A Gramática Modernista e o Novo Acordo Ortográfico

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DAVID PANESSA BACCELLI
A Gramática Modernista e o Novo Acordo
Ortográfico
FACULDADE DE EDUCAÇÃO SÃO LUÍS
NÚCLEO DE APOIO DE ZONA LESTE – SP
JABOTICABAL – SP
2008
DAVID PANESSA BACCELLI
A Gramática Modernista e o Novo Acordo
Ortográfico
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Faculdade de Educação São Luís, como
exigência parcial para a conclusão do CURSO
de Pós-Graduação Lato Sensu em Língua
Portuguesa, Compreensão e Produção de
Textos
Orientadora: Profª. Dra. Maria Carolina de Godoy
FACULDADE DE EDUCAÇÃO SÃO LUÍS
NÚCLEO DE APOIO DE ZONA LESTE – SP
JABOTICABAL – SP
2008
Dedicamos
a nossa família, pelo
carinho,
amor,
compreensão, durante o
tempo
dedicado
à
elaboração deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por todo seu amor, e a seu filho Jesus Cristo, razões de minha existência.
A minha esposa Aliete, essência de amor e companheirismo, cúmplice em tudo,
razão de minha alegria, amor de minha vida.
A meus pais, Celso e Miriam, todo o amor, carinho e desejo de felicidades.
A Professora Maria Carolina de Godoy, pela atenção, paciência e orientação no
desenvolvimento deste trabalho.
Aos professores do curso, pela dedicação e disponibilidade nas horas de dúvidas.
Aos verdadeiros amigos do TRF – 3ª Região, pelas horas alegres de convivência.
“Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.
(ANDRADE, 1966, apud
Pereira, 2006, p. 18)
RESUMO
Vive-se o momento de mais uma transição da gramática com a chegada e
implantação do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e, é neste ambiente
que visa o trabalho retratar não apenas a respeito desta reforma, mas apresentar o
contraposto do intento do movimento modernista na linguagem e o projeto de Mário
de Andrade para a gramática, haja vista as diferenças nas linguagens escrita e
falada. Apresentam-se duas situações diversas: de um lado, a imposição ortográfica
e, de outro lado, a usualidade da fala para a gramática. Dois universos
aparentemente distintos, mas inteiramente relacionados. Assim, o trabalho aborda
os aspectos do movimento modernista e suas influências no primeiro capítulo,
passando para a vida e obra do grande idealizador de uma gramática nacional
brasileira, Mário de Andrade, apresentando, no segundo capítulo, a “Gramatiquinha
da Fala Brasileira” e encerrando, num terceiro capítulo, com o novo acordo
ortográfico dos países lusófonos e sua relação com o projeto marioandradiano de
gramática.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 7
1 O MODERNISMO E A GRAMÁTICA BRASILEIRA ................................................ 9
1.1 O movimento modernista ..................................................................................... 9
1.2 Os manifestos modernistas de caráter nacionalista ........................................... 11
1.3 A influência de Mário de Andrade para a construção de uma gramática
independente ............................................................................................................ 12
2 A “GRAMATIQUINHA DA FALA BRASILEIRA” .................................................... 19
2.1 A visão de Celso Cunha sobre a “Gramatiquinha” ............................................. 23
3 O NOVO ACORDO GRAMATICAL ....................................................................... 25
3.1 breve histórico .................................................................................................... 25
3.2 As principais alterações do novo acordo ............................................................ 26
3.3 A relação entre o acordo gramatical e a “Gramatiquinha” de Mário de Andrade 27
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 31
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 35
INTRODUÇÃO
Às portas de vigorar mais uma tentativa de acordo gramatical entre os países
de língua portuguesa, delicada questão se apresenta sobre a sua real necessidade e
sobre a precisão do momento.
Novamente surgem debates sobre o referido acordo e o desenvolvimento de
uma língua própria brasileira.
É sob este prisma que se desenvolve o presente trabalho, buscando em uma
análise do desenvolvimento da língua portuguesa no Brasil, a partir do século XX,
encontrar argumentos justificadores da elaboração de uma língua nacional.
Como se averiguará no corpo do trabalho, buscou-se, no exame do
movimento modernista e, principalmente, nas obras de Mário de Andrade e no seu
objetivo de elaborar uma gramática da fala brasileira, encontrar argumentos que
diferissem a linguagem culta da gramática portuguesa da mesma norma gramatical
utilizada pela linguagem popular, de modo a identificar elementos próprios da
suposta “língua brasileira” e contra-argumentar estas idéias com o futuro acordo
gramatical.
O presente estudo baseou-se em pesquisa de obras da literatura brasileira e
biografias de escritores modernistas, em consulta de livros de gramática, com
suporte historiográfico, algumas teses de doutoramento, em artigos de revistas
especializadas e em artigos encontrados na rede mundial de computadores.
A estrutura do trabalho apresenta-se dividida em três capítulos.
O primeiro capítulo trata do movimento modernista e de suas inovações na
literatura e na gramática brasileira, apresentando as principais características do
movimento e a apresentação da figura de Mário de Andrade, com a sua importância
para o pensamento gramatical independente.
O segundo capítulo apresenta os detalhes na obra de Mário de Andrade,
revelando os principais elementos de brasilidade encontrados, justificadores de uma
linguagem própria e a criação da “Gramatiquinha da Fala Brasileira”.
O terceiro capítulo aborda o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, com
uma breve análise de traços históricos, as principais mudanças e a relação entre
estas alterações e o projeto marioandradiano.
Por fim, constarão as considerações finais e as referências bibliográficas.
1 O Modernismo e a Gramática Brasileira
1.1 O Movimento Modernista
Com as atuais discussões em torno do acordo gramatical dos países
lusófonos e as conseqüências que o circundam, surgem, novamente, debates sobre
a unificação da língua portuguesa e a necessidade da criação de uma língua
nacional.
O acordo gramatical visa à maior integração entre os diversos países de
língua portuguesa espalhados pelo mundo, retirando algumas peculiaridades das
suas diversas gramáticas.
As discussões acerca das variações lingüísticas e da unificação da língua
portuguesa não são recentes e, historicamente, já houve algumas tentativas de se
modificar determinadas regras e formas.
