O ESPORTE E SUAS POSSIBILIDADES NA SAÚDE MENTAL INFANTO-JUVENIL DE BETIM-MG Andréa Souto Araújo Leite1 Valéria Lima Bontempo2 Rua Redelvin Andrade, nº 300 - bairro Angola – Betim/MG - CEP 32630-580 Telefone: (31) 3531- 3744 [email protected] Rua Araguaia, nº 276 - bairro Brasiléia – Betim/MG – CEP: 32.560-230 Telefone: (31) 3511- 8540 [email protected] O Centro de Referência em Saúde Mental Infanto-Juvenil – CERSAMi, de Betim e o Programa “Viva o Esporte – Viva Melhor” - PVE-VM3, desde 1994, estabeleceram uma parceria para a realização de atividades físico-esportivas com crianças e adolescentes com transtorno mental. Essas atividades acontecem no espaço do Complexo Poliesportivo Divino Braga (Horto) e apresentam-se enquanto estratégia do CERSAMi e do PVE-VM para a socialização, melhoria da qualidade de vida e inclusão social de seus usuários. O termo esporte deriva do latim popular deportare e significa “divertir”. Nesse sentido, pode ser definido como “uma prática individual ou em grupo de exercício físico ou jogo para divertimento ou lazer”; “recreação, passatempo”.4 A partir de uma concepção mais ampla, o esporte deve ser compreendido incluindo “[...] as formas competitivas, as atividades físicas e de lazer, nas suas mais diferentes dimensões e manifestações”.5 1 Prefeitura Municipal de Betim – MG. Secretaria Municipal de Esportes . Programa “Viva o Esporte - Viva Melhor “ - PVE-VM 2 Prefeitura Municipal de Betim – MG. Secretaria Municipal de Saúde . Centro de Referência em Saúde Mental Infanto-Juvenil – CERSAMi 3 O Programa “Viva o Esporte – Viva melhor” (PVE-VM) é desenvolvido pela Secretaria Municipal de Esportes (SEME) da Prefeitura de Betim MG. Neste utilizaremos a sigla PVE–VM para designar o Programa Viva o Esporte Viva Melhor. 4 Houaiss, Antônio, Villar, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.1237. Considera-se também que a atividade físico-esportiva é uma das dimensões do esporte e que quando conduzida em uma perspectiva da vivência lúdica, utilizando como conteúdo as expressões corporais do movimento, as brincadeiras e os jogos cooperativos; propicia momentos de alegria, prazer e satisfação, podendo possibilitar a construção de um laço social para os pacientes com transtorno mental. Crianças e adolescentes com transtorno mental, em geral apresentam dificuldade de situar-se em relação ao próprio corpo, são pacientes que trazem consigo vivências e questões de “despedaçamento” do próprio corpo. Pode a atividade físico-esportiva, tornar-se uma forma de linguagem, um instrumento capaz de abrandar o sofrimento, mediar as relações do indivíduo com o mundo. Na impossibilidade do sujeito utilizar a palavra como mediadora, a linguagem corporal pode apresentar-se enquanto instrumento de comunicação. Nesta perspectiva, a psicanálise traz grandes contribuições para pensarmos o esporte enquanto forma de comunicação junto aos indivíduos com transtornos mentais. Roza6, em sua obra Freud e o Inconsciente, afirma que “é a linguagem que veicula a herança ancestral possibilitando à criança romper com o estado de natureza e ingressar na ordem simbólica da família, estabelecer seus limites e a natureza de suas articulações”. Na concepção de Arlindo Pimenta 7: “O ser humano tem duas dimensões: da natureza e da cultura (cultura entendida como a capacidade de usar os signos para a comunicação). A linguagem simbólica é privilégio dos seres humanos e o seu aparecimento coincide com a formação do inconsciente e a divisão do sujeito humano em dois, inteiramente diferentes: o sujeito do inconsciente e o sujeito do consciente”. É através da linguagem já aprendida, que a criança constituirá no interior dessa estrutura, sua subjetividade. O fato de considerar o indivíduo como um sujeito (do inconsciente) e não a partir das fases concebidas pelas teorias desenvolvimentistas, instaura um novo olhar e isto significa que o indivíduo não pode mais ser visto apenas como “um corpo biológico que realiza ações esportivas, mas também um corpo pulsional, que deseja” (RAMIRES, 2008) 8. A linguagem do inconsciente se vale dos suportes externos como a brincadeira, que na sua expressão sempre diz coisas que são da ordem do desejo inconsciente. A experiência tem 5 BETTI, Mauro. Janela de vidro; esporte, televisão e educação física. Campinas: Papirus, 1998. ROSA, Garcia.. