PRODUÇÃO ACADÊMICA A RELAÇÃO ENTRE O INTERNO E O INTERNACIONAL: CONCEPÇÕES CAMBIANTES DE SOBERANIA, DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES NO BRASIL Estêvão Ferreira Couto * Dissertação de mestrado apresentada junto ao Departamento de Ciências Políticas e Relações Internacionais da Universidade de Brasília – UnB, em 13 de setembro de 2001. Professor Orientador: Marcus Faro de Castro. O propósito central da dissertação é confrontar diferentes concepções sobre a relação entre o interno e o internacional na doutrina jurídica, na teoria das relações internacionais e na jurisprudência brasileira. Inicialmente, o autor da dissertação se propõe a reacender o debate original sobre a relação entre Direito interno e Direito Internacional. Em seguida, procura reconstruir uma teoria que esteja mais próxima da realidade contemporânea. Por fim, classifica uma amostragem da jurisprudência dos dois principais tribunais superiores do Brasil, por ano de julgamento, por assunto tratado e por grau/tipo de permeabilidade das decisões judiciais ao ambiente internacional e/ou estrangeiro, concluindo que a relação entre o interno e o internacional é mais complexa do que as elaborações doutrinárias jurídicas tradicionais pressupõem, tanto por causa de novos elementos trazidos pela teoria das relações internacionais, quanto em razão da observação de uma multiplicidade de escolhas realizadas pela jurisprudência. O trabalho toma como base inicial os cursos de Triepel e Kelsen proferidos na Academia de Haia nos anos de 1923 e 1926, respectivamente. Este ponto de partida foi escolhido como uma tentativa de resgatar a forma como o dualismo e o monismo foram originalmente concebidos. Por meio de uma análise minuciosa da argumentação desses juristas, cujo pensamento está inserido na cosmovisão do século XIX, o autor da dissertação procura demonstrar que, ao contrário do que sugerem interpretações suavizadoras posteriores, para Triepel, não existem dualismos com gradações. A opção pelo dualismo implica eliminar todo intercâmbio entre o interno e o internacional. A relação interno-internacional somente se dá de forma aparente quando uma norma internacional é incorporada à ordem interna. Ou seja, o interno e o internacional somente se comunicam por meio do filtro da transformação da norma internacional em norma interna. Porém, no momento em que a norma internacional passa por essa transformação, ela deixa de ser internacional. Portanto, de acordo com os pressupostos do dualismo estabelecido por Triepel, o juiz nacional não aplica a norma internacional e sim a norma interna que a incorporou. Da mesma forma, para Kelsen, não existem monismos com gradações: ou o Direito Internacional se impõe (inclusive sobre as constituições), ou não se impõe. Se o Direito Internacional não se impõe sobre a Constituição, em ultima análise, conserva o poder das Cortes Supremas de controlar a constitucionalidade intrínseca das normas internacionais, dando prevalência ao Direito interno (como tem acontecido no Brasil). O monismo com primazia do Direito Internacional somente assume essa forma, na elaboração original de Kelsen, se submete constituições e se elimina soberanias (meras delegações do Direito Internacional). O monismo com primazia do Direito interno seria a hipótese inversa: um único Estado seria a origem dos demais Estados. Esse monismo kelseniano, portanto, é (provavelmente mais do que as outras alternativas de Kelsen e Triepel) uma hipótese meramente teórica em que um Estado Mundial (o único verdadeiramente soberano) ocuparia o lugar do Direito Internacional, submetendo os outros “Estados” ao seu poder. Após essa recuperação da doutrina e considerando propostas mais avançadas de alguns internacionalistas brasileiros e estrangeiros, o autor da dissertação critica as contradições da jurisprudência que, presa aos parâmetros teóricos de um mundo que não mais existe, acaba por gerar um monismo ou dualismo que se perde em inúmeras vertentes e correntes “mutantes”, sem discernir claramente as implicações das elaborações originais e incapaz de adotar uma nova perspectiva. Ocorre que as transformações pelas quais tem passado a sociedade internacional sugerem que a relação interno-internacional se dê de uma forma mais complexa e menos caricatural do que preconizavam as