Do ponto de vista histórico, forte momento que tratou sobre o referido assunto
foi o início do século XX, com o Modernismo.
O Modernismo foi um movimento cultural amplo, literário e artístico,
caracterizado pela busca da ruptura com o tradicionalismo, da estética livre e
inovadora e da independência cultural do país.
Faz-se importante uma breve explanação do movimento modernista através
das suas origens para que seja possível entender suas inovações literárias.
Apesar de possuir como grande marco histórico a Semana de Arte Moderna
de 1922, traços deste movimento são encontrados já em 1913 e 1917, com as
exposições de Lasar Segall e Anita Malfatti, respectivamente, e principalmente esta
última, provocadora de grande polêmica.
Para explicitarmos, temos o artigo de Monteiro Lobato (1917, apud MARTINS
e IMBROISI, 2008) para o jornal “O Estado de São Paulo”, sob o título de “A
Propósito da Exposição Malfatti”, onde assevera que “todas as artes são regidas por
princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da
latitude”. Continua em sua crítica assim dizendo:
[...] quando as sensações do mundo externo transformaram-se em
impressões cerebrais, nós ‘sentimos’; para que sintamos de maneira
diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra
completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em ‘pane’ por virtude de
alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente
no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de
um gato, e é falsa a interpretação que do bichano fizer um totó, um
escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes.
Assim temos um primeiro momento, conhecido como “Pré-Modernismo”,
marcado pelo contraste das novas tendências e do tradicionalismo, como Monteiro
Lobato.
Anos depois, em “Prefácio Interessantíssimo”, da obra Paulicéia Desvairada,
Mário de Andrade, um dos grandes expoentes do movimento modernista expôs suas
idéias, de forma inteiramente oposta à crítica de Monteiro Lobato, afirmando:
Belo da arte: arbitrário convencional, transitório – questão de moda. Belo da
natureza: imutável, objetivo, natural – tem a eternidade que a natureza tiver.
Arte não consegue reproduzir natureza, nem este é seu fim. Todos os
grandes artistas, ora conscientes (Rafael de Madonas, Rodin de Balzac,
Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do Braz Cubas) ora
inconscientes (a grande maioria) foram deformadores da natureza. Donde
infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto mais subjetivo
quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem.
Pouco me importa (1924, apud MARTINS e IMBROISI, 2008).
Este contraste entre as estéticas conservadoras e renovadoras perdurou por
um bom tempo e teve seu ápice com a Semana de Arte Moderna de 1922, conforme
Martins e Imbroisi (2008) em www.historiadaarte.com.br.
Com a Semana de Arte Moderna, temos a chamada “Primeira Fase do
Modernismo”, também chamada fase heróica, marcada por um compromisso dos
artistas com a renovação estética e com a criação, na literatura, de uma nova forma
de linguagem, buscando a valorização do cotidiano e caracterizado, ainda, pela
formação de grupos do movimento, como o Antropófago e o Pau-Brasil, conforme se
verificará mais adiante.
Apesar
de
o
Modernismo
apresentar
mais
duas
fases,
importará
principalmente os eventos e as obras das duas fases apresentadas até agora, ou
seja, respectivamente, o “Pré-Modernismo” e a “Primeira Fase”. Isto se deve ao fato
de os debates sobre a “língua brasileira”, ou a “língua que se fala”, terem tido início
nesta época.
1.2 Os Manifestos Modernistas de Caráter Nacionalista
Traço marcante do movimento modernista foram os manifestos, e, conforme
dito, buscando esta característica nacionalista, temos o “Manifesto da Poesia PauBrasil” e o "Manifesto Antropofágico”, ambos de autoria de Oswald de Andrade.
Segundo nota editorial da coleção Help, do jornal O Estado de São Paulo, na
reedição em 1997 da obra “Contos Novos” de Mário de Andrade, elaborada pela
editora Klick, os modernistas preconizavam a criação de um espírito mais brasileiro,
menos copiado dos modelos europeus.
O Manifesto Pau-Brasil, datado de 1924, insiste na apropriação de técnicas
avançadas de civilizações estrangeiras para a valorização do elemento essencial e
primitivo nacional.
Assim, pode-se perceber ao vislumbrar no referido Manifesto, em seu
penúltimo verso “a reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de
nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna”.
Quanto ao Manifesto Antropofágico, datado de 1928, tratava-se de uma forma
de renovação da arte, que surgiria pela retomada de valores indígenas, ou seja,
extremamente nacionais, pela liberação do instinto a valorização da inocência.
Objetivava uma atitude nacionalista, brasileira de devoração dos valores europeus
para o nascimento de uma arte essencialmente brasileira. Um pequeno exemplo
onde se assevera referida afirmação está no verso “Contra todas as catequeses. E
contra a mãe dos Gracos”. Veja-se, ainda, o seguinte verso deste manifesto:
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI:
— Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o
faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as
ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Por fim, Oswald de Andrade encerra o Manifesto Antropofágico da seguinte
forma: “OSWALD DE ANDRADE Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo
Sardinha”. Demonstra, assim, não tão somente sua irreverência, mas esse
sentimento de busca de valores nacionais e indígenas.
Estes manifestos ratificam as mudanças que o modernismo pretendia
implantar, principalmente na busca de valores, ou elementos, exacerbadamente
brasileiros. Teotônio Marques Filho (2004), em seu artigo sobre Macunaíma
(www.portrasdasletras.com.br)
afirma ser
esta uma
das características
do
movimento modernista, dizendo, ainda, que o movimento “gira em torno do Brasil –
de seus problemas, da realidade, do homem brasileiro.”.
1.3 A Influência de Mário de Andrade para a Construção de uma Gramática
Independente
Durante estas primeiras fases do modernismo encontramos grandes
expoentes, essenciais na busca de uma linguagem própria nacional, como Menotti
Del Picchia, Graça Aranha e alguns já citados, como Oswald de Andrade e,
principalmente, Mário de Andrade.
Por meio destes nomes e de muitos outros, mas principalmente o de Mário de
Andrade, é que se encontra certa relação entre o atual acordo gramatical e as
necessidades e exigências modernistas de uma identidade lingüística brasileira.
