as metáforas

Propaganda
Seção S3 – Pragmática e Análise do Discurso
UMA METÁFORA MUSICAL E SUAS METAMORFOSES CIENTÍFICAS
Ewaldo Melo de Carvalho
[email protected]
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais/CEFET-MG,
Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG
Belo Horizonte – BRASIL
“A metáfora é um dos nossos instrumentos mais importantes para se entender
parcialmente o que não se pode entender totalmente.[...] Mas as metáforas
não são simplesmente coisas que se devam superar; para superá-las, de fato,
há que se usar outras metáforas.” (Lakoff-Jonhson, Metaphors we live by.) 1
1. INTRODUÇÃO
Todas as pessoas, em diferentes atividades, e por toda a vida, usam, diariamente, analogias e
metáforas (A&M daqui em diante), para pensar e se comunicar. Embora primando pela busca
de objetividade em sua investigação sistemática do mundo, também a ciência, como seria de
se esperar, não constituiu uma exceção. Então, a analogia e a metáfora, recursos milenarmente
presentes na linguagem comum, incorporam-se, também, à linguagem científica.
Desde cedo surgem, então, algumas questões de auto-avaliação, pertinentes ao fazer
científico. Por exemplo, até que ponto o pensamento científico pode ser analisado em termos
de analogias, metáforas e da imagética em geral? Seriam a metáfora e a analogia formas
aceitáveis de linguagem científica? As respostas têm se mostrado controversas,
particularmente entre os filósofos da ciência.
Neste trabalho investigaram-se as possíveis relações entre a linguagem científica e: (1) as
representações lingüísticas de modelos teóricos de fenômenos físicos; (2) origem histórica
desses modelos; (3) possíveis aspectos cognitivos revelados pelas A&M usadas na concepção
e explanação desses modelos.
Como casos de estudo, escolheram-se três modelos cientificamente aceitos - um antigo e dois
modernos – que compõem uma seqüência natural de A&M. Como se verá, estruturam-se,
1
Todos os textos, originalmente em línguas estrangeiras, receberam traduções livres por este autor.
naturalmente, em torno das idéias relacionadas com uma corda vibrante entre dois pontos
fixos. Dela irradiaram analogias, às vezes analogias-modelo, além de algumas conseqüências
férteis.
Uma simples corda vibrante tornou-se, ao longo da história da ciência, um dos fenômenos
físicos mais férteis e usados recorrentemente para a criação de A&M fundamentais em vários
modelos físicos posteriores. Utilizada aqui, fornece o tema, cujo contraponto levou a
variações brilhantes e que, há muito, se enraizou na visão de mundo construída pela ciência
ocidental.
Concentramos a discussão na permanência, explícita ou implícita, dessa figura basilar
histórica - ora presente como analogia-base, ora como metáfora-raiz (ver abaixo a
conceituação de Pepper, apud Black). Presente por cerca de 2500 anos no ocidente, mostrouse fundamental na criação de vários modelos e teorias explicativas do mundo físico.
Tentaremos abordar, então, parte das questões levantadas acima, discutindo diferentes versões
da metáfora/analogia mencionada. Quando, ao longo da história, se conceberam novos
modelos e/ou teorias científicas explicativas de fenômenos físicos recém-observados em
algumas áreas da física, essa figura quase sempre emergiu metamorfoseadamente.
2. ANALOGIAS, METÁFORAS, MODELOS E A CIÊNCIA
A mente, diante do que é estranho, tende a dar o primeiro passo analogizando, ou seja,
penetrando no conteúdo novo através do antigo, embora ciente de que parte do novo
obviamente divirja do antigo.
Quando analisamos o processo de construção da história de determinados conceitos,
observamos que alguns apresentam similaridades notáveis. Essas similaridades, semelhanças,
analogias e metáforas, sempre desempenharam papel importante na construção de modelos
científicos. São comparações do desconhecido, ou seja, o que se quer entender ou descobrir,
com o conhecido, o que já se sabe ou conhece.
A conceituação de analogia, como usada em ciência, exige argumentação cuidadosa, o que
não seria pertinente aqui. Uma das fontes indicadas seria o livro de HESSE (1966, p. 57), hoje
um clássico do tema. Ali a autora recomenda,
E como nem os típos clássicos de analogia, nem as analogias esquematicamente
definidas da lógica moderna, mostram grande semelhança com a analogia como
usada em raciocínios com modelos científicos, necessitamos examinar a relação
deste problema com as discussões tradicionais.
Pela mesma razão, também a metáfora exige adequação ao uso científico. Com o grande
volume de estudos sobre A&M na ciência, suas conceituações e aplicações foram muito
ampliadas. Sobre isto, vale o exame do consagrado livro de Max Black sobre metáforas e
modelos, que faz contraponto com o livro de Mary Hesse sobre analogias e modelos.
