Valendo-nos de sua Trilogia da Devoração (“O Rei da Vela”, “O

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DO TEATRO DE REVISTA EM OSWALD DE ANDRADE:
A TRILOGIA DA DEVORAÇÃO E A ANTROPOFAGIA
LUIZ FERNANDO DIAS PITA (FAFIMA)
Valendo-nos de sua Trilogia da Devoração (“O Rei da Vela”,
“O Homem e o Cavalo” e “A Morta”), analisaremos a mecânica por
que Oswald de Andrade aplica as idéias do Manifesto Antropofágico
à sua própria produção teatral, em que também se percebem técnicas
e procedimentos oriundos do Teatro de Revista, do Circo e da Opereta.
“O Rei da Vela” apresenta a organização em três atos comum
às comédias de seu tempo. Sem subdividir-se em quadros, diversas
cenas lhe imprimem uma velocidade de apresentação que reforça o
tom satírico das personagens. Sobre suas tentativas de montagem,
vale reproduzir um trecho de entrevista concedida por Décio de Almeida Prado a’O Estado de São Paulo em 21 de outubro de 1979:
Oswald queria que eu dirigisse “O Rei da Vela”. Mas em pleno
Estado Novo, com uma censura fortíssima, aquele era um projeto
impraticável. (...). Em 67 no entanto, num momento um pouco
semelhante à década de 20, isto é, de radicalismos estéticos, a peça foi montada por José Celso. E aí verifiquei que o que eu julgava atrasado no tempo, talvez estivesse adiantado, pois a ênfase
que Oswald dava à sexualidade, aquele tom grotesco e caricatural
correspondiam inteiramente ao gosto da juventude.
Ficam patentes dois argumentos para justificar-se o descaso
em relação à obra: ter surgido num momento de extrema censura, e a
desconfiança do meio teatral em relação às peças, em geral acusadas
de retrógradas ou de mau-gosto. Até 1967, toda a obra teatral de
Oswald era tida por irrepresentável.
Entretanto, examinando mais de perto sua produção, deparamo-nos com elementos cuja presença é de total coerência com as
idéias do Manifesto Antropofágico (1928). Tidos pela intelectualidade dos anos 30 como pertencentes a manifestações teatrais “menores” – o circo, a revista e a opereta – era explicável a reserva de vários diretores para com o texto: encená-lo significaria expor-se à
execração pela crítica.
O tom “grotesco e caricatural” está intimamente ligado às tradições do cômico. Porém, não se pôde perceber na época que não
correspondiam unicamente a tais tradições: Oswald de Andrade valeu-se das categorias cômicas citadas utilizando-as em todo um (outro) sistema simbólico e atreladas a outro discurso.
A trama de “O Rei da Vela” evidencia a decadência das famílias tradicionais do Império e a ascensão da burguesia industrial –
vinculada ao capital estrangeiro – que busca incorporar elementos e
tradições dos grupos decadentes – via casamento, como os dos personagens Abelardo e Heloísa – para legitimar e acelerar sua ascensão. Tal temática é explicitada na seguinte fala de Abelardo I:
“... Para nós, homens adiantados que só conhecemos uma coisa
fria, o valor do dinheiro, comprar esses restos de brasão ainda é
negócio, faz vista num país medieval como o nosso! O senhor
sabe que São Paulo só tem dez famílias?” (Andrade, 1991b, p.
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A obra adquire um tom quase didático ao mostrar as relações
de classe correntes nos anos 30. Não nos esqueçamos que ao assumir
o governo Getúlio Vargas representava os setores industriais interessados em alavancar o crescimento industrial do país; em detrimento
das classes agrárias, principalmente a cafeicultora paulista. Também
a entrada em cena do capital estrangeiro como financiador da burguesia brasileira é denunciada, assim como as idéias socialistas e
fascistas então em voga.
A obra mostra-se então voltada para um público sofisticado,
capaz de compreender em toda sua extensão o discurso de Oswald de
Andrade, a enorme quantidade de informação e de idéias postas em
cena; distanciando-se por completo daquela platéia popular que freqüentava as comédias dos anos 30. Evidencia-se aí uma dicotomia
entre forma e discurso na obra de Oswald: construída sobre uma
estrutura cômica, com caracterizações próximas daquelas que a
revista popularizara, a obra continha temática e linguagem destinadas
a um público culto que rejeitaria o tom grotesco da obra; e, embora
sua estrutura fosse bem característica do teatro das camadas populares, este público não entenderia sua linguagem. Pode-se afirmar, a
despeito dos problemas com a Censura que Décio de Almeida Prado
cita, que a peça de Oswald não era irrepresentável, porém incompreensível, porque estruturada sobre patamares captáveis apenas em
separado e por mundos excludentes.