Para que se possa chegar até a referida relação, primeiramente, faz-se
importante trabalhar a crítica à linguagem na obra e na vida de Mário e perceber
que, de certa maneira, esta crítica não foi só algo relativo às suas obras, mas sim à
sua vida.
Nas palavras de Ivan Russef, sobre Mário de Andrade, havia “a sua ambição
de contribuir, por meio de estudos lingüísticos e da sua própria obra literária para a
renovação da expressão artística nacional.” (RUSSEF, 2003, 14 Fls.).
Segundo Pereira (2006, p. 16) “Mário de Andrade empenhou-se pela
utilização de uma fala brasileira, ou seja, de uma forma própria para escrever e dizer
o português praticado no Brasil”.
Assim, Mário de Andrade aventurou-se na tentativa de transportar para a
expressão culta as diversas diferenças da fala, ou melhor, “abrasileirar a expressão
culta de seu tempo, ou de estilizar o brasileiro vulgar” (RUSSEF, 2003, 14 Fls.) e
teve como projeto uma inacabada “Gramatiquinha da Fala Brasileira”.
As obras de Mário de Andrade buscavam a realização de uma unidade e
identidade nacional, mesclando arte e ação dos artistas incluídos, intelectuais, mas
alicerçados na arte popular (Pereira, 2006, p. 16).
Pode-se perceber que o interesse de Mário de Andrade não foi passageiro e
manifesta-se desde logo em suas obras, já em “Paulicéia Desvairada”, conforme
afirma Maria Augusta Fonseca (2008, p.33), em artigo da Revista Língua
Portuguesa.
Na obra acima referida, conforme ensina Pereira (2006, p. 32), há a síntese
do localismo, ou seja, conteúdos nacionais, com o cosmopolitismo, melhor dizendo,
formas internacionais, revelando, desta forma, um dos traços típicos do modernismo,
não especificamente no aspecto gramatical, mas também em pressupostos estéticos
peculiares. Assim pode-se perceber no primeiro poema de “Paulicéia Desvairada”
denominado “Inspiração”:
São Paulo! Comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...
São Paulo! Comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América!
(Andrade, 1966, p.32 apud Pereira, 2006, p. 32)
Ainda sobre a obra acima referida, Pereira vai mais longe e refere-se sobre a
obra da seguinte forma:
Durante a Semana de Arte Moderna, Mário declamou Paulicéia desvairada.
Este e outros poemas reunidos em livro homônimo têm como introdução o
Prefácio interessantíssimo, segundo João Luiz Lafetá, o “primeiro texto
teórico escrito no Brasil sobre a natureza dos procedimentos técnicos da
arte contemporânea. Tem, portanto, a importância de um manifesto pioneiro
do Modernismo”.
Apartando-se um pouco da estética e focando a insurgência gramatical
realizada pelo movimento e, essencialmente, por Mário de Andrade, tem-se a
necessidade dos escritores modernistas de observarem a multiplicidade de falares
nacionais e a adaptação da língua portuguesa tanto nas camadas sociais como nas
diferenças geográficas, sem que isso acabasse apenas no regionalismo.
A busca do falar brasileiro é percebida em quase a totalidade das obras de
Mário. Apenas para contextualizar esta afirmação, vejam-se alguns exemplos. Em
“Táxi e Crônicas no Diário Nacional” (Andrade, 2005), que reúne obras do escritor
compreendendo o período de 1927 a 1932, têm-se o conto “Táxi: ‘De-A-Pé’ – III”
(p.147) onde é possível extrair: “Sei bem que existem xícras sem pires mas também
que idéia esta minha de comparar o complemento do amor com pires e xícra!”.
Nesta mesma obra, têm-se, ainda, o conto “Topografia do Nome” (p. 263)
quando se infere: “[...] quando enxerguei o homem, frexei pro banco dele boa-tarde,
boa-tarde e começamos: [...]”.
Em outra de suas obras, em um conto chamado “O Poço”, Mário de Andrade
assim escreveu:
[...] enrolou, com que macieza! a cabeça do maninho no braço esquerdo,
lhe pôs a garrafa na boca. ― Beba mano. Albino engoliu o alcool que lhe
enchera a boca. Teve aquela reação desonesta que os tragos fortes dão.
Afinal pôde falar: ― Farta... é só tá-tá seco [...] Enquanto isso a água vai
minando. ― Se eu tivesse uma lúiz... ―Pois leve. (Andrade, 1942) ou
(Andrade, 1997, p. 86)
Vê-se, nestes exemplos, o falar popular quando se utiliza a grafia da forma
que o receptor da narrativa entende o emissor, como em lúiz, farta, frexei pro e xícra
ou quando o autor usa o pronome lhe antes do verbo, como em lhe pôs a garrafa na
boca.
No poema “Lundu do escritor difícil”, conforme nos adverte Moraes (2001),
Mário de Andrade destaca o esforço de criar uma expressão literária nacional e as
respectivas instabilidades desta missão, assim o fazendo: “Você sabe o francês
singe/ Mas não sabe o que é guariba?/ ─ Pois é macaco seu mano,/ Que só sabe o
que é da estranja” (Andrade, 1928, apud Moraes, 2001).
Nesta obra, o escritor continua, conforme prediz Moraes (idem), esboçando
uma teoria da linguagem ao indicar a mescla de vocábulos e falas de diversas
regiões brasileiras, como se infere de “gaúcho maranhense/ que pára no Mato
Grosso.”.
Apesar das obras acima citadas, há uma de suma importância que não se
pode deixar passar em branco: é Macunaíma.
Considerada, por muitos, a grande obra de Mário de Andrade é, nos dizeres
de Marques Filho (2004) “uma das expressões mais caracterizadoras do advento do
Modernismo no Brasil.
Marques Filho (Idem) continua, ainda, dizendo:
“a fúria demolidora que caracterizou a primeira fase do nosso Modernismo
(1922 – 1928) está aí em todos os sentidos: a estrutura do romance e a
língua, principalmente, vem aí barbaramente violentadas na sua feição
tradicional e acadêmica”.