Transcrevem-se, abaixo, algumas opiniões de BLACK (1981), sobre a metáfora:
Uma metáfora memorável tem o poder de levar dois domínios separados a uma
relação cognitiva e emocional, usando linguagem adequada, para que um seja como
lente para ver o outro. (p. 236)
[...] Pensamentos metafóricos são modos requintados para se alcançar insights, não
para ser usado como substituto ornamental do pensamento medíocre. (p. 237)
Ainda em Black, Stephen Pepper (apud Black ps. 239 e 240) conceitua o que chama de
analogia-base ou metáforas-raiz, extremamente pertinentes à discussão central deste trabalho:
O método em princípio parece ser este: um homem desejando compreender o
mundo, procura ao seu redor alguma indicação e/o sugestão que o leve à
compreensão. Para tanto, destaca uma área que apresente fatos do senso comum e
tenta ver se é possível compreender as outras áreas em termos da primeira. Então, a
área original se torna sua analogia-base ou metáfora-raiz. Descreve do melhor modo
possível as características dessa área, ou, se se quiser, discrimina sua estrutura. Uma
lista de suas características estruturais se transforma em conceitos básicos de
explicação e descrição. São chamados de um conjunto de categorias. Em termos
dessas categorias continua estudando todas as outras áreas, sejam não-criticadas ou
previamente criticadas. Passa, então, a interpretar todos os fatos em termos dessas
categorias. [...] Algumas metáforas-raiz se mostram mais férteis do que outras, têm
maior poder de expansão e ajustamento. Em comparação com as outras, sobrevivem
e geram as teorias de mundo relativamente apropriadas.
O amplo emprego das A&M foi se firmando em diversos campos do saber até que,
atualmente, são consideradas valiosos instrumentos da lógica e do raciocínio.
3. REFERENCIAL TEÓRICO
A linha teórica adotada neste trabalho apóia-se, predominantemente, nas linhas conceituais
desenvolvidas por Black (1962), Hesse, M. B. (1966), Turbayne (1974), Lakoff-Johnson
(1980) e Vosniadou-Ortony (1989).
Geralmente, quando usadas em ciência, as A&M, tácita e subentendidamente pressupõem as
presenças do símile e/ou do modelo como bases comuns a ambas. Dentro dessa perspectiva,
embora tenhamos consciência da polêmica sobre se a analogia seria ou não uma figura de
linguagem (tropismo), consideraremos aqui a analogia e a metáfora como representações
figuradas da expressão do pensamento. Quando forem vistas como modelos – especialmente
a analogia – o texto chamará a atenção para a mudança. Além disto, sempre estará implícito
que as A&M apresentem (a) dois domínios confrontáveis - um deles com características bem
conhecidas e o outro com características imaginadas e/ou inacessíveis que se quer conhecer
e/ou explicar e, ainda contenham (b) pelo menos uma operação de projeção ou mapeamento
entre estes domínios.
Vejamos abaixo algumas considerações de um físico, filósofo e historiador da ciência,
BUNGE (1974, p. 185). Sobre a analogia, alerta:
A importância da analogia na pesquisa científica deveria ser inegável. Mas, sem
dúvida, tem sido tanto negada quanto exagerada: negada por aqueles que vêem a
analogia como tendo apenas valor heurístico – e superestimada pelos que encaram a
analogia como tendo nada menos do que uma função de orientação de pesquisa.
E, ainda BUNGE (1974, p. 196) continua sobre as A&M:
Sem analogia não poderia haver conhecimento de qualquer espécie: a percepção de
analogias é o primeiro passo para a classificação e a generalização. O primeiro passo
apenas, [...] O primeiro papel da analogia é sugerir a equivalência, sem contudo
estabelecê-la.
Mais adiante, sobre a metáfora (1974, p. 198):
Outro alçapão contra o qual devemos nos precaver é o ponto de vista corrente e em
moda da teorização científica e explanação como sendo basicamente analógica ou
metafórica. Sob este ponto de vista, o ‘modelo’ hipotético-dedutivo de teoria
científica estaria errado: o núcleo explanatório de cada teoria seria uma metáfora,
um modelo mais ou menos pictórico de seu referente que cumpre não apenas uma
função heurística, mas também lógica. A explanação científica consistiria então de
uma redução ou quase identificação do novo e não-familiar ao velho e familiar [...]
Seria miraculoso se as explanações científicas fossem pouco mais do que parábolas,
pois então a ciência seria incapaz de explicar algo novo: sem dúvida, o novo falha
em se assemelhar ao velho em algum aspecto decisivo – de outro modo não seria
tomado como novidade.
