se inseridas no mercado de trabalho e cada vez mais
disputando igualmente cargos e funções, há na dimensão subjetiva destes homens,
certo vazio no que se refere a sua função social e familiar.
A mudança deve ocorrer a partir de nós mesmos, sujeitos sociais, através da
educação de nossos filhos e futuras gerações. As mulheres, como categoria
oprimida, também são reprodutoras desta ordem nas práticas sociais cotidianas, e
como mães, podem reforçar o machismo velado na educação de seus filhos. Os
meninos, quando crianças podem igualmente cuidar de seus brinquedos e
demonstrarem afeto, bem como meninas podem aprender artes marciais. É preciso
desatrelar a idéia de que a orientação sexual dos filhos está diretamente relacionada
à sua criação, mas sua autonomia, seus valores e sua moralidade, estes sim, são
cotidianamente constituídos nas relações familiares. Oprimimos nossas crianças
impondo brincadeiras sexistas e depois questionamos o porquê de homens não
saberem cuidar de seus filhos e mulheres não serem aptas, por exemplo, a direção.
O trabalho do Serviço social com famílias deve ser analisado a partir de uma
perspectiva crítica que permita a compreensão da realidade dos sujeitos sociais
através de suas determinações históricas e materiais de constituição.
Somente com a análise da realidade social e individual dos sujeitos atendidos,
podemos observar que as famílias da classe trabalhadora tem menos condições
objetivas de se desenvolver e de se adaptar a realidade na qual se inserem. Santos
(2008) argumenta que neste segmento social são maiores os casos de mulheres que
50
com o nascimento dos filhos, se vêem obrigadas a abandonar o emprego temporária
ou permanentemente, o que se agrava se considerarmos os índices de escolaridade
e qualificação profissional, já inferiores nas classes mais pauperizadas.
Por outro lado, se estas classes se tornam um lócus de desigualdade social e
de gênero, dando mais nitidez às expressões da questão social, propicia a formação
de ricos espaços de debate e análise. Deste modo, condições adversas podem tanto
ser geradoras de conflitos quanto viabilizar novas formas de compreensão e
superação de sua realidade social e a exigência de políticas que atendam aos
sujeitos, políticas sociais mais equitativas.
Como profissionais a serviço da classe trabalhadora, é preciso que se realize
uma análise dos sujeitos sociais, mas também do grupo familiar a que pertencem
que vá além da realidade apresentada e desvele suas condições históricas e
materiais de formação subjetiva, chegando ao real para que, coletivamente, se
possa propiciar a reformulação de políticas públicas.
Sabendo que muitas vezes o trabalho profissional com famílias é orientado a
se desenvolver na perspectiva do usuário-problema, segundo Mioto (1997), este
modelo se limita por muitos fatores, não contemplando a realidade na qual os
sujeitos se inserem, além de não compreendê-los em sua totalidade pois os excluem
do contexto familiar ou, no máximo, compreendem também a família como
problema. O foco desta intervenção, não é a família, mas sim a solução de um
problema segmentado, pois o que chega às instituições são sujeitos isolados,
mesmo que toda a família seja atendida por diferentes projetos sociais da mesma
secretaria, o que é muito comum.
Este fato é muito comum devido á dificuldade que a assistência, em geral,
tem de comunicação de modo que interligue seus vários projetos. Isto facilita a
utilização da assistência Social como mecanismo de controle social e mesmo de
cooptação dos sujeitos, que só recorrem às instituições em situações-limite. Nesta
perspectiva, a família como objeto de intervenção, perde seu caráter de sujeito
político.
É preciso analisar o trabalho profissional de modo que sua atuação não
interfira
negativamente
no
contexto
familiar,
julgando
seus
valores,
mas
51
reconhecendo sua multiplicidade formacional. A própria crise no mundo do trabalho,
que afeta diretamente famílias pobres e aprofunda questões de desigualdade impõe
uma nova prática no trabalho do serviço social com famílias, pois novas demandas
são impostas e estes grupos encontram diferentes formas de se organizarem, o que
exige uma nova concepção não apenas de trabalho, mas também de família que não
pode mais se restringir aos ideais conservadores da sociedade burguesa.
52
CONCLUSÃO
Queridos viejos:
Uma vez mais sinto sob os calcanhares as costelas de Rocinante. Retorno para a estrada com o escudo no braço. Nada de especial mudou, exceto que estou mais cônscio, meu marxismo está mais arraigado e mais cristalizado. Creio na luta armada como única solução
para os povos que lutam para se libertarem e sou coerente com minhas crenças. Muitos me chamarão de aventureiro, e o sou, mas de
um tipo diferente, sou daqueles que colocam a vida em jogo para demonstrar as suas verdades.
É possível que esta seja definitiva. Não estou buscando por ela, mas
está dentro dos cálculos lógicos das probabilidades. Se tiver que ser,
então este é o meu último abraço.
Amei-os muito, só que não soube mostrar o meu amor. Sou extremamente rígido em meus atos e creio que houve ocasiões em que vocês
não me entenderam. Por outro lado, não era fácil entender-me
(...).Agora, a força de vontade que aprimorei com o deleite de um artista levará para diante minhas pernas fracas e meus pulmões cansados. Vou conseguir
Lembrem-se de vez em quando deste pequeno condottiere do século
XX (...).Para vocês, um abraço grande e apertado de um recalcitrante
filho pródigo. (Carta de Che Guevara à seus Pais).
