resgate da cidadania das pessoas portadoras de transtornos

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REFORMA PSIQUIÁTRICA E POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE
MENTAL NO BRASIL: RESGATE DA CIDADANIA DAS PESSOAS
PORTADORAS DE TRANSTORNOS MENTAIS.
PSYCHIATRIC REFORM PUBLIC POLICY AND MENTAL
HEALTH IN BRAZIL: PURCHASE OF CITIZENSHIP OF
PERSONS MENTAL DISORDERS.
Vanessa Batista Oliveira Lima 1
Joffre do Rêgo Castello Branco Neto 2
RESUMO
Nos últimos séculos, profundas alterações filosófico-políticas na percepção sobre a doença mental pela
família, sociedade e Estado, com destaque à ruptura havida no final do século XX, quando novo
paradigma legal de formas de implementação e proteção da saúde mental passa a ser pensado e, no Brasil,
se implantou através da Lei Federal 10.216/2001, que por sua vez é resultado de uma longa luta, que
perdura desde os anos 70, em busca de da criação de um sistema de desinstitucionalização, que cuide,
ampare e que não isole ou exclua a pessoa que sofre de algum tipo de transtorno mental. O presente artigo
pretende abordar importância da mudança de paradigma no tratamento dos portadores de transtornos
mentais resgatando a cidadania dos mesmos e os tratando com dignidade e os reinserindo na sociedade.
Passando o portador de doença mental ser pensado e tratado como sujeito de sua história e não apenas
como um mero objeto a ser manipulado pelos que detém as ferramentas de controle do poder.
PALAVRAS-CHAVE: REFORMA PSIQUIÁTRICA. CIDADANIA. POLÍTICAS PÚBLICAS.
ABSTRACT
In recent centuries, deep philosophical and political changes in perception about mental illness by the
family, society and state, especially the disruption that took place in the late twentieth century, when new
paradigm of legal forms of protection and implementation of mental health is thought to be and in Brazil,
was implanted through the Federal Law 10.216/2001, which in turn is the result of a long struggle, which
lasted since the 70s, seeking the creation of a system of deinstitutionalization, that cares, and that sustain
not isolate or exclude the person suffering from some type of mental disorder. This article seeks to
address the importance of paradigm shift in the treatment of mental disorders citizenship rescuing them
and treating them with dignity and re-entering society. Passing the mental patients be considered and
treated as subjects of their history and not just as a mere object to be manipulated by holding the control
tools of power.
KEY-WORDS: PSYCHIATRIC REFORM. CITIZENCHIP. PUBLIC POLICY.
INTRODUÇÃO
O estudo das interrelações entre a saúde mental e direitos humanos situa-se num
campo interdisciplinar complexo, abrangente, que se apresenta como ponto de encontro
1
Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, bolsista FUNCAP e
especialista em Processo Civil pela FFB. E-mail: [email protected]
2
Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, bolsista FUNCAP e
especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo CEUT. E-mail: [email protected]
1
de áreas de conhecimento tão diversas como o Direito, a Psiquiatria, a Psicologia, a
Antropologia, a Epidemiologia.
A discussão a respeito da Reforma Psiquátrica, como medida de resgate da
cidadania e dignidade das pessoas portadoras de transtornos mentais, atribuída a cada
um dos ramos que integram os serviços de Saúde Mental, freqüentemente provoca a
equivocada idéia de que são estanques e incomunicáveis. Existe interdisciplinaridade,
ramos dos mais diversos conhecimentos, como Saúde, Direito, Economia, Política,
estão envolvidos e tem que se conscientizar do exercício de suas atividades para
implementar a Lei 10.216/2001.
Em tal contexto, quando vários são os debates e mais ainda as críticas em razão da
propalada Reforma Psiquiátrica, revela-se oportuno estudar a redistribuição dos papeis
de cada um e tomada de consciência de que é preciso tratar os pacientes de transtornos
mentais não os “coisificando”, mas os enxergando como sujeito de suas próprias
histórias. É necessário demonstrar que a ampliação da Rede assistencial, conforme
preleciona a Lei 10.216/2001, Convenções, Relatórios da ONU, Conferências,
internacionais, nacionais e regionais sobre saúde mental, pode representar uma
significativa melhoria na prestação de serviços de saúde mental.
A pesquisa realizada para a elaboração do trabalho, tem como objetivo principal
expor alguns dos desafios a serem enfrentados para a plena efetivação da Reforma
Psiquiátrica no Brasil, que respaldada
legalmente com a promulgação da Lei
10.216/2001. O primeiro tópico será feita uma breve explanação acerca do tema:
Direitos humanos e saúde mental. Em seguida será realizada uma contextualização da
reforma psiquiátrica no Brasil. No terceiro tópico será analisada a desinstitucionalização
e a inclusão social do doente mental. Após será abordada a reforma psiquiátrica e o
resgate da cidadania do doente mental. No quinto tópico será estudada a forma de
Implementação de políticas públicas de saúde mental no Brasil, Por fim serão feitas
algumas considerações finais. Em relação aos aspectos metodológicos, as hipóteses
foram investigadas através de pesquisa bibliográfica e documental. No que tange à
tipologia da pesquisa é, segundo a utilização dos resultados, pura, pois não tem como
objetivo mudanças na realidade, almeja-se apenas um acréscimo de conhecimento aos
que dela venham a se utilizar. Segundo a abordagem é uma pesquisa qualitativa, pois
2
seu critério não é numérico, visando apenas aprofundar e abranger os conceitos e
teorias.
