2 POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.) ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA NATAL/2016 3 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.) ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA NATAL/2016 1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Filgueira, Ana Paula Santana. Política, vida cívica e religião : uma análise das memórias de Eneias no livro III da Eneida de Virgílio (séc. I a.C.) / Ana Paula Santana Filgueira. - 2016. 118 f.: il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lyvia Vasconcelos Baptista. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de PósGraduação em História, 2016 1. Virgílio - Eneida. 2. Heróis. 3. Civilização clássica. 4. Mito. I. Baptista, Lyvia Vasconcelos. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(37) 4 ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.) Qualificação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Programa de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa II: Cultura, Poder e Representações Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do(a) Prof(a). Dr(a). Lyvia Vasconcelos Baptista. NATAL/ 2016 5 ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.) Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores: Prof. Drª. Lyvia Vasconcelos Baptista (UFRN) Prof. Dr. Rafael Scopacasa (UFMG) Prof. Drª. Marcia Severina Vasques (UFRN) Prof. Drª. Silvia Marcia Alves Siqueira (UECE) - Suplente Natal, _________de__________________de____________ 6 AGRADECIMENTOS Tenho muito a agradecer as pessoas que fizeram parte da minha trajetória de construção desse trabalho. Amigos e familiares que fizeram a diferença nos momentos mais difíceis, fosse com um café, palavras de incentivo ou um abraço. A todos que estavam e estão ao meu lado eu dedico essa dissertação. Agradeço primeiramente ao homem mais importante da minha vida, que nunca me desamparou e me incentivou a chegar até aqui, o meu pai. Por todos os momentos que passamos juntos, tanto os bons como ruins, pela fé que depositou em mim e, sobretudo, por ser o maior exemplo de persistência e busca de dias melhores que eu possuo. Obrigada meu velho, por tudo. Agradeço ao professor Almir Bueno por ter me incentivado a mergulhar no mundo da pesquisa e no programa de pós-graduação. Lembro-me da graduação, quando me tornei sua monitora de História Antiga, por meio dela conheci Virgílio, a Eneida e o prazer de trocar conhecimentos com meus colegas nas reuniões e eventos. Foi durante essa experiência que me interessei pelo estudo de História Antiga e onde comecei a dar os primeiros passos em direção ao mestrado. Agradeço também ao professor Joel Andrade pela paciência e cordialidade com os quais me recebeu todas as vezes que o procurei pedindo ajuda e por ter me incentivado a trilhar o caminho acadêmico, mostrando os resultados maravilhosos que essa árdua caminhada tem a nos oferecer. Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação da UFRN. As aulas de Durval Muniz, Renato Amado, Alessandro Dozena, Eugênia Maria, Santigo Jr. e Raimundo Arrais, foram muito importantes para a concretização desse trabalho, pois fui apresentada a várias perspectivas de estudo, que me inspiraram nos momentos de escrita. As discussões sobre espaço foram muito enriquecedoras e me permitiram ir além do que eu pretendia fazer quando entrei pela primeira vez no setor II para assistir a primeira aula do mestrado. Obrigada a todos vocês por terem sido ótimos professores e pelas contribuições que fizeram a este trabalho. Agradeço aos meus dois orientadores do mestrado. Ao professor Raimundo Arrais o meu muito obrigada por ter assumido a tutoria dessa pesquisa nos primeiros semestres. A experiência de suas orientações foram desafiadores e enriquecedoras, tive contato com 7 várias perspectivas sobre o meu objeto de estudo e a oportunidade de me questionar diversas vezes sobre minha metodologia de pesquisa. À minha segunda orientadora também tenho muito agradecer, Lyvia Vasconcelos obrigada por ter assumido a orientação dessa dissertação já no meio do curso, pelo carinho com o qual me recebeu, pelas conversas não somente sobre a dissertação, mas sobre as coisas da vida. Obrigada por ter sempre me recebido de braços abertos na sua sala em todas as nossas reuniões, pelos desafios que me apresentou no estudo do Mundo Antigo e conselhos sobre o mundo acadêmico. Agradeço aos amigos que conquistei no CERES e que me apoiaram em vários momentos, principalmente no mestrado – Ariane, Avohanne, Arthur, Gerlânia, Matheus (Mohammed) e Antonio – a amizade de vocês é muito importante para mim. Obrigada pelas resenhas no Facebook e no Watsapp, as palavras de apoio, os encontros sempre animados nos eventos e por serem ótimos amigos. Aos amigos que conquistei fora da faculdade também tenho muito a agradecer – Raul, Luanny e Felipe – o apoio de vocês foi essencial nos momentos em que duvidei se conseguiria concluir a dissertação, o carinho e as risadas que arrancaram de mim tornaram nossos encontros muito animados. Acredito que família não é apenas aquela com a qual compartilhamos os mesmos laços sanguíneos, mas aquela que conquistamos ao longo da vida e está ao nosso lado nos momentos bons e ruins. Agradeço a família Ramos, Jorgeane (Tia Jô), Diogo e Zé. Nos conhecemos em Caicó, quando comecei a graduação em História e Di era meu colega de curso, de lá para cá vocês se tornaram uma família para mim, sempre preocupados e atenciosos. Tenho um carinho imenso por vocês. Obrigada pelo companheirismo e por terem aberto sua casa e seu coração para mim. Serei eternamente grata. O curso de pós-graduação não teria sido tão alegre sem os meus amigos da “Comuna’s House” – André, Vanessa, Ruan, Ilka, Romário, Kalidiany, Isabella e Rafael – com os quais compartilhei alguns dos momentos mais difíceis do mestrado, a distância de casa, o estresse pelo acúmulo de trabalho, o pavor da louça suja, mas também alguns dos melhores momentos, as cervejas pós-aula, as festas, o companheirismo e a amizade que consolidamos e que pretendo levar pelo resto da vida. Dedico um espaço especial aqui para André Nascimento, meu amigo desde o Ensino Médio, pois foi ele o primeiro a me dar a notícia da aprovação no mestrado, com palavras que até hoje me recordo: “Ana, você 8 acredita no poder de Vênus? Pois é, nós passamos no mestrado”. Muito obrigada “branquelo” por tudo. O mestrado me deu muitos presentes e o melhor deles foram às amizades que conquistei e que pretendo cultivar para além desses dois anos e meio. Agradeço especialmente aos frequentadores mais assíduos do “Principado Independente da 812”, Adriel (Dridri), João Paulo, Paulo Vitor, Fagner, Keidy, Luan, Abimael e Patrícia, pelas conversas descontraídas para aliviar os momentos de tensão da escrita, pelo debate que promovemos sobre nossos trabalhos, os jogos e as risadas, que tornaram os últimos meses de escrita da dissertação muito mais leves. Agradeço a João Vinicius, que conheci quando entrei no mestrado, pelo material de pesquisa que compartilhou comigo e pelos e-mails de incentivo à pesquisa. O meu muito obrigado às servidoras, Erica e Edleide, pelo cafezinho da tarde e as conversas na copa do CCHLA. Com vocês essa caminhada se tornou muito mais divertida e agradável. Sou grata também aos meus colegas da Residência de Pós-Graduação, principalmente Ivana, Dezwith, Dona Conceição, Jorge e Karina, pelo modo gentil com o qual me trataram e pelas conversas amigáveis. Obrigada por tudo que compartilhamos. Desejo muita sorte e luz no caminho de todos vocês. Agradeço imensamente a família Rangel – Roseane e Charles – pela atenção e o carinho com os quais me tratam, por terem participado de alguns dos momentos mais felizes da minha vida, como a formatura e a aprovação no mestrado, e terem me adotado como membro da família. Ao meu namorado, Marcos Filho, tenho muito a agradecer, sua paciência e dedicação a nós foram importantíssimas para mim ao longo desses dois anos e meio. Obrigada por cada lágrima de alegria e tristeza que compartilhou comigo, por ter estado ao meu lado todo tempo me incentivando a continuar esse trabalho, pelos chocolates e pizzas nos momentos de tensão e a companhia nos almoços no nosso restaurante preferido, o RU. Foi nos pequenos gestos que nos aproximamos e através deles que nos unidos um dia após o outro. Agradeço ao meu irmão, Júlio César, que conheci a pouco mais de três anos. Embora não tenhamos crescido juntos, aos poucos descobrimos que possuímos muitas coisas em comum, principalmente o desejo de ir enfrente com a carreira acadêmica. Desejo muito sucesso a você, força para vencer as batalhas que a vida nos impõe e saiba que estarei 9 sempre aqui para o que precisar. Muito obrigada pelas visitas e as gargalhadas que demos juntos. Agradeço aos amigos que desde a adolescência fazem parte da minha vida e alguns que fiz há pouco tempo em Currais Novos, Francis, Iane, Vanderlúcia, Ronie, Pablo, Rosy, Peterson, Manel, Thays, Daniel, Mercinho, Joel, Marcelo, Allan, Karina e Ana Lúcia pelas brincadeiras, festas, choros, brigas e conselhos. Todos vocês ocupam um lugar especial no meu coração e foram muito importantes para a realização desse trabalho. 10 RESUMO: A Eneida, poema épico escrito por Publio Vergilius Maro, é datada de 19 a. C. Esta epopeia narra o trajeto percorrido pelos sobreviventes da Guerra de Troia, liderados pelo herói Eneias, em busca de uma terra prometida pelos deuses, para fundar uma nova cidade. Nesta pesquisa, tomamos como objeto de estudo o Livro III da Eneida, no qual o personagem Eneias narra como se deu o decorrer dos seus primeiros anos de exílio, sempre chegando e partindo de espaços onde ele passou por experiências que moldaram sua personalidade como líder político, militar e religioso, bem como influenciaram seus companheiros de viagem. Realizamos uma reflexão sobre como essas características agregadas à figura de Eneias podem nos auxiliar na reflexão sobre política, vida cívica e religião da cidade de Roma, durante o período em que a epopeia virgiliana foi produzida, abarcando o governo de Otávio Augusto, entre 14 a. C. e 27 d. C. Promovemos uma análise sobre mythos, memória e espaço, identificando como os troianos exilados na Eneida se reconheciam e interagiam com os espaços nos quais aportaram, nomeadamente, Trácia, Delos, Creta, ilhas Estrofádas, Butroto, Itália e Drepáno, visando demonstrar como uma fonte literária pode sugerir elementos culturais sobre a sociedade que a produziu. Palavras-chave: Eneida. Herói. Memória. Espaço. Mythos 11 ABSTRACT: The Aeneid, an epic poem written by Publius Vergilius Maro, is dated 19 a. C. This epic tells the route taken by survivors of the Trojan War, led by Aeneas hero, in search of a promised land of the gods, to found a new city. In this research, we take as an object of study Book III of the Aeneid in which Aeneas character tells how was the course of his first years of exile, always arriving and departing spaces where he went through experiences that shaped his personality as political leader, military and religious, and influenced their travel companions. We carry out a reflection on how these characteristics aggregated to Aeneas figure can help us in thinking about politics, civic life and religion of Rome, during the period in which the epic Virgilian was produced, covering the government of Octavian Augustus, 14 to . C. and 27 d. C. promote an analysis of mythos, memory and space, identifying how the Trojans exiles in Aeneid is recognized and interact with the spaces in which landed in particular Thrace, Delos, Crete, Estrofádas islands, Buthrotum, Italy and Drepano, aiming to demonstrate how a literary source may suggest cultural elements of the society that produced it. Keywords: Aeneid. Hero. Memory. Space. Mythos 12 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Mapa da Via Flaminia.....................................................................................30 FIGURA 2 – Painel da entrada principal da Ara Pacis Augustae........................................31 FIGURA 3 – O Lupercal......................................................................................................32 FIGURA 4 – A deusa Tellus................................................................................................33 FIGURA 5 – A deusa Roma................................................................................................33 FIGURA 6 – Procissão imperial da Ara Pacis Augustae.....................................................34 FIGURA 7 – Mapa da viagem de Eneias.............................................................................61 13 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................................14 1.CAPÍTULO I – A ENEIDA EM TEXTO E CONTEXTO................................................22 1.1 Virgílio: os resquícios de uma biografia........................................................................23 1.2 Da política do Augustus aos primeiros passos de um poema.........................................26 1.3 A discussão sobre as influências retóricas na epopeia de Virgílio.................................44 2.CAPÍTULO II- MITO E MEMÓRIA: A VIAGEM MARÍTIMA DE ENEIAS..............49 2.1 Mythos e mimesis na literatura e história greco-romana.................................................49 2.2 A viagem de Eneias e seus sociis em busca da Itália.....................................................58 2.2.1 A partida de Troia e a chegada à Trácia...................................................................62 2.2.2 De Delos à Creta: a busca pela antiquam matrem...................................................65 2.2.3 A ilha das Harpias....................................................................................................66 2.2.4 Epiro: a réplica de Troia...........................................................................................68 2.2.5 Do primeiro encontro com a Itália à Drepano..........................................................69 2.3 Memória e espaço na Eneida.........................................................................................72 3.CAPÍTULO III- REALIZAÇÕES HEROICAS, FUNDAÇÕES E PROFECIAS NO LIVRO III DA ENEIDA.......................................................................................................80 3.1 Para além da narrativa virgiliana: a res gestae de Eneias...............................................81 3.2 Pietas, virtus e religio: da Eneida aos cultos públicos de Roma....................................92 3.3 Religião e cidade em Roma e na Eneida.........................................................................99 Considerações finais............................................................................................................106 REFERÊNCIAS.................................................................................................................109 14 INTRODUÇÃO Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece para tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante segue (ALIGHIERI, I, I). Na Divina Comédia Virgílio foi o guia de Dante ao longo sua viagem pelo Inferno e pelo Purgatório, ele o conduziu por caminhos desconhecidos aos vivos. Neste trabalho, o poeta da Antiguidade Romana nos mostrará o caminho a ser percorrido na análise do seu poema épico, a Eneida, que narra as errâncias do herói Eneias e de alguns compatriotas, sobreviventes de uma guerra que destruiu sua pátria e fundadores das bases de um império. Nosso objetivo é apresentar a literatura como uma fonte capaz de sugerir elementos culturais da sociedade que a produziu. Para isso, fizemos um recorte da épica virgiliana, tendo em vista a sua complexidade e extensão. Utilizamos como fonte principal de nossa pesquisa o Livro III desse poema, buscando identificar como questões relacionadas à vida cívica, à política da cidade de Roma e à religião se encontravam interligadas nessa sociedade. No total, a Eneida é composta por 9.826 versos, divididos em 12 Livros1, e narra a história do herói troiano, Eneias, filho da deusa Vênus e do mortal Anquises, que após à Guerra de Troia, juntamente com alguns compatriotas, se lança ao exílio. Eles são guiados pelas profecias dos deuses: Júpiter, Vênus e Apolo, que lhes prometem uma nova terra, onde fundariam as bases do Império Romano. Em meio as suas andanças passam por intensas provações, são seduzidos a fixarem-se em algumas das ilhas onde aportam, mas não cedem e continuam a viagem até o seu destino, a Itália. Ao chegarem nesta região enfrentam os povos latinos, liderados pelo rei Turno, em uma guerra que causa significativas perdas de ambos os lados, mas no final os troianos saem vitoriosos. 1 Para a realização da dissertação utilizamos uma edição bilíngue da Eneida, em latim e português, traduzida por Carlos Alberto Nunes e publicada em 2014. Esse tradutor publicou a primeira versão da tradução em 1981, pela A Montanha Edições. O material foi republicado em 1983, pela Editora da Universidade de Brasília. A edição por nós utilizada foi organizada por João Ângelo Oliva Neto e publicada pela Editora34. O texto em latim adotado foi organizado por Frédéric Plessis e Paul Lejay para a editora Hechette, no ano de 1919, tendo sofrido algumas modificações pelo tradutor da versão em português. 15 Nosso estudo se encontra direcionado ao Livro III dessa epopeia, que consiste em um relato dos primeiros anos de exílio na voz do personagem Eneias. Encontramos nessa seção a descrição de como um grupo de sobreviventes de uma guerra carregou em suas naus uma cidade que não existia mais no plano físico, somente na memória de cada um. Eles transportaram sua cidade pelos mares da Sicília até Cartago e de lá até o destino profetizado pelos deuses, a Itália, onde fundam as bases de Roma. Apesar de se tratar de um texto sobre o nascimento de Roma a Eneida, e mais precisamente o Livro III, não apresenta uma descrição literal de como se deu o processo de fundação dessa cidade, mas de Lavínio, fundada por Eneias em homenagem à filha do rei Latino, Lavínia, com quem se casa no final da epopeia. Além disso, encontramos nessa seção do poema a ênfase na dissolução das estruturas materiais que amparavam a atividade cívica, espaços hostis onde Eneias e seus companheiros encontraram a peste, maus presságios, morte e guerras. Essas referências literárias se relacionavam com o próprio período no qual essa obra foi escrita, século I a. C., que não foi menos tumultuado. Após o assassinato de Júlio César, seu sucessor, Otávio Augusto, promoveu a transformação gradual de uma sociedade republicana em um principado, marcado pelo fim de um período conturbado de guerras civis responsáveis por causar fortes impactos sobre essa sociedade. Foi nesse cenário complexo que a Eneida foi produzida e de maneira também complexa em cada um dos seus versos foram refletidos esses momentos de tensão. Virgílio não fala de Roma no seu sentido físico, das heterogeneidades étnicas que a habitavam no século I a. C., nem do modo de vida dos seus cidadãos ou do comércio. O autor se pautou na descrição de uma cidade ideológica e valorativa, que vivia a era da pax romana, na qual se desenvolveu um projeto de incorporação de novos territórios e que pretendia criar um sistema de valores universal. A cidade na Eneida foi construída em cima da ideia de tentativa e erro e pela harmonia com os deuses, isso significa pensar que Roma não havia surgido pelo simples desejo e necessidade dos homens, mas pela determinação divina, que desde suas raízes mais remotas garantiram seu sucesso como império (TEIXEIRA, 2012, p.11-12). No Livro III Eneias narra como se deram suas aventuras pelas terras que ele e seus companheiros encontraram ao longo do exílio e como suas tentativas de fundar uma cidade para abrigar o seu povo falharam até o momento em que recebeu um sinal divino que indicou ser a Itália o local prometido pelos deuses. Não foi por mero acaso 16 que na Trácia e em Creta Eneias tentou fundar cidades e fracassou, mas pelo desejo dos deuses de o levarem ao local ideal2. A Eneida sintetiza uma tradição literária romana com influências helenísticas, uma epopeia completa e estilizada que inaugura um novo lugar para a épica na história. Sua importância é ressaltada por autores que refletem sobre as bases da literatura ocidental, como Dante Alighieri, por exemplo. Mas, além disso, como documento histórico a obra de Virgílio se destaca ao fundamentar um corpo de considerações sobre diversos aspectos da cultura e sociedade latina. A epopeia virgiliana foi, ao longo do tempo, alvo de inúmeros estudos que desenvolveram distintas críticas e possibilidades de interpretação. Cecilia Ames e Guillermo De Santis (2011), por exemplo, ao discutirem sobre o lugar das etnias italianas no século I a. C., afirmaram que a política de expansão romana3 propiciada por Augusto, baseada no ideal de uma Tota Italia, foi o vetor que atravessou a maioria das produções literárias e historiográficas que de algum modo trataram do tema das etnias italianas, aderindo ou se opondo a argumentação do avanço romano. A epopeia de Virgílio seriam uma representante importante desse contexto, veiculando o ponto de vista romano a respeito das etnias italianas4. Atualmente, a academia brasileira tem produzido uma gama de materiais referentes ao estudo da Eneida5 e ferramentas que facilitam a análise da obra virgiliana, como O Dicionário da Eneida, elaborado pelo professor Milton Marques Júnior (2007), que transformou em verbetes os Livros da epopeia virgiliana. Esse trabalho tem muita 2 No capítulo II, quando apresentamos uma análise sobre os acontecimentos do Livro III, essas questões serão discutidas. 