Políticas Culturais e Democracias Locais: desafios para as próximas

Propaganda
Publicado em Esquerda (http://www.esquerda.net)
Início > Políticas Culturais e Democracias Locais: desafios para as próximas eleições autárquicas (I)
Políticas Culturais e Democracias Locais: desafios para
as próximas eleições autárquicas (I)
Author(s):
Rui Matoso [1]
Show Author Info?:
0
Se a sociedade politicamente organizada não acionar processos de re-democratização, pode
estar em causa a sobrevivência da democracia.
O que vem não será uma ditadura. Será uma ditamole ou uma democradura.
Boaventura de Sousa-Santos, in revista Visão, 13 de Setembro de 2007
Com este texto inicio um conjunto de reflexões em torno das políticas culturais locais e da redemocratização da vida pública. Julgo ser pertinente que o Bloco de Esquerda assuma, nos
seus princípios programáticos para as próximas eleições autárquicas, um conjunto de
propostas que visem a democracia e a cidadania cultural como eixo fundamental das
políticas públicas ao nível local.
Em contexto de crise generalizada (económica, social e política) a dimensão cultural das
políticas públicas locais é frequentemente desprezada, justificando-se consensualmente
pelos défices das contas públicas, situações de carência social ou falta de infraestruturas de
saneamento básico. Esta postura radica ainda no então designado ?grau zero do poder local?
1, ou seja, num funcionamento excessivamente consensual da ação política e na sua
contrapartida mais elementar: o fazer obra. É ainda hoje bastante usual observar que o
planeamento estratégico dos Presidentes de Câmara se baseia numa carteira de projetos de
construção (algumas destinadas a fins culturais), cujas imagens e maquetas servem de
engodo em cada ciclo eleitoral.
O diagnóstico relativo às debilidades do poder local está feito há muito: ?...entre as
condicionantes da autonomia e as das potencialidades do poder autárquico, a ação política
municipal parece caracterizar-se sobretudo por um défice de poder. O processo de
democratização, de diferenciação da sociedade e do desenvolvimento local, impõem uma
maior capacidade de seleção de alternativas...conducentes a uma dinamização do
desenvolvimento local.?2. É preciso entender aqui ?défice de poder local? como falta de
distribuição de poder (poder relacional) pelos diversos grupos de atores sociais locais,
gerando assim uma acumulação de poder nas mãos do ?César local?. É aliás sabido que os
autarcas recorrem frequentemente às vias informais, aos contactos pessoais e às
cumplicidades partidárias dando assim azo à formação de clientelas e ao centralismo da
administração local, daí o chamado "cesarismo local". É este, diz Boaventura Sousa-Santos,
o paradoxo do poder local no nosso país: Presidentes de Câmara fortes coexistem com um
poder local fraco.
A construção e a seleção de alternativas políticas e sociais, num mundo interdependente e
em sociedades hipermediatizadas, só poderá florescer e intensificar-se num contexto de
cidadania cultural sinónima do exercício de liberdades e direitos culturais. O que de
fundamental uma política cultural ao nível municipal deve propor é uma Cultura Cívica, a
cultura promovida com os cidadãos, sempre no plural. A tónica no pluralismo é uma
preocupação central, pois não se pode reduzir a produção cultural de uma sociedade à
hegemonia ou ao pensamento único. Aliás, como refere a UNESCO, a diversidade cultural é
o maior tesouro da humanidade, pelo que deve ser protegido e valorizado.
As cidades ideais são entidades dinâmicas, e por isso mesmo geram novas formas de
organização, novos projetos e novas relações sociais consubstanciadas em redes locais de
tipologias diversas. Daqui resulta que os direitos políticos e os direitos culturais sejam direitos
de cidadania, isto é, direitos cuja efetividade dependem da ação coletiva dos cidadãos, e não
apenas de atos isolados ou atomizados, como a lógica do individualismo neoliberal pretende
insistentemente fazer crer. Neste sentido, a cultura ? enquanto dimensão de política pública ?
não pode continuar a ser entendida como mero entretenimento ou ocupação dos tempos
livres vocacionada para a distração dos cidadãos mais aborrecidos, mas antes como uma
capacidade ativa de cidadania: como conjunto de ferramentas simbólicas e conceptuais que
os membros de uma comunidade necessitam para lidar com a realidade difusa do mundo
contemporâneo e para elaborar novas estratégias de vida coletiva.
Não confundimos por isso cultura com indústria do entretenimento ou com as indústrias
criativas da moda. Cultura é uma capacidade individual e coletiva numa dinâmica de
desenvolvimento e integrada num projeto coletivo para um determinado território. Enquanto
que entretenimento tende a ser consolação anestesiante e cómoda perante as perplexidades
complexas do mundo atual, e cuja perspetiva implica exclusivamente a visão do cidadão
como mero consumidor: «o idiota feliz». Uma política pública não pode conformar-se com esta
visão hiperconsumista e hiperindividualista. É que uma cidade não é um shopping.
Por um lado, a cultura tende a englobar o repertório de uma sociedade, o seu conjunto de
traços distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afetivos: estilos de vida (padrões de
cultura), tradições, patrimónios, memórias, identidades, costumes, valores e significados.
Numa atitude que valorize o passado enquanto memória coletiva, sem que isso conduza a
uma cristalização dos fenómenos culturais, reconhecendo-se assim que todas as identidades
culturais são dinâmicas. Por outro, a cultura na sua componente setorial ligada às artes, às
criatividades, aos conhecimentos, às ciências e às tecnologias, proporciona-nos um maior
capital de inovação, uma atmosfera de vitalidade e um vasto stock de experiências
absolutamente necessárias para o futuro de uma cidade que se pretenda como lugar de vida
vibrante, sustentável e socialmente justa.
(continua)
1«Uma das razões, julgamos, que podem explicar este consenso é o que denominamos de
"grau zero do poder local-, entendido como a aceitação relativamente pacifica e generalizada,
da necessidade, durante uma primeira fase de implementação do poder local (1974-1984), de
um programa de acção centrado na criação de infraestruturas e equipamentos sociais» JUAN
MOZZICAFREDO, ISABEL GUERRA, MARGARIDA A. FERNANDES, JOÁO QUINTELA
[1988]. Revista Crítica de Ciências Sociais nº 25/26
2Idem, p. 111
Sumário da Home:
A cultura ? enquanto dimensão de política pública ? não pode continuar a ser entendida
como mero entretenimento ou ocupação dos tempos livres vocacionada para a distração dos
cidadãos mais aborrecidos, mas antes como uma capacidade ativa de cidadania.
Lead:
A cultura ? enquanto dimensão de política pública ? não pode continuar a ser entendida
como mero entretenimento ou ocupação dos tempos livres vocacionada para a distração dos
cidadãos mais aborrecidos, mas antes como uma capacidade ativa de cidadania.
Sobre o/a autor(a):
Biblioteca
Agenda
Jornal Esquerda
Blogosfera
Comunidade
Revista Vírus
Wikifugas
Ficha Técnica
URL de origem: http://www.esquerda.net/opiniao/pol%C3%ADticas-culturais-e-democracias-locaisdesafios-para-pr%C3%B3ximas-elei%C3%A7%C3%B5es-aut%C3%A1rquicas-i/26781
Ligações:
[1] http://www.esquerda.net/autor/rui-matoso
Download