Macunaíma retrata a história de um herói ameríndio, de alta complexidade,
que não apresenta referenciais espaço-temporais rigorosos, com caracteres
extravagantes numa superposição sem traço de fácil evidenciação. É o herói popular
de procedimentos livres, o “herói sem nenhum caráter” como o próprio subtítulo da
obra diz.
Na lição de Marques Filho (idem) uma das características marcantes em
Macunaíma é a sátira e um de seus grandes alvos é a língua portuguesa escrita. Em
“Carta pras icamiabas” (Andrade, 2008, cap. IX), Mário se utiliza do artifício da carta
escrita por Macunaíma para ironizar o distanciamento entre a língua escrita e a
falada. Veja-se um pequeno trecho deste capítulo:
[...] perdíamos a muiraquitã; que outrém grafara muraquitã, e, alguns
doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até
mesmo muraqué-itã, não sorriais! Haveis de saber que esse vocábulo, tão
familiar ás vossas trompas de Eustáqui, é quasi desconhecido por aqui. Por
estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos,
guardas-cívicas, boxistas, legalistas, mazorqueiros, etc.; sendo que alguns
desse termos são neologismos absurdos – bagaço nefando com que os
desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano. Mas não nos
sobra já vagar para discretearmos “sub tegmine fagi”, sobre a língua
portuguesa, também chamada lusitana. (Andrade, 2008, p. 97)
Neste mesmo capítulo, o autor continua:
[...] Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão
prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra. Assim chegado a
estas plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem nos inteirarmos
da etnologia da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos
deparou, por certo não foi das menores tal originalidade lingüística. Nas
conversas utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário,
crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu
sabor e força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. [...] Mas si de
tal desprezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra,
logo tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem
Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da
vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível
galhardia, se intitula: língua de Camões! [...] (Andrade, 2008, p. 107/108).
Percebe-se nestes dois trechos a nítida manifestação contra a diferença entre
a linguagem escrita e a linguagem falada. Note-se, no exemplo, o “linguajar bárbaro
e multifário” do falar do paulistano contrastando com a linguagem escorreita de
quando se transcreve as idéias no papel, muito se aproximando da língua
portuguesa perfeita, representada por “língua de Camões”.
Marques Filho (2004) enumera alguns fatos lingüísticos da oralidade que
ratificariam o argumento usado por Macunaíma ao dizer em “Carta pras Icamiabas”
que no Brasil falavasse em uma língua enquanto escreviasse em outra. Entre eles
estão o uso de mim como sujeito do infinitivo – “Minha avó, da aipim pra mim
comer?”, uso de gerúndio em vez de infinitivo – “Depois afastou os mosquitos e
principiou a contar um caso.”, uso do diminutivo com valor de superlativo –
“Macunaíma passeava passeava e encontrou uma cunhatã com uma urupema
carregadinha de rosas, emprego de dupla negativa – “[...] tu não é mais curumi
não...”, uso de pronome reto como oblíquo – “Pra consolar levaram ele passear na
máquina automóvel.”, intensidade verbal por meio de duplicação – “Isso Macunaíma
ficava que ficava um leão querendo.”.
São alguns exemplos que revelam traços marcantes do linguajar utilizado na
forma coloquial, mas não expressos no universo escrito.
Não se deve esquecer o fato de a obra apresentar o uso de concordâncias,
regências e colocações condenadas pela nossa gramática. Para melhor explicitar,
têm-se os seguintes exemplos: “Maanape deu as garrafas pra Venceslau Pietro
Pietra, um naco de fumo do Acará pra caapora e o casal esqueceram que havia
mudado” (p. 58) – concordância irregular; “Abenção minha madrinha, me dá pão
com farinha?” (p. 209) ou “Foi gente! Me mostra que era.” (p. 56) – colocação
irregular; “Não vim no mundo para ser pedra” (p. 208) – regência irregular.
Em artigo para a revista eletrônica “Teoria e Debate”, Marco Antônio de
Moraes (2001), revela que o pensamento lingüístico de Mário distribui-se de forma
esparsa por toda sua obra, “sob a forma de reflexões pontuais a propósito de língua,
gramática, norma, ortografia, valor utilitário da comunicação e da relação dela com a
literatura.” Declara, ainda, que o olhar de Mário em relação à linguagem é focado
sob um “ângulo de desajustes”, melhor dizendo, ao mesmo tempo em que
“vislumbra a impossibilidade de uma rede estruturada intelectualmente retratar toda
a complexidade da ‘vida sensível’”, demonstra não ter ingenuidade em relação à
irreparável “fratura entre os registros falado e escrito da língua”.
Este falar brasileiro era o intento modernista e de Mário de Andrade para a
Gramática.
2 A “Gramatiquinha da Fala Brasileira”
A palavra “gramática”, por definição é entendida, em sentido amplo, como
“estudo ou tratado dos fatos da linguagem falada e escrita, e das leis naturais que a
regula” e em um sentido mais estrito “livro onde se expõe as regras de linguagem”
(Aurélio, 1975, p. 697).
Buscando apenas mais um conceito do que é gramática, observa-se tratar de
“conjunto de normas que presidem a correção, a norma da língua escrita ou falada.”
(Larousse, 1999, p. 474).
Assim, traço comum nestes conceitos do léxico é o termo linguagem.
A linguagem é todo e qualquer sistema de signos a servir de meio de
comunicação e é a base das relações sociais. Para que se efetive a comunicação
faz-se importante a linguagem escrita e a linguagem falada.
Conforme preleciona Damião e Henriques (1997, p. 23), a língua escrita difere
sensivelmente da falada, ou oral, apesar de ser, muitas vezes, a mesma língua. Os
autores afirmam, ainda, que “a língua falada é mais espontânea, mais viva, mais
concreta, menos preocupada com a gramática”, enquanto a linguagem escrita
possui um caráter mais refletido e abstrato, “mais sujeito aos preceitos gramaticais”.
Essa dualidade entre a língua escrita e a língua falada era a barreira que
Mário de Andrade pretendia romper. Não que ele tenha sido o primeiro, pois
conforme se assevera em Neves (ano) e Pereira (2006, p. 67) alguns autores já
afirmavam buscar uma identidade brasileira para a língua, como Gonçalves Dias e
José de Alencar, mas em sua obra verifica-se que, talvez, tenha sido o mais intenso.