3 Clifford Ando (2002, p.123-142) discutiu sobre a etnografia e a política do século I a. C., afirmando que na Antiguidade não havia um conceito bem definido de “unidade italiana”. Segundo a sua concepção não devemos pensar que existia uma entidade política e superior nesse período, pois nem o grego, nem o latim possuem um termo que resuma a comunidade vasta que conhecemos hoje como nação. Tampouco era óbvio que se poderia unificar toda a população da península itálica, pois nem a língua, nem os costumes, nem a cultura de cada um dos povos que habitavam essa região ou mesmo a cidadania romana era concebida como um todo tradicional. 4 Mas, isso não significa que os povos italianos foram passivos frente à dominação romana ou que os autores da época augustana desconsiderassem sua existência e relações com Roma. Ver Ames & Santis (2011, p.391408) 5 Dentre alguns estudos produzidos pela academia brasileira sobre a Eneida, podemos destacar: ALMEIDA, Felipe dos Santos. O augúrio no Livro II da Eneida: a destruição de Troia e o Destino de Eneias. Dissertação de Mestrado em Letras da UFPB. João Pessoa, 2011; ALBERTIN, Alcione Lucena de. Catábase de Eneias: um ato piedoso. Dissertação de Mestrado em Letras da UFPB. João Pessoa, 2008; MOTA, Thiago Eustáquio Araújo. Do Descensus à Consecratio: analisando os funerais heroicos na Eneida de Virgílio (I a.C.). Dissertação de Mestrado em História da Universidade Federal de Goiás. Goiás, 2011 17 importância, pois fornece uma explicação minuciosa do poema e apresenta um conjunto de imagens dos locais mencionados na narrativa. Outro ponto positivo desse esforço foi que sua elaboração partiu da leitura da Eneida em sua língua original e não de uma tradução já realizada. Como podemos perceber, através dos exemplos citados, a Eneida coloca ao nosso dispor um amplo leque de informações e possibilidades de estudos. Ao fazer um recorte da epopeia virgiliana, bem como da história de Roma procuraremos abordar questões referentes à política implementada por Otávio Augusto, à vida cívica da cidade, ao myhto, à memória e à religião romana, na tentativa de demonstrar como essas questões se encontravam entrelaçadas na construção da personalidade heroica de Eneias, lapidada nas provações pelas quais passou durante o exílio de Troia a Cartago, conforme descrito no Livro III da Eneida. Na epopeia virgiliana o discurso religioso se faz bastante presente, principalmente pelo fato da observância religiosa caracterizar o personagem principal, que ao longo da trama recebe o epiteto pio para designar essa característica. Isso implica tecermos algumas considerações sobre como se constituía a religião do Império Romano no século I a. C., a fim de entender melhor sobre quais princípios Virgílio sustentou o perfil do herói do seu poema. Para endossar essa discussão abordaremos ainda como o discurso religioso aparece na literatura greco-latina relacionada à personagem Eneias vinculado a um discurso religioso sobre o mythos do herói sobrevivente da Guerra de Troia e fundador das bases de Roma6. De acordo com a perspectiva de Jörg Rüpke (2007, p.3) a Itália, sobretudo nas suas regiões costeiras, já era parte de um intercâmbio cultural em uma fase pré-histórica. Sinais e práticas religiosas estavam presentes nessa região a partir do antigo Oriente Próximo, via cultura fenícia, pelo menos indiretamente, através de Cartago, e via a Grécia e etruscos. Esses grupos partilharam um “conhecimento” religioso na forma de nomes ou instituições rudimentares na área de práticas culturais que chamamos religião e o intercâmbio cultural não ficou restrito às fases fundadoras. É difícil estimar a difusão de práticas religiosas entre os latinos, úmbrios e etruscos, por exemplo. Podemos apenas supor que muitas características dos deuses, o fascínio da estatuária e representação antropomórfica, foram 6 Essas questões serão debatidas no Capítulo III. 18 compartilhadas. Além disso, a presença contínua de escritores gregos influenciou o destaque frequente da profundidade com a qual sua cultura foi recebida pelos romanos. Estes processos tiveram consequências diretas na religião de Roma. Rituais públicos eram liderados por magistrados, posições sacerdotais eram preenchidas por membros da elite romana, e cada vez mais essas medidas se tornaram parte também da capital do Império. Ao mesmo tempo, a religião permaneceu independente em um sentido peculiar, como por exemplo, deuses podiam ser convidados a se deslocarem para outros lugares e a transferência da propriedade pública a deuses importados passou a ser objeto de decisões políticas, mas os seus rituais não eram. A religião ofereceu uma poderosa fonte para legitimar decisões políticas. O modelo dominante para a religião romana não era expansionista, foi bastante absorvente. Numerosos "deuses" na forma de estátuas, imagens ou meros nomes, foram importados, assim como as histórias sobre esses deuses, suas práticas de culto e a construção de templos. As práticas religiosas faziam parte de quase todos os domínios da vida cotidiana, banquetes, construção uma casa ou início uma viagem, geralmente, implicava a realização de pequenos sacrifícios e orações, assim como as reuniões do Senado, desfiles, ou guerras. Assim, a religião não se limitou a templos e festivais (RÜPKE, 2007b, p.4-6). Denis Feeney (2007, p.129-130) se dedicou ao estudo das formas literárias da historiografia e da épica que surgiram no final do século III a. C. e afirmou que elas incluíam a religião como um componente vital. De acordo com sua perspectiva as obras de história e os épicos romanos são fontes fundamentais para explorar a relação entre deuses e homens. Ao nos debruçarmos sobre esses textos com interesse na sua dimensão religiosa devemos ter em mente o fato de que são tipos específicos de literatura e que estão interagindo com outros discursos religiosos em suas próprias e distintas formas. Os primeiros épicos em língua latina a serem preservados e transmitidos foram escritos por homens que não eram falantes nativos da língua. Um grego de Tarento chamado Andrônico tornou-se um cidadão romano com o nome de Lúcio Lívio Andrônico e, em algum momento na segunda metade do século III a. C., traduziu a Odisséia de Homero. Perto do final do mesmo século um campônio chamado Gnaeus Naevius escreveu o Bellum 19 Punicum7, um épico sobre a primeira guerra entre Roma e Cartago (264-241 a. C.). Cerca de trinta anos mais tarde Quinto Ênio deu o passo decisivo de usar os hexâmetros de Homero, pela primeira vez em sua composição dos Annales, um poema que descrevia a história de Roma desde a queda de Tróia até os anos que lhe eram contemporâneos. Isso nos revela uma tradição literária, que se baseava nos textos homéricos e no relato das raízes troianas do povo romano, perpetuada por poetas e historiadores, como Tito Lívio e Virgílio (FEENEY, 2007, p. 130-132). Cenas divinas dos poemas de Homero se reproduzem nos poemas épicos posteriores, conselhos e intervenções divinas, deuses falando com os seres humanos e assim por diante. Esses poemas mostram os deuses e deusas da tradição homérica em ação com uma roupagem romana. Estas perspectivas ressoaram ao público romano associando seu sucesso na guerra como consequência da manutenção de boas relações com os deuses. Ainda segundo Feeney, a épica romana tem a sua própria contribuição a dar para a forma como os romanos configuraram o seu papel no seu processo de expansão. O alcance do poder religioso da épica romana reflete o envolvimento da sociedade com os sistemas religiosos e culturais de muitos povos vizinhos e distantes, os romanos eram agora herdeiros das preocupações gregas no leste, por exemplo. A Eneida de Virgílio entra nesse cenário levando questões relacionadas à dominação dos romanos muito mais longe. Na época em que Virgílio viveu (70-10 a. C.) o Império romano havia se expandido por todo o Mediterrâneo e era governado por Otávio Augusto (63 a. C.- 14 d. C.), que reivindicou sua descendência ligada à gens de Eneias, reiterada na Eneida. A ambição dessa epopeia também incluía o projeto de mostrar como Roma teria assumido o papel de nova herdeira do patrimônio cultural mais antigo oriundo da Grécia (FEENEY, 2007, p.131-136). Diante de tais proposições sobre a religião romana, que estavam inseridas na Eneida, nos dedicaremos a tecer uma análise centrada no personagem Eneias e em como ele reunia em si características caras ao entendimento de como se organizava a vida cívica e religiosa da Roma augustana. Ao fazer um recorte tanto da história de Roma como da 7 Esse épico tem como tema principal Primeira Guerra Púnica, abordando as causas mitológicas desse eventos, e as aventuras de Eneias, a partir da sua fuga de Troia. Aos dias atuais chegaram apenas fragmentos desse poema, por esse motivo optamos por não fazermos uma análise sobre ela. Ver mais em: NAEVIUS, Gnaeus. Bellum Punicum Trad. Eric Hebert Warmington. London: William Heinemann LTD, 1936. Disponível em < https://archive.org/stream /remainsofoldlati02warmuoft#page/52/mode/2up > Acesso em 16 jun 2016 20 epopeia virgiliana levaremos em consideração as proposta sobre o estudo do texto e do contexto elaborada por Dominick Lacapra (1983, p. 52-60). De acordo com sua perspectiva, todo texto, ou seja, todo vestígio do passado, possui dois pontos complementares: um dito documental, que diz respeito ao mundo empírico e transmite informações sobre ele; e um operante, que excede e transfigura qualquer referente empírico ao recriá-lo através de usos não convencionais da linguagem. Diante dessas questões o autor não se limita a tentativa de reconstruir o passado tal como aconteceu e não coloca em segundo plano o aspecto documental, ele reconhece e respeita o documento como um limite imposto à interpretação. Ao partir dessa perspectiva admite-se a historicidade do intérprete, o que torna inevitável a inserção do seu ponto de vista particular na definição das questões relevantes a interpretação dos fatos. Rejeita-se então a ideia da existência de uma história “verdadeira”, que pode ser recuperada a qualquer momento, como também não posiciona a história como invenção narrativa. Lacapra (1983, p.60-65) defende que textos e discursos possuem estruturas típicas, códigos e regras que se constituem como expressão do real empírico. Para que as conexões entre os significados textuais e a experiência de vida ou as “condições históricas” não sejam reduzidas a um esquema de relações mecânicas é preciso identificá-las no texto. No campo textual, nas articulações dos conceitos, imagens, argumentos e referenciais, é possível apreender os sentidos que permitem a interpretação histórica. Essa abordagem se dedica aos processos de ressignificação que inscrevem o contexto no texto. Nosso estudo se concentra na seção terceira da Eneida no qual o personagem principal, Eneias, narra suas errâncias durante o exílio, descrevendo os episódios que vivenciou, junto com seus companheiros, nas terras onde aportavam e eram levados a abandonar. Nesses espaços vivenciou experiências que moldaram sua personalidade como herói digno de fundar uma nova cidade para os troianos sobreviventes da guerra que devastou o seu lar. Tendo essa questão como norte, nos pautaremos em analisar como a experiência do heroi troiano nesses espaços, fundando cidades, participando de batalhas ou fugindo de pestes, permite a articulação entre política, vida cívica e religião. Ou seja, os três elementos da sociedade romana que pretendemos discutir a partir da narrativa de Virgílio. Esse trabalho se encontra dividido em três capítulos. No capítulo I abordaremos as características gerais da Eneida, a época na qual foi escrita, as temáticas que a compõem e 21 como se estrutura sua narrativa. Em seguida, apresentaremos algumas considerações sobre a biografia de Virgílio, que consideramos importantes para o entendimento das circunstâncias nas quais esse poeta deu início à composição do seu poema épico. Por esse motivo daremos atenção também a alguns eventos políticos que marcaram a capital do Império Romano durante esse período, século I a. C., quando Otávio Augusto deu início ao seu principado. Esse capítulo se conclui com uma discussão sobre as influências retóricas da épica virgiliana, na qual destacaremos questões relacionadas às contribuições da poesia grega à literatura latina e como podemos encontrar essas evidências na Eneida. No capítulo II realizaremos uma análise sobre o mythos e a mimesis, tendo em vista que na Eneida a referência à mitologia grega e o emprego do modelo de épica, bem como de personagens e acontecimentos, ligados aos poemas homéricos, principalmente, é frequente. Para isso nos apoiaremos no que os autores antigos, Aristóteles e Cícero, discutiram sobre esses conceitos nos apoiando no que a historiografia moderna abordou sobre eles. Em seguida, apresentaremos um resumo do Livro III da epopeia virgiliana elencando os acontecimentos que marcaram a chegada e a saída dos troianos exilados das terras onde aportaram na sua viagem de Troia à Cartago. Concluiremos essa seção com um debate sobre como o espaço e a memória aparecem articulados na narrativa de Virgílio. Iniciaremos o capítulo III discutindo sobre como o mythos de Eneias foi escrito na literatura greco-latina, a fim de destacar como, apesar de ter se dedicado a produzir uma epopeia sobre um personagem que já existia e pertencia a uma tradição literária, Virgílio construiu um heroi e problematizou em sua personalidade questões especificamente romanas. A partir disso analisaremos as características mais marcantes do perfil do herói da Eneida, destacadas no Livro III, e como elas se relacionavam aos valores éticos que deveriam ser cultivados dentro dos muros de Roma, no século I a. C., referentes à religião, a política e a vida cívica. 22 1. A ENEIDA EM TEXTO E CONTEXTO A escrita da Eneida, datada de 19 a. C., teria sido encomendada por Otávio Augusto, porém não chegou a ser concluída por ocasião da morte do seu autor. Mesmo assim, foi publicada. Composta por doze Livros, sua narrativa pode ser dividida em dois blocos: o primeiro (do Livro I ao VIII) possui uma estrutura semelhante à Odisseia, trata das errâncias do herói troiano Eneias, que juntamente com alguns compatriotas, percorre os mares em busca de uma nova pátria e ao longo da sua viagem passa por ilhas, nas quais se depara com várias provações; o segundo (do Livro IX ao XII) segue os moldes da Ilíada, sua trama ocorre no cenário terrestre e aborda a temática de uma guerra motivada por uma mulher, no poema de Homero, Helena, e no de Virgílio, Lavínia, a filha do rei Latino. Mas, isso não significa que Virgílio se inspirou apenas nos poemas homéricos, mas que este foi um dos seus subsídios durante a composição do seu poema. Ao olharmos mais profundamente percebemos que o poeta romano se apoiou em várias scholia de pensamento da sua época, como veremos no decorrer desse trabalho. De maneira geral, a epopeia de Virgílio narra a história dos sobreviventes da Guerra de Troia que, liderados pelo herói Eneias, se lançam ao exílio no mar em busca de uma terra prometida pelos deuses na Itália onde fundariam uma cidade, Lavínio, base de um futuro império. Estes homens levam consigo seus deuses domésticos, garantindo assim a existência da sua cidade, mesmo após a sua destruição física. Ao longo da sua viagem, os troianos passam por intensas provações. Uma delas se dá quando Eneias e seus companheiros aportam em Cartago e o herói é convidado pela rainha, Dido, a narrar suas aventuras nos primeiros anos de exílio. Nesse evento, Vênus induz a rainha e se apaixonar pelo líder dos troianos, o que se revela como mais uma provação, visto que ele é obrigado a deixar sua amada para dar prosseguimento a sua viagem, pois recebe um alerta divino. Por esse motivo, ele parte, deixando Dido, que acaba se suicidando por ter sido abandonada. Os troianos aportam na Sicília, onde realizam jogos fúnebres em homenagem a Anquises, morto durante a viagem. Após esse evento seguem para Cumas, onde encontram a sacerdotisa de Apolo, Sibila. Ela e Eneias partem para uma viagem ao mundo dos mortos para encontrarem o pai do herói. Em seguida, os troianos se reúnem e se dirigem á Itália, onde são recebidos amistosamente pelo rei Latino, de cuja filha, Lavínia, Eneias se torna pretendente a casamento. Em meio a isso, os povos dessa região, liderados por Turno, 23 antigo pretendente da filha do rei, instigados pela deusa Juno, declaram guerra aos recémchegados à sua terra. Após um intenso combate os troianos saem vitoriosos e o líder perdedor é assassinado pelo líder vencedor. Virgílio valorizou muitos aspectos da cultura greco-romana na sua epopeia, como mitos e fatos relevantes da história, e construiu personagens dotados de um sentimento de devoção aos deuses, principalmente no que diz respeito a Eneias, o herói piedoso8. No século I a. C. a epopeia romana abrangia vários gêneros. Ela reunia os elementos considerados característicos da tragédia, da comédia e da sátira, por exemplo. Seu relato referia-se a um momento de mudança no mundo: o nascimento dos deuses; o fim de uma grande civilização; um exemplo de moralidade; a formação do mundo, dentre outras temáticas. Pierre Grimal realiza uma análise sobre o período e afirma que “uma epopeia será o poema das origens” (GRIMAL, 1992, p. 187). Virgílio narrou à gênese do povo romano na Eneida. Nas próximas páginas apresentaremos detalhes sobre como e quando esse poema foi composto, partindo da descrição da sua estrutura em direção às influências do seu autor. 