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1984, p. 216. 7 PIMENTA, Arlindo. Sonhar, brincar, criar, interpretar. São Paulo: Ática, 1986, p. 20. 8 Ramires, Fernanda. “Contribuições da Psicanálise às Ciências do Esporte”. Postado em 18/03/2008. Acesso Internet em 11/05/2008, http://psicanalisesporte.wordpress.com/2008/03/18/contribuições. 6 mostrado que a atividade físico-esportiva desenvolvida com os pacientes com transtorno mental no espaço do Complexo Poliesportivo Divino Braga (Horto), constituído de quadras poliesportivas, piscina e área verde, vem se constituindo um dispositivo intermediário para esses pacientes. Esse espaço seria então ”mediador” de uma possível transformação desse paciente em um sujeito desejante. Faz-se necessário, ainda, destacar que o esporte é concebido pela Política Nacional do Esporte como uma construção humana historicamente criada e socialmente desenvolvida. As práticas esportivas são consideradas atividades imprescindíveis ao desenvolvimento humano. São preceitos fundamentais a cidadania, a diversidade e a inclusão. A Constituição de 1988 preconiza que é “dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais como direito de cada um” (Art. 217) e a legislação vigente, Lei 9615/989, estabelece o esporte em três categorias: educacional, de rendimento e de participação. O esporte educacional é o praticado nos sistemas de ensino; o de rendimento é aquele que busca resultados e integração nacional e internacional e o esporte de participação indica a dimensão do lazer e as suas manifestações lúdico-recreativas. Cabe ressaltar que a prática do “Esporte de Participação” tem, ainda, como finalidade atender aspectos do conceito ampliado de saúde, sintonizados com a Política Nacional de Promoção da Saúde, formalizando ações conjuntas, através da Portaria Interministerial nº 2.255/0310, no sentido de “ampliar as possibilidades de co-responsabilização e co-gestão entre os diferentes atores, instituições e movimentos sociais, tendo em vista o campo da atividade física como práticas benéficas à saúde de sujeitos e coletividades”.11 Temos ainda a portaria 336 de 2002, do Ministério da Saúde, a qual dispõe sobre os direitos dos portadores de sofrimento mental. A referida legislação estabelece que os Centros de Atenção Psicosocial devam incluir em suas modalidades de tratamento atividades de suporte social, tais como: “atividades comunitárias enfocando a integração da criança e do adolescente na família, na escola, na comunidade ou quaisquer outras formas de inserção social; desenvolvimento de ações inter-setoriais, principalmente com as áreas de assistência social, educação e justiça.”12 9 Lei 9.615 de 24 de março de 1998, publicada no DOU, em 25 de março de 1998, regulamentada pelo Decreto 2.574 de 29 de abril de 1998, publicado no DOU, em 30 de abril de 1998. 10 Portaria Interministerial nº 2.255, de 20 de novembro de 2003, publicada no DOU, em 26 de novembro de 2003. 11 O Conceito definido visa a formulação e a implementação de uma política que invista na melhoria da qualidade de vida e garantia de cidadania. Projeto de Núcleos de Saúde Integral, Ministério da Saúde, 2003. 12 Portaria 336/2002 do Ministério da Saúde. Dando ênfase a ações inter-setoriais no atendimento a pessoas com transtorno mental, a parceria entre o CERSAMi e o PVE-VM tem como público alvo, autistas, psicóticos, neuróticos graves, muitas vezes associado à deficiência mental. Vale ressaltar que em outubro de 1993, o Serviço de Psicologia do PVE-VM recebeu o primeiro encaminhamento vindo do NAE - Núcleo de Atenção ao Escolar (atual CERSAMi), de uma criança, paciente do referido Núcleo, para inclusão no esporte nas turmas de judô e voleibol. Com a implantação do CERSAMi, em 1994, vários encaminhamentos de crianças e adolescentes foram feitos ao PVE-VM, visando a inclusão nas diversas