Esta barreira acima afirmada decorre do fato de, apesar de possuírem a
mesma origem e serem até consideradas de “a última flor do Lácio”, a língua
portuguesa possui vertentes diferentes no Brasil e em Portugal. Alia-se a isto, ainda,
as diferenças regionais verificadas no geograficamente grande território brasileiro.
Assim, a fim de realizar este intento de projeto lingüístico, como maneira de
unir o nacionalismo, buscado em essência pelos modernistas, à pesquisa da língua
falada no Brasil como realidade diversa a língua de Portugal, Mário projetou a
chamada “Gramatiquinha da Fala Brasileira”.
Segundo Pereira (2006, p. 67), Mário de Andrade, bem como José de
Alencar, cada qual a seu tempo,
“tipificam os intelectuais que abraçaram o vernaculismo e defenderam que
fala e escrita distinguidas das do Português de Portugal (PP) colaborariam
para urdir o sentimento da identidade brasileira, bem como para a
edificação e unificação da nação.”.
Continua assim por dizer Pereira (2006, p. 68) que a “fala brasileira” remeteria
a uma forma nativa de “dizer, cantar, declamar e escrever o Português do Brasil
(PB).”.
Para Mário de Andrade, haveria na fala brasileira uma língua totalmente
apartada da fala portuguesa na sua pronúncia, e o surgimento de uma língua
oficialmente brasileira se daria à medida que os intelectuais se conscientizassem
disto e assim começassem a agir. Nos dizeres de Mário, na obra de Edith Pimentel
Pinto (1990, p. 341) também retratado por Pereira (2006, p. 68),
[...] não tem grande diferença entre o brasileiro falado no Ceará, em São
Paulo e no R. Grande do Sul. E é uma diferença muito mais oral porque
vocabular é pequena. [...] Os provincianismos são fatais dentro de uma
língua, [...] mas com o contínuo aumento das relações interestaduais de
uma língua geral compreensível por todo o país se estabelecerá. (grifo
nosso).
Nestas palavras, pode-se constatar duas particularidades.
A primeira é a palavra “brasileiro” ao designar a língua falada nos diversos
estados brasileiros citados, o que narra, de forma expressa, a intenção
marioandradiana, qual seja, a língua nacional como forma de trazer certa soberania.
O segundo ponto que se ressalta é a gradatividade com que esta língua
brasileira se estabeleceria, sem imposição, de forma natural, por intermédio das
próprias relações entre as pessoas, como se pode aferir em “o contínuo aumento
das relações interestaduais”. Note-se que o estabelecimento da língua almejada
seria uma decorrência destas relações.
A obra da “Gramatiquinha” de Mário de Andrade, em um capítulo que seria
intitulado “Prefácio 2” traz algo interessante que corrobora o que foi acima
explicitado. Assim revela o escritor ao iniciar seu projeto da obra da língua brasileira:
[...] muita gente, até meus amigos, andaram falando que eu queria bancar o
Dante e criar a língua brasileira. Graças a Deus não sou tão iguinorante
nem tão vaidoso. A minha intenção única foi dar a um problema que pode
comportar muitas soluções transitórias ocorrentes e que só mais tarde,
tenho inteligência bastante para saber isso, terá a sua solução definitivaevolutiva que tem de ser inconsciente e unânime. (Andrade, s/d, apud Pinto,
1990, p. 12)
Assim, Edith Pimentel Pinto procurou reunir os fragmentos e rascunhos da
chamada “Gramática da Fala Brasileira” e, em seu trabalho, observa-se, ainda nos
“Prefácios” esboçados por Mário de Andrade, os traços de seus ideais, pois, desta
forma, diz:
[...] É certo que estudei até o possível entre os acasos de minha vida
autodidática a língua portuguesa de que deriva em maior parte a nossa
maneira de expressão [...] Outros é que deveriam escrever este livro e
tenho a consciência de que um dia a gramática da Fala Brasileira será
escrito (sic) [...]. Porém os autores como idealistas que são e não práticos,
convidam, convidam porém principiam não fazendo o que convidam. [...]
Não fiz mais que vulgarizar. Não fiz mais que convidar os outros ao estudo
verdadeiro dessas criações humanas. (Andrade, s/d. apud Pinto, 1990, p.
12).
Ele procura, ainda, dizer que não se trataria de um livro técnico, nem para
técnicos e que se cada um levasse à sério seu projeto, daria frutos em “vinte anos” e
“[...] o elemento culto brasileiro [...] a manifestação humana civilizada e por isso
representativa [...] do Brasil na civilização atual já falaria e escreveria e já teria
gramáticas duma fala mais concorde com a nossa nacionalidade original [...]” (Pinto,
1990, p. 13).
Ao mesmo tempo em que o autor de Macunaíma ambicionava pela língua
brasileira, buscando que naturalmente se a implantasse, não queria que fosse
dominada por poucos e usada como forma de elitização, afirmando que “[...] o
importante não é, aliás, a vaidadezinha de ter uma língua diferente, o importante é
se adaptar, ser lógico com sua terra e o seu povo.” (Pinto, 1990, p. 422).
Porém, para que fosse possível este intento, era necessário o concurso de
vários escritores e poetas, com suas idéias e modelos, como se apreende nos
próprios dizeres de Mário de Andrade, em carta escrita a Manuel Bandeira:
Você compreende, Manuel, a tentativa em que me lancei é uma coisa
imensa, enorme, nunca foi pra um homem só. E você sabe muito bem que
não sou indivíduo de gabinete. Não posso ir fazendo no silêncio e no
trabalho oculto toda uma gramática brasileira pra depois atirar com isso na
cabeça do pessoal. [...] Careço que os outros me ajudem pra que eu realize
a minha intenção: ajudar a formação literária, isto é, culta da língua
brasileira. (Andrade, s/d. apud Russef, 2003).
Mário sabia que seu intento era positivo e conforme carta datada de 15 de
fevereiro de 2005 ao filólogo Sousa da Silveira, rememora nomes de companheiros
de geração que teriam atingido plenamente o objetivo de uma expressão nacional
forte e sem enfeite:
Não sou eu quem o artista que escreve em língua brasileira. É um Antônio
de Alcântara Machado, é um Carlos Drummond de Andrade, é um Manuel
Bandeira, é um Lins do Rego, todos indivíduos que dentro da realização
lingüísticas [...] estão a dez léguas de mim, mas estão, também, a dez
léguas de Machado de Assis.