1.1. Virgílio: os resquícios de uma biografia As informações sobre a vida de Virgílio são bastante escassas. Os dados de que dispomos sobre a vida do poeta advêm do De Poetis Vita Vergilii, texto que faz parte da obra De Poetis, escrita por Suetônio, na qual ele apresenta uma série de biografias de alguns personagens importantes da poesia romana: Terêncio, Virgílio, Horácio, Lucano, Tíbulo e Persio. Este é um dos principais documentos sobre a vida desses poetas, que chegou aos dias atuais. Não sabemos precisamente a data de sua composição, apenas que no século IV d. C. o gramático Elio Donato reproduziu o texto de Suetônio no seu Comentarium ad Vergilium9·. Segundo Suetônio (A vida de Virgílio, 1-5), Públio Virgílio Maro nasceu em Mântua, em 70 a.C., época do primeiro consulado de Marco Licínio Crasso e Gneu 8 Nas primeiras linhas da Eneida (I, 3) Eneias é apresentado como um guerreiro dotado de pietas, entendida como respeito e devoção aos deuses, característica que se mostra como a principal desse personagem ao longo do poema. Essa questão será discutida no tópico Pietas, virtus e religio: da Eneida aos cultos públicos de Roma, no capítulo III. 9 Utilizamos um texto bilíngue, latim e espanhol, traduzido por Martha Elena Montemayor, publicado em 2009, no México. Isso nos leva a ter um pensamento crítico ao utilizar informações dessa fonte, mas apesar disso não deve ser descartada, pois é o registro mais detalhado que temos em mãos sobre a vida de Virgílio. 24 Pompeu. Ele fazia parte da gens Vergilius, a família de seu pai era de origem etrusca nascida em Mântua e sua mãe de origem romana. Não há informações sobre a profissão que seu pai desempenhava, para alguns ele era um oleiro e para outros um arrendatário de terras. O biógrafo (A vida de Virgílio, 4-5) procura destacar detalhes sobre a vida privada do poeta romano, assim como fizera também com Otávio Augusto em A vida dos Doze Césares, dando ênfase às previsões divinas que teriam acompanhado seu nascimento. De acordo com uma dessas anedotas pouco antes de dar à luz a mãe de Virgílio teria sonhado que paria um loureiro cujos ramos chegavam ao céu, uma árvore frondosa e cheia de frutos e ao nascer, ele não teria chorado, revelando um presságio de nobreza e “predileção divina” no futuro poeta. Certo tempo depois, foi plantado um choupo no local de seu nascimento, onde as gestantes pediam por proteção durante o parto. As primeiras poesias que Virgílio compôs datam de sua adolescência, por volta dos dezesseis anos, Suetônio nomeia algumas delas: Cantalepton, Priapea, Epigramas, Dirae, Ciris e Culex. Sobre a Eneida esse biógrafo afirma que inicialmente o poeta romano pretendia escrever sobre a história de Roma, porém desistiu por se considerar incapaz de empreender um projeto de tal magnitude e se deteve na composição das Bucólicas, dedicada a Asínio Polião em agradecimento por ele ter salvado as poucas terras da sua família do confisco a mando dos triúnviros, após a vitória na batalha de Philipos10, que seriam doadas aos soldados que participaram dessa guerra. Em seguida, escreveu as Geórgicas, cuja composição durou sete anos, em homenagem a Mecenas por tê-lo auxiliado em novos conflitos fundiários com os veteranos de guerra, para só então dar início à composição da sua épica (A vida de Virgílio, 19). O autor da Eneida teria iniciado sua carreira em Cremona, por volta de 53 a. C., mas posteriormente se mudou para Roma. Antes da poesia dedicou-se ao estudo da Matemática, Medicina e da Retórica, tendo uma curta e frustrada carreira no campo do Direito. O poeta mantuano é apresentado por Suetônio como uma figura que não gostava de aparecer em público, mesmo depois de ter alcançado certa fama, preferia ficar em retiro no campo. Virgílio sentia gosto pelas coisas relacionadas ao espírito: o estudo das leis que governavam o universo, busca da serenidade interior e a poesia, arte a que irá se dedicar 10 Batalha que ocorreu na cidade de Phillipos, localizada na Grécia, no ano 42 a.C., entre Marco Antônio, Otávio e Lépido, membros do segundo triunvirato, e Marco Júnio Bruto e Caio Cássio Longino, principais envolvidos no assassinato de César. 25 pelo resto da sua vida (A vida de Virgílio, 6-15). Alguns autores da modernidade, como Grimal (1992, p.30-39), afirmam que apesar de Virgílio ter seguido os princípios epicuristas11, pregados por seu mestre Sirão, não escondeu seu gosto pela poesia, visto que durante algum tempo essa arte foi condenada pelo epicurismo como causa do temor da morte, nutrir paixões e dar exemplos de cólera. Logo, era concebida como um perigo à calma interior, a essência do Bem. Apesar disso, os epicuristas encontraram um ramo da poesia que os atraíram, pois ela podia agir sobre a alma como um calmante e fazia adormecer as angústias, uma vez que apresentava imagens que davam alegria ao espírito, como por exemplo, a harmonia entre homem e natureza, a poesia pastoril. As Bucólicas de Virgílio foram um exemplo dessa poesia, ela exalta a vida simples do campo (GRIMAL, 1992, p. 60-79). É importante destacar que o epicurismo foi a primeira das escolas gregas cujas ideias foram apresentadas em latim. Além disso, o autor da Eneida foi familiarizado com o De rerum natura, de Lucrécio, a mais antiga, existente, articulação do epicurismo em latim. Virgílio também fez parte do mesmo círculo de estudos que Ário Dídimo, um filósofo estóico que foi professor de Augusto. Estudos, como o de Susanna Morton Braund (1997, p.205-221), apontam que Virgílio não era membro doutrinário de nenhuma escola de pensamento, mas que ele utilizou ideias diferentes para propósitos e contextos também diferentes. Muitas das suas ideias foram influenciadas por Homero e Hesíodo, autores que formaram a base da educação antiga. Virgílio explorou questões e dilemas centrais para as escolas filosóficas helenísticas, mas isso converge com as preocupações ideológicas e éticas da elite republicana romana. Toda esta questão de interpretação desse poeta como um aderente ou mesmo um advogado de determinados pontos de vista filosóficos ou religiosos está intimamente ligada com a recepção dos seus poemas em diferentes épocas e lugares. No que diz respeito ao texto antigo sobre Virgílio, o biógrafo Suetônio (A vida de Virgílio, 2009, 13, p.216-217) afirma que apesar de ter dedicado boa parte da sua vida ao recolhimento o autor da Eneida fazia parte do círculo de Mecenas e através dele se 11 O epicurismo teria se consolidado em Atenas, por volta de 306 a.C., quando Epicuro funda a sua Escola do Jardim. Em linhas gerais essa doutrina pregava a reconciliação do homem com a natureza, tentava também explicar o mundo através de uma lógica que levava à ética. Baseava-se na moralidade e ensinava o homem a buscar a sabedoria e a felicidade individual. Não se sabe com exatidão como essa doutrina chegou aos romanos, apenas que foi bem assimilada. No século I a.C. o epicurismo já era bem difundido em Nápoles, onde Sirão, mestre de Virgílio, conseguiu difundir essa filosofia (SILVA, 1985, p.10-17). 26 aproximou de Otávio Augusto, que após o período de guerras civis deu início ao projeto de revitalização do império e à propagação da imagem da família imperial e para isso contratou os melhores artistas e arquitetos, a fim não só de realizar obras públicas, mas também de resgatar as tradições e escrever sobre a gênese do povo romano. A pedido do princeps (A vida de Virgílio, 35-37, p.225-227), Virgílio começou a escrever a Eneida em 29 a. C., pouco depois da vitória na Batalha do Ácio, quando Cleópatra e Marco Antônio foram derrotados. Durante a fase de conclusão da epopeia, aos 52 anos de idade, o poeta realizou uma série de viagens entre a Grécia e a Ásia, a fim de conhecer os lugares onde se passavam os acontecimentos do seu poema, mas acabou adoecendo antes de concluí-la. Faleceu em 19 a. C., na cidade de Bríndisi. Seus restos mortais foram sepultados em Nápoles, na Via Puteolana, onde se encontram os seguintes dizeres: “Mântua me gerou, os calabreses me raptaram, agora eu tenho Partenope; eu cantei as pastagens, os campos e as guerras” (A vida de Virgílio, 36). 1.2. Da política do Augustus aos primeiros passos de um poema Para entender a Eneida é importante compreender o tecido histórico no qual ela se inseria. Essa poesia parece estar ligada ao projeto político de Otávio Augusto, que após a morte de César, seu tio que o adotou como filho, precisou enfrentar a resistência do Senado em aceitá-lo como herdeiro do governo de Roma. Nesse cenário se encontram alguns pontos que devem ser enfatizados, dentre eles a política de renovação das tradições e dos prédios públicos de Roma após as guerras civis, por volta de 31.a.C., e a ênfase dada pelo princeps à origem divina da gens Iulia, utilizada como uma das justificativas para a concessão do status de deidade a César e assegurar sua posição como seu herdeiro legítimo, se considerando descendente de Eneias, o filho de Vênus e fundador de Lavínio. Essas informações não se encontravam veiculadas apenas na literatura, como percebemos na Eneida, de Virgílio, e na História de Roma, de Tito Lívio, por exemplo, mas estavam presentes também nos monumentos da capital do império, como na Ara Pacis, construída em homenagem a Otávio Augusto e sua família. Esse altar ilustra como a ligação entre a gens Iulia e Eneias era uma história que não estava ao dispor apenas de uma seleta camada da sociedade, mas aberta ao público, como veremos mais adiante. No que se refere à epopeia virgiliana, o governo de Otávio Augusto era uma profecia dos deuses, algo 27 inevitável, pois havia sido planejado desde muito antes da fundação de Roma. Podemos perceber isso em uma de suas passagens, quando Júpiter revela o destino de Eneias e seus descendentes para Vênus: César de Troia, de origem tão clara, até as águas do Oceano vai estender-se; sua fama há de aos astros chegar dentro em pouco. Do claro nome Iulo provém o cognome de Júlio. Livre do medo infundado há de um dia no Olimpo acolhê-lo, rico de espólios do Oriente. Invocado vai ser pelos homens. Então, suspensas as guerras, aquietam-se os ásperos sec’los. A boa Fé, Vesta e Remo, de par com o irmão Quirino, ditarão leis; os terríveis portões do Castelo da Guerra serão trancados com traves e ferros ingentes, e dentro o ímpio Furor, assentado sobre armas fatais, amarradas as mãos nas costas, a boca a espumar só de sangue, esbraveja12. (Eneida, I, 285-295) Apesar de lermos na primeira linha “César de Troia” (Troianus origine Caesar), na sequência percebemos a descrição de alguns feitos de Otávio Augusto: 1) ao se proclamar Augustus, em 27 a.C., garantindo a sua deificação; 2) ao obter sucesso em suas campanhas pelo Oriente; 3) ao conseguir por fim às guerras civis, simbolizado pelo ato de fechar os portões do Templo de Jano, referido na citação acima como Castelo da Guerra 13. Em sua poesia, Virgílio faz mais algumas menções ao triunfo do princeps, por exemplo, quando relata a comemoração dos jogos Ilíacos no Ácio: Na praia de Ácio os desportos troianos então celebramos: os companheiros, desnudos os corpos e untados de azeite, travam-se, alegres de terem passado por tantas cidades gregas, sem risco, e escapado da fúria dos fortes argivos. Nesse entrementes, o sol concluía seu círculo grande, e o negro inverno com ventos furiosos o mar encrespava. Nas portas cravo do templo um escudo de côncavo bronze, que Abante apenas usara, o gigante, e um só verso lhe aponho: 12 Nascetur pulchra Troianus origine Caesar,/ imperium oceano, famam qui terminet astris,/ Iulius, a magno demissum nomen Iulo./ Hunc tu olim caelo, spoliis Orientis onustum,/ accipies secura; vocabitur hic quoque votis./ Aspera tum positis mitescent saecula bellis;/ cana Fides, et Vesta, Remo cum fratre Quirinus,/ iura dabunt; dirae ferro et compagibus artis/ claudentur Belli portae; Furor impius intus,/ saeva sedens super arma, et centum vinctus aenis/ post tergum nodis, fremet horridus ore cruento (Eneida, I, 285-295). 13 Detalhes sobre feitos de Otávio Augusto foram disseminados pelo império, através de obras como a sua Res Gestae, publicada depois da Eneida, onde procurou descrever todas as suas conquistas políticas e militares e na obra de alguns autores como Tito Lívio, que em A história de Roma Livro I também ressaltou esses eventos. 28 ESTE TROFÉU FOI GANHO NA GUERRA DOS GREGOS14. (Eneida, III, 275-285) Eneias e seus sócios15 participam dos jogos e o escudo que o herói deixa como presente no templo do Ácio denota a intenção de Virgílio de fazer uma alusão a um dos principais feitos de Otávio Augusto: a vitória na guerra contra Marco Antônio e Cleópatra, na batalha naval ocorrida no Ácio, bem como ao clípeo honorífico, um escudo que o Senado e o povo romano presentearam Otávio, em 27 a. C, para celebrar seu sucesso militar. A escrita de Virgílio nos leva a perceber uma intenção de contar na Eneida não só a história de Eneias e seus sócios, mas também a do governo de Otávio Augusto, associando o imperador sempre a uma profecia divina, bem como da cultura do povo romano. Paulo Martins (2011, p.162-179) se dedicou à análise da memória aeterna na época do governo de Otávio Augusto, e afirma que a epopeia foi a responsável pela construção de uma memória atemporal e coletiva, mas restrita a uma camada da sociedade, que possuía acesso à educação letrada ou, pelo menos, aos círculos letrados. O tempo era manipulado com tal destreza que a figuração podia ser facilmente confundida nas três possibilidades temporais: passado, presente e futuro. Essa figuração omnitemporal amplificava as qualidades do ser figurado quase como uma deificação. A partir do momento em que Otávio assumiu suas funções públicas devido à morte do seu pai adotivo, Júlio César, passou a seguir seu cursus honorum, funções e prerrogativas distintivas dos homens bemnascidos, o que transferiu sua capacidade de influência do âmbito privado para o público. Nesse momento suas imagens não se restringiam mais aos Lares familiares, mas passaram a ser também alvo da representação pública. Suas atividades civis, militares, políticas e religiosas determinaram um tipo especifico de representação, que somadas produziram um acúmulo de figurações que só puderam ser sintetizadas com a divinização. A ênfase nesses pontos pode ser explicada em parte pelo programa político ideológico implantado por Otávio Augusto visando engrandecer sua imagem, fato que ficou 14 Actiaque Iliacis celebramus litora ludis./ Exercent patrias oleo labente palaestras/ nudati socii; iuuat euasisse tot urbes/ Argolicas mediosque fugam tenuisse per hostes./ Interea magnum sol circumuoluitur annum,/ et glacialis hiems Aquilonibus asperat undas./ Aere cauo clipeum, magni gestamen Abantis,/ postibus aduersis figo et rem carmine signo:/ AENEAS HAEC DE DANAIS VICTORIBUS ARMA (Eneida, III, 275-285). 15 Em Latim sociis, termo utilizado na Eneida para designar os companheiros de Eneias: (I, 550); (I, 630); (II, 745); (III, 230); (III, 255); (VII, 35); (IX, 5); (X, 255); (XI, 880). 29 claro nos textos e na estatuária dos prédios públicos da cidade de Roma. Como aponta Paulo Martins (2011, p. 30-35) as imagens possuem a finalidade de aferir o tempo, são um retrato do poder repercutido em figuras “idealizadas”, que funcionam como marca da amplificação e divinização do ser figurado. No que se refere a Otávio Augusto refletem a ideia de que seu governo restabelece a “idade de ouro”, operada sistematicamente através de textos e imagens veiculados na sua época. “Portanto, a finalidade da imagem corresponde à observação da anterioridade, simultaneidade e posterioridade ao presente enunciativo, que impõem ao poder de Augusto marca diferenciada de aeternitas” (MARTINS, 2011, p.31). Otávio Augusto assumiu a função de Imperator, Caesar, Princeps e Pontifex, caminho que já havia sido delineado no final da República, com o governo ditatorial de César. Mesmo assim, foi o responsável pela construção de um ideário sustentado na divulgação de sua imagem, tanto na literatura como na iconográfica, de um modo que não havia precedentes. A Ara Pacis Augustae16 é um dos monumentos icônicos do projeto de divulgação da imagem de Augusto. Esse altar foi construído na Via Flaminia, estrada que ligava o centro de Roma ao Norte da Itália, uma das principais portas para a campanha, empreendida pelo princeps, de expansão do território romano rumo ao Mediterrâneo. Próximo a esse altar existiam mais três monumentos dedicados à família Iulia: o Horologium Augusti, um relógio de sol; Ustrinum Domus Augustae, local no qual os membros da gens Iulia eram cremados; e o Mausoleum Augustus, túmulo erigido para abrigar os restos mortais dos membros dessa gens e de alguns amigos notáveis. No centro da cidade encontrava-se a Curia Iulia. Abaixo observamos o mapa para melhor ilustrar nossa descrição: 16 As primeiras peças desse altar foram encontradas em escavações realizadas em 1568 e finalizadas em 1938. Sua localização original era no Campo de Marte, posteriormente foi reconstruído e atualmente se encontra na Via di Ripetta, em frente ao Mausoléu de Augusto. Foi construído inteiramente em mármore e possui as dimensões de 11 x 10m, em seu interior encontra-se um altar em forma de U. Disponível em: http://digitalaugustanrome.org/. 30 FIGURA 1 – Mapa da Via Flaminia Mapa da Roma Augustana – Século I a.C. Digital Augustan Rome. Disponível em < http://digitalaugustanrome.org/map/#/rome/filter:0/ >. Acesso em 15 jun. 2015. Notar Horologium Augusti (número 55); Ustrinum Domus Augustae (número 58); Mausoleum Augustus (número57); Ara Pacis (número 56); Curia Iulia (número 146). Com alterações da autora. Os monumentos destacados na figura 1 foram algumas das principais construções erigidas para homenagear a gens Iulia. Daremos destaque à descrição da Ara Pacis, pois nela se encontra um painel que retrata Eneias. Esse altar foi inaugurado por volta do ano 9 a.C., ou seja, após a publicação da Eneida em 19 a.C., em homenagem à deusa Pax (Paz), para celebrar o período da pax romana e a vitória de Augusto na Gália e na Hispânia, em 13 a.C. Na sua Res Gestae, o imperador explica o motivo de sua construção: 31 Quando voltei da Espanha e da Gália, alcançando o sucesso em todos os feitos nessas províncias e sendo cônsules Tib. Nero e P. Quintílio, o senado, tendo em vista meu retorno, determinou que o altar da Paz Augusta devia ser consagrado junto ao Campo de Marte; ordenou que, nele, as autoridades, sacerdotes e virgens vestais fizessem um sacrifício anual (Res Gestae, 12). Esse altar possui duas entradas decoradas com imagens associadas à origem divina da gens Iulia, ao sucesso do Império Romano e à glória obtida pelo princeps, além de correlações com a literatura da época, em particular com a obra de Virgílio. Na figura 1 o herói troiano, Eneias, aparece acompanhado por dois ajudantes, um portando uma bacia e um jarro, e outro conduzindo a porca que seria sacrificada. Esse animal carrega um teor simbólico significativo, visto que na Eneida o encontro com uma porca amamentando seus filhotes é profetizado pelo adivinho Heleno, quando Eneias visita o Epiro17, como o local no qual finalmente teria chegado ao seu Destino (Eneida, III, 385-390). Nesse mesmo painel aparece também um templo na parte superior esquerda, representando os Penates troianos, que Eneias carregou consigo desde o momento da sua fuga de Troia: FIGURA 2 – Painel da entrada principal da Ara Pacis Augustae Vista do painel direito da entrada da Ara Pacis. Eneias realizando sacrifício aos deuses domésticos. Material: Mármore. Datação: 9 a.C. Museu Ara Pacis. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015. 17 Mais detalhes sobre os acontecimentos do Livro III da Eneida são comentados no capítulo II. 32 Como mostra a figura 3, observamos fragmentos de uma cena na qual figuram Rômulo e Remo, a loba que os amamentou, o pastor Fáustulo, apoiado em uma bengala, e à sua esquerda o divino pai dos gêmeos, Marte. Segundo o mito, Rômulo foi o fundador de Roma e de sua linhagem nasceram os soberanos do império, dentre eles estavam César e Otávio Augusto. FIGURA 3 – O Lupercal Vista do painel esquerdo da entrada principal da Ara Pacis. O Lupercal. Material: Mármore. Datação 9 a.C. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015. A Ara Pacis possui mais dois painéis, um da deusa Tellus e outro da deusa Roma. Na figura 4 temos a deusa da Terra, ela se encontra rodeada por algumas plantas e sentadas em seu colo estão duas crianças. Nas laterais observamos duas ninfas seminuas, uma sentada em um cisne em voo, simbolizando o ar, e outra sobre um dragão do mar. Estes dois animais representam a paz na terra e no mar. A interpretação da cena é incerta, a figura central poderia ser a Vênus Genetrix (deusa Mãe) ou uma personificação da Itália, ou talvez até mesmo a personificação do Pax18. 18 Para mais informações sobre as interpretações das imagens da Ara Pacis ver: Museu da Ara Pacis. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015. 33 FIGURA 4 – A Deusa Tellus Vista da entrada norte da Ara Pacis. A deusa Tellus. Material: Mármore. Datação 9 a.C. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015. Na figura 5 temos a deusa Roma, deste painel sobraram poucos fragmentos, mas eles são suficientes para reconhecer a deusa, vestida como uma amazona sentada sobre uma pilha de armas indicando os povos conquistados. Essa imagem mostra os alicerces da paz e da nova ordem imposta pelo Império Romano: FIGURA 5 – A Deusa Roma Vista da entrada norte da Ara Pacis. A deusa Roma. Material: Mármore. Datação 9 a.C. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015. 34 Na figura 6 observamos outro painel do altar onde foi esculpido um conjunto de imagens de personagens da elite romana. Percebemos que se trata da cena de um evento festivo. Possivelmente uma comemoração á pax augustana. É uma das cenas mais preservadas do altar, com personagens da família imperial: FIGURA 6 – Procissão imperial da Ara Pacis Augustae Vista da lateral esquerda da Ara Pacis. Procissão imperial. Material: Mármore. Datação: 9 a. C. Disponível em < http://vacioesformaformaesvacio.blogspot.com.br/2013/01/ara-pacis-escultura-monumentos.html >. Acesso em 17 jun. 2015. Como podemos perceber, Otávio Augusto explorou a crença na sua descendência divina, priorizando a sua ligação com Eneias, não só na literatura, como também nas imagens da família imperial que compunham o cenário da cidade de Roma. Estes são apenas alguns dos elementos simbólicos que esse governante se utilizou para construir uma imagem pública que legitimasse seu poder. As imagens, como as mostradas acima, e textos, como a Eneida, foram utilizados por Otávio Augusto possivelmente como ferramentas de propaganda política. Ele espalhou pela capital do império ideias e crenças através do aparato imagético- textual, que serviram de subsídio para que fosse aceito como um governante praticamente absoluto, herdeiro do divino César, o que resultou na sua consagração como Augustus e no nascimento do culto imperial. Essas estratégias podem ser observadas nas medidas tomadas pelo princeps após a morte de César, quando reivindicou sua posição como seu sucessor e aliou-se a Marco Antônio e Lépido, por volta de 43 a. C. O futuro imperador obteve a aceitação do Senado, 35 não sem antes enfrentar uma forte oposição deste grupo. Em seguida o poder passou para as mãos dos militares, estes repartiram entre si as magistraturas, e os “inimigos de César”, opositores do seu herdeiro, foram condenados à morte, tendo seus bens confiscados (GRIMAL, 1992, p. 45-49). Otávio Augusto aproveitou-se da confusão gerada pela morte de seu “pai” para dar início a um processo que culminaria na deificação de ambos. Segundo Grimal essa iniciativa foi facilitada quando “um cometa apareceu no céu pouco depois dos funerais [de César]; mostrava-se todas as tardes pouco antes o fim do dia e durante a noite: é a alma do deus César que ganha a Via Láctea! ” (GRIMAL, 1992, p.46). A aparição do cometa e a posterior divinização de César fizeram com que acendesse a esperança de que os triúnviros haviam recebido a missão divina de reorganizar Roma, dar-lhe novas leis e guiá-la ao “o século de ouro” (GRIMAL, 1992, p.46). Porém, essa reorganização não se deu rapidamente, foram necessários vários acontecimentos, dentre os quais o esfacelamento do triunvirato, para que enfim Otávio Augustus estabelecesse a pax romana. John Scheid (2007, p. 178-186) afirma que o governo de Otávio Augusto pode ser caracterizado como fruto de uma “política religiosa”, que se desenvolveu entre os anos 43 e 28 a. C. As suas primeiras iniciativas, ao ocupar o posto de governante Roma, visaram garantir a divinização de César e promover a construção de um templo dedicado a ele, no Fórum Romano, iniciada em 42 a. C. e concluída em 28 a.C. Essas medidas podem ser consideradas o prelúdio do culto imperial. Na mesma época foi concluído o templo dedicado a Apolo, no Palatino, pois esse deus foi considerado o patrocinador da vitória de Marcus Vipsânio Agripa contra Sexto Pompeu, na batalha naval de Naulochus, na Sicília, que marcou o fim da resistência de Pompeu ao segundo triunvirato, por volta de 36 a.C. Diante desse cenário, foi atribuído a Apolo o papel de deus da guerra e protetor dos romanos. Todos esses eventos se deram período de oito anos, antes de Otávio se tornar Augustus, fato que só veio ocorrer em 27 a.C. Otávio também comemorou a cerimônia de augurium salutis (o augúrio pelo qual a segurança do povo romano é garantida) e fechou as portas do templo de Jano, no Fórum Romano, em 29 a. C., uma ação que significou o fim das guerras civis. Em 30 a. C. ele definiu o padrão do culto imperial, assegurando que não haveria honras divinas públicas para si mesmo em Roma, mas nas demais províncias algumas honras seriam iguais as dos 36 deuses para o culto de César. Além disso, a partir 42 a. C., festas temporárias, os feriae, foram dedicadas a todos os deuses, devido às vitórias de Otávio (SCHEID, 2007, p. 185187). Martins (2011, p.69-72) ao atentar para o desenvolvimento do culto imperial em 27 a. C., observa que ele, provavelmente, tem suas raízes nas homenagens realizadas aos deuses domésticos e antepassados, que ocorriam no ambiente privado da domus, e passaram a fazer parte da esfera pública através de reverências à grandeza de Otávio Augusto. Esse tipo de culto se direcionava à exaltação do genium do imperador como ser divinizado em todos os distritos de Roma, bem como nas províncias ditas imperiais, o que nos leva a ter noção do seu amplo alcance. Norma Musco Mendes (2006, p. 29-37) relaciona o culto imperial às questões referentes aos cargos ocupados por Otávio Augusto e afirma que seu sucesso político se efetivou por ele ter conseguido dominar as três principais esferas da sociedade: política, religião e exército. Esse processo se iniciou em 23 a. C. quando Otávio selou um acordo com o Senado, que foi decisivo para o futuro da sua política imperial: abriu mão do consulado. Logo em seguida, passou a desempenhar a função de tribuno da plebe, o que lhe permitiu vetar as decisões do Senado, enquanto era procônsul, podendo participar da Assembleia do Povo e propor projetos de lei. Em 12 a. C. Otávio Augusto se tornou Pontífice Máximo e assegurou sua posição como chefe religioso. Isso lhe garantiu poder ilimitado e aliado a seu sucesso nas campanhas militares sustentou a ideia de que o “século de ouro” dos romanos estava se consolidando graças a ele. Nesse cenário a crença de que o princeps havia sido incumbido pelos deuses para liderar o povo romano se fortaleceu cada vez mais. O culto imperial, fundado por Augusto, reunia em si mesmo vários elementos, mais acima de tudo poder político e religioso, tendo se desenvolvido como uma prática particularmente romana, que objetivava celebrar e representar a posição de onipotência do imperador como governante divino e restaurador da pax, momento aqui traduzido como o fim das guerras civis que assolaram a república romana. Esse culto era celebrado pelos colégios sacerdotais, que contribuíram para a sua popularização. Apesar de se atribuir a instauração do sistema imperial a Otávio Augusto, ele não pode ser considerado o único responsável, pois dentro desse processo havia várias transformações pelas quais o território romano vinha passando: a imposição de novas taxações; o surgimento de novas políticas; 37 novas orientações jurídicas; novas formas de organização do espaço etc., principalmente na parte ocidental do Império (MENDES, 2013, p.145). Scheid (2007, p.175-177) afirma que as cerimônias públicas eram uma parte integrante da cultura política da sociedade romana, pois interligavam o poder das elites governantes com o ideal de soberania do povo romano. Porém, é importante ressaltar que o culto imperial de Augusto não o honrava como um deus, apenas como imperador, pois tal honra só era dada ao indivíduo após a sua morte. Foi através de um conjunto de práticas e cerimônias que o imperador e a família imperial fora incorporados à estrutura religiosa da cidade. O relato da história da gênese do povo romano na Eneida fazia parte desse processo, a disseminação do culto de Eneias pelo império produziu o que poderíamos denominar de “memória coletiva”, cujo objetivo era permitir a todos aqueles que se consideravam membros dessa sociedade compartilhassem uma memória comum19. O conceito de memória social foi trabalhado por Susan Alcock (2002, p.1-5) no estudo das sociedades da Antiguidade. De acordo com sua teoria as memórias compartilhadas fornecem uma imagem do passado e um projeto do futuro para as sociedades. Elas se sobrepõem e competem ao longo do tempo, mudam ou são extintas, pois as pessoas esquecem. É difícil seguir a variação das memórias nos dias atuais e essa situação se agrava mais quando tratamos de épocas mais antigas. As memórias são igualmente integradas e suportadas dentro de uma estrutura material, cada época possui padrões relacionados à rememoração e eles são variáveis. Em dinastias e impérios da antiga Mesopotâmia, por exemplo, sucessivos e concorrentes regimes invocaram continuamente as memórias de seus antecessores com o objetivo de usá-los para criar e promulgar estruturas de identidade política. Um dos principais estímulos para essas memórias compartilhadas foi o traço físico do passado na paisagem atual: cidades antigas, paredes velhas, antigos templos, estátuas antigas, em outras palavras, o quadro material do passado no presente. Na concepção de Alcock (2002, p.14) a pergunta que deve ser feita quando nos debruçamos sobre o estudo da memória social é: como é que uma sociedade lembra? Lembrar é um ato mental e por isso é absolutamente pessoal. Surge, então, um grande 19 A questão da memória será retomada no próximo capítulo para desenvolver a argumentação em torno do seu papel na epopéia virgiliana. 38 medo de que a memória social ofereça uma porta para recriar categorias fechadas, coletivas, folclóricas, que muitos arqueólogos, historiadores e antropólogos têm procurado se distanciar. Em suas formas mais extremas o indivíduo passa a ser visto como um ser que obedece passivamente à vontade coletiva interiorizada. Estas são questões metodológicas sérias, ainda mais complexas pelo fato de que muito de como os indivíduos "lembram" ainda não é totalmente compreendido. Por outro lado, é impossível negar que os grupos sociais compartilham memórias comuns e que essas memórias podem produzir percepções e ações do grupo. Outra maneira de entender isso é admitir a existência de numerosas "comunidades de memória", com diferentes conjuntos de práticas mnemônicas (ALCOCK, 2002, p.14). “Comunidades de memória” estão longe de ser entidades fixas ou que tudo lembram, mesmo quando elas abrangem as "comunidades imaginadas" de tradições nacionais ou as paixões de ligação de grupos étnicos. Órgãos como cidades, instituições, associações regionais, sindicatos de trabalhadores e famílias, também são portadores legítimos de memória e os indivíduos que as habitam são perfeitamente capazes de participar de mais de um desses domínios. Esta insistência na multiplicidade evita o perigo da perda de autonomia (ALCOCK, 2002, p.14-15). Alcock (2002, p.15-16) defende a existência de uma pluralidade, possivelmente conflitante e potencialmente concorrente, de memórias disponíveis para as sociedades em um determinado momento. As comunidades de memória podem coexistir pacificamente, ou ainda operar em feliz ignorância uma da outra. Memórias, muitas vezes giram em torno de eventos específicos ou de figuras carismáticas, como Otávio Augusto. Um aspecto óbvio da política de memória é a manipulação do passado por governantes ou elites dominantes. Escolhas comemorativas da elite são mais visíveis e eficazes, é a sua versão do passado que, frequentemente, será gravada e preservada. Teóricos da memória no mundo clássico se dedicam ao estudo da ars memoriae (arte da memória), cuja origem remonta ao poeta arcaico Simônides, mas que é melhor descrita por Cícero e Quintiliano, baseada em técnicas mnemônicas materiais explícitas associadas com pontos necessários para construir e garantir o desempenho e o sucesso de um retórico. Essas façanhas de memória eram politicamente aconselháveis no ambiente competitivo que caracterizava a interação da elite romana (ALCOCK, 2002, p17- 39 19). Além da ars memoriae, o mundo clássico desenvolveu outra contribuição para o campo dos estudos da memória. A partir dos escritos de filósofos e teólogos, de Aristóteles a Santo Agostinho, surgiu uma concepção de como a memória é operada como um modelo estático de recolhimento, em que elementos podem ser recuperados intocados do “depósito” da mente humana. Essa concepção foi explorada nos séculos XIX e XX com o reconhecimento do dinamismo da memória. O estudo da memória, bem como sua relação com conceitos do Mundo Antigo, está em expansão nos dias de hoje com as técnicas da ars memoriae sendo utilizadas, por exemplo, para debater questões de estilo artístico e exibição social ou em discussões sobre a "logística" da memória, tais como a criação e transmissão de livros (ALCOCK, 2002, p. 22-34). Mas, o tema da “memória social” permanece relativamente negligenciado no estudo das sociedades da Antiguidade. A evidência literária e epigráfica tem suportado o peso de reconstruir atitudes antigas do passado, e nada pode, nem deve desalojar essas fontes de seu lugar privilegiado nesta análise. No entanto, esses textos são majoritariamente narrativas comemorativas das classes dominantes e é raro que ofereçam versões alternativas ou um vislumbre potencial de “contra-memórias”. Variações regionais ou cívicas, urbanas ou rurais podem ser facilmente perdidas. Perspectivas do sexo masculino, de elite, e urbanas, quase inevitavelmente, foram consideradas dignas de serem lembradas. O resultado foi um conjunto filtrado de memórias deixadas para a nossa consideração20. Richard F. Thomas (2004, p.25-26) teceu uma critica sobre a maneira pela qual o governo de Otávio Augusto tem sido problematizado a partir dos poemas de Virgílio, de acordo com um ponto de vista pautado no pensamento europeu sobre os políticos da contemporaneidade. Na tentativa de fugir das generalizações não examinadas sobre a relação entre o princeps e o poeta esse teórico sugeriu uma revisão da concepção de que Virgílio era o “poeta de Augusto”, evitando suposições sobre o lugar do poeta romano na Roma augustana, dando mais atenção a sua criação de imagens e ao primado delas antes de serem subordinadas às ideias do princeps. 20 Monumentos e paisagens, assim como textos, podem ser inventados, reescritos e apagados; arqueólogos e historiadores não são inocentes de "intervenções subjetivas”. Continua a ser verdade, porém, que provas materiais podem nos ajudar a prestar atenção aos detalhes da memória de outra forma invisíveis, e, portanto, evitando o excesso de fácil aceitação de versões arrumadas do passado. Ver Alcock (2002, p. 22-34). 40 Thomas (2004, p.27) observa que um dos grandes problemas de se lidar com a literatura como “fonte” são os acontecimentos históricos aos quais a associamos e como a utilizamos para estabelecer uma “verdade”. Essa preocupação reside no fato de que se nesse processo os procedimentos críticos não forem rigorosos e plausíveis os resultados podem ser análises mecânicas e simplistas, mas ao mesmo tempo difíceis de serem contestadas, uma vez que se tornam parte da infraestrutura histórica de outra forma irrecuperável. É necessário um questionamento constante sobre a interpretação que tem acompanhado os usos de tais “evidencias”. Do ponto de vista de Thomas (2004, p.28), essas medidas são necessárias no estudo sobre a relação de Virgílio e Augusto, pois seria difícil imaginar que um autor tenha sido tão consistentemente identificado com o regime político no qual estava inserido ou cujo trabalho tenha sido usado como manifesto deste, com tão pouca atenção ao que realmente está escrito, quem está falando e em qual contexto. Isso acontece no caso da Eneida, um poema que é, ao mesmo tempo, uma das criações artísticas mais influentes da literatura europeia e um dos grandes paradoxos da história literária. Ao voltarmos nossa atenção para a Eneida e sobre como ela possivelmente traduziu a ideia de Virgílio como “poeta de Augusto” devemos atentar para algumas questões, principalmente o fato de que o poeta teve uma morte prematura em 19 a. C. que o impediu de concluir sua obra e de ver a concretização dos planos de Otávio Augusto para Roma, dada sua morte prematura em 19 a. C. Consequentemente, ao nos debruçarmos sobre a épica virgiliana devemos imaginar seu enredo no contexto do ano de sua publicação, evitando anacronismos e estabelecendo sincronismos, um exercício extremamente difícil, se levarmos em consideração a centralidade de Augusto na história da Europa (THOMAS, 2004, p.31-32). Alcock (2002, p.26-30) chama a atenção para o trabalho do sociólogo francês Maurice Halbwachs, pioneiro no estudo da “memória coletiva”, para tratar do ambiente físico de recordação. Ele defende que a memória habita objetos e lugares e contém muitas verdades, noções e ideias. Mas, se a verdade é para ser disseminada na memória de um grupo ela precisa ser apresentada sob a forma concreta de um evento, de uma personalidade, ou de uma localidade. As memórias podem morar em qualquer lugar: colunas, sepulturas, árvores, estátuas, armas, obeliscos, inscrições, pedras brutas. Objetos de tipo durável afirmam as suas próprias memórias, suas próprias formas de comentário e, 41 portanto, podem vir a possuir suas próprias trajetórias de vida. Estas estruturas duradouras foram designadas como uma forma de "inscrição" memorial prática, favorecendo uma informação conservadora de transmissão cultural. Pela sua própria natureza monumentos parecem coisas eminentemente estáveis, pontos turísticos e baluartes da continuidade. É o público com suas diferentes experiências, expectativas e conhecimentos que trazem consigo formas distintas de visualização e interpretação dos monumentos. Halbwachs desenvolveu seus estudos sobre a “memória coletiva” no século XX para compreender sociedade francesa21. Levando em consideração a distância temporal dessa realidade daquela que nos propormos a estudar no presente trabalho, pretendemos pegar os princípios norteadores dessa teoria para aplicar ao estudo da sociedade romana do século I a. C. e fazer alguns apontamentos sobre política de Otávio Augusto divulgada capital Império Romano. Em A memória coletiva (HALBWACHS, 2006, p.8-10) são discutidas as relações entre sociedade e pensamento. A memória é concebida como possuidora de um fundo social e coletivo, ninguém pode lembrar-se de algo fora do espaço da sociedade, pois a evocação de recordações se dá através dos outros, ou seja, a família ou demais membros de um mesmo grupo. O autor procura mostrar como em cada individuo há uma consciência coletiva, diferente da individual, que cria um sentimento de pertencimento ao grupo, influenciado à percepção e o comportamento em sociedade. Através de uma série de exemplos Halbwachs (2006, p.31-42) procura comprovar sua teoria sobre o fundo social coletivo existente em quase todas as lembranças do ser humano. Ele cita acontecimentos particulares, como passeios, viagens, visitas, que provocaram recordações posteriores para atestar que através delas o homem se afirma como um ser coletivo. As pessoas com quem conviveu nessas experiências compartilharam as mesmas lembranças e se tornam “testemunhas” necessárias para confirmar ou recordar um determinado acontecimento. Para garantir que uma memória permaneça viva é necessário 21 Halbwachs deixa claro no início do seu trabalho que utiliza como fundamentação teórica a concepção de sociedade defendida por Durkheim, segundo a qual não é o individuo que determina a sociedade, mas a sociedade que condiciona o indivíduo para explicar o funcionamento da “memória coletiva” e como o sujeito vivencia o seu pertencimento a sociedade (HALBWACHS, 2006, p.26). Com base nessa teoria o autor se concentra na análise das condições sociais da memória, traçando uma ponte entre a Psicologia e a Sociologia. O conceito de "memória coletiva" aparece para defender que a memória é influenciada pelos quadros sociais que a antecedem e determinam. Esses quadros sociais da memória são compreendidos como combinações das lembranças individuais de vários momentos compartilhados pelos membros de um mesmo grupo. Sendo assim, as lembranças evocadas por indivíduo serão sempre evocações de outros, pois o ser humano vive em sociedade, logo nunca está sozinho. O homem compartilha suas memórias com seus pares. 