modalidades esportivas. Para atender a este “novo” público o Programa viabilizou modificações tanto para a inclusão em turmas regulares, nas diversas modalidades esportivas; como em turmas específicas de atividades físico-esportivas adaptadas, de acordo as preferências e possibilidades dos alunos. A articulação interinstitucional CERSAMI e PVE-VM, tornou-se mais estreita a partir de constantes discussões desses casos entre os técnicos das duas instituições. Na primeira fase do trabalho, constatou-se que a participação dos pacientes com transtornos mentais no PVE-VM contribuía significativamente com a realização de alguns dos princípios do projeto de saúde mental infanto-juvenil em Betim, a saber: da luta anti-manicomial, bem como, a abordagem do sujeito a partir de sua singularidade; e com a efetivação de preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Mediante os efeitos positivos das atividades físico-esportivas na vida dos pacientes decidiu-se estender o PVE-VM para os casos de transtorno mental, que estavam inseridos na permanência-dia13 do CERSAMi. Avaliou-se que a gravidade dos casos da permanência-dia, bem como, o quadro de isolamento e exclusão social desses pacientes, convocava para a criação novas estratégias de tratamento que extrapolassem os muros do Centros de Atenção Psicosocial Infantil - CAPSI. Foi nesse momento que se definiu pela estruturação de um dispositivo no CERSAMi que assegurasse técnicos e infra-estrutura (carro, motorista) para acompanhar de forma sistematizada os pacientes da permanência-dia com indicação para participar de atividades esportivas. 13 A permanência-dia é um dispositivo de tratamento complementar ao atendimento individual e visa oferecer cuidados intensivos ao paciente, possibilitar o acolhimento da crise, o ajuste do medicamento e o esclarecimento do diagnóstico, dentre outros objetivos. Os pacientes indicados para a permanência-dia ficam um dos dois turnos no CERSAMi, podendo tomar café da manhã, almoçar , lanchar, receber cuidados de higiene e serem buscados e levados em casa pelo carro do serviço. Por outro lado, o PVE-VM disponibilizou uma equipe de referência (professor de educação física, psicólogo e assistente social) para atender as pessoas com necessidades esportivas especiais. A função da equipe de referência é estabelecer um primeiro contato do sujeito e sua família com o Programa; incluir o “paciente-aluno” na atividade físico-esportiva, levando em consideração o seu desejo e a atividade mais apropriada; trabalhando o envolvimento do professor com o “aluno”; acompanhando cada caso em sua dimensão psicossocial; fazendo uma interlocução constante da equipe e articulando as demandas do caso com os serviços da rede de atenção à criança e ao adolescente (saúde, educação, conselhos, assistência social). Especificamente em relação às crianças e adolescentes atendidas na permanência-dia no CERSAMi, as aulas levam em consideração o desenvolvimento de atividades individuais e em pequenos grupos. Essa proposta ocorreu em função do elevado grau de dependência dos casos. Dentre as atividades físico-esportivas realizadas pelo PVE-VM com esses pacientes podemos citar: as atividades sensório-motoras, visando a estimulação; atividades recreativas, através de jogos e brincadeiras; adaptativas ao meio líquido (piscina); e jogos de quadra como o futsal, basquete e voleibol à nível de iniciação. Outras atividades complementares são as participações freqüentes em excursões à clubes, zoológico, parques, cinema; a realização de bailes, dia de lazer, torneios de futebol, festividades como a festa junina, festa da família, ou seja, confraternizações que fortalecem os vínculos entre aluno, PVE-VM, família e comunidade. Paralelo às atividades físico-esportivas, está a intervenção dos profissionais do Serviço Social e Psicologia do Programa junto à família desses alunos, identificando suas necessidades e demandas; encaminhando e acompanhando cada caso; desenvolvendo trabalho com grupos visando o fortalecimento dos laços sociais, expressão dos conflitos e debate sobre o acesso aos direitos e serviços básicos. Consideramos que a construção desta pratica é inovadora, com experiências positivas, fruto de um trabalho em rede o que se deve à implicação por parte de toda a equipe técnica, tanto do CERSAMi quanto do PVE-VM. Pensamos que é dever das políticas públicas a garantia e a efetivação dos direitos. Cabe aos técnicos contribuírem para que de fato o sujeito apareça, através do movimento, da brincadeira, do jogo... no exercício da cidadania. Este é o desafio! 