De
forma
resumida,
o
que
se
extrai
dos
esboços
da
desejosa
“Gramatiquinha”, conforme se depreende em Russef (2003) e Pinto (1990), é,
ressaltado do conjunto do trabalho, a enunciação do escritor, ora mais conciso ao
apontar algum fato lingüístico não vislumbrado pelos gramáticos, ora enfático ao
explanar tendências naturais brasileiras na fonética ou na sintaxe como as
diferenças orais de pronúncia portuguesa e brasileira. Buscava, ainda, repelir o
autoritarismo das regras do bom falar, preferindo sondar a intimidade psicológica da
língua.
2.1 A Visão de Celso Cunha sobre a “Gramatiquinha”
A fim de corroborar as idéias explicitadas até este momento, cumpre salientar
as opiniões do filólogo brasileiro Celso Cunha, quanto à sua preocupação com a
unidade lingüística brasileira, e, conseqüentemente, portuguesa, decorrente do
dinamismo da interação contínua entre a norma culta e as variantes regionais e
estrangeirismos.
Em uma de suas obras de cunho gramatical, Cunha a descreve como uma
[...] descrição do português atual na sua forma culta, isto é, da língua
como têm utilizado nos escritores portugueses, brasileiros e africanos do
Romantismo para cá, dando naturalmente uma situação privilegiada aos
autores dos nossos dias. Não descuramos, porém dos fatos da
linguagem coloquial, especialmente os empregos e os valores afetivos
das formas idiomáticas. (Cunha, 1985 apud Silva, 2007, p. 73, grifo nosso).
Neste traço, percebe-se que o autor, em sua obra de gramática, pretendia dar
ao público o conhecimento da língua portuguesa e suas regras, com a “descrição do
português atual na sua forma culta”, sem que para tanto fosse necessário voltar-se
contra, ou ignorar, a linguagem coloquial, o dia-a-dia do expressar, o uso popular,
como se infere em “não descuramos, porém dos fatos da linguagem coloquial.
Descobre-se, em outra obra sua, que propunha “medidas práticas, baseadas
na realidade lingüística dos dois países” (Cunha, 1968 apud Russef, 2003, p. 2), e,
por “práticas”, entendia o ensino da língua e a literatura.
Apesar de conjeturar os eventuais motivos de Mário de Andrade não alcançar
seu objetivo de difundir sua “Gramatiquinha”, argüindo não ter o autor modernista
“encontrado elementos indispensáveis para provar a existência de sistemas
lingüísticos diferentes entre o português de Portugal e do Brasil, o filólogo se curva
aos ganhos da empreitada modernista em termos essencialmente brasileiros, com
formas culturais próprias e preferências em palavras e construções do português do
Brasil.
Vê-se, portanto que, apesar das críticas, o instinto marioandradiano não foi
em vão, deixando um lastro na cultura e marcando em escritores e literatos a
necessidade de se fazer prevalecer a identidade lingüística brasileira.
Nos próprios dizeres de Mário de Andrade, “[...] minha tentativa é útil e
humana porque eu generalizo numa só, universal, sem classes, unitária e única e
unânime a alma do meu povo.” (Andrade, s/d, apud Pinto, 1990, p. 46)
3 O Novo Acordo Gramatical
Assinado em 1990, transformado em Decreto Legislativo nº 54 de 18 de abril
de 1995 e ratificado em 2004 pelo Brasil, e por Portugal neste ano de 2008, o
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa chega com a promessa de unificar a
língua de países lusófonos, não se restringindo apenas a Portugal e Brasil.
Apenas para aclarar, são signatários do Acordo, além de Brasil e Portugal,
Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.
Apresenta a missão de integrar os países de língua portuguesa os quais
ratificaram o acordo, não apenas neste aspecto (da língua), mas em outros
decorrentes dele, tanto de cunho político quanto econômico.
Entre algumas razões que incitaram à busca deste acordo, temos que
[...] os documentos dos organismos internacionais que adotavam o
português como língua oficial precisam ser duplicados, pois devem ser
publicados numa e noutra grafia. A certificação de proficiência de língua
portuguesa não pode ser unificada. Os materiais didáticos e os
instrumentos lingüísticos, como dicionários e gramáticas, produzidos numa
ortografia não servem para países que adotam a outra e assim
sucessivamente. (Burgardt, 2008).
3.1 Breve Histórico
Mister ressaltar, em breves palavras, e de acordo com o Anexo II, do Acordo
Ortográfico, um pequeno histórico de reformas gramaticais anteriores e suas razões
de fracasso.
A primeira grande reforma da língua portuguesa que deve ser lembrada é a
ocorrida em 1911, mas restrita a Portugal, não apresentando influência qualquer no
Brasil.
A seguir, em 1931, realizou-se o primeiro acordo ortográfico entre Brasil e
Portugal, sem ter logrado êxito. Assim, não produzindo a unificação dos dois
sistemas.
Promoveu-se, em 1943, nova convenção entre os dois países, que resultou
na chamada “Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945”.
Porém, este acordo não vingou, haja vista sua adoção apenas por Portugal, e
não pelo Brasil, face a dois princípios inaceitáveis para os brasileiros: a mantença
das consoantes mudas, vez que já haviam sido abolidas no Brasil, e a grafia com
acento agudo, e não circunflexo, das vogais tônicas “e” e “o”, seguidas das
consoantes nasais “m” e “n”, das palavras proparoxítonas (por exemplo:
cômodo/cómodo).
Em 1971, no Brasil, e em 1973, em Portugal, houve a edição de leis para
redução das diferenças lingüísticas, não resolvendo a unificação e mantendo sérias
diferenças.
Um novo projeto, datado de 1975, também não vingou, ante a razões de
ordem política, sobretudo em Portugal.
Em 1986, nova tentativa, agora reunindo, pela primeira vez, outros países
lusófonos, além de Portugal e Brasil e, mais uma vez, sem resultados, inviabilizado o
acordo face à extremada simplificação dos acentos em palavras paroxítonas e
proparoxítonas e uma reação polêmica na opinião pública portuguesa.