42 que continuemos fazendo parte do grupo ao qual ela está ligada. Apesar disso, esse autor não exclui a possibilidade de recordações individuais, que são denominadas de "intuição sensível", para distingui-las das percepções do pensamento social, da memória coletiva, porém considera esses casos muito raros. De acordo com essa lógica de pensamento cada membro de uma sociedade possui uma lógica de pensamento própria, que se apoia na memória um dos outros e se limita a duração da unidade do grupo. Essas lembranças se localizam de maneira tão íntima no Ser dos indivíduos que esquecer uma parte dessa memória coletiva, dessa história comum, é o mesmo que perder o contato com aqueles que o rodeiam. No entanto, para manter essa memória compartilhada viva é necessário não apenas comungar os mesmos testemunhos, mas também garantir que ela não deixe de “concordar com as memórias deles [dos membros do grupo] e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum” (HALBVACHS, 2006, p.39). O esforço de representar Eneias como o herói, descendente de uma deusa e membro da linhagem a qual pertencia Otávio Augusto não era uma mera coincidência. Esse poema foi construído dentro de um contexto, o momento em que o descendente de César tentava afirmar seu poder, tendo como uma de suas ferramentas a legitimação de um mito com o qual todos os membros da sociedade romana se identificavam. Ao nos debruçarmos sobre a análise de Halbwachs, bem como a de Alcock, podemos aplicar suas teorias sobre a memória para entender como uma sociedade pode compartilhar um conjunto de ideias, expressas nos livros e nas paredes de suas cidades, com a finalidade de compreender como Otávio Augusto obteve sucesso no seu projeto político de veiculação da sua imagem e da sua gens como pertencentes a uma estirpe divina destina a elevar Roma à glória. Na Eneida os eventos se passam num momento anterior ao vivido pelo narrador/poeta, porém é visível também que o presente do narrador é aquele da realização das profecias do poema. Podemos dizer que Virgílio vivia o momento profetizado pelos deuses na Eneida, o “século de ouro”22 da cidade cujas bases Eneias lançou ao chegar à Itália, combatendo o exército de Turno para garantir a pax na terra onde finalmente fixaria 22 No latim, aurea condet saecula, termo utilizado por Virgílio, na Eneida, para designar o período de conquistas obtidas por Otávio Augusto (Eneida, VI, 790). 43 sua linhagem. Isso nos é apresentado no poema no momento em que o herói troiano desce aos infernos e encontra Anquises nos Campos Elísios e este lhe mostra as almas dos futuros grandes homens de Roma, reunidos às margens do Lete, o rio do esquecimento, se preparando para ascender à vida terrena, dentre elas estavam Júlio César e Otávio Augusto (Eneida, VI, 785- 795). Esse é um dos indicativos no poema de que os governantes de Roma, principalmente os dois citados anteriormente, haviam sido escolhidos pelos deuses. Volta a atenção para aqui; teus romanos contempla de perto, gente da tua prosápia. Este é o César, a estirpe Iulo, sem faltar um, que há de um dia exaltar-se até ao polo celeste. Este aqui...sim, este mesmo, é o herói prometido mil vezes, César Augusto, de origem divina, que o século de ouro restaurará nas campinas do reino do antigo Saturno e alargará seus domínios às fontes longínquas dos índios e os garamantes, às terras situadas além de mil astros, longe da rota do sol e do tempo, onde o Atlante celífero sobre as espáduas sustenta esta esfera tauxiada de estrelas23. (Eneida, VI, 785- 795) Anquises mostra ao seu filho os futuros feitos dos seus descendentes, principalmente daquele que se tornará o primeiro Augustus24, encarregado pelos Fados25 de levar Roma à glória, alargando as suas fronteiras até os limites do mundo. Podemos observar essa intenção quando o narrador afirma que Otávio dominará “as terras situadas além de mil astros, / longe da rota do sol e do tempo, onde o Atlante celífero/ sobre as espáduas sustenta esta esfera tauxiada de estrelas”26 (Eneida, VI, 795-797). A ideia de pertencimento do princeps ao passado mítico de Roma foi uma das bases do seu plano político ideológico para assegurar sua posição como herdeiro de César, que se deu através 23 Huc geminas nunc flecte acies, hanc aspice gentem/ Romanosque tuos. Hic Caesar et omnis Iuli/ progenies magnum caeli uentura sub axem./ Hic uir, hic est, tibi quem promitti saepius audis,/ Augustus Caesar, diui genus, aurea condet/ saecula qui rursus Latio regnata per aruá/ Saturno quondam, super et Garamantas et Indos/ proferet imperium; iacet extra sidera tellus,/ extra anni solisque uias, ubi caelifer Atlas/ axem umero torquet stellis ardentibus aptum (Eneida, VI, 785- 795). 24 Esse termo deriva do vergo augere, que significa “fazer crescer, aumentar em quantidade ou tamanho, amplificar”. Atribuía-se esse termo aos deuses, cujo poder poderia ser amplificado, logo, pertence ao universo sagrado. Acredita-se que a atribuição do título de Augustus à Otávio deva ter causado grande impacto na sociedade romana, visto que essa sociedade negava mitificações que igualassem os homens aos deuses antes da sua morte. Sobre esses aspectos ver Martins (2011). 25 No latim Fatum, é o deus dos destinos humanos. 26 Iacet extra sidera tellus/ extra anni solisque uias, ubi caelifer Atlas/ axem úmero torquet stellis, ardentibus aptum (Eneida, VI, 795-797). 44 da divulgação da sua imagem e da sua família como descendente da gens de Eneias, ou seja, por meio da divulgação de uma memória sobre o passado do seu povo. O projeto de restauração de Roma representou um importante papel no cenário político do século I a. C., pois foi uma das estratégias de Otávio Augusto para firmar a inserção de sua família no contexto histórico, político e religioso do império. É importante frisar que o costume de revitalização das cidades, era comum aos governantes romanos, antes de Otávio Augusto, pois era uma forma de garantir o prestígio daqueles que autorizavam a sua realização. O princeps percebeu a importância das obras públicas e se utilizou da arquitetura como meio de imprimir nas pedras de Roma uma imagem positiva sobre si. As construções e reconstruções de prédios, como a Ara Pacis, permitiram a manutenção de uma memória que ligava a gens do herdeiro de César a um passado glorioso de heróis e deuses, Eneias, Marte, Vênus, Rômulo e Remo, principalmente. Além disso, durante o principado romano a poesia e a história se desenvolveram muito, quando se sobressaíram nomes como Tito Lívio e Virgílio, que representaram um grande desenvolvimento nesses campos. Nesse cenário nasceu a Eneida. 1.3. A discussão sobre as influencias retóricas na epopeia de Virgílio Se a influência da política de Augusto é destacada na epopeia de Virgílio, outras vozes externas à obra também podem ser consideradas. Os debates sobre as influências retóricas da Eneida deram origem a centenas de pesquisas, uma grande parte delas dedicadas a elucidar as relações complexas entre os livros que ele leu e escreveu. Dentre esses estudos destacamos o de Damien P. Nelis (2010) e o de Ralph Hexter (2010), publicados no mesmo ano. O primeiro (NELIS, 2010, p. 13-24) se dedica a investigar as principais influências literárias de Virgílio. Destaca as semelhanças entre as epopeias homéricas e a Eneida, chegando à conclusão de que a poesia virgiliana foi endereçada aos leitores da Ilíada e da Odisseia, bem como de Teócrito e Hesíodo. No entanto, defende que a enumeração dos autores comumente citados como modelos utilizados por Virgílio levanta uma série de questões difíceis de responder. Que tipo de manuscritos de Teócrito, Hesíodo e Heródoto ele utilizou? Onde ele os adquiriu? E como ele os usou? Será que ele confiava em sua memória ou será que os escravos verificavam as passagens por ele? Será que ele ditava a um escriba? Quantos textos que não sejam a Ilíada e a Odisseia foram utilizados 45 na composição da Eneida? Ao realizar questionamentos como esses surgem outras perguntas ainda mais difíceis de responder. Há um corpo substancial de evidências que mostram que os romanos poderiam ter bibliotecas particulares em suas casas de campo e eram habituados à prática de empréstimos de livros a amigos. No início do século I a. C. as coleções mais famosas provavelmente se localizavam fora de Roma. A criação literária em latim é inseparável de questões sobre o acesso aos livros. Muito da literatura grega se encontrava disponível na Itália muito antes da conquista romana, o que explica a circulação de suas grandes e prestigiadas coleções entre os romanos. Aos poucos Roma obteve um papel central na divulgação dos livros da tradição grega. Otávio Augusto se dedicou à construção de duas grandes bibliotecas, uma no Pórtico de Otávia, e outra no Palatino. A propriedade de uma grande coleção de livros trouxe consigo as tarefas onerosas de organização e catalogação das obras 27. Nelis (2010, p.18-20) afirma ainda que no período helenístico houve um acentuado estudo de livros e acesso romano a literatura grega, através dos trabalhos de estudiosos que se concentravam nos centros de aprendizagem, Alexandria e Pérgamo. Poetas latinos foram educados nos mesmo níveis de complexidade que os poetas da cultura helenística e estavam plenamente conscientes da importância das tradições de estudos homéricos para seus esforços criativos. Prateleiras da biblioteca de Virgílio, portanto, podem ter dado um lugar de destaque para Homero. Talvez o exemplo mais óbvio dessa abordagem seja a proposição de que Virgílio pode ter lido obras da literatura grega e latina como uma imitação ou reação a Homero. Hexter (2010, p.26-36), por sua vez, desenvolveu um estudo sobre a intertextualidade existente na epopeia virgiliana. Ele se empenhou não em olhar para Homero através Virgílio, mas sim, revertendo à óptica, olhando para Virgílio através de Homero, dando ênfase aos métodos de estudo sobre essa relação. Para isso ele procurou enfatizar a importância da presença do pensamento de Homero na epopeia virgiliana do ponto de vista histórico, isto é, levando em consideração a cultura homérica que tinha se 27 Acrescenta-se a esses fatos a questão da existência de uma elite romana bilíngue e a presença de professores e homens de letras gregas, aliado a isso muitas das peças do tetro e da filosofia grega foram traduzidas para o latim, o que resultou em uma intensa circulação de livros e saberes pelo mundo romano. Ver Nelis (2010, p.14-17). 46 acumulado até a época de Virgílio, grande parte da qual se encontrava disponível para os romanos, incluindo os professores do poeta, como o filósofo epicurista Filodemo de Gadara. Hexter acredita que a compreensão de Virgílio sobre Homero teria sido moldada por essa influência. Nós não podemos, por exemplo, simplesmente imaginar Virgílio como um simples estudante da tradição literária homérica, que possuía em sua mesa uma série de artigos e notas com múltiplas interpretações sobre a obra do poeta grego (HEXTER, 2010, p.27). Provavelmente tais livros não existiam até muito depois da morte de Virgílio. Acredita-se que o estudo sistemático da Ilíada e da Odisseia data do século IV d. C., mas, já na época de Virgílio a leitura dessas obras resultava em comentários explicativos de diversos tipos, que circulavam abundantemente. Portanto, no século I a. C. o conhecimento das obras de Homero era substancial, o que nos leva a considerar o impacto deste poeta na composição virgiliana28. Ao avaliar os métodos utilizados pelos estudiosos para compreender as influências de Virgílio, Hexter (2010, p.31-32) observa que os estes procuraram reconstruir os métodos críticos dos Antigos através do material arqueológico literário encontrado. No entanto, essa linha de investigação tornou-se um campo de estudo, ampliando a investigação de métodos críticos e acadêmicos para incluir concepções de estética e literatura, tendo como justificativa para o interesse neste último par o fato de muitas vezes ele ter embasado decisões críticas sobre o método mais adequado à investigação. É importante frisar os desafios de analisar um texto de cunho literário e mais ainda de uma época muito distante da nossa. A maior dificuldade em se trabalhar com esse tipo de fonte é que ela apresenta um discurso normativo escrito pela ideologia dominante, ou seja, é uma “fonte autorizada” (ROSA, 2013, p.118-119). Isso nos obriga a pensar além daquilo que está escrito nos versos da Eneida, tornando necessário analisar sob quais circunstâncias essa obra foi escrita, para quem ela foi escrita e em que contexto sociocultural. Devemos ter em mente que cada época escreve à sua maneira, dessa forma o herói mítico não possui a mesma significação em todas as épocas e em todas as culturas. 28 Estudo das obras de Homero, especialmente em sua fase helenística, bem como dos hypomnêmata e da scholia homérica que chegaram até nós nas margens das traduções da Ilíada e, em menor grau, da Odisseia dispõe de um campo de estudo especifico que tem avançando com cada vez maior sofisticação e hipóteses. Ver Hexter (2010, p. 27- 29). 47 Por isso destacamos aqui a importância da análise sobre a tradição literária na qual Virgílio estava inserido, a fim de demonstrar que a Eneida estava dentro de um contexto muito maior que o simples desejo de um poeta de escrever uma epopeia sobre a gênese do povo romano, a mando do imperador. Vamos discutir sobre um dos principais ingredientes da poesia do séc. I a. C., mas que se desenvolveu na civilização grega e foi absorvida pelos romanos com diferentes funções: a retórica. Para isso nos apoiaremos na discussão proposta por McComiskey (1997, 5-24) sobre o pensamento de Górgias29. Górgias problematizou a representação do logos das coisas, para ele as realidades não podiam ser totalmente reproduzidas pelo discurso, mas poderia exteriorizar as representações dela. O objetivo da sua teoria era mostrar que não havia intervenção divina na produção artística. Acreditava que o logos lança mão de três caminhos para mover a psique humana: a primeira seria a linguagem métrica; a segunda, as profecias divinas; e a terceira, a persuasão feita por meio de falsos argumentos. Ao dar sequência a sua descrição, tanto dos efeitos quanto dos usos do logos que movem a psique, Górgias indicou que quaisquer que fossem os usos do logos que resultassem num pseudo logos (argumento falso) contradiziam a retórica ética. Górgias (SOUZA, 2007, 9-10) buscou mostrar que é através da linguagem que podemos ter acesso às coisas. Além disso, atribuiu à poiesis duas importantes acepções: a que a define como uma atividade vinculada à produção com base no uso do logos; e a que define esta produção como algo essencialmente humano. A poesia era vista por ele como uma forma de engrandecimento e ordenação, demonstrada por meio do domínio das palavras organizadas em versos e estrofes. Esse controle sobre as palavras não era visto como uma atividade divina, mas humana, tal como defendiam os sofistas30. A retórica foi objeto da educação, juntamente com a dialética e a lógica, pois a vida pública exigia que os cidadãos dominassem essas técnicas. 29 Górgias (485- 375 a.C.) era natural de Leontino, na Sicília. Em 427 a.C. ele viajou para Atenas, como embaixador, a fim de buscar ajuda dos atenienses numa campanha contra Siracusa. Seu discurso surpreendeu os atenienses a tal ponto que logo ficou conhecido como um hábil orador. Obteve êxito em sua missão e acabou retornando para sua pátria. No entanto, logo voltou para Atenas aonde conseguiu se sustentar através de sua oratória, ensinando e praticando retórica (MCCOMISKEY, 1997, p. 5-7). 30 Conjunto de doutrinas criadas por Sócrates e Platão caracterizadas pela preocupação com questões práticas e concretas da vida da cidade, pelo relativismo em relação a moral e o conhecimento, pelo antropocentrismo, pela valorização da retórica e da oratória como instrumentos da persuasão. Ver Japiassú e Marcondes (2001, p.178). 48 Denis Feeney (2007, p. 129) afirma que por volta da segunda metade do século III a. C. os romanos adaptaram as formas literárias gregas à sua cultura, na qual o componente religioso se revelou algo fundamental. Posteriormente, a leitura de certos textos, como a epopeia, se tornou o ponto chave para a compreensão da relação entre homens e deuses nessa sociedade. Ao ler esse tipo de texto com um interesse na sua dimensão religiosa é importante ter consciência de que eles são tipos específicos de literatura, interagem com outros textos e discursos religiosos de suas próprias e distintas formas. Textos como a Eneida podem nos ensinar bastante sobre a cultura romana, por isso não devemos realizar uma leitura desatenta, negligenciando os tipos particulares dessas narrativas. A história de Roma já havia sido escrita por outros poetas antes de Virgílio, como Névio, que escreveu sobre sua grandeza, justificada pela virtude dos seus soldados e pela vontade dos deuses, colocando a cidade em sua coletividade, como personagem principal. Na sua Bellum Punicum, esse poeta já contava a história de Eneias, o herói troiano que sobreviveu à guerra graças à proteção dos deuses. Porém, a epopeia virgiliana não é uma cópia dessa obra, pois seu autor reescreveu a história do império inserindo as questões de seu próprio tempo, ela foi escrita na época de busca da afirmação do poder por parte de Otávio Augusto, que visava reavivar as tradições da origem mítica de Roma, para legitimar o caráter divino da sua gens (FEENEY, 2007, p.132-134). Além disso, por volta do século V a. C. o mito de Eneias já habitava a Itália. Como aponta Grimal (1992, p. 203), na cidade de Veios, dominada pelos etruscos, foram encontradas estatuetas que mostram Eneias carregando Anquises nos ombros. Isso mostra que essa lenda era conhecida pelos etruscos, tendo penetrado em suas terras por volta de 450 a. C., ou mesmo antes. Sabe-se que a personagem Eneias pertencia às tradições que ligavam os tempos mais antigos das cidades italianas aos heróis troianos, como Ulisses e Diomedes. No próximo capítulo nos concentraremos em fazer uma reflexão sobre o mythos, como categoria relevante na discussão sobre memória, vinculada ao relato das viagens e à construção do personagem Eneias na literatura greco-latina. Para isso nos apoiaremos em textos da Antiguidade e em análises historiográficas sobre eles para ao final tecermos nossas considerações sobre a importância do herói troiano exilado no contexto dos cultos públicos realizados na cidade de Roma, capital do Império, no século I a. C. 49 2. MITO E MEMÓRIA: A VIAGEM MARÍTIMA DE ENEIAS Neste capítulo nos dedicaremos a analisar os acontecimentos que Eneias narrou no Livro III da Eneida, suas memórias sobre os espaços com os quais ele e seus companheiros tiveram contato ao longo da sua viagem, principalmente suas experiências com o divino, em busca da Itália. Em seguida discutiremos como os troianos exilados se situavam nesses espaços e como essas relações podem nos auxiliar no entendimento da conduta ética e religiosa que os cidadãos de Roma deveriam possuir dentro dos muros da cidade. No entanto, consideramos que antes de tecer essas observações devemos discutir como o mythos e a mimesis foram concebidos por alguns autores antigos, nos apoiando em analises historiográficas modernas, objetivando apontar a relevância da épica na divulgação dos mitos, tendo Eneias como exemplo. 