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O SARAMPO
ANTROPOFÁGICO
A respeito do movimento
modernista, os críticos e os
estudiosos entram em sintonia
num ponto: a Semana de Arte
Moderna, realizada em 1922,
em São Paulo, representou um
marco, verdadeiro ponto de
inflexão no modo de ver o
Brasil.
Belmonte
Florestan Fernandes
Franz Kafka
Lenita Miranda de
Figueiredo
Machado de Assis
Moacyr Scliar
Modesto Carone
Monteiro Lobato
Plínio Marcos
Não só de ver como de escrever
sobre o Brasil. Em geral, os
artistas e intelectuais de 1922
queriam arejar o quadro mental
da nossa "intelligentsia",
queriam pôr fim ao ranço
beletrista, à postura
verborrágica e à mania de falar difícil e não dizer nada. Enfim,
queriam eliminar o mofo passadista da vida intelectual brasileira.
Rubem Braga
Sérgio Buarque de
Holanda
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Semana de 22
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Do ponto de vista artístico, o objetivo fundamental da Semana foi
acertar os ponteiros da nossa literatura com a modernidade
contemporânea.
Para isso, era necessário entrar em contacto com as técnicas
literárias e visões de mundo do futurismo, do dadaísmo, do
expressionismo e do surrealismo, que formavam, na mesma
época, a vanguarda européia. Desse ângulo, o modernismo é
expressão da modernização operada no Brasil a partir da década
de 20, que começava a dar sinais de mudança (vide, no plano
político, o movimento rebelde dos tenentes) de uma economia
agroexportadora para uma economia industrial.
Esse juízo é, do ponto de vista mais geral, certeiro; no entanto,
ele não deve esconder as diferenças no seio do movimento de 22.
Diferenças de ordem política, ideológica e estética. Na verdade,
houve duas correntes modernistas: uma de inspiração
conservadora e totalitária, que iria, em 1932, engrossar as fileiras
do integralismo, e outra, mais crítica e dissonante, interessada em
demolir os mitos ufanistas e contribuir para o conhecimento de
um Brasil real que não aparecia nas manifestações oficiais e
oficiais da nossa cultura. O pressuposto essencial de 22, o
autoconhecimento do País, tinha a um só tempo de acabar com o
mimetismo mental e denunciar o atraso, a miséria e o
subdesenvolvimento. Mas denunciar com uma linguagem do nosso
tempo, moderna, coloquial, aproveitando o arsenal estilístico e
estético das inovações vanguardas européias.
Essas duas correntes se delineiam em 1924, com a publicação do
primeiro manifesto de Oswald de Andrade, Pau Brasil, no "Correio
da Manhã". Nele já estava inscrito o lema que guiaria toda a
atividade artística e intelectual da ala crítica modernista: "A língua
sem arcaísmos, sem erudição. A contribuição milionária de todos
os erros. Como falamos. Como somos". A outra corrente,
conservadora, que iria opor-se a Oswald de Andrade, seria
conhecida por verde amarelismo, cujo batismo mostra bem a
filiação nacionalista e xenófoba: um canto de amor, cego e
irrestrito, às "glórias pátrias". Em 1928, essa oposição recrudesce.
E, com ela, a politização do modernismo. Verde-amarelismo
transmuta-se em Anta; Paulo-Brasil deságua no movimento
antropofágico.
Neste mês de maio faz 50 anos que o inquieto, o irreverente e
zombeteiro Oswald de Andrade escreveu o manifesto literário
antropofágico. De lá para cá muita coisa mudou no Brasil. Tanto
política como culturalmente. Apesar de marcado ainda por traços
de dependência, o País se industrializou nas últimas décadas;
houve mudanças sociais e econômicas significativas. Se não
quisermos apenas celebrar ingenuamente a data, temos de nos
perguntar: teria ainda alguma coisa a dizer e a ensinar o
manifesto literário escrito em 1928?
Para isso, seria preciso situar o núcleo da antropofagia, que
Oswald de Andrade, aliás, nunca formulou clara e explicitamente;
seu manifesto foi escrito numa linguagem elíptica, repleta de
ambiguidades e sem ligação explícita entre as frases. Mas, mesmo
assim, dele é possível extrair algumas formulações. O que o
caracteriza é a retratação do caráter assimétrico da nossa cultura,
onde coexistiam o bacharelismo de Rui Barbosa, ou as piruetas
verborrágicas de Coelho Neto, junto com as experiências
vanguardistas do pintor Portinari. E hoje, de um lado, a moda de
viola e a música sertaneja; doutro lado, a bossa nova e o cinema
novo. Essa mistura, por assim dizer, era vista como resultado do
desenvolvimento histórico no Brasil que, apesar de unitário,
apresenta um abismo entre os aspectos arcaicos e modernos,
entre as favelas e os arranha-céus, entre os guardadores de carro
e os "shopping-centers", entre Embratel e Piauí.
*
O manifesto antropofágico tocou no cerne do capitalismo no
terceiro mundo: a dependência. Ou pelo menos captou seus
reflexos no plano da cultura. Denunciou o bacharelismo das
camadas cultas, que permanecem alheadas da realidade do País,
reproduzindo os simulacros dos países capitalistas hegemônicos.
Ironizou a consciência enlatada de largos setores do pensamento
brasileiro, que se comprazem, quando muito, em assimilar idéias,
jamais criá-las. Se Oswald de Andrade teve a lucidez de
ridicularizar com o mimetismo que tanto seduz o intelectual solene
e bacharel, ele não caiu no equívoco de fechar as portas do País
do ponto de vista cultural. Ao contrário, sua formulação em torno
da "deglutição antropofágica" exige o remanejamento das idéias
mais avançadas do Ocidente em conformidade com a
especificidade de nosso contorno social e político.
Nesse ponto é difícil negar sua atualidade. Ademais, a estrutura
social que a antropofagia reflete e denuncia ainda não mudou em
seus aspectos fundamentais. A industrialização das últimas
décadas, realizada sob a égide do capitalismo concentracionista,
aguçou ainda mais o desenvolvimento desigual em nosso País,
trazendo, de um lado, sofisticação e modernização tecnológicas e,
doutro lado, engendrando bóias-frias e marginalidade urbana. O
Brasil em que Oswald escreveu o manifesto antropofágico e o
Brasil de hoje é ainda o mesmo, ostentando, entre outras coisas,
"berne nas costas e calosidades portinarescas nos pés descalços".
*
A retomada oswaldina na década de 60 sobretudo pela música
popular (através do movimento tropicalista), tem a sua razão de
ser em parte na persistência dessa estrutura social. Ao contrário
da década de 40 - época em que foi injustamente criticado de
escritor desleixado e superficial - Oswald de Andrade goza, nos
dias de hoje, de enorme receptividade, principalmente junto ao
público universitário. Ao lado de Mário de Andrade, que forma o
outro pólo da moderna literatura brasileira, é impossível
compreender o sentido e a dinâmica do movimento de 22 sem
levá-lo em conta.
Nesse sentido, o manifesto antropofágico é um sarampo que
pegou fundo e de maneira duradoura a cultura no Brasil.
O texto acima é um editorial. Foi publicado na Folha de S.Paulo no dia 15 de
maio de 1978
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