1 DIREITOS HUMANOS E SAÚDE MENTAL
A expressão “pessoas portadoras de transtornos mentais” foi a escolhida pela Lei
10.216/2001. Embora ainda não exista consenso quanto ao termo adequado para
designar tais pessoas, como lembra Ana Maria Lobosque (2001, p. 37), no entanto, é
preciso esclarecer que a denominação, atualmente, passou a ser aceita do ponto de vista
jurídico, uma vez que a lei a instituiu. É utilizada ainda a denominação “pessoa
acometida de transtorno mental”, primeiramente mencionada nos “Princípios para a
Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e a Melhoria da Assistência à
Saúde Mental”, da Organização das Nações Unidas – ONU, estabelecidos no ano de
1991. Sobre a importância da expressão que designa o paciente portador de trantrono
mental, acrescenta Gustavo Pinheiro (2009, p. 18)
A terminologia legal se torna questão relevante em decorrência do
preconceito e do estigma que se busca afastar, sendo atualmente inaceitável
o emprego de expressões pejorativas para designar aqueles que a lei da
reforma psiquiátrica buscou proteger. A utilização de terminologia
ultrapassada e ofensiva no trato à pessoa portadora de transtorno mental
poderá acarretar dano à honra e à imagem das referidas pessoas, sendo
assegurado o direito à indenização por danos materiais ou morais, nos
termos do art. 5º, X da Constituição Federal.
A preocupação do legislador com a terminologia tem relevância histórica,
haja vista o estigma experimentado por todas aquelas pessoas acometidas de
desordens mentais.
(...)
Essa preocupação com a terminologia em saúde mental decorre da nova
filosofia para a seara, nitidamente mais humana, uma vez fundada no
respeito aos direitos fundamentais das pessoas envolvidas.
A Resolução 46/119 aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 17 de
dezembro de 1991, sobre a proteção das pessoas com doenças mentais e a melhoria da
assistência à saúde mental é um marco no campo dos direitos das pessoas com doenças
mentais. Bertolote (p. 154, 1995) adverte que “um problema crucial em relação à
questão dos direitos humanos dos portadores de diagnósticos de doença mental é o
antagonismo entre o enfoque de Saúde Pública e o dos Direitos Humanos.” Pois “o
3
primeiro se preocupa prioritariamente com a maioria da população , opera em nível
coletivo e privilegia a equidade”, já o segundo assevera Betorlote (p. 154, 1995) “se
preocupa fundamentalmente com a exceção, opera em nível individual e insiste em
igualdade.”
Por certo, os princípios para a proteção das pessoas acometidas de transtornos
mentais editados pela Organização das Nações Unidas não foram positivados pelo
legislador nacional, que se limitou a editar a lei 10.216/2001, nem de longe abrangente
de todos os direitos prescritos pela Declaração Internacional. Mesmo sem a força
jurídica de uma norma posta pelo legislador brasileiro, contudo, a mencionada Carta de
Princípios deve ser observada, divulgada e exigida, pois traz latente o poderoso germe
da legitimidade internacional e o consenso universal acerca dos direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais.
O que hoje se denomina de direito fundamental à saúde mental está diretamente
ligado à forma como historicamente foi tratada a questão referente aos cuidados
dispensados às pessoas portadoras de transtornos mentais, como a internação destes em
instituições, os manicômios, esses muito comuns durante a Idade Média no velho
continente. O denominado ‘louco’ passa a ser excluído da sociedade, pois ele perturba a
ordem do espaço social.
Da lavra de Gustavo Pinheiro o conceito de saúde mental pode ser definido como
“aquele estado de bem-estar psíquico, psicológico e mental, decorrente de percepção
íntima e social integrada nas concepções político-constitucionais do Estado
Democrático de Direito.” Prossegue Pinheiro que:
A maior política de saúde mental do País deve ser sempre fundada na
dignidade humana, que fundamenta nossa Constituição, e, por isso, não se
deve esperar por nenhum outro marco jurídico ou político para se deflagrar a
revolução em saúde mental, que a Constituição Federal já deflagrou em 05 de
outubro de 1988.
A evolução democrática e constitucional chegou ao momento da concreção
dos direitos fundamentais sociais, caminho irreversível, a despeito da alegada
reserva de possibilidade dos poderes públicos, de legitimidade questionável,
não se podendo mais admitir que, por suposta ausência ou abstração de
conceitos, sejam privados a sociedade e os indivíduos de suas possibilidades
constitucionais plenas.
A saúde mental de um povo depende da efetivação de sua Constituição
Democrática, documento que, no Estado Democrático de Direito, sempre vai
apontar para a liberdade e respeito aos direitos fundamentais da população.
4
No campo específico da assistência em saúde mental,
conforme informação
contida no Relatório da III Conferencia em Saúde Mental, “apesar da redução do
número de leitos e da redução do número de hospitais psiquiátricos, os dados de 2000
indicam a permanência de 61.393 leitos e 260 hospitais, sendo que 80% pertence ao
setor privado contratado. Fonte: DATASUS/MS; (2001, p. 18). Tem sido constatada a
violação dos direitos humanos fundamentais em diversas vistorias, “dentre as quais a
vistoria realizada em vinte hospitais psiquiátricos pela Comissão de Direitos Humanos
da Câmara dos Deputados, conforme relatório da I Caravana Nacional de Direitos
Humanos (2000)” (2001, p. 18)
Com a promulgação da lei 10.216/2001, depois de mais de doze anos tramitando
no Congresso, o tema dos direitos humanos é colocado no centro do debate da reforma
psiquiátrica, e deve ser vista, conforme consta no Relatório da III Conferencia sobre
saúde mental, como um “poderoso instrumento para a conquista da cidadania dos
usuários e familiares. O germe da idéia de cidadania é justamente este: compartilhar
uma cidade, convivendo com outros cidadãos em busca do bem comum, com direitos e
deveres.” (2001, p. 34) Aliás, cidadania é um dos principais enfoques da Reforma
Psiquiátrica no Brasil:
“O tema da cidadania do louco, do estatuto especial da tutela, da construção
quotidiana de novos direitos e assunção de novos deveres, está presente nos
corações, mentes, gestos e textos dos técnicos, pacientes e familiares do
campo da reforma.”