2.1 Mythos e mimesis na literatura e história greco-romana Não se conhece sociedade humana sem mito, e é duvidoso que pudesse alguma vez existir (FINLEY, 1972, p.22). Iniciamos esse capítulo com uma afirmação de Moses Finley para destacar a valorização que a historiografia atribuiu ao mito no estudo das sociedades. Neste capítulo nos propomos abordar sua significação na literatura e história greco-romana para mergulhar no universo do espaço literário da Eneida, principalmente nas memórias de Eneias sobre sua experiência como exilado descrita no Livro III dessa epopeia. Para tratar dessas questões nos apoiaremos nos autores antigos, Aristóteles e Cícero, tendo também como referencial as análises historiográficas modernas, que nos deram a dimensão do alcance do mythos, da mimesis e da memória como formulações teóricas. Jean Pierre Vernant (2006, p.2-11) ao analisar a concepção de mito para os gregos procura desvinculá-la do pensamento cristão, pois acredita que cristianizar o politeísmo é o mesmo que desqualificálo, visto que essas duas religiões são totalmente diferentes. “As religiões antigas não são nem menos ricas espiritualmente, nem menos complexas e organizadas intelectualmente do que as de hoje. Elas são outras” (VERNANT, 2006, p.3). No mundo grego mito e mitologia não eram concebidos como narrativas absurdas, inferiores ou como pura ficção. Pelo 50 contrário o mito era considerado relato, fonte de pensamento, preceitos morais, princípios linguísticos e servia de inspiração para o aparato religioso, representado nas imagens de vasos e estátuas, por exemplo, que traduzem as suas regras rituais. Mito é entendido, então, como sinônimo de tradição, um fator social. Vernant (2009, p.230) concebe o mythos como relato, distanciando-o da noção de ficção empregada pela historiografia moderna. Em uma sociedade cuja religião não possuía um conjunto de dogmas descritos em um livro, um corpo sacerdotal ou uma igreja, por exemplo, a difusão das tradições se dava através da oralidade e da escrita. Essa tarefa ficou a cargo das pessoas que se dedicavam a escrever textos como a poesia, a lírica, a tragédia e a comédia, por meio do quais as sociedades da Antiguidade se reconheciam. Ou seja, todas as formas de escrita associada aos poetas. “A teologia antiga também é, assim, essencialmente uma poesia, o discurso sobre seus deuses também é uma narrativa mítica” (VERNANT, 2009, p.230). Foi através desses relatos que conhecemos a história da religião grega, assim como a romana. Marcel Detiene (1992, p.91-93) defende a ideia de que o mythos geralmente aparecia vinculado à poesia épica, logo: A narrativa épica não faz mais do que falar e tornar a falar sobre os valores e as práticas essenciais de uma sociedade que abandona à sua memória única a tarefa de cantá-los para todos, com a ajuda dos ritmos e das técnicas formulares confiados apenas àqueles que sabem cultivar suas riquezas (DETIENE, 1992, p.57). A épica pode ser encarada como um espelho de uma época, um tipo de literatura que traduz as tradições de um dado momento, de modo que seu estudo pode nos levar a compreensão de traços sociais, religiosos e políticos de uma determinada sociedade. A epopeia pode então ser concebida como um conjunto de metáforas dos acontecimentos de um determinado momento histórico. Ao nos voltarmos para a questão do mythos no mundo grego, podemos destacar como esse conceito apareceu na obra daquele que ficou conhecido como o “pai da história”, Heródoto. Ele se dedicou a realizar uma análise sobre o conflito envolvendo helenos e bárbaros, a partir do que ouviu e viu. Nas suas Histórias o termo mythos aparece em duas ocasiões. A primeira vez quando discute sobre as cheias do Nilo (Histórias, II, 20-23), buscando nos próprios egípcios as respostas sobre esse fenômeno, porém não as encontrando recorre aos gregos, os quais lhe fornecem três explicações que não o 51 convencem: uma associada aos ventos estivais; a outra às inundações vindas do oceano; e ao derretimento da neve. Essas versões pareciam enganosas aos olhos de Heródoto por recorrem a uma fábula (mythos) e por esse motivo não mereciam ser discutidas com profundidade. Heródoto descreveu os egípcios como os homens mais escrupulosos religiosamente, caracterizados essencialmente pelo ideal de pureza, tanto dos sacerdotes, como também dos cidadãos comuns (Histórias, II, 37-38). Ao se referir pela segunda vez ao termo ao mythos o apresenta novamente como sinônimo de fábula. Trata-se de um episódio contado pelos gregos, segundo o qual Héracles haveria participado de uma cerimônia de sacrifício e pouco antes de sua concretização teria matado todos os participantes. Heródoto acreditava que essa história não passava de uma “fábula”, um mythos, uma injúria cometida pelos gregos, que demonstravam com essa história não saberem muita coisa sobre a cultura egípcia, visto que nessa sociedade só era permitido o sacrifício de bois, bezerros e porcos (Histórias, II, 45). Como podemos perceber o mythos estava associado ao que não podia ser comprovado, por esse motivo o descrédito do historiador grego quanto a essas explicações, que pode ser entendido como fruto da sua metodologia historiográfica, pautada na investigação e crítica dos fatos. Ao analisar o episódio descrito acima (Histórias, II, 45), Finley (1972, p.20-21) afirma que apesar de Heródoto contestar a veracidade dos fatos contados pelos gregos sobre a estadia de Héracles no Egito, em nenhum momento ele negou a existência desse personagem. Pelo contrário, buscou separar a verdade da lenda e chegou à conclusão de que haviam existido dois personagens com o mesmo nome, um deus egípcio e um herói. Da mesma forma Platão defendeu a história de Homero sobre a Guerra de Troia, embora criticasse a filosofia, as concepções de justiça, dos deuses, de bem e mal presentes na Ilíada. Finley (1972, p.21) defende a teoria de que o fato de Heródoto considerar falsos os testemunhos dos gregos era fruto de um fenômeno de reinvenção dos mitos. Tanto a existência de Héracles, como da Guerra de Troia não foram contestadas, mas reinventadas e relidas pelos poetas. Uma das explicações para a diversificação do mito no mundo grego se daria por essa civilização em nenhum momento da sua história ter se constituído como uma nação, com um território nacional único chamado Grécia. Muito pelo contrário, na idade 52 arcaica, por volta do século VIII a. C., as colônias gregas se encontravam distribuídas entre os territórios da atual Grécia, do litoral do Mar Negro, na atual Turquia, na Itália e no sul da Sicília oriental, na costa do Norte da África e no litoral mediterrâneo da França, divididas em comunidades de culturas diversificadas. Além disso, no caso de outros povos, como os egípcios, por exemplo, a variação dos mythos dependia de lugar para lugar. Nesse cenário a construção de uma mitologia nacional uniforme era impossível, pois conforme uma nova tribo surgia ou se desencadeavam mudanças políticas e sociais ocorriam alterações também nos mitos, na genealogia dos heróis, nos desfechos das guerras ou na relação entre homens e deuses. Com isso, os mitos possuíam uma roupagem diferente em cada pequena parte do território ocupado pelos gregos. Essa situação perdurou até o momento em que Heródoto se dedicou ao estudo da mitologia, tornando necessária a remodelagem das narrativas, o exame de sua coerência de modo a facilitar a sua conservação enquanto testemunhos históricos. A elaboração de uma mitologia grega era uma atividade de extrema importância nessa sociedade, por esse motivo ela não pode ser reduzida ao mero devaneio de um poeta ou de um aedo. Era uma atividade solene e dentro desse contexto Heródoto se sobressaiu, não só como um poeta, mas também como um contador de lendas e mitos31. Partindo da mesma premissa de Finley, Hartog (2003, p.37-38) afirma que Heródoto igualava o logos (narrativa) ao mythos como uma forma de classificar este como algo duvidoso, uma fábula, que geralmente se encontrava associada à poesia. Por outro lado, Detiene (1992, p.91-94) defende a ideia de que esse termo abrangia uma multiplicidade de significados, negando a existência de uma concepção de mythos bem definida na idade arcaica grega. Acreditamos que o mythos era concebido como uma narrativa que não podia ser comprovada, como veremos nas próximas linhas. Sua distinção do termo logos não se apresenta como o alvo de nossa pesquisa, portanto não nos dedicaremos a aprofundar essa discussão. Nos voltamos agora para a análise de um importante autor da Antiguidade que tratou não apenas do mythos, mas também da estruturação da poesia, Aristóteles. Em sua 31 Sobre as contradições dos mitos gregos devido a falta de unidade territorial dos gregos (FINLEY, 1972, p.21-24). 53 Poética (Poética, 1455b – 5-25), ele tinha como objetivo discutir sobre a “arte poética”32, as suas especificidades e o modo como deviam se estruturar. O enredo nessa obra aparece representado pelo termo mythos, definido como uma trama, a história principal ao redor da qual os episódios, acontecimentos de pequena duração, girarão em torno e servirão de complemento. Tendo a Odisséia como exemplo ele afirma que seu enredo seria a história de um homem que passa muitos anos como errante nos quais luta várias batalhas, perseguido por Poseidon. Como é ao redor desse fato que a história se desenvolverá o poeta o teria esboçado antes dos acontecimentos que ocorreram analogamente. O costume de compor enredos teria nascido na Sicília e depois se espalhado por Atenas e outras localidades (Poética, 1449b – 5). Cabia ao poeta criar enredos simples, sem pontas soltas, nos quais o caráter maravilhoso deveria figurar, pois era mais válida a narrativa do impossível que convencesse que do possível que não convencesse 33. Nesse quadro, as artes, como a poesia e a pintura, por exemplo, eram consideradas imitações, mimesis, das ações humanas, que se diferenciavam por fazerem isso de meios, objetos e modos diferentes (Poética, 1447a – 10-15). Na contemporaneidade, Paul Ricoeur (1994, p. 88-116) inspirado na Poética de Aristóteles se propôs a discutir sobre a concepção de mythos e mimesis. Este ultimo conceito foi concebido como um processo tríplice. Em linhas gerais essas fases seriam: a mimese I, entendida como o mundo prático, ainda não explorado pela atividade poética, ou seja, aquilo que ainda não foi narrado; a mimesis II, composta pelo mundo prático da mimese I impregnado de uma pré-narratividade que serve de referência para o ato de construção poética ou configuração; e a mimese III, a atividade de leitura, um ato de reconfiguração do texto, pois o leitor a partir das suas próprias experiências entende o texto de uma determinada maneira. Assim, há um percurso que parte do mundo vivido, o ainda não narrado (pré-narrado), passa pela configuração da trama pelo poeta e se encerra no mundo da vida do leitor. Segundo Ricoeur (1994, p. 58-60) é fundamental que tenhamos em mente que mimese e mythos são processos ou operações, artes de produzir ou representar, por esse 32 Termo utilizado pelo próprio Aristóteles para tratar do ato de produzir poesia, mais especificamente a tragédia e a epopéia, discutidas ao longo do livro: (1447a 1); (1453a 20); (1456b 15); (1460b 15); (1460b 20); (1460b 30). 33 Os detalhes sobre a estruturação do enredo se encontram nas seguintes passagens: (Poética 1452b 30); (1453a 10); (1453b 5); (1461b 10). 54 motivo estão em constante movimento. Esse teórico mantém uma linha tênue entre a definição desses dois termos e isso se dá por defender que na Poética predomina a ideia de mimese como produção de representações. Apesar disso, não podemos conceituar a mimese como uma simples cópia da realidade, pois no ato de imitar existe uma atividade produtora da representação e é isso que a torna tão complexa. Sendo assim há um entrelaçamento entre a concepção de mythos e mimese que determina a sua interdependência. Assim: Está excluída de início, por essa equivalência, toda interpretação da mimese de Aristóteles em termos de cópia, de réplica do idêntico. A imitação ou a representação é uma atividade mimética enquanto produz algo, a saber, precisamente a disposição dos fatos pela tessitura da intriga. [...] a mimese de Aristóteles tem só um espaço de desenvolvimento: o fazer humano, as artes de composição. (RICOEUR, 1994, p.60) A tessitura da trama, mythos e a atividade mimética são compreendidas como empreendimentos humanos, como um fazer que mesmo quando imita produz algo. Por esse motivo os conceitos são interdependentes. A mimese pode ser compreendida como uma atividade produtora, pois ao compor uma história estamos automaticamente criando algo, mesmo se ele for baseado em um evento já ocorrido. Apesar disso, Ricoeur (1994, p.76) atenta para fato de que se nos detivermos a definir a mimese como imitação devemos falar de imitação criadora e se a classificarmos como uma representação devemos entendê-la como uma brecha à ficção. Partindo desse pressuposto esse teórico acredita que o poeta não inventa coisas, mas “quase-coisas”, pois ele se baseia em algo para compor sua obra e esse processo é uma ação criadora baseada no mundo real. A mimese proporciona uma ligação entre o mundo ainda não figurado na intriga e a construção poética nele inspirada. Esse duplo pertencimento faz com que a mimese possua uma função de ruptura, visto que ela não é uma simples cópia do real, mas uma ligação em razão de sua função de “transposição metafórica” do campo prático para o mythos. O momento final dessa relação não se esgota na tessitura da intriga, mas no leitor considerado o ponto de chegada34. A relação mimese/mythos designa a tessitura da intriga, a disposição dos fatos e é isso que interessa a Ricouer ao analisar o processo de criação de um texto literário, ele procura estudar o processo de imitação ou representação de uma ação. Esse processo recria imagens do mundo fora do texto e por esse motivo o leitor se reconhece dentro do mundo 34 Sobre a função de mediação da mimesis entre o texto e o leitor, ver sobre a fase III desse processo em Ricoeur (1994, p. 76-84). 55 do texto. “Se é verdade que a intriga é uma imitação da ação é exigida uma competência preliminar: a capacidade de identificar a ação em geral por seus traços estruturais” (RICOEUR, 1994, p.88). Ao criar uma intriga o poeta cria também imagens metamorfoseadas de uma referência do mundo real e para compreendê-la é necessário entender os episódios sucessivos que conduziram ao seu desfecho, porém mais que previsível deve ser aceitável, deve fazer parte de um conjunto de eventos que se desencadeiam: Longe de só produzir imagens enfraquecidas da realidade, [...] as obras de ficção só pintam a realidade aumentando-a com todos os significados que elas próprias devem às suas virtudes de abreviações, de saturação e de culminação, espantosamente ilustradas pela tessitura da intriga (RICOEUR, 1994, p.123). Partindo dessa ideia poderíamos afirmar que se a atividade poética produz metáforas da realidade, esses relatos funcionariam como uma espécie de memória escrita de eventos que não se deseja esquecer, como as guerras descritas nas epopeias ou mesmo os feitos dos heróis, presentes na literatura greco-romana. Ao nos voltarmos para a Eneida podemos afirmar que ela se apresenta como uma narrativa sobre uma dada memória, que se pretendia tornar-se coletiva. Ela descreve a história da gênese do povo romano e do império que se consolidava no século I a. C., uma memória que ultrapassava as páginas do livro de Virgílio e que fora transformada em monumentos arquitetônicos disponíveis à visão dos cidadãos romanos. Esses dispositivos mnemônicos visavam à consolidação de uma memória comum para essa sociedade. Diante do fato da Eneida se tratar de uma obra na qual a carga memorativa está implícita intimamente, em cada uma de suas linhas, se mostra bastante relevante nos debruçarmos sobre a questão da memória. É importante levarmos em consideração dois pontos: o Livro III da epopeia diz respeito ao relato das memórias de Eneias no exílio; e a obra como um todo pode ser encarada como um conjunto de imagens que deveriam ser disseminadas entre indivíduos de um mesmo grupo. Ricoeur (2007, p.73) estabelece uma diferenciação entre memoração e rememoração. A primeira está relacionada às maneiras de apreender saberes e habilidades, de tal modo que elas permaneçam fixadas na memória do indivíduo a fim de esse possa acessar esses conhecimentos sem fazer esforço, beirando a espontaneidade. “O processo de 56 memorização é especificado pelo caráter construído das maneiras de aprender visando a uma efetuação fácil, forma privilegiada da memória feliz” (RICOEUR, 2007, p.73). Já a segunda, corresponde ao retorno à consciência de um determinado acontecimento ocorrido em um tempo passado àquele que o individuo afirma ter percebido ou sentido. “A marca temporal do antes constitui, assim, o traço distintivo da recordação, sob a dupla forma da evocação simples e do reconhecimento que conclui o processo de recordação” (RICOEUR, 2007, p.73). Essa perspectiva (RICOEUR, 2007, p.74-76) é desenvolvida a partir do olhar sobre a ars memoriae, disciplina que visa à execução de exercícios que permitem ao aluno se tornar seu próprio mestre. Esse modelo clássico de educação é pautado na repetição de lições decoradas. Ricouer desenvolve sua teoria, a partir do mythos considerado o fundador da mnemotécnica, a arte da memória, que geralmente é atribuído aos romanos por Cícero ter se referido a ele, no entanto, sua origem se encontra na Grécia. A história é sobre o poeta Simônides, que sobrevive a um desmoronamento, durante um banquete, no qual fora convocado para cantar as vitórias de um atleta famoso e quando chamado para fora da sala onde a festa acontecia, pelos semideuses Castor e Pólux, o teto desaba e todos morrem. Na versão latina foi acrescentada uma conclusão a esse episódio, provavelmente com a finalidade de exaltar a sua cultura da eloquência. Após a catástrofe, Simônides, graças a suas técnicas de memorização, é capaz de identificar os corpos dos indivíduos que estavam presentes no jantar do atleta, por lembrar-se do local que cada um deles ocupava. Essa técnica consistia em associar imagens a lugares, de maneira sistematizada. Ao se debruçar sobre essa história Cícero (De Oratore, II, 351-353) afirma que a mnemotécnica seria o processo pelo qual a mente é transformada em um espaço de armazenamento de memórias ordenadamente, que serviriam como representação das coisas, dos acontecimentos. Assim aqueles que exercitam esta parte da sua natureza devem pegar lugares e forjar, em sua mente, aquilo que querem guardar na memória e colocá-lo em tais lugares; assim ocorrerá que a ordem dos lugares conservará a ordem das coisas, enquanto a representação das coisas marcará as próprias coisas e usaremos os lugares como a cerca, os simulacros, como as letras (De Oratore, II, 354). 