Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE POÉTICA DA TRANSMISSÃO Maximiliano Valerio López 1 Nos anos 70, Paulo Freire denunciou, com magistral clareza, o que chamou de visão bancaria ou digestiva da educação, aquela que concebe a transmissão como uma forma de alimentação ou transvasamento de saber de uma consciência a outra. O primeiro e fundamental erro de dita concepção reside em compreender a consciência de modo especializado, quer dizer, pensá-la como um lugar e não como uma relação. Em palavras de Freire, a educação bancária: Concebe a sua consciência como algo especializado neles e não aos homes como “corpos conscientes”. A consciência como se fosse alguma seção “dentro” dos homes, mecanicamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo que a irá “enchendo” de realidade. Uma consciência continente a receber permanentemente os depósitos que o mundo lhe faz, e que se vão transformando em seus conteúdos. Para esta equivocada concepção dos homens, no momento mesmo em que escrevo, estariam “dentro” de mim, como pedaços do mundo que me circunda, a mesa em que escrevo, os livros, a xícara do café, os objetos todos que aqui estão, exatamente como dentro deste quarto estou agora. Desta forma, não distingue presentificação à consciência de entrada na consciência. (FREIRE, 2014. p. 87). O segundo erro desta visão é o de conceber o conhecimento como um objeto; uma coisa separada do mundo, capaz de ser depositada ou guardada na consciência. A educação bancária confunde o conhecimento do mundo com sua descrição e faz dessa descrição um objeto a ser transferido de uma consciência para outra. Desse modo, transforma a linguagem em um conjunto de formulas vazias, levando o educador a proferir “comunicados” e jamais a estabelecer uma verdadeira comunicação. Poder-se-ia dizer que os “comunicados” são dizeres acerca do mundo que esqueceram sua relação com o mundo ao qual se referem e acreditam valer por si 1 Universidade Federal de Juiz de Fora LÓPEZ, Maximiliano Valerio. Poética da transmissão. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 23: nov/2014-abr/2015, p. 268-281. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 269 próprios. São palavras que se acham donas de seu próprio sentido. Mas o sentido não é uma propriedade das palavras, como a dureza é propriedade do diamante ou o calor uma propriedade do fogo. As palavras possuem, sem dúvida, uma dimensão material, por isso podemos escrevê-las ou escutá-las, mas o sentido que delas se desprende não é uma propriedade delas e sim um acontecimento circunstancial. Daí que seja necessário distinguir o enunciado da enunciação, sendo o enunciado uma forma vazia que só adquire sentido quando é proferida por um determinado sujeito numa determinada circunstância. Se um jovem diz para sua namorada “eu te amo”, esta frase terá um sentido, se 15 anos depois, já casados e depois de ter tido dois filhos, essa mesma pessoa repete para sua amada esposa “eu te amo”, o enunciado permanecerá o mesmo, mas será outra enunciação. Se depois de ter compartilhado toda uma vida, já velhos, ele volta-se a repetir o mesmo enunciado “eu te amo” o sentido terá mudado novamente, agora falará de outro amor, um amor carregado de memória e na proximidade da morte. Podemos procurar a palavra amor no dicionário, pero este nos dará apenas o significado convencional e jamais o sentido dela, pois o sentido só se produz, como um lampejo, no acontecimento efêmero de cada enunciação. O educador bancário esquece o caráter acontecimental do sentido e faz dele uma propriedade das palavras. Esquece-se do abismo que separa o mundo e as palavras que o nomeiam e acredita, ingenuamente, que o mundo se traduz naturalmente em palavras e que estas possuem seu sentido. As palavras são para ele um duplo do mundo, uma representação e, como tais, uma quase-coisa que substitui o mundo, uma espécie de mundo em miniatura. Por isso opera com as palavras como se fossem coisas em si e não signos que apontam para o mundo. Todo seu trabalho se realiza com essas palavras que, como coisas inanimadas, substituem um mundo, igualmente morto. Seu trabalho se reduz a selecionar as palavras e regular sua entrada na consciência do educando. Pelo contrário a educação problematizadora não concebe a educação como um fenômeno intersubjetivo, algo que se passa entre os sujeitos, mas como um fenómeno linguístico, político e