A pessoa portadora de transtornos mentais, vê-se impedida de exercer a sua
cidadania pois com a institucionalização, mais do que com a doença, sofre com
a
discriminação, proibida pelo artigo primeiro da Lei nº 10.216/2001, já que, por ser
institucionalizado, torpemente excluído da comunidade, o ser humano com sofrimento
mental vê seus direitos e a proteção aludidos na mencionada norma afastados, violados
ainda, de uma só vez, o princípio da dignidade humana (art. 1º, III, CF/88), o direito de
ir e vir, a autonomia sobre o próprio corpo, o direito a não-marginalização (art. 3º, III,
CF/88), entre outros dispositivos fundamentais.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO
BRASIL
5
O Sistema Único de Saúde – SUS, instituído pelas Leis Federais 8.080/1990 e
8.142/1990, tem como determinante “saúde como direito de todos e dever do Estado”,
previsto na Constituição Federal de 1988. Esse sistema alicerça-se nos princípios de
acesso universal, público e gratuito às ações e serviços de saúde; integralidade das
ações, cuidando do indivíduo como um todo e não como um amontoado de partes;
eqüidade, como o dever de atender igualmente o direito de cada um, respeitando suas
diferenças; descentralização dos recursos de saúde, garantindo cuidado de boa qualidade
o mais próximo dos usuários que dele necessitam; controle social exercido pelos
Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde com representação dos usuários,
trabalhadores, prestadores, organizações da sociedade civil e instituições formadoras.
Deve-se compreender o termo ‘saúde’ de forma ampla englobando a saúde física e
mental. Elisabeth Espiridião alerta que a Reforma Psiquiátrica visa criar ações que
visem a dignidade do portador de transtorno mental:
Os movimentos precursores da Reforma Psiquiátrica brasileira, surgidos nos
Estados Unidos e Europa a partir de meados do século XX, apontavam
críticas ao atendimento dispensado aos portadores de doença mental, quando
eram excluídos e segregados da sociedade, demandando ações com vistas a
um atendimento mais humanizado, de forma a garantir sua dignidade,
enquanto cidadão. (ESPIRIDIÃO, 2001)
No Brasil a política de saúde mental foi influenciada pelas idéias de Reforma
Psiquiátrica italiana. É com este pensamento que a legislação sobre saúde mental no
país dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por novas
modalidades de atendimento, tais como: hospitais-dia, Centros de Atenção Psicossocial
– CAPS e Núcleos de Atenção Psicossocial – NAPS, trata dos direitos do portador de
transtorno mental, articulado à luta em defesa dos interesses do portador de transtorno
mental. Um novo sistema de saúde mental começa a ser estruturado no Brasil, cujos
serviços substitutivos ao manicômio se propõem ao cuidado de portadores de
sofrimentos psíquicos. A Lei n. 10.708, de 31 de julho de 2003, conhecida como Lei do
Programa De Volta Para Casa estabeleceu um novo patamar na história do processo de
reforma psiquiátrica brasileira, impulsionando a desinstitucionalização de pacientes com
longo tempo de permanência em hospital psiquiátrico, pela concessão de auxílio
reabilitação psicossocial e inclusão em programas extra-hospitalares de atenção em
saúde mental Sobre o assunto, assim se manifestam Medeiros e Guimarães:
O movimento de Reforma Psiquiátrica brasileira vem encampando propostas
de desinstitucionalização reforçadas pela Luta Antimanicomial. Este projeto
de mudança representado no nível federal pelo projeto de lei supracitado, e
6
em alguns Estados da federação por projetos similares – como, por exemplo,
no Rio Grande do Sul, em 1992; no Ceará, em 1993; em Pernambuco, em
1994; no Rio Grande do Norte, em 1995; em Minas Gerais, em 1995 e no
Paraná, em 1995 – é o resultado de um dos mais importantes processos de
mudanças culturais para a sociedade brasileira nesse final de século, que diz
respeito a uma revisão dos aparatos científicos, administrativos, jurídicos e
éticos, relacionados com a doença mental. (2002, p. 577)
Nos últimos séculos, profundas alterações filosófico-políticas na percepção sobre
a doença mental pela família, sociedade e Estado, com destaque à ruptura havida no
final do século XX, quando novo paradigma legal de formas de implementação e
proteção da saúde mental passa a ser pensado e, no Brasil, se implantou através da Lei
Federal 10.216/2001, que por sua vez é resultado de uma longa luta, que perdura desde
os anos 70, em busca de da criação de um sistema de desinstitucionalização, que cuide,
ampare e que não isole ou exclua a pessoa que sofre de algum tipo de transtorno mental.