57 Segundo Cícero (De Oratore, II, 358), o grande trunfo de Simônides foi perceber que aquilo que nos é transmitido pelos sentidos, principalmente pela visão, é mais fácil de ser assimilado. Diante disso para que a mnemotécnica pudesse se desenvolver era necessário àqueles que se dedicassem a ela que procurassem lugares bem iluminados para serem suas salas de aula, bem como imagens notáveis, pois assim elas penetrariam com mais rapidez em suas mentes. Na contemporaneidade, a historiadora Aleida Assmann (2011, p.31-32) ao dedicar-se ao estudo da mnemotécnica afirma que este foi um procedimento utilizado pela primeira vez espontaneamente e que em seguida foi transformado em uma técnica de aprendizado consciente. A partir dela desenvolveu-se uma espécie de escritura mental, baseada na lembrança de locais e imagens, que forneciam subsídios para guardar memórias. Com essa técnica, que mudou da audição para a visão, ou seja, conhecimentos e textos deveriam ser fixados na cabeça de maneira tão confiável como se estivesse escrevendo em uma folha de papiro. Para os romanos a mnemotécnica foi concebida como um procedimento utilizável para vários fins, que objetivava primordialmente o armazenamento e a recuperação de informações tal como elas haviam sido guardadas. Na Eneida, especificamente no Livro III, a memória é uma das principais ferramentas que Eneias faz uso. Cabe a ele narrar suas aventuras desde a saída de Troia até Cartago para a rainha Dido e os demais participantes do banquete em homenagem aos troianos, ele recorda acontecimentos traumatizantes, como a destruição da sua pátria, não esquecendo sequer as falas dos personagens. Nos propomos a realizar uma análise sobre as memórias de Eneias, apresentadas por Virgílio no Livro III da Eneida, quando esse personagem relata sua viagem junto com seus companheiros de Troia até a ilha de Cartago. Nesse discurso buscaremos compreender como o herói da epopeia se via no espaço, sempre chegando e partindo dos lugares nos quais desejava se fixar. Para facilitar a compreensão apresentaremos um resumo desse episódio, por meio da divisão do relato de Eneias a partir das localidades pelas quais vagou durante seu exílio: Trácia; Delos; Creta; ilhas Estrofádas; Butroto; Itália; e Drepáno. Levaremos em consideração que Virgílio produziu uma obra cujas partes são dependentes uma da outra, por esse motivo elencaremos os acontecimentos mais relevantes do Livro I e II, antes adentrarmos a narrativa do Livro III. 58 2.2 A viagem de Eneias e seus sociis em busca da Itália Nas primeiras linhas do Livro I o narrador revela o objetivo do seu poema: contar a história do herói, que tendo sobrevivido à Guerra de Troia, junto com alguns compatriotas, se lançou ao exílio no mar: As armas canto e o varão que fugindo das plagas de Troia por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno, guerras sem fim sustentou para as bases lançar da cidade e ao Lácio os deuses trazer – o começo da gente latina, dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados35. (Eneida, I, 1-5) Esses versos demonstram a base argumentativa de toda a trama, deixando claro que o autor se propõe a narrar os eventos que culminaram na chega dos troianos ao Lácio e na fundação de Lavínio, cujos descendentes fundariam Roma. O narrador se propõe a contar um conjunto de eventos dos quais não participou, mas que fizeram parte da origem do seu povo. Ele aparece na narrativa como um ser onipresente, pois acompanha todas as ações, até mesmo as dos deuses, adentrando o universo psicológico das suas personagens, conhecendo aquilo que pensam, desejam e temem. A narrativa da epopeia virgiliana se constitui com uma combinação da voz do narrador e das personagens. Esses últimos, em vários momentos, assumem a voz passiva, ou seja, se tornam agentes das ações. Nos Livros II e III isso fica bastante evidente, pois ao contrário dos demais, seus acontecimentos são inteiramente narrados pelo personagem principal, Eneias, quando este relata as suas andanças de Troia à Cartago, durante banquete oferecido pela rainha Dido. Nos demais livros o narrador assume a terceira pessoa e em alguns momentos os personagens descrevem os acontecimentos, mas os eventos se passam no presente, ao contrário das ações narradas por Eneias na segunda e terceira seção do poema. 35 Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris/ Italiam, fato profugus, Laviniaque uenit/ litora, multum ille et terris iactatus et alto/ vi superum saeuae memorem Iunonis ob iram;/ multa quoque et bello passus, dum conderet urbem,/ inferretque deos Latio, genus unde Latinum,/ Albanique patres, atque altae moenia Romae (Eneida, I, 1-5). 59 O Livro II da epopeia virgiliana é caracterizado pela constante presença dos presságios dos deuses, Eneias conta como foi avisado do fim de sua cidade e incumbido pelos deuses de fundar uma nova Troia. Esse é o Livro que representa também uma ruptura com o ideal de “bela morte”36 dos heróis, pois é retirado da personagem principal o direito de morrer no campo de batalha pela sua cidade, pois sua vida deve ser poupada para que Troia se mantivesse viva. Eneias deve salvar os Penates e alguns concidadãos, para levá-los a um lugar onde sua pátria “renasceria”. O herói troiano não devia morrer em batalha para obter as honras de um guerreiro, mas proteger o que sobrou da sua cidade, sempre temente aos deuses e cumprindo a sua vontade. Em consequência disso, esse personagem aparece ao longo do poema com o epíteto pius Aeneas37. Esse termo designa uma das principais características desse herói, a piedade38. Ele aparece pela primeira vez na Eneida, no Livro I, quando após a tempestade causada por Eólo, a pedido de Juno, Eneias reúne seus sócios para lamentar a morte de alguns de seus companheiros, no litoral de Cartago: Saciada a fome e desfeitos os últimos toques da mesa, em longas práticas choram a perda dos sócios ausentes. Entre esperança e temor, se perguntam se acaso ainda vivem, ou se na extrema agonia não ouvem a voz dos que os chamam; máxime Eneias, o pio, a desgraça de Oronte lamenta; chora o destino de Amico, o desastre de Lico indizível, do incontrastável Cloanto e também de Gias valente39. (Eneida, I, 215-220) 36 Essa expressão, para Vernant, significa morrer jovem em campo de batalha, demonstrando toda virilidade, honra e coragem. Além disso, o morto deveria ter um funeral completo, assim como ter seus feitos eternizados pelo canto do poeta. A ideia é apresentada relacionada ao contexto grego, mas ao longo da Eneida observamos que ele também pode ser aplicado ao contexto romano (VERNANT, 1978, p.31-32). 37 Termo utilizado por Virgílio para designar o caráter piedoso de Eneias (Eneida, I, 305); (I, 305) ( I, 375); (IV, 390); (V, 25); (V, 285); (V, 685); (VI, 9); (VI, 175); (VI, 230); (VII, 5); (VIII, 80); (IX, 255); (X, 590); (X, 780); (X, 825);( XI, 170); (XII, 175); (XII, 310). 38 De acordo com a análise de Paulo Martins a pietas (piedade) era para os romanos um conceito que traduzia um sentimento de obrigação para com tudo aquilo que o homem estava ligado, aos membros de sua gens, a pátria e ao culto dos antepassados, Manes, Lares, Penates (MARTINS, 2011, p. 20). No capítulo III esse conceito será problematizado com mais ênfase. 39 Postquam exempta fames epulis mensaeque remotae/ amissos longo sócios sermone requirunt,/ spemque metumque inter dubii, seu uiuere credant,/ siue extrema pati nec iam exaudire uocatos./ Praecipue pius Aeneas nunc acris Oronti,/ nunc Amyci casum gemit et crudelia secum/ fata Lyci fortemque Gyan fortemque Cloanthum (Eneida, I, 215-220). 60 A exaltação da qualidade de pio de Eneias estava ligada a sua capacidade de liderar os sobreviventes da Guerra de Troia, demonstra que o herói de Troia não podia ser qualquer um, mas um homem que respeitava os seus companheiros, capaz de realizar a sua missão divina e contornar a própria vontade para honrar os desígnios dos deuses. Sua função era de grande importância, pois além de fundar uma nova cidade, devia também levar consigo os deuses domésticos da sua pátria. No final do Livro I durante um banquete oferecido aos troianos a rainha Dido pede para Eneias contar como havia chegado até Cartago: “‘Hospede, fala-lhe, ‘conta-nos tudo por ordem, do início/ as artimanhas dos dânaos, desditas dos teus companheiros, / este vagar sem descanso” 40 (Eneida, I, 753-755). O herói lamenta ter de relembrar o dia no qual sua pátria foi arrasada, porém acata o pedido: “Mas, se realmente desejas ouvir esses tristes eventos, / breve relato do lance postremo da guerra de Troia, / bem que a lembrança de tantos horrores me deixe angustiado, / principiarei”41 (Eneida, II, 9-11). No Livro II a narrativa decorre sobre a destruição de Troia, finalizando com a descrição da partida dos sobreviventes para o exílio no mar. No Livro III, assim como no Livro II, o personagem principal assume a narrativa, tratando de eventos passados como flashes. Grimal (1992, p. 219) afirma que essa técnica é conhecida pelos teóricos da poesia Antiga como “inversão do tempo”. Dentro da epopeia ela possui três funções fundamentais: a de chamar a atenção dos ouvintes, um chamariz em meio a uma extensa narrativa; de enumerar os acontecimentos ocorridos; e de relatar uma série de causas que culminaram no presente da narrativa. Os flashes de Eneias dão voz à personagem, talvez como uma forma de o autor deixá-lo livre para contar sua versão da história. O herói troiano conta suas errâncias desde a saída de Troia até à chegada em Cartago. Na medida do possível, ele se torna o narrador da sua própria história. Na figura 7 temos um mapa do percurso dos troianos exilados: 40 Immo age et a prima dic, hospes, origine nobis/ insidias”, inquit, “Danaum, casusque tuorum/ erroresque tuos. (Eneida, I, vv, 753-755). 41 Sed si tantus amor casus cognoscere nostros/ et breuiter Troiae supremum audire laborem,/ quamquam animus meminisse horret, luctuque refugit,/ incipiam (Eneida, II, 9-11). 61 FIGURA 7 – MAPA DA VIAGEM DE ENEIAS Itinerário de Eneias. MARO, Publius Vergilius. Eneida. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2014. p.882-883. No Livro III da epopeia virgiliana nos deparamos com uma narrativa de viagem e nela encontramos mais que metáforas para o contexto do governo augustano ou um conjunto de acontecimentos históricos, percebemos a exaltação da personalidade de um herói piedoso, que respeita os deuses e suas ordens, acima da sua própria vontade. Eneias e seus compatriotas demonstram através das provações pelas quais passam ao longo do exílio como os homens de Roma deviam se portar diante da sua cidade, conquistada pela luta, sacrifícios e, sobretudo pelo respeito dos homens à vontade dos deuses. São nesses acontecimentos que as principais características do perfil de Eneias como fundador das bases do Império Romano são delineadas, onde luta suas primeiras batalhas, recebe os primeiros avisos divinos e recusa a seguir sua vontade em benefícios do Destino (fatum). Ele narra suas viagens mais perigosas até aquele momento, onde além das provações teve de enfrentar a fúria da deusa Juno, que persegue os troianos até o ultimo momento da epopeia. Vagando de uma terra para outra, enfrentando monstros e tempestades, os troianos exilados procuram aquela terra que será seu lar e um dia se transformará no império prometido pelos deuses. Nas próximas páginas nos dedicaremos à análise do relato do herói 62 troiano sobre os seus primeiros anos de exílio, tendo como norte a descrição dos espaços pelos quais passou e os acontecimentos que o levaram a seguir viagem rumo à Itália. 2.2.1. A partida de Troia e a chegada à Trácia O herói troiano inicia seu relato no Livro III, descrevendo como os deuses apareceram diversas vezes e sob diferentes formas, como humanos, em sonhos ou através de oráculos, realizando profecias e criando “enigmas”, que deviam ser desvendados para que ele e seus companheiros pudessem dar continuidade a sua viagem. Eneias conta como diante de Troia arrasada ele e seus sociis deram os primeiros passos em sua jornada, ainda sem rumo, confiando apenas nas profecias divinas: Quando aos eternos aprouve destruir sem motivo o invejável império d’Ásia e a progênie de Príamo, em terra soberba Ílio, e em ruínas ardentes a Troia Netúnia mudada, por injunção dos agouros nos vimos lançados no exílio, para buscar novas terras. Ao pé justamente de Atandro e do Ida augusto da Frígia navios bastante construímos nada sabendo dos Fados da terra por todos ansiada. Reunimos gente; e ao notarmos sinais de certeza de início da primavera, e meu pai insistir para os panos soltarmos, sem rumo certo, a chorar, deixo os portos, as praias e campos onde foi Troia, e ao mar me entrego, exilado, com os sócios, o filho amado, os Penates e os deuses maiores de Troia42. (Eneida, III, 5-10) A queda de Troia foi um evento que não podia ser evitado, assim como os Fados descritos por Júpiter era uma vontade dos deuses. Troia havia sido condenada pela vaidade dos seus homens desde os primórdios de sua fundação. Durante o reinado de Laomedonte, primeiro rei dessa cidade, ele teria pedido a Netuno e Apolo que erigissem muralhas impenetráveis pelos inimigos, mas desrespeitou o pacto com os deuses e como punição um monstro foi enviado para destruir Troia (Ilíada, XXI, 440-450). O rei conseguiu vencer a ameaça graças à ajuda de Héracles (ou Hércules), filho de Zeus, porém mais uma vez não cumpriu a sua parte do acordo. Como retaliação Héracles quase extingue a linhagem dos 42 Postquam res Asiae Priamique euertere gentem/ immeritam uisum superis, ceciditque superbum/ Ilium et omnis humo fumat Neptunia Troia, / diuersa exsilia et desertas quaerere terras/ auguriis agimur diuum, classemque sub ipsa/ Antandro et Phrygiae molimur montibus Idae,/ incerti quo fata ferant, ubi sistere detur,/ contrahimusque uiros. uix prima inceperat aestas,/ et pater Anchises dare fatis uela iubebat,/ litora cum patriae lacrimans portusque relinquo/ et campos ubi Troia fuit. feror exsul in altum/ cum sociis natoque penatibus et magnis dis (Eneida, III, 5-10). 63 troianos. Quando Troia passou para as mãos do herdeiro de Laomedonte, Príamo, a ira dos deuses mais uma vez foi alimentada, pois ele acolheu Páris após o rapto de Helena. Páris infligiu à lei da hospitalidade ao raptar a esposa de seu anfitrião, Menelau. Logo, não houve mais salvação para Troia, os deuses não perdoaram mais essa falta. Identificamos também no trecho acima da Eneida um elevado nível de obediência dos troianos aos deuses, pois confiam seu destino às previsões divinas ao darem início ao exílio no mar com a promessa de encontrarem uma nova terra para se instalarem. Além disso, observamos em Eneias a exaltação do seu sentimento de perda do local ao qual pertencia, visto que ele chora ao se despedir da terra onde nascera e, mais ainda, por ela ter sido totalmente destruída. Destacamos ainda a presença da descrição das três principais qualidades de Eneias: a de líder religioso, pois carrega os Penates e é único entre os sobreviventes troianos que tem visões dos deuses, de Vênus principalmente, e consequentemente é para ele que os augúrios divinos são revelados; de chefe político, pois reúne o seu povo e o convence a construir os navios que os levariam ao exílio; e de comandante militar, pois lidera seus sócios em uma missão cheia de provações e confrontos, que terminará na Itália, com uma guerra contra o rei dos rútulos, Turno, embora ainda não soubesse do desfecho de sua viagem. Eneias e seus companheiros levaram sua cidade para a Itália, embora suas estruturas físicas tivessem sido destruídas ela permanecia viva na memória dos homens, que buscavam um novo lugar para fixá-la, no fogo sagrado de Vesta e nos Penates, os deuses domésticos dos troianos. Mas, se por um lado as divindades haviam destruído a cidade, por outro queriam que ela fosse reconstruída, daí a importância de Eneias como o herói piedoso, o pio. Os deuses lhe prometem prestígio, poder e uma nova pátria, mas para isso o herói devia provar o seu valor enfrentando as provações no exílio. Isso é expresso no Livro I, no momento em que Vênus preocupada com o destino de Eneias, após a tempestade causada por Éolo, pouco antes de chegar à Cartago, é tranquilizada por Júpiter, que lhe conta o futuro do seu filho: Acalma-te Citereia; imutáveis encontram-se os Fados. Ainda verás a cidade e as muralhas de Lavínio, como te disse, e até aos astros o nome elevar-se de Eneias de alma sublime. Mudança não houve no meu pensamento. Guerras terríveis ele há de enfrentar, povos de ânimo fero domar no jugo, a seus homens dar leis e cidades muradas, 64 quando, três anos corridos, estios e invernos gelados, reinar no Lácio e abater a fereza dos rútulos fortes43. (Eneida, I, 255-265) Após saírem de Troia, Eneias e seus sócios vão para Atandro e lá constroem as naus que os levariam ao exílio no mar. O primeiro local que aportaram foi a Trácia, onde o herói demarcou os limites de um povoado, batizado de Eneia, devido ao seu nome. Tal como um sacerdote ele realizou sacríficos de animais em honra a Vênus e outras divindades (Eneida, III, 15-20). Através desses rituais esse lugar anteriormente desconhecido e sem sentido tornou-se um espaço organizado, dotado de leis e de significação, civilizado e digno de ser um lar para os exilados de Troia. O papel de Eneias como herói civilizador descrito no Livro I (Eneida, I, 1-7) é aqui exemplificado, pois a ele cabe fundar novas cidades e lhes impor leis para tornar esses espaços minimamente habitáveis e servir como parte das provações pelas quais teria de passar para se mostrar digno de ser o fundador da nova Troia. Na Eneida não existe heroísmo sem mérito, essa é uma condição dos deuses. Poucos dias depois dos troianos terem se instalado nessa terra, Eneias passa por uma experiência que o obriga a reunir seus companheiros e novamente se entregar ao mar. Enquanto passava por um monte onde havia cerejeiras e mirtos tenta arrancar alguns ramos, mas é surpreendido por um fenômeno: eles sangram. Na terceira tentativa de arrancar os ramos ele os ouve gritarem: “Por que laceras, Eneias, um ser infeliz?”44(Eneida, III, 40). Em seguida a voz afirma ser Polidoro, filho de Príamo, que havia sido mandado para a Trácia, portando um grande tesouro, a fim de que seu rei o educasse, porém com o cerco se fechando para Troia o rei degolou o jovem e se apossou do tesouro. Polidoro adverte Eneias para que vá embora da Trácia, pois nela só encontraria desgraça. Imediatamente, o troiano relata esses fatos aos seus companheiros e todos concordam em partir, mas antes prestam as devidas honras funerárias ao compatriota morto. 43 Parce metu, Cytherea: manent immota tuorum/ Fata tibi; cernes urbem et promissa Lauini/ moenia, sublimemque feres ad sidera caeli/ magnanimum Aenean; neque me sententia uertit./ Hic tibi (fabor enim, quando haec te cura remordet,/ longius et uoluens Fatorum arcana mouebo)/ bellum ingens geret Italia, populosque feroces/ contundet, moresque uiris et moenia ponet,/ tertia dum Latio regnantem uiderit aestas,/ ternaque transierint Rutulis hiberna subactis (Eneida, I, 255-265). 