existencial relativo ao mundo. Educador e educando conversam sobre o mundo, sobre uma realidade que sempre esteve fora Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 270 deles, da qual nenhum deles é dono e que precisa ser interpretada. Pois o mundo humano não é um mundo feito de meros objetos, mas de objetos grávidos de memória, de relações, de sentidos. O problema da transmissão é assim um problema de atenção ao mundo, mas atender o mundo é também compreendê-lo, interpretá-lo, e toda interpretação é uma relação aberta, hipotética, possível. Uma teoria da transmissão implica então uma teoria da linguajem e da leitura. Aquilo que Paulo Freire denunciou na visão bancaria da educação finca suas raízes num longo processo de gramaticalização da linguagem que teve lugar a inicios da modernidade e que implicou tanto a espacialização da consciência quanto a coisificação da língua. A experiência moderna da interioridade Os instrumentos que mediam a relação que temos com nós mesmos tem tido um papel fundamental na constituição da ideia moderna de consciência. Entre eles um dos mais eminentes em nossa cultura e a escritura alfabética. Desde aproximadamente o século VII a. C., em que se estabiliza o alfabeto grego, até o século XII de nossa era, a técnica escritural permaneceu mais o menos a mesma. Mas entre os séculos XII e XV se produziram uma série de mudanças estruturais que acabaram por transformar profundamente nossa relação com o alfabeto, dando origem ao que Ivan Illich denominou “mentalidade alfabética” (ILLICH, 2008. p. 43-177). A relação entre voz, letra e memória é tão íntima na antiguidade que resulta um pouco violento falar da oralidade e escritura ao se referir ela. Essa distinção simplesmente não teria tido qualquer sentido naquela época, porque a oralidade e a escritura não existiam então como formas autônomas de relação com a linguagem. Até o final da Idade Média o texto escrito foi uma espécie de partitura, que jamais funcionava fora de um contexto vocal-aural. Poder-se-ia dizer que, desde a invenção do alfabeto grego, por volta do século VII. a. C., até o século XII, a escrita ocidental não sofreu grandes mudanças, Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 271 tanto em termos de sua estrutura e funcionamento, quanto no que diz respeito às técnicas e instrumentos de produção. Caracterizou-se por ser uma escritura fonética, em sentido estrito, ou seja, funcionou como um registro gráfico da voz humana. Esta invenção prodigiosa dos povos do Oriente Médio permitiu uma experiência inédita: a evocação visual de uma voz ausente. No entanto, tal evocação foi parcial, dado que o texto antigo, em virtude de sua estrutura, de modo algum podia substituir o discurso pronunciado de viva voz. Por alguma razão que os paleógrafos ainda não conseguem discernir claramente, os gregos deixaram a separação entre as palavras, herdado dos Etruscos, e progressivamente adoptado a escritura contínua, de modo tal que, já no século V a. C. os papiros gregos reproduziam o fluxo da voz como uma linha contínua de caracteres homogêneos. Lembre-se também que a escrita grega tampouco fez distinção entre maiúsculas e minúsculas, nem contava com sinais auxiliares como pontos, vírgulas relutância, pontos de interrogação, exclamação ou outras notações prosódicas para indicar ao leitor as pausas e entonações que devia empregar na leitura. Isto significava que o texto devia ser interpretado no sentido que se interpreta uma obra teatral. O leitor devia decidir quando realizar as pausas, que expressão dar a cada frase, a cada silêncio e que ritmo seria mais conveniente para aquele escrito em particular. Pois a vida não estava no papiro, mas a voz do intérprete. Daí que o prestígio social estivesse diretamente ligado à oratória e não à leito-escritura, que era um trabalho delegado a um grupo de secretários, em sua maioria escravos. A leitura silenciosa era quase desconhecida no mundo antigo e quando era realizada era considerada uma façanha. A falta de separação entre as palavras a tornava mais lento e fazia necessário o suporte da vocalização. A ausência de marcas prosódicas fazia com que fosse muito difícil ler um texto sem tê-lo ouvido pronunciar antes. A leitura foi, então, mais uma declamação do que uma leitura no sentido moderno, onde o leitor realizava uma performance vocal na qual a escrita constitui apenas uma pequena parte. O