Wolfgang Kayser definiu o grotesco como “uma força estrutural cujo modo configurativo se orienta para um câmbio das categori3
as ordenadoras de nosso mundo cotidiano e cujo conteúdo significativo está no estranhamento do mundo” (Kayser, 1975, p. 159), havendo contudo duas vias para que este estranhamento se manifeste: o
grotesco fantástico, onírico; e o grotesco radicalmente satírico, porém sempre de modo a permitir imediata associação com o objeto de
sátira. Mesmo que esta afirmação de Kayser tenha sido fortemente
combatida por Mikhail Bakhtin (1987, p. 40-5), creio que as idéias
de Kayser são inteiramente aplicáveis ao texto de Oswald, por crer
que era este o efeito buscado por Oswald de Andrade ao constituir
dicotomicamente a obra.
Ainda sobre o tom grotesco da peça, vale lembrar que o próprio autor impregnara as rubricas do texto com este tom, destacandose a que precede o 2º. ato:
Uma ilha tropical na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro. Durante o ato, pássaros assoviam exoticamente nas árvores brutais.
Sons de motor. O mar. na praia do lado, um avião em repouso. Barraca. Guarda-sóis. Um mastro com a bandeira americana. Palmeiras.
A cena representa um terraço. A abertura de uma escada ao fundo em
comunicação com a areia. Platibanda cor-de-aço com cactos verdes e
coloridos em vasos negros. Móveis mecânicos. Bebidas e gelo. Uma
rede do Amazonas. Um rádio. Os personagens se vestem pela mais
furiosa fantasia burguesa e equatorial. Morenas seminuas. Homens
esportivos. Hermafroditas, menopausas. (Andrade, 1991b, p. 57)
Claro está, rubricas são manifestação do autor sobre a representação da obra, denunciando sua posição a respeito da interpreta4
ção a ser dada a sua peça – mas que podem ou não ser acatadas pelo
diretor. No caso de “O Rei da Vela”, quando da montagem da peça
em 1967, José Celso Martinez Corrêa representou praticamente toda
a rubrica através de um telão pintado, recurso amplamente utilizado
nos anos 30 pelo teatro de revista. A partir desta montagem as associações entre o texto de Oswald e a Revista tornaram-se mais freqüentes, realçadas pela cenografia de José Celso. Creio que não reside na cenografia a chave da associação entre a Revista e “O Rei da
Vela”: são os exageros da caracterização, explicitamente grotesca e
carnavalizada, que nos permitem tecer estas relações.
Ao confrontar-se “O Rei da Vela” com as demais obras que
compõem a Trilogia da Devoração, constatamos que é na composição das personagens que se alinhavam as três obras: a galeria de
personagens oswaldianos compõe-se de seres cujo elemento grotesco
impõe um profundo histrionismo. O exagero nos gestos e na fala é
fundamental para que as peças alcancem seu objetivo: criar uma
visão do real onde se mescle a informação acerca do meio circundante e a inversão de valores própria da carnavalização.
A carnavalização proposta em “O Rei da Vela” tornou-se clara
em “O Homem e o Cavalo”, obra seguinte de Oswald (segundo a
ordem de produção dos textos, e não de sua publicação), pois apresenta uma estrutura muito próxima à da Revista. Esta peça é o exemplo mais bem acabado de tentativa oswaldiana de incluir elementos
da Revista em suas obras.
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Os anos 30 foram de transição para o teatro de revista - que
começa a rumar para a féerie – que sofre alterações em sua estrutura,
tais como: a desaparição do compère, tipo que até então exercia as
funções de mestre de cerimônias e condutor da narrativa; fim das
revistas em três atos, reduzidos a dois; maior independência dos quadros que ganham relevância – em parte pelo fim do compère. Exacerba-se o papel das vedetes como mulheres-objeto, abandonando a
função de principal comediante feminino.