Talvez as críticas acima se devam a generalizações equivocadas das A&M e a compreensões
apressadas, a partir de leituras parciais e fora de contexto, de escritos perfeitamente corretos
de cientistas e historiadores da ciência. Realmente, em seu livro, HOLTON (1956, p.138),
Emeritus Professor de física e de história da ciência de Harvad, nos diz:
Temos afirmado que a tarefa da ciência, como a de todo pensamento, é penetrar para
além do imediato e visível, para invisível e, então, colocar o visível sob um novo e
ampliado contexto. Como um iceberg flutuante à distância, cuja maior parte do seu
volume está submersa no mar, a realidade somente nos revela diretamente a sua
menor parte. A suprema função da teoria é nos ajudar a captar a paisagem total.
Simplificadamente, uma teoria nos permite interpretar o desconhecido em termos do
conhecido.
Atente-se para a última frase da citação acima que, em outros contextos, se assemelharia às
definições comuns e gerais de analogias e de metáforas.
De fato, TURBAYNE (1974, ps. 272 e 273), observa:
Falando de um modo geral, caracterizamos um modelo de uma teoria determinada
como uma interpretação de outra teoria, parte da qual pode correlacionar-se, de
modo que conserve os valores de verdade, com parte da teoria modelada. Nesse
sentido, então, pode dizer-se que modelar uma teoria é representar parte dos fatos
descritos por dita teoria, empregando o vocabulário peculiar de outra teoria. Esta
formulação corresponde, aproximadamente, à descrição dada das metáforas na parte
principal deste livro. Contudo, os modelos foram ali definidos como metáforas
sustentadas e estendidas [...] uma metáfora apresenta maior grau de cognição do que
outra se se deixa modelar melhor que outra. [...] uma boa metáfora é aquela que
pode estender-se a um bom modelo. [...] Definamos uma metáfora como uma
declaração que sugere (ou cuja análise completa afirma) que a interpretação tentada
de uma teoria parcial serve como modelo para uma parte de alguma outra teoria,
com diferente vocabulário. [...] Pelo jeito, os modelos são, realmente, metáforas
estendidas se por ‘estender a metáfora’ entendemos ‘construir o modelo cuja
existência é sugerida pela metáfora’.
4. METODOLOGIA DO TRABALHO
O estudo foi desenvolvido examinando-se, principalmente, textos científicos, de época, que
propunham e/ou relatavam a introdução de novos modelos de fenômenos aparentados com a
metáfora-raiz deste trabalho. Desenvolveu-se no sentido de procurar, naqueles fenômenos e
modelos, algum reflexo físico ou histórico-lingüístico, indicadores de descendência da
metáfora-raiz. Ainda, tentando-se identificar possíveis metamorfoses da metáfora-raiz,
surgidas e/ou presentes, posteriormente, em construções de A&M e de modelos teóricos
explicativos de fenômenos físicos.
Particularmente, acompanharam-se as modificações sofridas pela metáfora científicocosmológica, a mesma metáfora musical, encontrada em diferentes versões e que se originou
nos estudos realizados, por Pitágoras e/ou a escola pitagórica, com o monocórdio 2. A seguir,
algumas formas em que ela tem se apresentado:












O universo é um instrumento musical
O universo é um instrumento harmônico
O universo é musical e numérico (matemático)
O universo é uma sinfonia 3
A música celeste das esferas
A música celeste do mundo
A música celeste dos números (relativos à música)
A harmonia das esferas 4
A harmonia do universo
A harmoniado mundo
A sinfonia dos planetas
A sinfonia celeste
5. RESULTADOS
Detalham-se três fenômenos significativos associados à corda vibrante (origem da linhagem –
a cepa) e a dois fenômenos físicos, focalizados modernamente (descendência, ou filiações –
filhos, netos...) e associados ao comportamento físico das vibrações produzidas pela corda:
(a) meados do século VI a.C. - estudos físico-musicais da corda vibrante e extrapolações
metafóricas sobre o Universo: harmonia das esferas; harmonia universal;
(b) primeiro terço do século 20 - na física moderna, as proposições de Niels Bohr, De
Broglie e Schrödinger (átomo; quantização de órbitas vibrantes, onda-partícula, etc.);
(c) último terço do século 20 até o presente – teoria das supercordas; conseqüência dos
esforços de unificação de teorias físicas sobre o Universo (partículas, Teoria de
Supercordas. Teoria de tudo).
2
gr. monókhordon,ou: instrumento musical de uma só corda, cujo comprimento original pode ser modificado
para gerar harmônicos superiores.
3
sinfonia: entre os antigos gregos, a consonância que para eles só era produzida pelos intervalos de oitava,
quinta e quarta justas, gerando um acordo de sons agradáveis ao ouvido.