discurso em si, não estava contido no texto escrito, mas em sua performance vocal 2. Sobre el concepto de performance pueden consultarse los estudios de ZUMTHOR, Paul “Performance, recepção, leitura”. Sao Paulo: Cosac Naify, 2007. ZUMTHOR, Paul “Introdução a 2 Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 272 A produção de um escrito no mundo greco-romano envolvia a participação de um grande número de pessoas. Primeiro, o ditator, quem proferia o ditame. Depois, um ou mais notarii (takhygráphos ou semeiográphos no mundo grego) que, com um estilete (stilus) registravam o discurso numa tabua encerada, Para isso era utilizada uma escritura especial que permitia a captura do discurso na velocidade que este era dito. Posteriormente, outro grupo de secretários chamado amanuensis ou librarii, decodificavam essa escrita estenográfica para transformá-la em escrita normal. Finalmente, os scribas ou kalligráphoi, a colocavam em papiro, utilizando uma pequena canha chamada cálamo; este último escrito chamava-se exemplar. Como se vê, os intelectuais gregos e latinos ditavam mais do que escreviam e escutavam ler muito mais do que liam por si próprios. Com a dissolução do mundo greco-romano, por volta do século IV, o contexto cultural se transformou radicalmente, mas as técnicas e meios de produção da escritura permaneceram os mesmos. A escritura deixou de ser um instrumento auxiliar do discurso público proferido na praça para uma multidão de ouvintes e passou a refugiar-se nos mosteiros. Os instrumentos não mudaram: tabuas enceradas, estiletes, pergaminho, papiro, tinta, pena, pincel e cálamo, mas o que se transformou profundamente foi a atmosfera espiritual e, com ela, os rituais e sentimentos que acompanharam a escritura. A voz radiante e contagiosa da antiga oratória tornou-se sussurrante; o mundo continuou a ser predominantemente sonoro, mas sua musicalidade se transformou completamente. A eloquência foi substituída pela recitação e a arte do calígrafo deixou de ser um técnico para tornar-se um ritual religioso. Ler e escrever passaram a ser então parte de uma nova ascese espiritual: a leitura chegou a ser quase um canto e esse canto uma prece, em quanto a escrita se transformou quase numa forma de pintura, uma iluminação. Assim nasceu a escrita monástica que durante oito séculos moldou a relação dos leitores com o alfabeto no Ocidente. poesía oral”. Belo Horizonte: UFMG, 2010. ZUMTHOR, Paul. “La poesía y la voz en la civilización medieval”. Madrid: ABADA, 2006. Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 273 Ao longo do século XII ocorreu no ocidente outra mudança, talvez apenas comparável à aquela que teve lugar no começo da com a invenção e posterior divulgação dos alfabetos fonéticos pelo Oriente Médio e o Mediterrâneo. O escrito fonético, que antigamente tinha na voz sua referência imprescindível, se transformou em um texto visualmente organizado, y este novo suporte passou a configurar um novo espaço para a organização do pensamento. A escrita deixou de ser assim a expressão gráfica de voz e tornou-se um suporte gráfico de pensar. Transformou então a relação que se tinha com as letras, pois o texto tornou-se algo a ser estudado e não já algo que só se podia copiar, recitar ou lembrar. Nasceu assim a escritura escolástica. Esta transformação da página medieval só foi possível graças à incorporação gradual de uma série de elementos provenientes de diferentes fontes. Uma das principais mudanças foi a incorporação gradual da separação entre palavras e a progressiva separação entre frases, parágrafos e capítulos, assim como a adição de títulos e índices, que permitiram uma nova forma de busca e apreensão do conteúdo desejado. Também deve incluir-se nestas novas tecnologias o uso de letras maiúsculas e minúsculas, bem como a distinção entre obra e comentários. Mas uma das inovações de maior alcance foi a inclusão de signos prosódicos, tais como pontos, vírgulas, reticencias, pontos de interrogação e uma série de notações que deram ao leitor um sentido do ritmo e o tom emotivo de cada texto. Este novo tipo de escritura fez da linguagem e do pensamento uma matéria a ser trabalhada, no sentido em que o marceneiro trabalha a madeira. Deu ao pensamento uma nova objetividade e criou a possibilidade de se demorar nele numa forma contemplativa, visual. O pensamento pode se relacionar consigo mesmo sob novas condições, de