Como pudemos observar ao longo do trabalho, as determinações sociais de
gênero são fruto das relações históricas humanas, e estas relações desde nossa
formação permitem a conformação dos papéis sociais de pai e mãe. Estabelecem
ainda, um comportamento pré-determinado naturalizado pelos sujeitos, tornando-se
objeto de pouca reflexão.
A introdução da propriedade privada nas sociedades humanas gerou a perda
de direitos femininos, instituindo para isso, uma legislação que as regule e puna
ainda na dimensão privada. Neste ponto observamos a supremacia masculina, pois
até então os homens dependiam exclusivamente de suas companheiras para se
manterem nos grupos matrimoniais.
Com a associação do capitalismo esta relação desigual se intensifica e com o
aumento da necessidade de mão-de-obra para a produção, temos os escravos e,
finalmente, a mulher submissa aos ditames machistas, tornando-se mãe e esposa
obediente, e passível até mesmo de violência por parte de seu companheiro, como
direito matrimonial.
53
O feminismo e a introdução da mulher no mercado de trabalho possibilitaram
a formação de uma nova consciência feminina, a partir de então as mulheres podem
se observar como sujeitos de direitos. A igualdade política e o direito a não serem
abusadas por seus companheiros representam uma grande conquista no sentido de
igualdade, mas ainda é preciso que muito mais seja feito, pois os homens ainda se
dedicam muito menos ao trabalho doméstico e a educação e cuidado com os filhos e
familiares.
Embora, após os anos 90, as mulheres tenham adquirido maior espaço no
ambiente público, antes exclusivamente masculino, os dados ainda apontam para
uma sobrecarga feminina de trabalho, salários inferiores aos dos homens em
funções iguais, e a auto-imposição de comportamentos maternos para se afirmarem
socialmente. O imaginário sócio-cultural representa a dimensão responsável pela
produção e reprodução destes valores que aprisionam não apenas o universo
feminino, mas também o masculino, uma vez que estes sujeitos foram excluídos da
dimensão afetiva e de cuidado, se vendo obrigados a uma autoridade inflexível e
formados historicamente para serem dominantes.
Nesta sociedade a imposição institucionalizada do modelo de família, torna-se
um entrave emocional, tanto para a construção dos sujeitos quanto para vida
coletiva. De outro modo, é preciso retomar o fato de que no sistema capitalista
patriarcal, desenvolvido, necessitamos de bens materiais para garantir nossa
reprodução, e por este fato a busca por um patrimônio para deixar aos familiares se
torna uma constante, como garantia, ou possibilidade de qualidade de vida.
O sistema capitalista patriarcal atrela os conceitos de pai/reprodutor,
mãe/reprodutora, como se fossem indissociáveis, impondo a formação de afetos,
como isto fosse possível. Os sentimentos de maternidade e paternidade estão muito
além do que nosso modelo sócio-econômico pode compreender, criando para si
categorias de famílias desestruturadas, que fogem a seu modelo e comportamento
pré-estabelecido.
Os afetos não podem ser regulados, como fatores econômicos, estes laços se
estabelecem de modo autônomo, diariamente na dimensão subjetiva, e, portanto, de
modo diferenciado entre os sujeitos, não podendo ser impedidos por determinações
54
jurídicas. Assim, a imposição social pode inclusive afetar a formação de laços
afetivos, pois desde cedo regulam emoções, vínculos e o modo como estes devem
se estabelecer. Nada impede que os sujeitos tenham por seus amigos o mesmo
apreço ou consideração que dedicam a seus familiares, e do mesmo modo, o
simples fato de possuímos vínculos consangüíneos não nos obriga a determinado
tipo de afeto.
Existe uma associação forçada entre família e propriedade privada, mas que
em nada comprova a associação entre afeto e bens materiais, estas duas instâncias
não podem ser associadas, pois, de fato, não estão.
Esta associação equivocada põe o afeto em segundo plano, bem como põe
os pais, primeiramente como trabalhadores para a manutenção de seus familiares, e
posteriormente, como provedores de cuidado e afeto. Ademais, a imposição de um
modelo familiar imputa a parcela da sociedade que estabeleçam seus laços afetivos
de forma realmente livre, gerando preconceito social aos novos padrões, que
necessitam se impor para a criação de uma legislação que os proteja, como foi o
caso das uniões homoafetivas no Brasil.
Sabendo que esta é de fato uma construção histórica, compreendemos
porque a transformação de valores arcaicos para a sociedade atual se faz de modo
tão vagaroso. É preciso ainda lembrar a coexistência de valores sociais e morais
divergentes que conflitam em sociedade, devido também ao maior convívio entre
gerações.
Portanto, é preciso mais do que uma transformação dos valores, é preciso
uma transformação social ampliada que possa realmente compreender os sujeitos
como iguais, mas equivalentes como sujeitos sociais em suas diferenciações, para
que o ambiente familiar (ou de convivência) possa se organizar de acordo com as
relações estabelecidas entre os sujeitos, tornando-se um ambiente saudável para a
construção de sujeitos livres.
55
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