Conforme Delgado et al (2007, p. 39) o início da Reforma Psiquiátrica no Brasil é
contemporâneo do chamado “movimento sanitário”, nos anos 70, que apregoava a
“mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, (...) eqüidade na
oferta dos serviços, e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde
nos processos de gestão”, referidos autores acrescentam ainda que a Reforma
Psiquiátrica:
é um processo político e social complexo, composto de atores, instituições e
forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos
governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos
serviços de saúde, nos conselhos profisssionais, nas associações de pessoas
com transtornos mentais e seus familiares, nos movimentos sociais e nos
territórios do imaginário social e da opinião pública. Compreendida como um
conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é
no cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações
interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcada por
impasses, tensões, conflitos e desafios. (2007, p. 39)
Em 1990 foi realizada a Conferência Regional de Caracas, sob patrocínio da
Organização Pan-Americana de Saúde, da qual resultou a Declaração de Caracas, que se
representa um marco fundamental a embasar as iniciativas de reestruturação da atenção
em saúde mental no Continente. Após 15 anos da referida Conferencia, foi realizada no
Brasil, em 2.005, a Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15
anos depois de Caracas, que como o título revela, trata da Reforma da Saúde Mental no
Brasil. Veja-se trecho do Relatório da referida Conferencia que se refere à Reforma
Psiquiátrica:
7
Embora contemporâneo da Reforma Sanitária, o processo de Reforma
Psiquiátrica relação tem uma história própria, inscrita num contexto
internacional de mudanças pela superação da violência asilar. Fundado, ao
final dos anos 70, na crise do modelo de assistência centrado no hospital
psiquiátrico, por um lado, e na eclosão, por outro, dos esforços dos
movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, o processo da
Reforma Psiquiátrica brasileira é maior do que a sanção de novas leis e
normas e maior do que o conjunto de mudanças nas políticas governamentais
e nos serviços de saúde. A Reforma Psiquiátrica é processo político e social
complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, e
que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e
municipal, nas universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos
conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos mentais
e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário
social e da opinião pública. Compreendida como um conjunto de
transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é no cotidiano
da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o
processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões,
conflitos e desafios.
É somente no ano de 2001, após 12 anos de tramitação no Congresso
Nacional, que a Lei Paulo Delgado é sancionada no país. A aprovação, no
entanto, é de um substitutivo do Projeto de Lei original, que traz
modificações importantes no texto normativo. Assim, a Lei Federal 10.216
redireciona a assistência em saúde mental, privilegiando o oferecimento de
tratamento em serviços de base comunitária, dispõe sobre a proteção e os
direitos das pessoas com transtornos mentais, mas não institui mecanismos
claros para a progressiva extinção dos manicômios. Ainda assim, a
promulgação da lei 10.216 impõe novo impulso e novo ritmo para o processo
de Reforma Psiquiátrica no Brasil. É no contexto da promulgação da lei
10.216 e da realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, que a
política de saúde mental do governo federal, alinhada com as diretrizes da
Reforma Psiquiátrica, passa a consolidar-se, ganhando maior sustentação e
visibilidade.
Com efeito, a Organização Mundial da Saúde – OMS entende que o hospital
psiquiátrico é uma instituição deficiente e violadora dos direitos humanos, além de levar
à cronicidade dos pacientes. Com base nesta constatação que a Reforma psiquiátrica no
Brasil paulatinamente vem se guiando, mesmo que a demorados passos. Na atualidade,
acerca da realidade brasileira, assevera o Conselho Federal de Psicologia:
Enfrentamos ainda a existência de cerca de 60 mil leitos. Destes,
cerca de 80% pertencem a uma rede privada conveniada que consome
quase meio bilhão de reais por ano dos recursos do SUS. Deste total,
cerca de 20 mil leitos estão ocupados por pacientes-moradores. Este é
o retrato mais perverso da psiquiatria. São pessoas completamente
abandonadas pela família e pela sociedade, sem nenhuma perspectiva
de vida e que representam, individualmente, em termos de custo ao
Estado, cerca de R$ 1.000,00 por mês, repassados diretamente para
estas instituições asilares. (2002, p. 131)
8
A OMS, contudo, não defende o fechamento puro e simples dessas instituições
ultrapassadas, pois, segundo ela, o fechamento dos hospitais psiquiátricos deve ser
acompanhado da criação de alternativas comunitárias, sendo certo que as duas coisas
terão de ocorrer ao mesmo tempo, de uma forma bem coordenada e paulatina, para que
a desinstitucionalização possa ser eficiente. E é diante desta nova realidade que a Lei
10.216/2001 preceitua a criação e implementação de uma rede substitutiva em saúde
mental, além do reconhecimento e exercício das possibilidades que oferece a
Constituição Federal. Rede esta composta, dentre outros programas, pelos Centros de
Atendimento Psicossocial-CAPS, hospital-dia, hospital-noite, leitos psiquiátricos em
hospitais gerais, residências terapêuticas para os cronificados etc. Somente essa nova
estrutura reaverá resgatar a cidadania e a dignidade do paciente internado, segundo
entendimento de Gustavo Pinheiro (2009).
Há certo consenso de que uma das metas prioritárias no campo da saúde mental é
a inversão do padrão atual de atendimento, que apesar da Lei 10.216/2001, ainda não foi
concretizada, pois é basicamente fundado no tratamento hospitalar.
3. A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO E A INCLUSÃO SOCIAL DO
DOENTE MENTAL
A determinação constitucional de proibição à tortura e ao tratamento desumano ou
degradante aliada ao princípio da dignidade da pessoa humana, como já se disse, podem
ser entendidos como as normas fundantes da reforma psiquiátrica brasileira, uma vez
que o modelo de assistência anterior, que tem o hospital psiquiátrico como centro
(hospitalocêntrico), é reconhecido internacionalmente, sobretudo pela Organização
Mundial de Saúde, como violador dos direitos humanos, afirmando a dita organização
mundial que o malogro dos manicômios é evidenciado.
Conforme ressaltam Taia Duarte Mota e Sônia Barros (on line) “o processo de
reforma psiquiátrica no Brasil tem tomado como tema a condição de exclusão, na qual
os doentes mentais se encontram.” Prosseguem as autoras afirmando que na Reforma
foram discutidas “questões relacionadas à inserção dos loucos no mundo, tomando
9
como tarefa principal a cidadania entendida como projeto aberto às singularidades e
especificidades de diversas formas de expressão da condição humana.”