uma forma sistemática e exaustiva. O discurso pode ser então uma matéria de "estudo", mas não de estúdio no sentido antigo do termo, ou seja, uma atenta e amorosa inclinação às letras, mas no sentido moderno, isto é, um exame sistemático e rigoroso do dito. A origem da coisificação da linguagem e do mundo está relacionada com essa nova tecnologia escritural que tomou forma entre os séculos XII e XV e que criou as condições para isso que conhecemos como modernidade. Dessa nova relação com as letras e o Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 274 pensamento depende também a distinção moderna entre oralidade e escritura sobre a qual veio a se organizar todo o processo civilizatório que dá origem à escola atual. Lembremos que desde a conquista até hoje a relação entre selvagens e civilizados, classes populares e elites foi pensada como uma conquista da escritura sobre a oralidade. As mudanças técnicas que levaram a aparição do texto escolástico tiveram um efeito importante na experiência da leitura, pois esta se tornou mais veloz e deixou de precisar do apoio vocal. O texto escrito ganhou assim uma nova autonomia: a voz deixou de ser algo exterior e tornou-se um componente do próprio escrito. Desde então, os livros carregam a sua própria voz. Nas longas horas de leitura silenciosa o leitor moderno escuta uma voz imaterial que vem do texto. O papiro antigo era, literalmente, letra morta e só ganhava vida por meio da vocalização de um leitor experiente. O texto moderno fala por si mesmo, mas o faz com uma voz intangível, imaginária, fantasmagórica, uma pura ideia de voz. Esta nova voz abriu no leitor uma cavidade, tão imaginário como a voz que nela ecoa; uma interioridade silenciosa que vai acolher o novo sujeito moderno. Com o texto moderno inaugura-se uma nova experiência da leitura que é, ao mesmo tempo, uma nova experiência de si mesmo. Poder-se-ia dizer que a voz imaginária e fantasmagórica existe desde tempos remotos, e é verdade, mas a voz do velho Daimon é uma voz do além, não uma voz da consciência. A voz da antiguidade vem de outro mundo, chega através dos sonhos, os oráculos, os poetas, vem do que Octavio Paz chamou “a outra margem” (PAZ, 2003. p.131-147). Não é uma voz própria, interior, psicológica, mas exterior e alheia. A nova tecnologia escritural escolástica acabou com a antiga voz e de suas ruínas nasceram duas vozes conflitantes: de um lado, a voz íntima e intangível, que passou a morar nas letras e na consciência do leitor, de outro lado, a voz exterior, sonora e corporal, que através do canto, as preces e narrações, continuou a nutrir a vida espiritual dos iletrados. Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 275 Foram estas mudanças as que contribuíram a criar as condições para a moderna distinção entre oralidade e escritura. A oposição entre a oralidade e a escritura se traduziu no universo colonial como uma oposição entre a voz selvagem e a escritura da civilização, pois a oralidade ficou associada ao afeto, a irracionalidade em quanto a escritura representou a racionalidade e a espiritualidade do mundo civilizado. Foi sobre esta oposição que se montou o processo civilizatório colonial e depois a escola moderna. De um lado o mito irracional do selvagem e de essa espécie de selvagem interior que foi para os modernos o “homem do povo” e, de outro, a escritura racional da história e a civilização. O processo civilizatório concebeu-se desde o início como uma progressiva gramaticalização do mundo sonoro do selvagem. Mas, se por uma parte, a construção da modernidade implicou a captura gramatical da voz selvagem, por outra parte, também precisou do progressivo governo da nova experiência da interioridade. Essas duas frentes de conquista tiveram como principal ferramenta a coisificação e normatização da língua. A normatização da linguagem Em agosto de 1492, enquanto Cristóvão Colombo navegava pelo Oceano Atlântico rumo às Índias, em Salamanca, o humanista e gramático espanhol Antônio de Nebrija apresentava à Rainha Isabel a Católica, a primeira gramática da Europa em língua românica. Na introdução, se pode ler: Cuando bien conmigo pienso, mui esclarecida Reina, i pongo delante los ojos el antigüedad de todas las cosas que para nuestra recordación i memoria quedaron escritas, una cosa hallo i saco por conclusión mui cierta: que siempre la lengua fue compañera del imperio i de tal