4
Doutrina cuja autoria é com freqüência atribuída a Pitágoras, que combina a matemática, a música e a
astronomia. A matemática da harmonia foi uma descoberta fundamental e de enorme significado para os
pitagóricos. A idéia básica é que os corpos celestes por se tratarem de grandes corpos em movimento, têm de
produzir música, que só não a ouvimos porque está sempre presente entre nós. A perfeição do mundo celeste
implica que essa música seja harmoniosa (gr. harmonía, as: união, encaixe, acordo, ordem, pelo lat.
harmonìa,ae)
5.1 Uma palavra sobre Pitágoras e sua escola
Neste ponto é importante atentar para a disputa acirrada que envolve Pitágoras, personagem
que tem provocado e provoca divergências astronômicas. Não escapou ao destino das grandes
celebridades: tanto os seus seguidores quanto seus detratores têm sido sectários, criando
tantos mitos e controvérsias sobre essa personagem que se tornou quase impossível recuperar
sua biografia.
Segundo a tradição, Pitágoras e sua escola se impressionaram tanto com esses números,
maravilhosos números inteiros, que julgaram, então, que fossem a chave para os segredos do
Universo. Os pitagóricos, então, levando seus estudos às últimas conseqüências, e lançando
mão de uma analogia cósmica, isto é, a corda vibrante está para a esfera celestial (o
diapasão cósmico), assim como os intervalos sonoros (notas musicais) da corda estão para as
relações de distâncias entre a Terra (1o ponto fixo) e a esfera das estrelas fixas (20 ponto
fixo) subdividido pelas posições do Sol e dos planetas (como os intervalos sonoros), atingiram
o ideal pitagórico de harmonia do universo. O próximo passo foi a extrapolação que os levou
à firme convicção de que os números eram o princípio geral do Universo.
As conseqüências, ao longo dos séculos, foram a criação de inúmeros mitos, analogias,
metáforas, seitas religiosas, sistemas filosóficos, etc. Entretanto, as metáforas relativas a essa
descoberta antiga, criadas pelos pitagóricos e pelos seus seguidores, foram tão
impressionantes que marcaram profunda e indelevelmente as visões de mundo de gerações
subseqüentes de religiosos, filósofos, físicos, etc.
Alguns de seus feitos e de sua escola não se perderam totalmente, havendo grande consenso
em torno de relatos de que Pitágoras e/ou sua escola tenham, pelo menos, sistematizado os
estudos e experiências relativas ao monocórdio e o fenômeno físico-matemático-musical de
uma corda vibrando estacionariamente e presa a dois pontos fixos, como, por exemplo, as de
um violão ou piano.
Diôgenes Laêrtios (séc.III d.C.), biógrafo grego, é considerado a principal fonte biográfica
para todos os filósofos gregos e romanos até o século III d.C. (cita 365 livros e 250 autores) e
o seu livro o mais fidedigno documento quanto às citações de obras perdidas. Vejamos alguns
trechos de LAÊRTIOS (1988, livro VIII - cap. 1, ps. 229-240).
(12) Pitágoras dedicou-se principalmente ao estudo do aspecto aritmético da
geometria, e descobriu o cânone monocórdio. (p. 231) [...] (48)[...] Pitágoras foi o
primeiro a chamar o céu de cosmos e a dizer que a Terra é esférica (de acordo com
Teôfrastos, o primeiro teria sido Parmenides; segundo Zênon, foi Hesíodos). p. 239)
5.2 O caso clássico da escola pitagórica – a cepa
Primeiramente o caso clássico, originado na Magna Grécia, nos meados do século VI a.C..
Pitágoras e seus discípulos, realizando experimentos com a corda vibrante do monocórdio,
produziram o que mais tarde se chamou de ondas mecânicas estacionárias em uma corda.
Curiosamente, esse foi o primeiro experimento de física de que se tem alguma notícia
razoavelmente segura e que, ao mesmo tempo, foi a primeira tentativa de se estudar sons
musicais científica e matematicamente. A parte mais conhecida da experiência tornou-se, ao
longo da história da ciência, um dos fenômenos físicos mais usados para a criação de A&M,
fundamentais para vários modelos. Utilizada aqui, fornece o tema, cujo contraponto levou a
variações brilhantes e que, há muito, se enraizou na visão de mundo construída pela ciência
ocidental.
5.3 Características mínimas de uma corda vibrante
Todos, em algum momento, já viram a representação de uma corda fixa ondulante, com
cumes (ventres) e vales (ventres invertidos):
a. Uma onda completa constitui-se de um cume mais um vale.
b. O número de vezes que um cume (ventre) se transforma em vale (ventre invertido) ou
vice-versa, por unidade de tempo, é chamado de freqüência ( f ).