Neste contexto de tratativas e desavenças surge o novo acordo gramatical.
3.2 As Principais Alterações do Novo Acordo
Apenas para melhor elucidar, torna-se importante expor as alterações mais
marcantes trazidas pelo novo acordo gramatical.
Para Portugal será o fim das letras “p” e “c” mudas nas palavras em que não
são pronunciadas, como em “baptismo” e “acto”. Representará, também, o fim do “h”
inicial em algumas palavras, como em “húmido”.
Ao Brasil, representará o fim do trema em palavras da língua portuguesa ou
aportuguesadas, por exemplo, “lingüiça” e “agüentar”, que seriam escritas “linguiça”
e “aguentar”.
Será também o desaparecimento do acento circunflexo em palavras com
duplo “e” e “o”, como em vôo e lêem, que seriam grafadas voo e leem.
Trará, ainda, a inserção das letras “k”, “w” e "y” ao alfabeto e o fim dos
acentos diferenciais como em pelo (per+lo) e pêlo (substantivo), e o fim do hífen
quando o segundo elemento começa com “s” ou “r”, passando-se a dobrar a
consoante, como, por exemplo, em “anti-semita”, que será redigido “antissemita”,
exceto quando o primeiro elemento terminar em “r”, para exemplificar, “hiperrequintado”.
3.3 A Relação entre o Acordo Gramatical e a “Gramatiquinha” de Mário de
Andrade
Observando a explanação acima sobre o novo Acordo Ortográfico, podemos
perceber que as mudanças propostas são bastante audazes e, conforme nos revela
Schimtz (2008, p. 26-27), “toda reforma ortográfica provoca insegurança em quem
repentinamente tem de lidar com outro conjunto de regras”.
Assim, ao se pretender efetuar estas mudanças, visando adequar a gramática
dos países lusófonos, almeja-se a taxação de novas regras, alterando sensivelmente
a grafia e a dicção de termos e palavras da atual língua portuguesa.
Pode-se, para não dizer que é devido, afirmar que sempre houve uma
identidade lingüística entre Brasil e Portugal, a qual o acordo pretende estreitar
ainda mais. Assim, com a reforma gramatical ter-se-á uma língua mais coesa, se
assim se pode dizer, em relação à escrita.
Porém, analisando-se o que já foi explanado, existem diferenças concretas
em relação à língua falada. E isto, dificilmente o acordo resolverá, não só pelo fato
de diferenças sócio-culturais entre os países lusófonos, mas, também, pelas
diferenças regionais dentro de cada país signatário.
Tem-se, ainda, o fato de que as mudanças propostas pelo acordo não serão
implantadas de maneira gradativa e calma, ao contrário, serão taxativas, “de cima
para baixo”.
Ao se analisar a reforma pretendida por Mário de Andrade com a sua
“Gramatiquinha da Fala Brasileira”, averigua-se que o escritor não buscava a
imposição do falar brasileiro, sobrepujando ou rebelando-se contra a língua
portuguesa, mas que a sociedade se habituasse a escrever como se fala.
Não havia sugestionamento de se opor à língua portuguesa ou a Portugal,
mas desvendar uma língua própria brasileira, não se esquecendo das raízes
lusitanas.
Assim depreende-se do conto “Táxi: Fala Brasileira – I”:
“As línguas, antes, ou pra fora de serem um fenômeno científico, são um
fenômeno social. [...] Existe uma língua brasileira? Secundo, sem turtuvear:
― Existe./ ―Por que existe?/ Porque o Brasil é uma nação possuidora
duma língua só. Essa língua não lhe é imposta. É uma língua firmada
gradativa e inconscientemente no homem nacional. É a língua de que todos
os socialmente brasileiros têm de servir, se quiserem ser compreendidos
pela nação inteira. É a língua que representa intelectualmente o Brasil na
comunhão universal./ ― Mas essa língua é o português./ ― É também o
português. Nas linhas gerais mais eficientes não tem dúvida que a fala
brasileira coincide com a língua portuguesa./ ― E como esta já existia,
já tinha o nome de “língua portuguesa” e, seja pelo que for, foi adotada pela
gente, segue-se que nossa língua é o português e não o brasileiro./
―Raciocínio lógico e científico o de você. Está completamente errado. [...]
A verdade, verdade que já repeti com despropósito de vezes em artigos e
mesmo em livro, é que nós não temos que nos importar com Portugal.
[...] Coincidir ou não com a língua portuguesa e os termos vindos dela: não
nos importa socialmente nada. O Brasil hoje é outra coisa que Portugal. E
essa outra coisa possui necessariamente uma fala que exprime as outras
coisas de que ele é feito. É a fala brasileira. (Andrade, 2005, p. 90-92, grifo
nosso)
Ratifica-se, desta forma, a afirmação de que o objetivo de Mário de Andrade
era resolver a questão das diversas diferenças culturais existentes dentro do Brasil e
não o de modificar a língua falada em Portugal.
Estas afirmações, corroboradas por outros escritores acima identificados
denota que, de certa forma, a própria literatura brasileira já percebeu a necessidade
de afirmar a sonoridade e as diferenças da fala brasileira, enquanto, na contramão
da história literária, o acordo gramatical impõe um retrocesso, nesta visão, da
história.
Assim, não se contrapõe ao acordo, de maneira alguma, apenas ressaltam-se
as variantes regionais, apontadas as diferenças existentes entre o português
europeu e o português brasileiro, marcadas por características diversas, entre elas,
a miscigenação decorrente da colonização, aliadas às imigrações do século XX de
povos das mais variadas nações e às migrações e relações interestaduais.
Afirma o filólogo Celso Cunha que:
[...] toda a questão da “língua brasileira” se resume, ainda hoje, na luta
contra as regras inflexíveis dos puristas, dos gramáticos retrógrados,
sempre contrários a inovações e defensores de um desarticulado sistema
idiomático, simples mosaico de formas e construções em épocas diversas
do passado literário. (Cunha, 1968, apud Silva, 2007, p.72).