manera lo siguió que junta mente comenzaron, crecieron i florecieron i, después, junta fue la caída de entrambos (NEBRIJA, 2011, p. 3). Depois dessas palavras, o autor apresentará um breve relato sobre o nascimento, esplendor e ruína nos impérios antigos: assírios, fenícios, egípcios, Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 276 hebreus, gregos e romanos. Em todos eles, Nebrija constata uma infância ligada à oralidade e um esplendor que coincide com a posse e o domínio da escrita. Em todos eles, constata também uma decadência que coincide, por sua vez, com a decadência da própria língua. Os mais bem-sucedidos nessa história, para o gramático de Salamanca, são os impérios grego e latino, cuja influência e esplendor foram mais vivos e duradouros. Sua força e influência se devem ao fato de terem sido os únicos que possuíram uma arte gramática. Nebrija se propõe, então, a fazer em língua castelhana aquilo que, segundo ele, permitiu fazer do grego e do latim línguas imperiais. A gramática é, ao mesmo tempo, uma garantia de esplendor e um remédio contra o esquecimento e os desvios que, por conta da ação destrutiva do tempo, o idioma pudesse sofrer. As palavras de Nebrija recordam aquelas do deus egípcio Theuth, que Platão traz à memória em Fedro. A gramática de Nebrija é apresentada à rainha como um remédio contra o esquecimento e a fragmentação, como uma ferramenta poderosa para a instauração da unidade e da durabilidade que anseia e precisa todo o império. O que a primeira gramática em língua vernácula pretende e reconhece é a necessária relação entre o governo e a ordem da linguagem, uma ordem que possa assegurar a verdade e a permanência. Verdade que deve, por força, ser unitária e constante como o mesmo império. Ésta [la lengua castellana], hasta nuestra edad, anduvo suelta i fuera de regla i a esta causa a recebido en pocos siglos muchas mudanças por que, si la queremos cotejar con la de oi a quinientos años, hallaremos tanta diferencia i diversidad cuanta puede ser maior entre dos lenguas. I porque mi pensamiento i gana siempre fue engrandecer las cosas de nuestra nación i dar a los ombres de mi lengua obras en que mejor puedan emplear su ocio, que agora lo gastan leiendo novelas o istorias embueltas en mil mentiras i errores, acordé ante todas las otras cosas reduzir en artificio este nuestro lenguaje castellano, para que lo que agora i de aquí adelante enél se escriviere pueda quedar en un tenor i estender se en toda la duración de los tiempos que están por venir (NEBRIJA, 2011, p. 8-9). Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 277 A gramática tem então, claramente, um caráter prospectivo. Não só serve para ordenar o que já existe, como também pretende oferecer as coordenadas para aquilo que está por vir. A Espanha (o reino de Castilla) é, na época, uma potência em expansão, que acabava de reconquistar os territórios árabes do sul. Expande-se e domina outras regiões da Península Ibérica, mostrando vocação de império. A escola de Salamanca, um avanço moderno em matéria de direito e economia, está assentando as bases do direito internacional e estruturando as relações comerciais do novo império. A unificação e a reconquista são um fato. O Reino de Castilla se projeta sobre o mundo exterior. A gramática é também uma ferramenta de conquista que vem afirmar sua vocação expansionista. Cuando en Salamanca di la muestra de aquesta obra a Vuestra Real Majestad i me preguntó que para qué podía aprovechar, el mui Reverendo Padre obispo de Ávila me arrebató la respuesta, i respondiendo por mí dixo que, después que Vuestra Alteza metiesse debaxo de su iugo muchos pueblos bárbaros i naciones de peregrinas lenguas, i conel vencimiento aquéllos ternían necessidad de recebir las leies quel vencedor pone al vencido i con ellas nuestra lengua, entonces por esta mi Arte podrían venir en el conocimiento della, como agora nos otros deprendemos el arte de la gramática latina para deprender el latín. I cierto assí es que no sola mente los enemigos de nuestra fe, que tienen ia necessidad de saber el lenguaje castellano, mas los vizcaínos, navarros, franceses, italianos i todos los otros que tienen algún trato i conversación en España i necessidad de nuestra lengua (NEBRIJA, 2011, p. 10-11). O império nascente teve em Salamanca uma gestação nas letras e na espada. O governo da língua por meio da gramática foi um