Variando-se crescentemente a freqüência de uma corda, isto é, de lentos para movimentos
cada vez mais rápidos, então, numa certa freqüência a corda inteira vibrará formando um
único cume (ou vale), tecnicamente definido como fundamental, ou 1o harmônico. Se se
continuar o aumento da freqüência, tentando, por exemplo, formar um ventre e meio, verificase que isso não será possível.
A corda só aceitará, de modo natural, as freqüências que formam números inteiros de cumes
(ou vales) iguais, que ocupem, igualmente espaçados, a corda inteira. Determinam, em ordem
crescente de freqüências, o 2o, 3o, 4o ..., harmônicos, com 2, 3, 4 ventres, respectivamente. Isto
é, 2 cumes para o 2o harmônico, 3 para o 3o , sucessivamente. O aumento da freqüência leva
ao aumento do número de ventres distribuídos igualmente na corda, cada vez mais curtos, a
fim de caberem todos no comprimento fixo da corda.
Uma
freqüência
fundamental
multiplicada
por
1,2,3,...
acarreta
1,2,3...
ventres,
respectivamente. Assim sucessivamente, sempre obrigatoriamente seguindo a seqüência dos
inteiros 1,2,3,4,... Os pitagóricos, em seus experimentos, parece terem chegado a uma
descoberta fundamental: que os intervalos básicos da música grega podiam ser expressos
como razões entre os números inteiros 1,2,3,4.
Deduz-se, então, que esse comportamento obedece a uma condição natural inescapável,
imposta pela natureza física do sistema:
(a) corda de comprimento predeterminado;
(b) condição de fixação em seus dois extremos (nunca se esquecendo que isso impõe às
pontas da corda permanecerem sempre em repouso.
Então, o sistema corda vibrante entre extremos fixos contém em seu íntimo seqüências
naturais permitidas de números fixos, impostas pelas condições predeterminadas pela
arquitetura do sistema vibrante.
5.4 O caso quântico do átomo – um dos filhos
A discussão do nosso segundo exemplo pertence ao primeiro terço do século 20. Era a época
das crises e conquistas da revolução da física moderna. Então os físicos, em certo momento,
voltaram-se, mais uma vez, para a analogia da corda vibrante. Aconteceu quando tentavam
compreender alguns problemas relacionados com a estrutura eletrônica e com as emissões e
absorções de energia pelos átomos. São problemas bem conhecidos dos historiadores e
professores de ciências. Porém, vale a pena lembrar em que situação se recorreu à analogia da
corda. Niels Bohr, aproximadamente em 1913, trabalhando com linhas espectrais obtidas com
gases incandescentes, postulou a existência de certas órbitas eletrônicas, escolhidas por
satisfazerem determinados estados quânticos estáveis de energia. Esta arbitrariedade logo
causou um certo mal-estar na comunidade de físicos, pois não encontrava respaldo nem na
mecânica clássica, nem nas novas teorias vigentes à época.
Então, em 1922, com 30 anos de idade, um jovem príncipe francês, Louis Victor de Broglie
(1892-1987), procurando uma explicação mecânica para a dualidade onda-partícula da luz,
passa a analisar as propostas de Bohr e os resultados experimentais da época. Então, associa
as órbitas de Bohr com laços fechados de cordas, que vibravam segundo um número inteiro
de ondas estacionárias. Assim, às órbitas de Bohr corresponderiam anéis vibrantes compostos
de uma onda completa (1a órbita), 2 ondas (2a órbita), e assim sucessivamente. Isso logo foi
casado com os números inteiros de unidades de momentos angulares de Bohr, múltiplos de h,
a constante de Planck. De Broglie concluiu que a órbita de Bohr podia ser vista como uma
corda de violino circular. Mais uma vez Pitágoras estava presente, conforme HOFFMANN
(1959), que era, à época, um físico ativo de primeira linha. Descreve o processo criativo
daqueles revolucionários experimentadores e teóricos do século 20, comentando
entusiasticamente:
A tônica 5 do primeiro artigo de Schrödinger era a existência de números quânticos
simples escondidos entre as complexidades do espectro atômico. Bohr simplesmente
injetou esses números quânticos em suas teorias a partir do exterior; são coisas
como o n da fórmula (p.dq = n.h ). Schrödinger queria evitar tal artifício. Uma boa
teoria do átomo, sentiu, deve usar um método matemático de gerar, naturalmente, os
números quânticos, a partir do seu íntimo. Procure o método, então, e deixe que o
significado físico se encarregue de si mesmo. (p. 111). [...] Então uma corda
vibrante de fato contém, em si mesma, seqüências de números como os que
Schrödinger procurava. ( p.112)
Narra, em seguida, um belo processo analógico de criação científica,
[...] Aqui, certamente, está a sugestão mais forte. Precisamos de mais persuasão
antes de corrermos para aplicar esse princípio ao átomo? De Broglie já nos disse que
lá há ondas para usarmos. [...] Aqui está uma idéia simples e maravilhosa pedindo
para ser aplicada. [...] De Broglie tem um outro incentivo para nós, um quase
irresistível. Considere a evidência de um fino anel de aço. Quando esse anel recebe
uma pancada ele vibra musicalmente. Não podemos dizer que isso acontece porque
seus extremos são fixos. Mas sendo circular, suas vibrações são seguramente
limitadas, e de modo bastante semelhante, pois é como se tivesse as duas pontas
soldadas. Pode vibrar como um todo, ou em 2 partes, ou 6, mas não em 2 e meia.