“Pensar a inclusão social do doente mental torna-se mais complexo, na medida em
que, esse sujeito vive um conflito crônico de não inserção pela própria condição de
saúde pelo mundo do trabalho.Podemos pensar na reabilitação desses indivíduos, o que
significa ajudá-los a ter mais autonomia, mais independência e pooder criar normas
para dirigir suas próprias vidas.”
Em artigo recente, Priscila Piazentini Vieira (2007):
A internação, portanto, é uma criação institucional própria ao século XVII e
assume um sentido inteiramente diferente da prisão na Idade Média. É, assim,
de uma invenção e não de uma evolução que Foucault trata. De um evento
decisivo que rompe e modifica o sentido anteriormente reservado ao
internamento. Um evento importante para a própria loucura, que agora é
percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho e
da impossibilidade de integrar-se ao grupo, modificando o seu sentido
drasticamente. Nasce, assim, uma nova sensibilidade em relação à loucura, na
qual esta é arrancada de sua liberdade imaginária tão presente na
Renascença e se vê reclusa pelo internamento e ligada à Razão e às regras da
moral.
Dessa forma, entendemos a desinstitucionalização, não apenas como a mera
desospitalização desse sujeito ou a suposta humanização dos locais de segregação e de
furto da liberdade, mas consoante o pensamento de Boarini (2000), como um processo
capaz de produzir com originalidade uma sociedade fundamentada no exercício pleno da
cidadania, da liberdade, da justiça social e no pleno respeito aos diferentes, entre outros
princípios. Portanto, seguindo os passos da Reforma Psiquiátrica, buscar a
desinstitucionalização do portador de transtorno mental é propor a construção de um
processo complexo, que intencione tratar da desconstrução/reconstrução de conceitos
fundamentais da psiquiatria (doença mental/saúde mental, normalidade/anormalidade), e
criar possibilidades materiais para que os sujeitos possam enfrentar os desafios na
superação da exclusão. Sobre o tema acrescenta Fernanda Otoni de Barros (2001, p.
129):
A dificuldade deste trabalho encontra-se no enfrentamento cotidiano de uma
certa cultura de exclusão... cultura que tem horror daquilo que a loucura
anuncia: uma certa desordem que escapa ao sentido daqueles que pretendem
sustentar a utopia de realizar todo o controle da ordem social, mediante a
10
segregação dos diferentes. A sociedade, juntamente com a ciência, excluiu
esses indivíduos para os porões da loucura e construíram argumentos
inabaláveis para deixá-los por lá. Foi preciso construir a utopia de que era
possível conter, controlar, mensurar aquilo que aparece como fora-da-lei. O
mais forte desses argumentos é o da periculosidade, que determina a priori
que a loucura é uma coisa muito perigosa e que todos os esforços devem ser
realizados para excluir essa coisa louca do convívio social. Imediatamente
devemos nos perguntar em que tempo sócio-histórico e qual a ideologia
política que produziu esse conceito.
Como ressalta Geralda Alves (2006, p. 20):
O processo de exclusão permeia as políticas para a área desde a incorporação
da loucura como objeto da Medicina, ocorrida no século XVIII, até o início
dos anos 1990. A partir daí, já sob forte influência da Psiquiatria Democrática
italiana, e de sua experiência de substituição dos hospitais psiquiátricos, uma
oferta diversificada de programas foi incluída nas políticas públicas de Saúde
Mental.
Alex Reinecke de Alverga e Magda Dimenstein (2006)
A reforma psiquiátrica, apesar dos diversos avanços evidenciados tanto em
nível local quanto nacional, ainda apresenta muitos desafios e impasses na
gestão de uma rede de atenção em saúde mental para o cuidar em liberdade.
Alguns desses pontos podem ser assinalados: a forma de alocação de recursos
financeiros do SUS e suas repercussões no modelo assistencial proposto para
os serviços substitutivos; aumento considerável da demanda em saúde mental
(especialmente os casos de usuários de álcool e outras drogas, bem como de
atenção para crianças e adolescentes); diminuição importante, mas ainda
insuficiente, dos gastos com internação psiquiátrica (modelo hospitalar ainda
dominante, o que reflete a política ideológica dos hospitais psiquiátricos),
fragilidades em termos de abrangência, acessibilidade, diversificação das
ações, qualificação do cuidado e da formação profissional, bem como um
imaginário social calcado no preconceito/rejeição em relação à
loucura.Entretanto, e não obstante toda problemática apresentada,
pretendemos discutir o que consideramos o pilar central para a sustentação
deste processo: a proposta de projetos terapêuticos ancorados na idéia de
reinserção social, na busca da afirmação da autonomia e cidadania do louco.
As variadas formas de tratamento, visando a desinstitucionalização e
privilegiando medidas que possibilitem a reinserção do portador de doença mental à
sociedade possibilita aos pacientes tornarem-se sujeitos de suas histórias. Com isso,
acredita-se que seja possível a criação de um espaço diferenciado dentro das instituições
psiquiátricas, que invista no potencial saudável do indivíduo, que tem a possibilidade de
ressignificação de questões pessoais que ultrapassam os limites institucionais. Desta
forma acredita-se que a Lei 10.216/2001 possa representar um grande passo para a
construção de um novo olhar sobre o sofrimento psíquico grave que sustenta uma
atuação voltada para os processos de subjetivação, resgate da cidadania e inclusão
social.
11
4. A REFORMA PSIQUIÁTRICA E O RESGATE DA CIDADANIA
DO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL
O movimento de reforma psiquiátrica brasileiro é parte integrante da construção
da democracia no país. A promulgação da Constituição Brasileira no ano de 1988 marca
o movimento político de descentralização democrática e financeira em direção aos
municípios da federação. A legislação reformista de saúde mental é necessária enquanto
garantia legal de direitos. A principal ferramenta de concretização da democracia é o
exercício da cidadania, no caso do objeto deste estudo, a reforma psiquiátrica visa
reinserir o doente mental na sociedade, cuja inclusão já é possibilitada através de
mecanismos que tratam o indivíduo portador de algum transtorno mental como sujeito
de direitos.