dos pilares que permitiu que a conquista da América fosse, desde o início, uma empresa pedagógica. Governar e educar, duas tarefas impossíveis, segundo Freud, estiveram entrelaçadas desde o começo e sua impossibilidade foi exorcizada a sangue e fogo. No governo e na educação, entre eles e por meio deles, desenvolveu-se uma guerra, menos estrondosa que a de espadas, mas não menos cruel. Os ecos dessa guerra ainda perduram no ar. Na Argentina foi possível ouvi-los, alguns séculos depois, da boca Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 278 de quem foi o mentor do sistema educativo argentino, Don Domingo Faustino Sarmiento, no refrão que reza “la letra con sangre entra” . Mas a gramática não apenas se apresenta como ferramenta válida para a conquista e administração de terras distantes. Como se refere Iván Illich, Nebrija propõe à rainha a construção fundamental de uma nova realidade social que implica submeter seus súditos a um tipo de dependência completamente nova, invadindo, assim, um novo domínio em seu próprio território. Ele oferece à Isabel uma ferramenta para colonizar a língua falada por seus súditos, substituindo-a por uma língua do Estado. Nebrija ve en su gramática un pilar del Estado-nación. Así, El Estado, desde su origen, se percibe como un organismo agresivamente productivo. El nuevo Estado le quita a la gente las palabras con las que subsiste y las transforma en un lenguaje normalizado que desde ese momento cada uno estará obligado a aprender según el nivel de instrucción que institucionalmente le haya sido imputado. A partir de entonces la gente deberá entregarse a una lengua que recibirá de lo alto y ya no a desarrollar una lengua en común. Ese paso de lo vernáculo a una lengua materna enseñada oficialmente quizá sea el acontecimiento más importante –y sin embargo el menos estudiado- en el advenimiento de una sociedad hiperdependiente de bienes mercantiles. (…) He aquí, por vez primera la aparición del ciudadano moderno y de su lengua suministrada por el Estado; uno y otro no tienen precedentes en la historia (ILLICH, 2008, p. 82). Dessa forma, a gramática está destinada não só a expropriar o idioma dos povos das terras conquistadas para introduzi-los na esfera cultural espanhola, mas também a tornar estranha e distante a própria língua vernácula. A partir daí, a língua materna, aquela que, por definição, se aprende espontaneamente através da convivência com os seus próximos, apenas se poderá aprender “corretamente” mediante a intervenção do Estado. Entre cada indivíduo e sua própria língua irá se impor, então, a necessária mediação de um corpo de especialistas. Nasce, assim, a escola moderna e a partir daí, a cultura não será mais aquilo que se cultiva em Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 279 comum, mas algo que tem que se alcançar através do ensino institucionalizado promovido pelo Estado. Poética e Gramaticalidade Tenho me referido suscintamente ao surgimento da escritura escolástica e a invenção da gramatica moderna, para mostram até que ponto nossa experiência da linguagem tem sido capturada pelo dispositivo gramatical e indicar assim a necessidade de recolocar a reflexão educativa sobre uma base não gramatical. Num escrito de 1936, titulado Hölderlin e a essência da poesia, Martin Heidegger afirma ser a poesia o fundamento da história e da linguagem, isto é, do humano. Se ele escolhe fazer de Hölderlin o personagem dessa afirmação é porque o considera o poeta dos poetas, ou, em outros termos, o poeta que de modo mais evidente fez do poetizar um motivo poético. A afirmação de Heidegger é a seguinte: A poesia não é só um enfeite que acompanha a existência humana, nem uma passageira exaltação, nem um acaloramento e diversão. A poesia é o fundamento que sustenta a história, e por isso não é tampouco uma manifestação da cultura, e menos ainda a mera “expressão” da “alma da cultura” (HEIDEGGER, 1994). A poesia não toma a linguagem como um material já existente, mas é a poesia que faz possível a linguagem. A poesia é a linguagem primitiva de um povo histórico… É preciso entender a essência da linguagem pela essência da poesia (HEIDEGGER, 1994). Como não reconhecer nessa afirmação a herança dessa formidável experiência espiritual que foi o Romantismo. Fica evidente na afirmação de Heidegger que nos encontramos definitivamente fora daquela distinção que, desde tempos