1. FRAGMENTOS DE PARTICIPANTES COM TRANSTORNO MENTAL SOBRE ATIVIDADES ESPORTIVAS “Eu fiquei no Cersami de 98 até 2000, aí em 2000 comecei no esporte e estou até hoje nesta batalha. Nesta época eu não lembro muito não, eu era muito novo, tinha de 14 para 13 anos... Eles me buscavam em casa de segunda à sexta-feira de 8:30 até 16:00 horas e eu ficava lá. Teve um período que eu entrei para o Atletismo, eles viram que eu estava melhorando, foi passando ano, passando ano, até que tive alta, os médicos avaliaram que eu estava melhorando, já não passava mais o dia todo, passei a tomar os remédios em casa, como faço até hoje. Entrei no esporte fiquei bem fisicamente, virei um atleta e fiquei conhecido no Brasil todo. Muitos atletas já me conhecem como a Terezinha Guilhermina, ela me conhece do Paraolímpico. O esporte mudou a minha vida. Para quem está entrando no esporte agora, tem que dedicar bastante e treinar muito, virar alguém e trabalhar... porque o esporte é uma coisa que é boa, as pessoas ficam bem com as pessoas, fica longe da marginalidade e quem sabe um dia forma um atleta. Eu já sou um profissional, meu tempo é muito bom, graças a Deus. Atletismo foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida. Comecei no Programa Viva o Esporte há 7 anos atrás e tô indo nesta batalha aí, para ganhar mais medalhas, mostrar meu trabalho aqui em Betim”. (A. Y. 23 anos) “O horto é um lugar que tem esporte, a gente aprende taekwondo, lutas,... tipo você vem aqui e se diverte demais, joga futebol... Muita gente gosta de vir aqui porque é um lugar para jogar bola, conhecer amigos. Aqui comemora datas, faz festas, a gente conhece todo mundo, começa a conversar, daqui a pouco rola uma amizade, depois a gente namora. E começa assim, conversando, jogando bola, divertindo, cantando e aí você conhece uma mina e acaba se apaixonando por ela.” (A. S. 16 anos) “Eu sempre quis fazer natação, mas tinha vergonha, não tenho colegas pra ir comigo. Ficava com vergonha de não saber nadar e do outro saber. Também tinha que pagar e minha mãe não tem dinheiro. Na piscina eu gosto mais de brincar com o macarrão e de pegar peixinho no fundo da piscina, parece peixe de verdade.” (G, 11 anos) “Eu gosto do horto, de entrar na piscina, de brincar na areia”. (M., 10 anos) “Hoje brincamos no parquinho e na quadra”. (R, 17 anos) “Antes das atividades esportivas ele só ficava deitado, vendo TV.” “Agora ele já sai e fica numa felicidade quando fala no horto”. (Mãe de J.V, 16 anos) “No horto eu gosto de brincar com os colegas, de dançar, cantar, fazer rapel e piscina”. (G) “Eu gosto mais de nadar e tenho vontade de aprender a nadar. Só fui ao clube uma vez.” (R) REFERÊNCIAS BETTI, Mauro. Janela de vidro; esporte, televisão e educação física. Campinas: Papirus, 1998. HOUAISS, Antônio, Villar, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.1237. BRASIL, Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Imprensa Nacional, 1988. BRASIL, Ministério do Esporte. Política Nacional do Esporte. Ministério do Esporte, Brasília: o Ministério, 2006. _____ Lei 9.615 de 24 de março de 1998, publicada no DOU, em 25 de março de 1998, regulamentada pelo Decreto 2.574 de 29 de abril de 1998, publicado no DOU, em 30 de abril de 1998. _____ Portaria Interministerial nº 2.255, de 20 de novembro de 2003, publicada no DOU, em 26 de novembro de 2003. PIMENTA, Arlindo. Sonhar, brincar, criar, interpretar. São Paulo: Ática, 1986. RAMIRES, Fernanda. Contribuições da Psicanálise às Ciências do Esporte. Postado em 18/03/2008. ROZA, Luiz Alfredo Garcia. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.