Para Alice Guimarães Bottaro de Oliveira (on line), ao se afirmar os direitos de
cidadania dos doentes mentais no contexto da Reforma Psiquiátrica atualmente é
necessário ir além da aparência de que a reforma necessária relaciona-se à necessidade
de novos equipamentos e dispositivos de assistência. Trata-se, “de uma crítica radical ao
saber construído a partir do objeto “doença mental”. Há necessidade de se definir um
“novo objeto” de conhecimento e de assistência: não mais o doente mental que necessita
ser isolado para ser recuperado,”. Mas, prossegue a autora, ir além e enxergá-lo como
“uma pessoa diferente dos padrões culturais e que, ainda assim, pode ter direitos de
cidadania, ou seja, de estar “incluído” como sujeito de direitos nesta sociedade.”
Conforme consta no Relatório Final da “III Conferência Nacional de Saúde
Mental” realizada em Brasília em 2001 “A Reforma Psiquiátrica tem na essência de sua
motivação a busca incessante do direito e da cidadania.” (2001, p. 8) Por isto mesmo
não pode ser vista dissociada de todas as dificuldades enfrentadas pela humanidade
atualmente tais como” “a deterioração da qualidade de vida, da marginalização
crescente de grandes contingentes populacionais e da exacerbação das diferenças entre
ricos e pobres, frutos da economia neoliberal concomitante ao processo de
globalização.”(2001, p. 8) Assim a Reforma Psiquiatrica preconiza a “a reabilitação
psicossocial das pessoas que apresentam transtornos mentais, mediante princípios como
respeito e recontextualização das suas diferenças, preservação de sua identidade e
12
cidadania”.(2001, p. 8) Há ainda a necessidade de “participação ativa no tratamento por
parte dos familiares e responsáveis, horizontalidade nas relações, multiprofissionalidade
com
interdisciplinaridade,
transforma
o
hospitalismo
e
a
dependência
em
desinstitucionalização e autonomia.” (2001, p. 8)
Aos poucos foi ocorrendo um total isolamento do portador do transtorno mental
da família e da sociedade, colocando-o em instituição especializada, argumentando que
o isolamento era necessário para sua proteção e a da própria sociedade.
Conforme
assevera Freitas e Ribeiro (2008) Críticas à eficácia do internamento asilo ocorreram,
mas foi depois da Segunda Guerra Mundial:
em tempos de crescimento econômico, de reconstrução social, de grande
desenvolvimento dos movimentos civis e de maior tolerância e sensibilidade
às diferenças e minorias que as comunidades profissional e cultural, por vias
diferentes, chegaram à conclusão de que o hospital psiquiátrico deveria ser
transformado ou abolido.
(...)
Surgiu então a proposta da reforma psiquiátrica, iniciada nos anos 70 na
Europa e nos Estados Unidos, que se converteu, segundo Desviat (1999), em
um amplo movimento social em defesa dos direitos humanos dos "loucos" e
dos excluídos da razão. A reforma psiquiátrica surgiu para questionar a
instituição asilar e a prática médica e para humanizar a assistência, fazendo
com que houvesse ênfase na reabilitação ativa em detrimento da custódia e da
segregação. (FREITAS E RIBEIRO, 2008)
Para Wanda Espírito Santo (2009, CD-ROM) “um cidadão não se ”faz” ou se
“desfaz” por decreto. Então, resta-me questionar como ocorrem as transformações? Sem a
reivindicação de cidadania, de tratamento igualitário é impossível que ocorram mudanças.
Pode-se identificar, dentre as categorias que possibilitam a construção do sujeito cidadão, o
sentimento de pertencimento.” Prossegue a autora que “A luta antimanicomial, apesar de
todas as suas dificuldades, fez circular informações nos mais diversificados cantos do
Brasil, (...) fazendo com que os reais interessados se tornassem protagonistas de suas
próprias lutas.”
Para Mirna Yamazato Koda e Maria Inês Assumpção Fernandes são muitas as
mudanças necessárias para a implementação da lei 10.216/2001:
O processo de transformação das práticas no âmbito da saúde mental, assim
como a efetivação dos pressupostos do Movimento de Luta Antimanicomial
13
implicam mudanças em diversos âmbitos: do teórico ao cultural, passando
pelo campo de construção de políticas e modelos de atenção. Busca-se não só
constituir novas práticas no campo da assistência à saúde mental como
também produzir transformações no que diz respeito ao lugar social dado à
loucura, ao diferente, questionando uma cultura que estigmatiza e
marginaliza determinados grupos sociais. (2007, p. 1455)
No Relatório Final da “III Conferência Nacional de Saúde Mental” realizada em
Brasília em 2001, ficou claro que a desinstitucionalização visa superar o modelo asilar,
o que por sua vez:
exige a implantação de uma política de desospitalização/substituição
progressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos, com a concomitante
construção de uma rede substitutiva que assegure assistência integral e de
qualidade de acordo com os princípios da Reforma Psiquiátrica e em
conformidade com a Lei Federal n.º 10.216/01 e Portaria/GM n.º 799/00.
Sobre a necessidade da desinstitucionalização foram aprovadas as seguintes
propostas, conforme consignado no Relatório da III Conferência Nacional de Saúde
Mental:
70. Exigir que os estados e municípios que possuem hospitais psiquiátricos
sob sua gestão elaborem Portarias visando a desativação progressiva, com
metas anuais de redução do número de leitos.