Oswald de Andrade certamente captou estas mudanças e lança
mão de algumas delas: sua obra é composta de apenas um ato, dividido em nove quadros cujo fio condutor são algumas personagens:
São Pedro, Icar, Madame Icar, etc. Estas não apenas exercem a função de compère, como fazem remissão ao trio da Commedia
dell’Arte: Arlequim, Pierrô e Colombina.
Sobre a galeria de personagens das obras de Oswald, detectamos que se encontram em ponto eqüidistante tanto dos tipos e alegorias clássicos do gênero cômico quanto das personagens do teatro
“sério”, muito embora ecoem em sua galeria elementos de todas as
categorias citadas, melhor lhes cabendo a denominação espectros.
Não possuindo profundidade psicológica fogem do naturalismo na
representação teatral, tampouco correspondendo aos tipos da tradição
do teatro cômico, não podendo ainda sequer serem consideradas
alegorias. Embora nelas se detectem traços de todas essas categorias,
não correspondem à perfeição a nenhuma delas.
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No caso específico de “O Homem e o Cavalo”, tal idéia tornase patente ao analisar-se as três personagens citadas acima: representam instituições (São Pedro a Igreja, Icar a intelectualidade e Mme.
Icar a sociedade burguesa), funcionando então como alegorias; ao
mesmo tempo em que se desenrolam entre eles o jogo de relações
próprias de Arlequim, Pierrô e Colombina: O Arlequim-São Pedro
tenta seduzir Mme. Icar-Colombina diante mesmo do Pierrô-Icar.
O mundo criado por Oswald e no qual transcorre toda a trama
é, ao mesmo tempo, o mundo grotesco-onírico e o satírico concebidos por Kayser. A ação se inicia no Céu cristão e termina numa estação orbital. Durante a peça, as personagens passam em revista o
mundo que as circunda – a Terra, o Céu etc – tendo contato com
diversos personagens históricos como Al Capone, Lord Byron, Cleópatra; além de algumas alegorias se fazerem presentes (o cavalo de
Tróia, o cavalo de Napoleão etc), o mundo oswaldiano é construído
dentro da mesma tradição da revista tradicional. Tradição presente
em obras de Arthur Azevedo, conforme nos demonstra Flora Süssekind (s. d.), que nos mostravam uma visão da cidade do Rio de Janeiro, já Oswald se vale desta tradição para fazer representar o mundo.
Novamente a mesma dicotomia de “O Rei da Vela”: permanece nesta obra o hiato entre discurso e representação, mesmo mudado
o discurso: Oswald – engajado no PCB desde 1931 – faz a apologia
do sistema soviético do período stalinista, promovendo o julgamento
da História sob a ótica do socialismo. Novamente o didatismo – já
detectado em “O Rei da Vela” – desta vez, entretanto, ampliado: se
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em “O Rei da Vela” assistimos à denúncia do sistema capitalista e do
jogo de forças que se apresentam na sociedade brasileira; em “O
Homem e o Cavalo” assistimos à proposição de soluções. A peça faz
a releitura da sociedade ocidental, como se pode observar no 7º. quadro – sintomaticamente chamado A verdade na boca das crianças – a
partir da visão de mundo então preconizada pelos socialistas:
“CENA I – Três crianças soviéticas
A 2ª. criança – Proprietários? Que negócio é esse?
A 1ª. criança – Foram os homens que se apossaram da terra pela
força, pelo ludíbrio ou pela herança, para fazer os despojados
trabalharem para eles!
A 2ª. criança – Mas o solo não era de todos?
A 3ª. criança – Não era não. Nem as máquinas. E os burgueses lutaram séculos para que esse regime continuasse. Quando as crises
apertavam, promoviam guerras patrióticas a fim de massacrar o
povo. (...) Os soldados que voltavam cegos, mutilados ou sem
emprego eram abandonados pelos seus sinistros empresários e
acabavam mendigando nas pontes e nas portas das igrejas...
A 2ª. criança – Igreja?
A 3ª. criança – Sim, igrejas, bobinha! Não vê que, para manter a
exploração das massas que trabalhavam, os exploradores, de acordo com piratas que se chamavam sacerdotes, inventaram que
havia um ser supremo e terrível que enchia a pança dos ricos na
terra e para os pobres reservava o céu...”