(p.113)
Passa, então, para a criação da equação de onda de Schrödinger
Claramente, precisava-se de uma equação de onda. [...] Sabia-se, também, que uma
equação de onda geraria seqüências numéricas assim que se impusesse condições
matemáticas adicionais. [...] Schrödinger decidiu criar uma teoria atômica a partir
daquelas idéias. (p. 115)
Daqui em diante, adaptaram analogicamente o modelo da corda na elucidação da estrutura
atômica (clássica). De Broglie publicou seus resultados como tese de doutorado em física,
entre 1923 e 1925. Entre os seus resultados encontrava-se a sua famosa equação de ondas
associadas à matéria em movimento.
5
O primeiro grau de uma escala diatônica e a nota que dá o seu nome ao tom sobre o qual a escala repousa.
5.5 O caso das supercordas e a esperança de casamento – uma das netas
Finalmente, examinaremos o terceiro caso, bem menos divulgado e conhecido do que os
anteriores. Refere-se a uma área da física teórica contemporânea, em construção e franco
progresso e que tem provocado um intenso debate entre os físicos. Estamos falando do que
genericamente se conhece como Teorias de Cordas ou Teoria das Supercordas. Ela traz em
sua bagagem certamente a maior esperança da comunidade de físicos: a compatibilização
entre a Teoria Quântica e a Teoria da Relatividade Geral. Se não for possível, ficarão
satisfeitos com a construção de uma boa ponte entre elas.
A introdução do novo conceito surge no último terço do século 20 e continua neste novo
século 21. Um dos aspectos mais promissores da Teoria Quântica da Gravitação foi a
concepção de que as entidades fundamentais do espaço-tempo talvez não sejam pontos, mas
pequenos anéis de cordas. Em outras palavras, entidades unidimensionais (daí, corda) em vez
de pontos multidimensionais (dimensão zero). Na Teoria de Cordas, supõe-se que as
partículas elementares consistem de minúsculas cordas vibrantes. Outras denominações dessa
teoria são: Teoria de Supercordas ou Teoria M (composta de outras teorias parciais, ou seja,
T-I; T-IIA; T-IIB; T-Heterótica O(32); T-Heterótica E8xE8; mais uma Supergravidade a 11
dimensões). Atualmente são as melhores propostas que poderiam nos levar à Teoria de Tudo
(TOE – Theory Of Everything ), etc. Vejamos um resumo de sua evolução.
Em 1970, Yoichiro Nambu (Univ.Chicago), Holger Nielsen (Inst.Niels Bohr) e Leonard
Susskind (Univ.Stanford) introduzem as cordas. Em 1974, Schwarz (Califórnia) e Joël Scherk
(École Normale Supérieure) associaram o gráviton com as cordas e ampliaram seu domínio
até as teorias que tratam da gravidade. Em 1984, John Schwarz, do Instituto de Tecnologia da
Califórnia e Michael Green, do Queen Mary College de Londres, mostraram que as Teorias
de Supersimetrias poderiam eliminar certas dificuldades matemáticas se as entidades
fundamentais fossem supercordas decadimensionais, em vez de três pontos espaciais
movendo-se numa quarta dimensão temporal. Supercorda é uma curva serpenteante que se
move em um espaço-tempo decadimensional de simetria singular. Vejamos o que DYSON
(2000, ps. 29 e 30) diz sobre as supercordas:
Para dar uma idéia quantitativa do quanto elas (as supercordas) são diminutas, farei
uma comparação com outras coisas que não são tão pequenas. Imagine, se puder,
quatro coisas de tamanhos muito diferentes. Primeiro, todo o universo visível.
Segundo, o planeta Terra. Terceiro, o núcleo de um átomo. Quarto, uma supercorda.
O salto de magnitude relativa de uma coisa para a seguinte é aproximadamente do
mesmo tamanho. A Terra é menor do que o universo visível cerca de 10 20 vezes.
Um núcleo atômico é menor do que a Terra 1020 vezes. E uma supercorda é 1020
vezes menor do que um núcleo. Isso dá uma medida aproximada do quanto temos de
avançar na esfera da pequenez antes de chegarmos às supercordas.