71. Garantir a imediata implementação de uma política de desospitalização,
que deve ser iniciada com o fechamento dos leitos privados e conveniados
com o SUS e, posteriormente, dos leitos públicos, assegurando uma
assistência de qualidade.
72. Garantir a imediata regulamentação de recursos destinados às ações
extra-hospitalares, oriundos da verba de internações
em hospitais
psiquiátricos, para a formação e consolidação da rede de atenção integral.
73. Exigir do Ministério da Saúde que proponha aos municípios um
cronograma de desinstitucionalização das pessoas internadas em hospitais
psiquiátricos, articulado às ações das Secretarias Estaduais de Saúde.
74. Implantar e/ou dar continuidade a uma política de desospitalização
psiquiátrica com o acompanhamento do Serviço de Controle e Avaliação das
Secretarias Municipais de Saúde, visando a alta das pessoas há longo tempo
internadas. Neste processo, garantir que os recursos até então gastos com
AIHs sejam efetivamente utilizados na implantação de Serviços Residenciais
Terapêuticos e para auxiliar no sustento dos usuários e familiares. A
desospitalização de cada usuário deve resultar na automática extinção do
respectivo leito hospitalar.
75. Garantir a Reforma Psiquiátrica no sentido de impedir internações
abusivas e desnecessárias, incentivando a criação de alternativas de
tratamento nos serviços substitutivos em todos os municípios brasileiros, de
forma a respeitar e atender às necessidades e especificidades locais. Neste
processo, garantir que os moradores de hospitais psiquiátricos que
apresentam quadros neurológicos graves e profundos e que se encontram em
situação de abandono recebam assistência efetiva.
76. O processo de substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por outras
formas de assistência exige a potencialização do papel dos familiares nos
cuidados dos portadores de transtornos mentais.
77. Garantir que o processo de reabilitação psicossocial contemple ações
destinadas à clientela com níveis de autonomia e contratualidade reduzidos.
Os dispositivos de saúde devem realizar a intermediação desta clientela com
o social e devem primar pela diversidade de atores, inscrevendo-se no âmbito
14
da cidade. As atividades realizadas por estes dispositivos devem ser
estruturadas e desenvolvidas na dimensão do quotidiano pessoal e social.
78. Garantir que os municípios se responsabilizem pelo processo de
reabilitação e reinserção social dos usuários asilados em hospitais
psiquiátricos e dos egressos de internações psiquiátricas,inclusive realizando
a busca ativa de seus familiares.
79. Garantir a realização de censos hospitalares, mapeando não apenas os
leitos mas, também, o perfil da clientela com prioridade de atenção, tendo em
vista as Portarias GM n.º 106/00 e GM n.º 1220/00.
80. Implementar ações preventivas de saúde mental, que articulem práticas de
promoção de cuidados às vitimas de violência e de desinstitucionalização. (p.
37-38, 2001)
Verônica Saduvette (p. 179, 2001) adverte que o impacto da reforma psiquiátrica
sobre a questão da cidadania foi o de “promover (criando condições para que os
pacientes fossem “vistos” de outro modo, e para que se reconstruísse as rotinas
cotidianas) as possibilidades de resgate de sua dignidade e auto-estima” Prossegue a
autora que este resgate é “condição para que eles próprios se autorizassem a (re)inclusão
na própria organização, na comunidade e na sociedade.” Para Medeiros e Guimarães
(2002, p. 576), o modelo manicomial só torna ainda mais aviltante a situação dos
deontes mentais, pois retiram-lhe a subjetividade e impedem o exercício da cidadania:
O cotidiano nas instituições que adotam implícita ou explicitamente a
estrutura manicomial como modelo de assistência é conhecido,
particularmente, por todos os profissionais que lidam com a área psiquiátrica
e, notoriamente, pela sociedade em geral. Além de uma realidade que causa
indignação desde as primeiras e mais superficiais aproximações, é ainda, em
sua grande maioria, um quadro aviltante à dignidade humana. (...)
O direito de cidadania do doente mental deve ser o direito de receber
assistência adequada, a garantia de participar da sociedade e de não ser pura e
simplesmente jogado em depósitos, como ainda é uma realidade brasileira, na
sua forma mais brutal, nos grandes hospícios públicos ou, nas formas mais
sutis, em clínicas privadas e conveniadas.
Os direitos humanos devem ser interpretados a partir da consideração do ser
humano como objeto e sujeito de direitos de onde se reforça a sua própria concepção e
natureza, a dignidade humana; da mesma forma, os direitos humanos só têm sentido em
um mundo que garanta o atendimento das necessidades básicas e um nível de vida
digno. Ceccarelli (2003, p. 22) sobre a cidadania do portador de transtorno mental aduz
que:
No entanto, falar de cidadania só faz sentido onde existe um compromisso
social não apenas por parte daqueles engajados de maneira mais próxima
com as políticas de saúde mental, mas igualmente da sociedade como um
todo. Este ponto toca uma questão crucial tanto para a implantação quanto
para a continuidade de todo o processo: a disponibilidade de todos para rever
15
arraigadas posições preconceituosas e estigmas seculares em relação ao
portador de sofrimento mental.
A batalha pela construção da cidadania e pela constatação prática que é possível
tratar as pessoas que padecem grave sofrimento psíquico sem hospício tornou-se viável
com a Lei 10.216/2001, passa-se, segundo Lancetti, de uma lei que legislava o nãodireito dos doentes mentais a uma lei fundamentada no direito das pessoas portadoras de
sofrimento mental. No relatório da III Conferencia sobra saúde mental aduz que: “O
desafio da construção da cidadania não se coloca mais como o de desbravar o lugar do
louco na sociedade, mas de traçar grandes e pequenas estratégias para a construção de
uma sociedade inclusiva, de fato democrática.”
5. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE
O modo de efetivação dos direitos sociais, devido a sua natureza diversa não
coincide com o dos direitos individuais. A eficácia dos direitos sociais pressupõe por
um lado a implementação de políticas legislativas e políticas públicas que requerem
investimento significativo de finanças por parte do Poder Executivo. O tema “políticas
públicas” não é um tema ontologicamente jurídico, mas é originário da ciência política,
onde sobressai o caráter eminentemente dinâmico e funcional, que contrasta com a
estabilidade e generalidade jurídicas.
A noção de políticas públicas emergiu como tema de interesse para o direito
com a configuração prestacional do Estado. O interesse para o estudo jurídico das
políticas públicas justifica-se porque estão ligadas ao resguardo dos direitos sociais e
políticos, pois estes demandam do Estado prestações positivas e significam o
alargamento do leque de direito fundamentais, principalmente quanto à efetivação do
direito à saúde mental, objeto de estudo deste artigo. Comparato (1997) acrescenta que
as políticas públicas devem ser dirigidas a uma finalidade, aparecendo como um
conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo
determinado.
Segundo Maria Paula Dallari Bucci, (1996, p. 135) no sistema constitucional
brasileiro, as políticas públicas
podem se traduzir em “programas de ação, cujo
detalhamento ocorre neste tipo de formato, ou seja, em decretos, portarias ou
16
resoluções” Ressaltando que tais “programas e projetos, como instrumentos das
políticas públicas, devem apresentar,sobretudo, o detalhamento das metas, cronogramas
e orçamento à sua implantação e consecução.” Conclui a autora que “ política é mais
ampla que o plano e define-se como o processo de escolha dos meios para a realização
dos objetivos do governo, com a participação dos agentes públicos e privados.” Há um
paralelo entre a “o processo de formulação da política e a atividade de planejamento.”
Nesse sentido, pode-se destacar que, do ponto de vista estrutural, a Reforma
Psiquiátrica Nacional, ao estabelecer metas, fixar o alcance de seus objetivos, bem
como ao trazer, intrinsecamente, a definição das responsabilidades de cada um dos
profissionais de saúde, bem como aqueles que possuem atuação direta ou indireta com a
saúde mental. Pois como adverte Tenório, em termos de políticas públicas, isso significa
que não basta apenas construir dispositivos extrahospitalares, mas garantir que elas se
orientem permanentemente pela tarefa de promover os cuidados que os pacientes
psiquiátricos efetivamente requerem. (Tenório, 1999).
Além das inúmeras querelas – de ordem política, social, econômica, ideológica e
tantas outras – que inflamam o debate acerca das políticas públicas de saúde mental,
uma das mais proeminentes é aquela em torno da luta antimanicomial. No plano do
modelo de gestão das políticas públicas, o novo referencial legal introduzido pela Lei
10.216/2001, com esta alterações, que como já visto foi produto de longa luta por parte
da sociedade, conforme ressalta Pereira e Cunha (2003, p. 12) “é mediante as políticas
públicas que são distribuídos ou redistribuídos bens e serviços sociais, em respostas às
demandas da sociedade.
O tema “políticas públicas” não é um tema ontologicamente jurídico, mas é
originário da ciência política, onde sobressai o caráter eminentemente dinâmico e
funcional, que contrasta com a estabilidade e generalidade jurídicas. A noção de
políticas públicas emergiu como tema de interesse para o direito com a configuração
prestacional do Estado. O
interesse para o estudo jurídico das políticas públicas
justifica-se porque estão ligadas ao resguardo dos direitos sociais e políticos, pois estes
demandam do Estado prestações positivas e significam o alargamento do leque de
direito fundamentais, principalmente quanto à efetivação do direito à saúde mental,
objeto de estudo deste artigo.
17
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O modelo de Reforma Psiquiátrica italiano tem sido a base para a construção
prático-teórica da atual política de saúde mental no Brasil, que em tese, busca a
humanização das relações de cuidado. Trata-se definitivamente de reconstruir todo o
processo de transformação do manicômio desenvolvido ao longo de nossa história e que
deixou sua marca em múltiplas dimensões: do microcosmo da relação terapêutica à
dimensão de uma nova política de cuidado comprometida com o empoderamento do
sujeito. Já por essa definição de serviços de saúde mental estipulada pela Reforma
Psiquiátrica, ora estudada, percebe-se uma inversão radical na perspectiva em que o
problema da Reforma Psiquiátrica era, normalmente, enfocada.
O processo da Reforma Psiquiátrica, cuja proposta primordial é a
desinstitucionalização, tem avançado, ainda que lentamente. Hoje existe um cenário
novo, com um acervo de instituições abertas de cuidado como Centros de Atenção
Psicossocial, Hospitais-Dia e Residências Terapêuticas, Comissões Municipais e
Estaduais de Saúde Mental, Núcleos do Movimento da Luta Antimanicomial,
Associações de Familiares e Usuários e Fórum Municipal da Luta Antimanicomial que
são espaços importantes para profissionais, familiares e usuários levados a efeito por
sujeitos cuja mentalidade busca, em tese, romper com práticas desumanas e degradantes
dos hospícios.
Embora não se possa reduzir a noção de exclusão à de pobreza, pois a
primeira é bem mais ampla, apesar de intimamente articuladas, é preciso buscar
condições que afirmem a inserção social do indivíduo portador de transtorno mental,
pois todos, independente de sua condição socioeconômica devem ter sua dignidade
humana respeitada. Deve-se romper com os mecanismos de segregação, já seculares,
pelos quais os portadores de transtornos mentais são apartados, discriminados e
excluídos.
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