(Andrade, 1990, p. 81)
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Estão presentes todos os inimigos do socialismo stalinista: a
propriedade privada, a sociedade de classes burguesa e a Igreja, esta
última ridicularizada ao máximo em toda a obra, ao ponto de que o
próprio São Pedro exclama: “– Eu sou materialista. Nunca acreditei
em Deus, nem quando andei com ele pela Terra Santa.”
Oswald expõe o ideário socialista com tanta veemência que
não se furta a colocar trechos de discursos de Stálin no 6º. ato, chamado “A Industrialização”:
“A Voz de Stálin – O Socialismo é o poder dos Sovietes mais a
eletrificação. Eis o testamento de Lênin. Novas cidades saíram
dos desertos, das estepes, das planícies. Do século da madeira
passamos ao século do motor e ao do aço. A economia agrícola
repousa agora sobre a base técnica da grande produção moderna.
Silêncio (...)
A voz de Stálin – Edificai um novo mundo... Sobre as fábricas
entregues ao trabalhador surgiu o entusiasmo da nova sociedade.
É o patos da construção!”
(Andrade, 1990, p. 74-5)
Como vimos, em “O Homem e o Cavalo” se acentua o caráter
carnavalizante da obra de Oswald, através dos personagens e do ritmo da ação. Este caráter já se mostrava, embora não tão acentuadamente, em “O Rei da Vela”. Como já vimos, a estrutura de “O Rei da
Vela” permitia uma encenação que encobria tais caracteres. Tal encenação é impossível em “O Homem e o Cavalo”, sua estrutura in9
trinsecamente ligada à carnavalização e suas convenções não dá
margem a outras propostas de encenação.
Se já podemos considerar “O Homem e o Cavalo” uma obra
muitíssimo mais próxima da Revista que “O Rei da Vela” – pois nela
estão nitidamente marcadas suas convenções – recordemos contudo
que esta obra incorporou elementos das duas fases da revista no Brasil: a tradicional – de onde vieram o compère, o trio de personagens,
etc – e a féerie, que legou sua estrutura mais versátil.
Publicada junto com “O Rei da Vela” em 1937, “A Morta”
passou despercebida, ofuscada talvez pelo texto que a acompanhava.
Definida por Oswald como “ato lírico em três quadros” “A Morta” é,
das obras da Trilogia da Devoração, aquela que melhor explicita as
inter-relações entre o teatro e demais manifestações artísticas, contendo uma intertextualidade próxima àquela convencionalmente interpretada como pós-moderna.
Afasta-se também da dicotomia presente nas duas primeiras
peças, que focalizavam um discurso “sofisticado” numa estrutura
“grotesca e caricatural” – em comum com a revista encontramos
apenas o Hierofante, funcionando aparentemente como compère,
conforme veremos. A dicotomia que aqui encontramos está centrada,
com mais contundência que nas obras anteriores, na questão do fazer
artístico e sua relação com o mundo. Oswald faz de seu palco um
lugar de discussão do mundo e de problematização de sua realidade nos níveis poéticos, políticos, etc – que o aproxima do teatro épico de
Brecht.
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Encontramos também fortes referências à Literatura nesta obra, toda a galeria de personagens é remissão: a personagens literários (como Beatriz ou a Dama das Camélias), a teóricos da arte (como Horácio). Parafraseia a sociedade ocidental a partir de sua produção literária, pois que esta exerce a função de depositária da cultura e
ideologia dessa sociedade.
Nesta obra, Oswald novamente representa seu mundo segundo
a concepção grotesco-onírica de Kayser, uma vez que a ação dramática se desenrola em países imaginários (do Indivíduo, da Gramática
e da Anestesia), nos quais os personagens tecem um debate acerca
das transformações ocorridas na arte em razão das mudanças da sociedade. O discurso oswaldiano passa, assim, a encadear-se a outros,
tornar-se mais complexo e mais revolucionário; por expressar desejo
de mudanças mais radicais no campo da Arte: Oswald aplica na prática sua teorização sobre a Antropofagia.