remotos, divide no Ocidente a filosofia e a poesia, fazendo com que a experiência humana seja capturada, ora num discurso inspirado e extático que goza do mundo sem compreendê-lo, ora num discurso racional e crítico, que Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 280 compreende o mundo sem gozar dele. A reflexão de Heidegger não é poetológica, pois não se refere à técnica poética, nem a um saber sobre a arte poética em geral, mas tampouco é estético, no sentido de ser um discurso racional e crítico acerca da poesia. A frase de Heidegger não se refere à arte, nem à filosofia, mas busca na experiência poética o fundamento de ambas. No mesmo sentido, o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz assinala a necessidade de distinguir o poema, enquanto artefato retórico, da poesia, enquanto acontecimento de sentido. Distinção fundamental para entender as implicações das afirmações de Heidegger. Nem todo verso é poesia nem toda prosa carece dela. Não é a métrica o que faz com que uma forma verbal possa ser considerada poesia. Ao mesmo tempo, não só encontramos poesia nos textos escritos: pinturas, músicas e demais expressões artísticas podem com justiça ser consideradas poéticas. Por outro lado, é possível afirmar também que existe poesia sem poema, dado que paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos sem jamais chegar a se condensar em poemas. De modo que não se deve confundir o poema com o poético: “um soneto não é um poema, mas uma forma literária, exceto quando esse mecanismo retórico (estrofes, metros e rimas) foi tocado pela poesia” (PAZ, 2003, p. 16). O poético não é o poema. O poema é um dispositivo retórico capaz de conduzir ao poético, mas o poético não se confunde com o poema, por isso não pode ser explicado pela estilística, nem pelos dados biográficos do autor, nem capturado em gêneros ou movimentos estéticos. A crítica, e todas as suas ciências auxiliares, nos podem brindar informações úteis acerca dos poemas, mas não pode revelar a essência do poético. O poético é uma experiência de sentido, a mais radical e extrema experiência de sentido. Não de um sentido em particular, não do sentido disso ou daquilo, mas do fato mesmo de que há sentido. Temos experiência disso quando uma realidade nos alcança repentinamente e nos deixa sem hálito e sem palavras. Como se, de súbito, se nos tivesse aberto uma ferida no ânimo. Pois o poético é, de fato, uma suspensão, uma fissura, uma ferida aberta no coração do idioma. Daí que, sendo uma experiência da linguagem, a vivamos como uma incapacidade ou uma insuficiência das palavras, Número 23: novembro/2014-abril/2015 Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE 281 mas também, como o que as faz possível num sentido pleno. O poético transcende a linguagem e, simultaneamente, vive nele. A gramatica toma a linguagem como algo dado e acredita saber de antemão o que as palavras significam, mas o sentido não mora nas palavras e sim na experiência que fazemos delas. Por isso ensinar a língua portuguesa jamais será equivalente a ensinar a dizer uma palavra própria. Na poesia a experiência do dizer o mundo atinge seu ponto de quase impossibilidade. O poeta é aquele que experimenta a insuficiência da linguagem ou, como diz Agamben, “a impossibilidade de falar a partir de uma língua”. O poeta sabe que nem as gramaticas, nem os dicionários, garantem a pronunciação de uma palavra viva e verdadeira. Ele deve produzir com as palavras algo que seja mais do que meras palavras, algo que tenha a dignidade de um verdadeiro começo. A experiência poética é, ao mesmo tempo, uma experiência indigência das palavras e de sua infinita potencia criadora. Pensar uma poética da transmissão não tem a ver com enfeitar a educação com palavras bonitas ou sentimentais, mas com suportar coletivamente, geração após geração, a crueldade e a beleza de sermos seres falantes. Referências AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 57. Ed. Ver. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. HEIDEGGER, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesía. Barcelona: Anthropos, 1994. ILLICH, Ivan. El trabajo fantasma. In Obras reunidas, vol. II. México: FCE, 2008. ________. En el viñedo del texto: Etología de la lectura: un comentario al “Didascalicon” de Hugo de San Victor. México: FCE, 2002. LARROSA, Jorge. 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