concepções tradicionais do Direito Internacional. A começar pelo aumento do número de atores internacionais (que, além dos Estados, incluem organizações, empresas transnacionais e até os indivíduos), passando por uma ampliação do escopo do Direito Internacional (Público e Privado) e prosseguindo até um modelo de Estado “desagregado” (em que o detentor da soberania não é mais um ator unitário e monolítico, mas várias unidades autônomas internas); todos esses elementos e outros mais apontam para uma dissolução da separação nítida entre o interno e o internacional. Ademais, esses elementos lançam luz sobre os tribunais superiores como agentes políticos autônomos que sofrem influência direta de normas e “consensos” internacionais e/ou estrangeiros, têm capacidade de interferir na agenda de política externa, estabelecem vínculos com instituições congêneres no exterior, tribunais internacionais e supranacionais, e congregam-se em entidades como a Organização de Cortes Supremas das Américas. Isso não significa o fim dos Estados, mas somente que a soberania destes não pode mais ser compreendida de forma absoluta. Passam a existir uma série de “áreas compartilhadas” em que o Estado precisa dividir seu poder com outros Estados e atores internacionais, sob o direcionamento ou a influência de fatores normativos e materiais, internos e externos (internacionais e/ou estrangeiros). Nesse cenário, as áreas em que predominam exclusivamente fatores internos ou externos tendem a ser cada vez menores e o direito passa a ser entendido como um conjunto de regras que rege não somente relações entre Estados, mas também entre outros atores e que, portanto, não compreende somente regras formalmente jurídicas. O que torna a realidade atual extremamente dinâmica e, às vezes, até incompreensível, é que existe uma série de esferas “normativas” sobrepostas, prevalecendo ora o direito formal, ora fatores materiais, ora uma combinação dos dois. Na parte final da dissertação, o autor classifica e analisa 908 ementas de acórdãos colhidas em bases de dados do Supremo Tribunal Federal – STF e do Superior Tribunal de Justiça – STJ. O critério de seleção utilizado foi a presença da palavra “internacional”. As ementas foram classificadas em sete matérias principais que, de acordo com a estrutura teórica acima exposta, expressavam decisões com repercussão em política penal, política econômica (matérias tarifárias e não-tarifárias), política de integração regional, Direito de família e sucessões, política externa, políticas setoriais e política de direitos humanos. Também foi criado um índice de permeabilidade com a finalidade de avaliar como se dava a relação interno-internacional. Três situações foram consideradas: 1) o tribunal aplicou norma ou fator material externo; 2) o tribunal rechaçou norma ou fator material externo; 3) o tribunal aplicou, de forma conjunta, normas ou fatores materiais externos e internos (permeabilidade qualificada). Os resultados permitiram delinear a agenda internacional dos tribunais superiores e apontaram para um alto percentual de permeabilidade nos dois tribunais, contrariando os pressupostos do dualismo e do “monismo moderado” que, segundo a literatura, informariam a jurisprudência brasileira. Os resultados também indicaram a existência de uma tendência recente em direção a nãopermeabilidade e a permeabilidade qualificada, bem como no sentido da aplicação de fatores materiais internos e externos. Finalmente, observou-se que a permeabilidade encontrada não é uniforme, variando de acordo com a matéria geral, a matéria específica, o tempo e o tribunal considerado. Esse fato evidencia a necessidade de que, nas decisões judiciais, os magistrados se desvinculem de modelos doutrinários preconcebidos sobre a relação entre o interno e o internacional e se esforcem mais para compreender as implicações das considerações políticas e valorativas que informam suas atividades. Como já havia sido levantado na parte teórica da dissertação, talvez, ao contrário de buscar formulações jurídicas que ofereçam soluções universais e diretamente aplicáveis a todos os casos submetidos à análise do Poder Judiciário, seja mais importante refletir sobre a necessidade da inclusão de considerações políticas e valorativas nas decisões judiciais, ao lado dos fatores jurídico-formais.