Na carta-prefácio dedicada à sua então esposa Julieta Bárbara,
Oswald expressa preocupações possíveis de cotejar-se às idéias de
Marx sobre o fetichismo da mercadoria e à suas interpretações por
Jean Baudrillard, por expressarem a visão de Oswald da fragmentação da Arte:
“Dou a maior importância à Morta em meio da minha obra literária. É o drama do poeta, do coordenador de toda ação humana, a
quem a hostilidade de um século reacionário afastou pouco a
pouco da linguagem útil e corrente. Do romantismo ao simbolismo, ao surrealismo, a justificativa da poesia perdeu-se em sons e
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protestos ininteligíveis e parou no balbucionamento e na telepatia. Bem longe dos chamados populares. (...) As catacumbas líricas
ou se esgotaram ou desembocam nas catacumbas políticas.”
(Andrade, 1990, p. 25)
Em L’échange symbolique et la mort, Jean Baudrillard levanta
a idéia de que o desenvolvimento do capitalismo como modo de
produção econômica, operou também mudanças nas formas de produção, captação e compreensão da cultura. Baudrillard diz ainda que
as teorias de Marx e de Freud não puderam prever o alcance do capitalismo.
As significativas mudanças acarretadas resultam, segundo
Baudrillard, da penetração da idéia capitalista de maximização das
perspectivas de lucro aplicadas a conceitos aparentemente distantes
do conceito de capital; que tem como efeito o esvaziamento de conteúdo daqueles conceitos.
O esvaziamento do conteúdo simbólico dos signos, passa a
constituir, para Baudrillard, um significante sem significado. Este
significante passa a ser encarado então como uma mercadoria que
possui apenas valor de troca – e não mais o de uso –, desligado que
está do conjunto de referenciais culturais que o sustentavam, o que
possibilita seu gerenciamento segundo as normas do capital.
Esse questionamento estabelece um dos problemas-chave em
todas as discussões acerca da Pós-Modernidade. Produz-se também a
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fragmentação do real – e do homem – porque a este real não
corresponde mais nenhum conjunto de valores que lhe dêem sentido.
Em “A Morta”, tal problemática vai se evidenciando ao longo
da ação, o “Poeta” é o personagem que viaja pelos países já citados,
indo do universo do indivíduo ao da Anestesia, onde percebe já não
ocupar mais um espaço social – por não oferecer algo possível de
interpretação segundo os valores vigentes – numa representação simbólica do processo de fragmentação a que fora submetido.
Em “A Morta”, assiste-se também à modificação do sentido do
compère, que atua não somente como mestre-de-cerimônias, mas
como elemento destruidor da representatividade. Na obra Assim é se
lhe Parece, de Luigi Pirandello, podem-se encontrar também personagens atuando em função semelhante: O “Hierofante” discretamente apresenta falas que se permitem ser direcionadas tanto aos demais
personagens como ao público. Tais falas se dão ao fim da encenação,
quando o Poeta, descobrindo não ter mais lugar no mundo, incendeia
a si próprio e à sua musa, Beatriz:
“Beatriz – Poeta! Permanece para sempre dentro de mim! Sê fiel!
O Poeta – Devoro-te trecho noturno de minha vida! Serei fiel para com os arrebóis do futuro...
O Hierofante – O erro do homem é pensar que é o fim do barbante... O barbante não tem fim.
O Urubu de Edgar – A humanidade continuará trágica e ingênua... Só a morte é a etapa atingida.
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O Poeta (Passa o facho aceso ao corpo de Beatriz, frouxamente
coberto pelo renard argenté) – Todo mistério será aclarado. Basta
que o homem queime a própria alma!
Um imenso clarão se anuncia no fundo
A Senhora Ministra – Fujamos para o país da Chuva...
O Poeta – A noite não terá mais passos nem vultos!
O Hierofante – O dilúvio de fogo nos seguirá!
Beatriz – Sexual! Sexual!
O Poeta – Incendiarei os teus cabelos noturnos! A tua boca aquosa! A aurora de teus seios!
Flamba tudo nas mãos heróicas do Poeta.
O Hierofante (Aproximando-se da platéia.) – Respeitável público! Não vos pedimos palmas, pedimos bombeiros! Se quiserdes
salvar as vossas tradições e a vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se preferirdes a polícia! Somos como vós mesmos, um imenso cadáver gangrenado! Salvai nossas podridões e talvez vos
salvareis da fogueira acesa do Mundo!”
(ANDRADE, 1990, p. 73)
Aí temos três falas do Hierofante, sendo que na primeira vemos a dubiedade de receptor: fala a outros personagens, mas sua fala
pode estender-se também ao público. Na segunda, temos uma frase
totalmente voltada a uma função de efeito no texto e, na última vemos o Hierofante exercendo o papel de compère, num desdobramento de suas funções que representam uma inovação na tradição.