Edward Witten, de Princeton, em palestra de 1985, argumenta que tal teoria seria a única
teoria unificada possível. Muitos cientistas já afirmam que as supercordas são a teoria final de
tudo (TOE).
Incontestavelmente, mais uma vez, podemos retroceder genealogicamente até às cordas
pitagóricas, agora de modo explícito, embora bastante modificadas e muito mais delicadas. A
propósito, são significativos os títulos de A sinfonia cósmica e de Pura música: a essência da
teoria das supercordas, dados à Parte III e ao capítulo 6, respectivamente, do livro de
GREENE (2001, p. 155), que começa assim:
Historicamente a música tem propiciado as melhores metáforas para quem quer
entender as coisas cósmicas. Desde o tempo da ‘música das esferas’, de Pitágoras,
até as ‘harmonias da natureza’, que orientam a pesquisa científica ao longo dos
séculos, sempre nos sentimos coletivamente atraídos pela música da natureza e
procuramos ouvi-la nos elegantes movimentos dos corpos celestes, assim como nas
desenfreadas variações das partículas subatômicas. Com a descoberta da teoria das
supercordas, as metáforas musicais assumem uma surpreendente realidade, uma vez
que a teoria sugere que a paisagem microscópica está repleta de cordas mínimas,
cujas vibrações orquestram a evolução do cosmos.
Também é interessante saber que quatro físicos de Princeton, atualmente envolvidos nesse
campo de pesquisa, são coletivamente conhecidos como o quarteto de cordas de Princeton.
Mas o que são as cordas e quais os seus méritos? A resposta à primeira parte da pergunta,
segundo GREENE (2001, p. 162), seria:
[...] as cordas são verdadeiramente elementares – são ‘átomos’, elementos
indivisíveis, no mais puro sentido da palavra grega. Por serem os elementos
constituintes absolutamente mínimos de tudo o que existe, elas representam o fim da
linha – a última das matrioshkas – a última das numerosas camadas da subestrutura
do mundo microscópico.
A resposta à segunda parte da pergunta, ainda segundo GREENE (2001, ps. 164 e 165), seria:
Esse é o problema central: assim como os diferentes padrões vibratórios de uma
corda de violino dão lugar a diferentes notas musicais, os diferentes padrões
vibratórios de uma corda elementar dão lugar a diferentes massas e cargas de
força. [...] De acordo com a teoria das cordas, as propriedades de uma ‘partícula’
elementar – massa e as várias cargas de forças – são determinadas pelo padrão de
vibração ressonante específico executado por sua corda interior.
Como a teoria de cordas é compatível com a mecânica quântica, também nela encontram- se
presentes os parâmetros numéricos discutidos acima. Por exemplo, as energias de vibração
sendo quantizadas, vão gerar diferentes partículas que correspondam aos diferentes
parâmetros bem determinados. Entretanto, faltam-lhes evidências experimentais que são as
sanções últimas das ciências da natureza. Lembremo-nos, porém, que há vários casos
históricos em que teorias consagradas estavam décadas à frente da experimentação.
Quadro 1: comparação da natureza dos três sistemas
sistemas físicos estudados
corda vibrante entre 2
pontos fixos
átomos
microcosmo material
objetivos de
explicações
comportamento e
propriedades
natureza e estrutura
(clássicas)
natureza e constituição
última de partículas e
forças elementares
tipo de sistema
ondulatório
ordens de
grandezas (em
metros)
elementos
comuns dos
sistemas
corda unidimensional
entre 2 pontos fixos
órbitas eletrônicas
circulares
cordas unidimensionais
abertas e fechadas
10o (=1)
10-10
10-35
ondas,
freqüências,
harmônicos
ondas,
freqüências,
harmônicos
ondas,
freqüências,
harmônicos
parâmetros fixos
proporcionais aos números
inteiros
parâmetros quânticos
proporcionais a números
fixos
parâmetros quânticos
proporcionais a números
fixos
propriedades
predeterminados
pelo sistema
físico
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foram apresentadas evidências de que alguns cientistas, dos clássicos aos
contemporâneos, recorreram, em seus modelos, àquela memória metafórica,
freqüentemente reutilizando a antiga concepção, ou uma modificação de sua forma
original.

O quadro abaixo mostra os aspectos mais importantes dos tópicos discutidos,
permitindo visão sintética e global dos três casos considerados. Mostra, claramente, o
evidente valor cognitivo do uso de metáforas e analogias na geração de hipóteses
científicas e na construção de seus modelos.