Por fim, conforme se denota da leitura do trabalho de Silva (2007, p.39), ao
discorrer sobre as anotações de Mário de Andrade a respeito da Introdução de sua
“Gramatiquinha”, a língua oficial, ou seja, o português, é “emprestada”, e não
representa nem a psicologia e nem as tendências, quanto menos à índole ou as
necessidades do povo brasileiro. Menciona, ainda, que a língua portuguesa, adotada
pelo governo, é “linda, rica quando pronunciada e escrita por escritores lusitanos,
mas falada do jeito brasileiro e gramaticalmente à portuguesa torna-se falsa,
desonesta e feia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo como tema o estudo do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
e a reforma gramatical sugestionada por Mário de Andrade, o presente trabalho
buscou relacioná-los, apresentando os principais aspectos de cada um.
Primeiramente, fez-se necessário uma abordagem do movimento modernista,
do qual fez parte Mário de Andrade, contextualizando-o e apresentando os seus
anseios para a linguagem escrita, tanto pelo lado de valorização do brasileiro e suas
origens, como a indígena, quanto à valorização do cotidiano, do dia-a-dia,
transpondo-os para a linguagem escrita. Para tanto, buscou-se apresentar, também,
os manifestos, traços típicos do modernismo, mas, principalmente, daqueles de
caráter nacionalista, ou seja, o “Pau-Brasil” e o “Antropofágico”.
Apresentou-se, ao fim do primeiro capítulo, a influência de Mário de Andrade
no movimento modernista, revelando aspectos de brasilidade em essência em sua
obra, caminhando para sua grande obra, Macunaíma.
Enumerou-se uma série de fatos lingüísticos de oralidade e de unidade e
identidade nacionais, desde uma de suas primeiras obras, Paulicéia Desvairada, até
o “herói sem nenhum caráter”. Evidenciou-se a migração da linguagem falada para a
escrita, como, por exemplo, com a utilização do pronome “mim” como sujeito do
infinitivo, ou do pronome reto como oblíquo, ou seja, resumidamente, conforme já
citado,
“[...] utilizam-se [...] dum linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e
impuro na vernaculidade, [...] mas [...] logo tomam da pena, se despojam de
tanta asperidade, e surge o Homem Latino, [...] numa outra linguagem [...]
que, com imperecível galhardia, se intitula: Língua de Camões! [...]
(Andrade, 2008, p. 107/108).
Num segundo momento, procurou-se demonstrar a tentativa de Mário de
Andrade em trazer para o universo da língua falada, a oralidade, com todos os
traços marcantes do cotidiano brasileiro. Neste contexto, o escritor idealizou a
criação de uma gramática nacional, que se intitularia “Gramatiquinha da Fala
Brasileira”.
Assim, buscou, sem arroubos de revolta contra a gramática lusitana, realizar
aquilo que melhor retratasse com a realidade das diversas variantes do português
falado no Brasil, com toda sua regionalidade. Não seria o fim da gramática
portuguesa, mas a realização modernista para ela, ou seja, a sua utilização como
base, com as alterações, para o Brasil, de variantes próprias, fazendo surgir uma
gramática própria, com traços marcadamente brasileiros. Seria, portanto, uma
gramática brasileira, do português como era falado.
Demonstraram-se, também, as dificuldades encontradas por Mário de
Andrade para a efetiva realização de seu sonho.
Como forma de corroborar com o pensamento de Mário de Andrade, buscouse um argumento de autoridade, citando-se a visão do filólogo Celso Cunha, anos
mais tarde do intento de Mário, demonstrando as raízes deixadas pelo escritor da
necessidade de uma identidade lingüística.
Por derradeiro, mas não menos importante, o presente trabalho apresentou,
de forma sucinta o novo Acordo Gramatical, revelando suas prováveis motivações e
abarcando um pequeno relato histórico de sua elaboração e de frustrações de
acordos anteriores.
Adentrou-se, de breve maneira, nas principais alterações do acordo para a
gramática da língua portuguesa e, após, trouxe, o trabalho, a relação entre este
acordo e a tentativa marioandradiana de gramática.
Salienta-se, da pesquisa realizada, o fato de, apesar de dizer-se abrangente,
a reforma ortográfica, pelo menos teoricamente e nos moldes em que está escrita,
resolver algumas diferenças na escrita dos países lusófonos, buscando estreitar
suas relações políticas e econômicas, porém, não se observam as diferenças da
língua falada, tanto entre os países acordantes quanto às variantes regionais.
Se de uma maneira tem-se o argumento de unidade da língua grafada com o
acordo, de outra forma tem-se um certo desrespeito com as variantes regionais.
Exemplificando, de um lado tem-se, em um quase rompante de ufanismo, o aforismo
de Fernando Pessoa, ao extremar seu nacionalismo sob o pseudônimo de Bernardo
Soares ao dizer: “minha pátria é a língua portuguesa”. De outro lado tem-se na
musicalidade de Caetano Veloso, num certo “arroubo modernista/tropicalista”, a
utilização de intertextualidade, evidenciada na música “Língua”, quando diz: “minha
pátria é a minha língua”.
Assim, e aliado a tudo o mais que já fora explanado no desenvolvimento do
trabalho, denota-se que a própria literatura nacional já, de certa feita, alinhou-se pela
necessidade de se ter uma língua própria, com variantes próprias do falar brasileiro
sem se rebelar em face da gramática portuguesa, apenas adequando-a a uma
realidade peculiar, enquanto o acordo projeta uma unificação que não se coaduna
com estes anseios.
Por fim, avaliando-se as diversas tentativas de adaptação das diferenças
lusófonas e aliado ao fato de a nova alteração, em sua essência, não representar a
psicologia e as tendências do falar brasileiro tem-se que, muito provavelmente se
constatará a frase de Mário de Andrade ao dizer em sua introdução à Gramatiquinha
(Silva, 2007, p. 39) que a língua portuguesa oficial, adotada pelo governo, é, por um
lado, na pronúncia e escrita de autores lusitanos, linda e rica, mas, ao modo de falar
típico do brasileiro, é falsa, desonesta e feia.
Portanto, há de se concluir que estas discussões são saudáveis para o
desenvolvimento da linguagem, afirmando-se serem essenciais.
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