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Conclui-se então que nestas três peças de Oswald está retratada toda a mudança no sentido do fazer artístico que este século
presenciou. Oswald a representa em uma estrutura sua, inspirada na
da revista; mas que ele modificou de acordo com suas necessidades
e, com isso, acabou por antecipar várias das mudanças que a revista
introduziria pouco depois.
Também o universo temático de Oswald é inteiramente diferente do da revista. Oswald dá e requer de seu público uma carga de
informação e crítica acerca do mundo que era impensável para as
revistas dos anos 20 e 30, embora a partir dos anos 40 o fator informação também tenha se tornado importante para o público do Teatro
de Revista.
Oswald, visto sob esse aspecto, exerceu a tarefa de captar e antecipar algumas das mudanças que poderiam ocorrer na revista, embora esta tenha enveredado pela féerie, vindo a representar um universo ideológico radicalmente distinto do oswaldiano.
Pode-se concluir que sendo a Revista herdeira direta das formas de interpretação originadas na Commedia dell’Arte - com a qual
manteve estreitos laços: seja na caracterização, tipificação, etc. –
realizaram-se, no Brasil, algumas adaptações de tempo e lugar; e
assim, o Arlequim transforma-se no malandro carioca representado
nas revistas. Tais variações não foram suficientemente fortes para
descaracterizar a herança da Commedia dell’Arte, sendo necessário
que outros fenômenos viessem a realizar a descaracterização da comicidade que o gênero manifestava.
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À medida que o sistema de indústria cultural penetra no Brasil,
por volta dos anos 30, seus efeitos logo se fazem sentir no rádio e no
teatro, este levando por trás de si o cinema. Neste processo dá-se a
fragmentação dos elementos constituintes destes fazeres artísticos,
sendo descartadas aquelas partes do conjunto que não se adequavam
ao novo sistema, deste modo, a revista tem sua estrutura simplificada, buscando uma agilização que lhe capacitasse incorporar os novos
elementos propostos pela indústria cultural. O rádio passa a agir dentro de todo um esquema comercial visando à irradiação de comerciais, como fonte de renda.
Todo este processo foi percebido e utilizado por Oswald em
sua obra, que assim se torna um marco de referência para detectar-se
o modus operandi da fragmentação – que tangencia a Antropofagia
por estarem ambos associados à idéia de apropriação de elementos
novos, este para incorporá-los à cultura, aquele para incorporá-los à
indústria cultural. Oswald produziu peças que antecipavam no tempo, tendo se tornado incompreensíveis para seus contemporâneos.
Falta acrescentar, todavia, que um processo de gradativa fragmentação de formas e gêneros artísticos parece continuar em vigor,
uma vez que não se alteraram nem a estrutura nem o modo de produção cultural no país.
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Referências bibliográficas:
ANDRADE, Oswald de, O Homem e o Cavalo, in: “Obras Completas de Oswald de Andrade” 1. ed. São Paulo: Secretaria de Estado de
Cultura/Globo, 1990.
______. “A Morta”. In: Obras Completas de Oswald de Andrade. 1.
ed. São Paulo: Secretaria de Estado de Cultura/Globo, 1991.
______. ““O Rei da Vela””, In: Obras Completas de Oswald de
Andrade. 1. ed. São Paulo: Secretaria de Estado de Cultura/Globo,
1991.
BAKHTIN, Mikhail. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais. 1. ed. São Paulo: Ed.
Hucitec; Ed. Universidade de Brasília, 1987.
BAUDRILLARD, Jean. L’échange symbolique et la mort. Paris:
Gallimard, 1976.
KAYSER, Wolfgang. O Grotesco: configuração na pintura e na Literatura. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1975.
PEREIRA, Victor Hugo Adler. “O Rei e as Revoluções Possíveis”
In: Oswald Plural, Rio de Janeiro: Eduerj, 1995.
PRADO, Décio de Almeida. “Entrevista concedida a O Estado de
São Paulo, em 21.10.79”. In: O Pensamento Vivo de Oswald de Andrade, 1. ed. [S.l.]: Ed. Martin Claret, 1984.
SÜSSEKIND, Flora. As Revistas de Ano e a Invenção do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Casa de Rui Barbosa, s/d.
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