Quadro 2: sinopse geral dos três modelos analógico-metafóricos
época,
origem histórica,
e personagens
históricas
c. 550 aC;
Pitágoras; Escola
Pitagórica
primeiro terço do
século 20;
Física moderna;
Bohr, De Broglie,
Schrödinger, etc.
elementos e
características
básicas
corda vibrante entre
2 pontos fixos;
harmônicos
predeterminados
pelo sistema
vibrante
características e
propriedades
predeterminadas
por parâmetros
quânticos fixos de:
órbitas-anéis
vibrantes
estacionárias;
equações de ondas;
harmônicos, etc.
elementos do
análogo-fonte
(domínio 1)
elementos do
análogo-alvo
(domínio 2)
10o (=1)
características e
propriedades de
cordas vibrantes
entre 2 pontos fixos
compreensão da
acústica musical;
generalização e
extrapolação das
propriedades
numéricas e acústicas
das cordas às
concepções do sistema
cosmológico da época,
etc.
10-10
características e
propriedades de
órbitas-anéis
vibrantes
estacionárias.
predeterminadas
por parâmetros
quânticos fixos
compreensão:
(a) da estrutura
eletrônica (modos de
vibrações das órbitas);
(b) das propriedades e
mecanismos de
emissão e absorção de
energia pelo átomo;
níveis de energia, etc.
10-35
características e
propriedades de
cordas vibrantes,
principalmente das
cordas fechadas e
seus modos de
vibrações;
harmônicos;
ressonâncias
compreensão da
estrutura e
propriedades das
partículas e forças
elementares(modos de
vibrações das cordas);
união da Relatividade
Geral e da Mecânica
Quântica; busca da
TEORIA DE TUDO
(TOE), etc.
ordens de
grandezas
(metros)
último terço do
século 20 até o
presente;
Física
contemporânea;
Y.Nambu,
H.Nielsen,
L.Susskind,
J.Schwarz,J.Scherk,
M.Green, E.Witten,
etc.
cordas vibrantes
unidimensionais:
corda aberta (2
pontas soltas);
corda fechada (em
forma de laço ou de
anel); harmônicos
Finalmente, levantam-se as questões abaixo e propõem-se prováveis respostas que, espera-se,
sejam relevantes e de alguma fertilidade para outros estudos dessa matéria:

Por que as A&M, quando usadas em ciência, subentendidamente pressupõem as
presenças de símile e/ou de modelo como bases comuns a ambas, não se distinguindo
claramente os domínios de analogias, metáforas, modelos e, às vezes, teorias?
Possivelmente devido ao fenômeno que, em sua Teoria dos Espaços Mentais,
Fauconnier & Turner (2002) chamaram de mesclagem. Neste caso seria uma
peculiaridade da comunidade científica?

Por que essa continuidade ocorreu e ainda ocorre com a metáfora-raiz? Primeiramente,
por uma questão universal de economia de energia – partir do análogo conhecido
proporciona mais confiança e menos trabalho. Em segundo lugar, possivelmente
porque, entre outras razões, os físicos, desde o início de sua formação, incorporam as
características fundamentais da corda vibrante aos seus padrões culturais internos. De
fato, ao estudarem outros sistemas vibratórios, constroem modelos e explicações
analógico-metafóricas que recordam os fundamentos da corda vibrante.
AGRADECIMENTOS

À Profa.- doutoranda Ana Cristina C. Pereira, pelo incentivo e discussões;

Ao CEFET-MG, pelas oportunidades e pelo apoio;

Ao Prof. Dr. Ronaldo Nagem, coordenador do grupo GEMATEC, pela interlocução e
pela cordial acolhida ao grupo;

Aos membros do grupo GEMATEC, pelas discussões.
REFERÊNCIAS
BLACK, Max. Models and Metaphors – Studies in language and philosophy. Ithaca and
London: Cornell University Press, 1981.
BUNGE, Mario. Teoria e realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974.
DYSON, Freeman. Infinito em todas as direções. São Paulo: Companhia das Letras, 2000
FAUCONNIER, G. & TURNER, M. The way we think – Conceptual blending and the mind’s
hidden complexities. New York: Basic Books, 2002.
GREENE, Brian. O universo elegante. S. Paulo: Companhia das Letras, 2001.
HESSE, Mary B. Models and analogies in science. Indiana: University of Notre Dame Press,
1966.
HOFFMANN, Banesh. The strange story of the quantum. New York: Dover Publications,
Inc., 1959.
HOLTON, Gerald. Introduction to concepts and theories in Physical Science. Massachusetts:
Addison-Weley Publ. Co, Inc., 1956.
LAÊRTIOS, Diôgenes (séc.III d.C.). Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1988.
LAKOFF, G. & JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago and London: The University
of Chicago Press, 1980.
TURBAYNE, Colin M. El mito de la metáfora. México: Ed. Fondo de Cultura Económica,
1974.
VOSNIADOU, Stella and ORTONY, Andrew. Similarity and analogical reasoning. London
and N. York: Cambridge University Press, 1989.
Download