44 Quid miserum, Aenea, laceras? (Eneida, III, 40) 65 2.2.2. De Delos à Creta: a busca pela antiquam matrem Eneias continua sua narrativa e descreve o segundo local no qual os troianos aportam, a ilha do deus Apolo, Delos, onde são bem recebidos pelo rei Ânio, velho amigo de Anquises. Seguem então para o templo do deus onde Eneias pede para que essa divindade lhe envie um sinal indicando a direção que deveria seguir. Um loureiro divino aparece na porta do templo e em seguida ouve a voz do oráculo: Valentes filhos de Dárdano! A terra primeira que a estirpe de vossos pais engendrou há de em breve ao seu seio acolher-vos, quando voltardes para ela. Buscai, pois, a mãe primitiva. Ali, a casa de Eneias o mundo de um polo a outro polo dominará, de seus filhos os netos e seus descendentes45. (Eneida, III, 90-95) Essas palavras animaram todos. Segundo o oráculo de Apolo, Eneias deveria buscar a antiquam matrem46. Logo, Anquises, o mais velho do grupo e por isso considerado o mais sábio, interpreta a antiquam matrem como Creta, ilha onde nascera Teucro, ancestral dos troianos e para lá eles partem. Embora preocupados com a ameaça grega, acabam por descobrir que as praias de Creta haviam sido abandonadas por seu rei, Idomeneu. Chegando à ilha, fundam uma nova cidade, Pérgamo, nome referente à Troia. Porém pouco tempo depois ela se torna inabitável, as ervas secam, as terras ficam inférteis e as pessoas adoecem. Essa não é à terra prometida pelos deuses, por isso não dura, é devastada pela peste. É necessário que partam novamente para o exílio. Em sonho, os Penates estimulam Eneias a continuar sua viagem, explicam a profecia de Apolo e lhe pedem para não deixar ser vencido pelo cansaço do exílio: Tudo que Apolo frecheiro queria dizer-te, ora manda que te anunciemos. Para isso enviou-nos à tua morada. Nós, a Dardânia incendiada, os trabalhos das armas contigo participamos e o risco enfrentamos das ondas revoltas. Por isso mesmo, teus netos poremos acima dos astros e à sua pátria daremos o império do mundo. Levanta 45 Dardanidae duri, quae uos a stirpe parentum/ prima tulit tellus, eadem uos ubere laeto/ accipiet reduces. Antiquam exquirite matrem./ Hic domus Aeneae cunctis dominabitur oris/ et nati natorum et qui nascentur ab illis (Eneida, III, 90-95). 46 Termo utilizado por Virgílio para se referir a “mãe primitiva”, que os troianos deveriam encontrar (Eneida, III, 95). 66 novas muralhas; não cedas jamais ao cansaço do exílio. Força é mudares de assento; nem Febo indicou-te estas plagas Para a cidade fundares, nem disse que fosses a Creta. Há uma região muito fértil, dos gregos Hespéria chamada, Terra antiquíssima, forte nas armas, de frutos opimos, Pelos enótrios outrora povoada e que seus descendentes o nome Itália puseram, de um forte caudilho primevo47. (Eneida, III, 155-165) Nesse trecho os Penates profetizam o Destino de Roma, assim como dos descendentes de Eneias. Eles revelam o destino final dos troianos: a Itália, onde finalmente lançariam as bases do império romano. Ao acordar o herói faz os votos aos deuses e se dirige a Anquises para contar os augúrios divinos (Eneida, III, 120-145). Mais uma vez percebemos a intervenção dos deuses na vida dos homens e isso será recorrente até o ultimo Livro da Eneida. A presença das divindades é constante, pois elas são os guias da viagem. A justificativa que os Penates oferecem a Eneias para que fuja dessas terras o mais rápido possível é que “Jove te nega as Campinas de Creta” (Eneida, III, 171). O caminho que deve seguir é aquele designado pelo pai de todos os deuses, Júpiter, e ao longo de todo o relato isso é característico da fala do herói. Essas idas e vindas, bem como o desejo de chegar a terra onde enfim repousaria os Penates de Troia sentida por Eneias é uma constante no relato do herói, que se vê em uma missão que obriga a deixar de lado sua vontade em função da vontade dos deuses. Ao partir de Creta os troianos enfrentam uma forte tempestade e acabam aportando em uma das ilhas Estrofádas, a das Harpias48. Mais uma vez ele é desviado do seu caminho rumo à Itália. 2.2.3. A ilha das Harpias Após enfrentarem uma tempestade que durou três dias, Eneias e seus companheiros encontram terra firme. Eles aportam em umas das ilhas Estrofádas, localizadas no mar 47 Quod tibi delato Ortygiam dicturus Apollo est,/ hic canit et tua nos en ultro ad limina mittit./ Nos te Dardania incensa tuaque arma secuti,/ nos tumidum sub te permensi classibus aequor,/ idem uenturos tollemus in astra nepotes/ imperiumque urbi dabimus. Tu moenia magnis/ magna para longumque fugae ne linque laborem./ Mutandae sedes. Non haec tibi litora suasit/ Delius aut Cretae iussit considere Apollo./ Est locus, Hesperiam Grai cognomine dicunt,/ terra antiqua, potens armis atque ubere glaebae:/ Oenotri coluere uiri; nunc fama minores/ Italiam dixisse ducis de nomine gentem (Eneida, III, 155-165). 48 Na Teogonia (260-269), Hesíodo conta que esses seres nasceram na época dos Titãs, filhas da divindade marinha Taumante e da oceânide Electra e seus nomes eram Aelo, Ocípite e Celeno. 67 Jônio, habitada pelas Harpias. Estes seres são descritos como monstros que possuíam corpo de pássaro, rosto que se assemelhava ao de um cão e um forte odor que saia do ventre (Eneida, III, 205-210). Os troianos logo que se acomodam na praia realizam sacrifícios aos deuses: Mal nos pegamos em terra, avistamos nas belas campinas Gratas manadas de bois sem nenhum pegureiro, espalhados por toda a parte, e rebanhos de cabras nos pastos virentes. De espada em punho investimos, e aos deuses – a Jove primeiro – parte da presa ofertamos49. (Eneida, III, 220) Nesse trecho percebemos o caráter de obediência e gratidão aos deuses e, por parte de Eneias e seus sócios, que não deixaram de agradecer às divindades, principalmente a Júpiter, por terem sobrevivido à tempestade que os levara até essa ilha. Depois dos sacrifícios os troianos montam a mesa e desfrutam da caça. Em seguida são interrompidos pelo aparecimento das Harpias, que roubam a comida da qual se alimentavam, deixando apenas o seu forte odor no ar (Eneida, III, 255). Novamente os troianos organizam um banquete, mas pouco antes de desfrutarem dele as harpias realizam um novo ataque. Os troianos partem para o confronto armado contra as harpias, preparam uma emboscada, escondendo suas armas nas ervas rasteiras e quando as inimigas se aproximam atacam de surpresa. No entanto, seu plano não é bem sucedido, pois o corpo duro das harpias as protegem dos golpes, elas desviam e fogem voando. A única que permanece próxima a eles é Celeno, sentada no pico de uma rocha questiona os troianos pelas suas ações, alegando que ela e suas companheiras tinham lhes atacado por eles terem desrespeitado sua hospitalidade sacrificando os animais da sua ilha sem permissão (Eneida, III, 235-245). Ela ainda lhes lança um mau augúrio: “Mas, antes mesmo de vossa cidade, querida dos deuses/ de muros altos cingirdes, haveis de sofrer dura fome/ por este crime: forçados sereis a roer até as mesas”50 (Eneida, III, 255). Diante de tal presságio, Anquises levanta as mãos para o céu e pede aos deuses que isso não se cumpra. Em seguida dá ordem para que todos se preparem para partir (Eneida, 49 Huc ubi delati portus intrauimus, ecce/ laeta boum passim campis armenta uidemus/ caprigenumque pecus nullo custode per herbas./ Inruimus ferro et diuos ipsumque uocamus/ in partem praedamque Iouem; tum litore curuo/ exstruimusque toros dapibusque epulamur opimis (Eneida, III, 220) 50 Sed non ante datam cingentis moenibus urbem/ quam uos dira fames nostraeque inuiria caedis/ ambesas subigat malis absumere mensas (Eneida, III, 255) 68 III, 260-265). Os troianos seguem viagem evitando a pátria de Ulisses, chegam à ilha Leucádia, onde realizam mais uma vez sacrifícios a Júpiter e se dirigem para a cidade de Ácio para comemorar os jogos Ilíacos (Eneida, III, 270- 280). Após esse episódio se lançam à aventura em alto mar e aportam em Epiro, cidade localizada na ilha Butroto. 2.2.4. Epiro: a réplica de Troia Epiro se mostra como um dos lugares mais emblemáticos para Eneias e seus sócios, pois se assemelhava bastante a Troia, causando-lhes espanto. Essa cidade era governada por Heleno, adivinho e filho de Príamo, e Andrômaca51, viúva de Heitor. Eles viviam em uma réplica Tróia, no entanto estavam presos a lembrança dos mortos, principalmente Andrômaca, cujo amor pelo marido morto na guerra não foi superado nem mesmo pela morte. Ela não abandona o passado, constrói um túmulo vazio para Heitor onde derrama suas lágrimas pelo falecido esposo e o mantém vivo na memória (Eneida, III, 302-305). Andrômaca e Heleno viviam de recordações, de simulacros. Porém, Eneias os considerava felizes, pois haviam encontrado um Destino, uma nova cidade. Diferentemente do herói não estavam perdidos no mar, vagando durante anos em busca de uma terra para fundar uma cidade. Eneias encontrou Andrômaca no momento em que ela realizava votos à alma de Heitor, mesmo tendo se casado com Heleno não esquecera seu primeiro marido. Surpresa ao ver o troiano ela lhe conta como chegara até aquelas terras, vendida como escrava ao filho de Aquiles, Neoptólemo, e depois dada a um dos seus servos, Heleno, que recebeu também um montante de terras quando seu senhor faleceu (Eneida, III, 320-335). Logo em seguida, Heleno surge e reconhecendo o compatriota o recebe amistosamente e lhe apresenta a cidade que construíra. O adivinho acolhe os troianos em seu palácio e oferece um banquete (Eneida, III, 350-355). Eneias pede conselhos ao seu anfitrião, este o leva até o templo de Apolo e inspirado pelo deus descreve o caminho que deveria ser percorrido para chegar à Itália (Eneida, III, 370-460). Afirma ainda que um sinal divino indicaria o fim da viagem, no local onde encontrasse uma porca branca, amamentando seus filhotes e um rio sem nome deveria fundar uma cidade: 51 Notar que Andrômaca era cunhada de Eneias, pois sua esposa Créusa era irmã de Heitor. 69 Quando apreensivo estiveres nas margens de um rio sem nome, e deparares deitada na sombra de bela azinheira uma alva porca com trinta leitões ao seu lado, da mesma cor da mãe branca, deitados no chão a mamar com sossego: esse será o local da cidade, o descanso almejado52. (Eneida, III, 385-390). A menção à porca branca como prenúncio para escolha do lugar onde a nova cidade deveria ser fundada faz referências aos rituais de fundação da cidade, onde o herói, seguindo os auspícios dos deuses, escolheria o local mais adequado para a fundação do novo burgo, que se dava primeiramente no plano espiritual, através dos rituais, para só então passar a existir no plano material (COULANGES, 1961, p.208-218). Dando continuidade aos conselhos para Eneias e descrevendo os caminhos que teria de percorrer para evitar ir de encontro com os inimigos gregos, Heleno afirma que o herói deveria prestar culto a Juno, a fim de que a deusa permitisse a ele e seus companheiros chegarem com segurança à Itália (Eneida, III, 435). Ao encerrar suas previsões presenteia os troianos com ricos objetos: de ouro; marfim; prata; bronze; parte de uma armadura de malha dourada; um capacete; as armas de Neoptólemo; cavalos; pilotos; armas; e remeiros. Para Anquises e Ascânio foram dados os presentes mais valiosos, para o primeiro, Andrômaca ofereceu vestidos bordados a ouro e para o segundo um rico manto, preso por um broche, todos esses objetos feitos com suas próprias mãos. Palinuro, o comandante das frotas troianas, observa os astros e guia seus companheiros à Itália (Eneida, III, 460- 515). 2.2.5. Do primeiro encontro com a Itália à Drépano A visão de um templo de Minerva guia os troianos para as praias italianas. Essa é a primeira vez que encontram o lugar prometido pelos deuses desde o início da sua viagem. Ao encontrar a Itália, Eneias tem uma visão de quatro cavalos brancos, interpretada por Anquises como um presságio da guerra que seu filho teria de enfrentar na nova terra e da paz que viria após seu termino. No templo de Minerva os troianos prestam as devidas honras a Juno, em seguida preparam-se para partir, temendo encontrar seus inimigos dânaos 52 Cum tibi sollicito secreti ad fluminis undam/ litoreis ingens inuenta sub ilicibus sus/ triginta capitum fetus enixa iacebit,/ alba solo recubans, albi circum ubera nati,/ is locus urbis erit, requies ea certa laborum (Eneida, III, 385-390). 70 (Eneida, III, 530-550). Durante o percurso Palinuro demonstra destreza ao desviar das rochas da ilha Caríbdis e ao final do dia aportam na ilha dos Ciclopes. Chegando à praia dessa ilha veem bem próximo deles o vulcão Etna em atividade, onde acreditavam que o gigante Encélado estava aprisionado e que cada vez que este se movia fazia com que o vulcão expulsasse sua lava, provocando tremores de terra (Eneida, III, 560-565). Na manhã seguinte os troianos se deparam com mais um exilado, Aquemênides era seu nome, com uma aparência extremamente sofrida, magro, cabelos desgrenhados e a roupa presa por uma espinha de peixe. Ele não esconde sua origem itáca, nem que fizera parte do grupo de Ulisses, mas implora para que os troianos o levem daquele terrível lugar: Por todos os astros, pelas deidades celestes e este ar que a nós todos anima, teucros, tirai-me daqui e levai-me para onde quiseres. Isso me basta. Não nego que fui marinheiro da armada grega, na justa marcial contra os sacros Penates de Troia. Se vos parece tão grande o meu crime, dos meus companheiros, jogai meu corpo, depois de picado, no abismo insondável. Dar-me-ei por pago se vier a morrer pela ação de outros homens53 (Eneida, III, 595-605). Aquemênides é aceito no grupo dos troianos e os adverte para que se preparem o quanto antes para sair daquelas terras, pois vários ciclopes a habitavam. Quando todos correm para os barcos Polifemo, o ciclope cujo olho Ulisses havia perfurado, e seus pares aparecem na praia. Por pouco, Eneias e seus sócios conseguem escapar dessa ameaça. Temendo novamente se deparar com os ciclopes, o herói pede aos seus companheiros que contornem essa ilha. Os troianos realizam uma breve parada na ilha Ortígia, prestam culto aos deuses locais e seguindo um dos conselhos de Heleno seguem para a costa da Sicília (Eneida, III, 639-709). Chegando ao fim do seu relato, Eneias discursa sobre uma das passagens mais tristes de sua jornada, quando chega à ilha Drépano e Anquises morre. Nas palavras de Eneias: “Esta é a mais cruel desventura, o remate da minha penosa/ navegação”54 (Eneida, III, 710). Emocionado, ele encerra sua narrativa e se recolhe. 53 Per sidera testor,/ per superos atque hoc caeli spirabile lumen,/ tollite me, Teucri. quascumque abducite terras:/ hoc sat erit. Scio me Danais e classibus unum,/ et bello Iliacos fateor petiisse Penatis;/ pro quo, si sceleris tanta est iniuria nostri,/ spargite me in fluctus uastoque immergite ponto;/ si pereo, hominum manibus periisse iuuabit (Eneida, III, 595-605) 54 Hic labor extremus, longarum haec meta uiarum (Eneida, III, 710). 71 Muitas foram às provações da viagem. A última e a maior para Eneias foi à perda do pai. Perda dolorosa expressa pela sua emoção ao final do seu relato: “Sozinho deixaste-me, pai extremoso,/ salvo de tantos perigos, sem norte na vida escabrosa55” (Eneida, III, 710711). O herói troiano se vê obrigado a desprender-se dos afetos do passado, primeiro Créusa, agora seu pai. Em Cartago ele encontra uma das mais perigosas tentações: o amor. Dido apaixona-se por Eneias e ele retribui, instigados por Vênus. Durante meses o herói se desvia da sua missão desejando descansar do exílio, encontra um espaço de conforto e se dedica a dirigir a construção de palácios na cidade em ascensão. Esse desvio de rota dura até que a sombra de Anquises o adverte em sonhos de que Júpiter lhe deu uma ordem formal: abandonar Cartago, abandonar Dido, abandonar o amor. A rainha no auge do desespero acusa, ameaça e suplica, porém Eneias resiste. Mas, as lágrimas do herói correm de novo pela sua face sem poder mudar os fados: “porém a mente é inflexível e as lágrimas, frustras, se perdem” 56 (Eneida, IV, 449). O resultado da sua decisão é trágico. Quando as naus troianas partem de Cartago Dido amaldiçoa Eneias e Roma, no futuro Aníbal vingaria sua morte, e suicida-se. A culpa de Eneias é inevitável: “Mas, pelas estrelas juro, / pelas deidades celestes, as forças sagradas do Inferno:/ contra o meu próprio querer afastei-me da tua presença” 57 (Eneida, VI, 458-460). O herói protesta e age contra sua vontade, obedece aos desígnios dos deuses, o que revela um certo pesar no seu relato de exílio. Na nossa análise do Livro III da Eneida o espaço e a memória ocupam posições de destaque. São nos espaços que os troianos exilados passam por experiências que testam sua capacidade de seguir os fados, e estas são relatadas pelas memórias de Eneias durante o banquete oferecido por Dido. Por esse motivo consideramos necessários alguns apontamentos sobre esses conceitos e como eles são percebidos por nós no decorrer da referida seção da epopeia virgiliana. 55 Hic me, pater optime, fessum/ deseris, heu, tantis nequiquam erepte periclis ((Eneida, III, 710-711) Mens immota menet, lacrimae uoluuntur inanes (Eneida, IV, 449) 57 Per sidera iuro,/ per súperos, et si qua fides tellure sub ima est,/ inuitus, regina, tuo de litore cessi (Eneida, VI, 458-460) 56 72 2.3. Memória e espaço na Eneida Espaço é um conceito bastante generalizante. Por esse motivo é necessário que o especifiquemos antes de discuti-lo. Para ter noção do seu caráter abrangente quando voltamos nossa atenção para o estudo da história e literatura romana e, mais especificamente para a poesia de Virgílio, vemos emergir numerosas pesquisas sobre os mais diferentes aspectos do espaço, paisagem, política, religião, guerras, heroísmo, morte e vida, isso para citar apenas alguns58. Para exemplificar melhor podemos destacar o trabalho de Luís M. G. Cerqueira (2008, p.140-145) sobre o espaço da paisagem na obra de Virgílio como uma novidade na literatura da Antiguidade. De acordo com o ponto de vista do autor esse aspecto era tido como sem relevância, um mero pano de fundo para os feitos dos heróis homéricos, por exemplo. Era o lugar onde qualquer coisa se passava. No entanto, em Virgílio, mais especificamente na épica romana, a paisagem assumiu um papel de relevância, se tornando um recurso estilístico59. Para justificar tal afirmativa o autor nos apresenta um exemplo retirado da Eneida, da chegada dos troianos à Itália e a entrada na foz do Tibre, comunicadas ao leitor através da descrição de uma paisagem tranquila, uma manhã clara, animada pelo canto dos pássaros, como uma previsão do sucesso na conquista do Lácio e que mais a frente deixa uma brecha para a descrição das batalhas que seguirão (Eneida, VII, 7-24). A descrição de cada amanhecer na Eneida é vista como uma formulação adequada às circunstâncias do que ia acontecer nesse dia. A paisagem funciona como criadora de momentos de tensões e serenidade, ela direciona as ações dos personagens. Além disso, nos finais de cada Livro é perceptível um esforço de intensificar o ambiente dominante no canto, as zonas luminosas e sombrias. A paisagem interage com as ações humanas, não é um estado da alma, mas a própria alma, dinâmica e com consequências, não um simples cenário (CERQUEIRA, 2008, p.145). Diante de tais observações sobre o conceito de espaço nos propomos a analisar como os troianos se situavam nos espaços com os quais tiveram contato, durante os 58 Dentre eles Castro (2012), Ferreira (2012), Moniz (2012), Pimentel (2012). Notar na descrição do Livro III que Virgílio faz bastante uso da paisagem na sua epopeia, como por exemplo, quando Eneias aporta na Trácia e encontra o corpo de Polidoro misturado à vegetação e o relato sobre as chegadas e partidas dos troianos nas ilhas descritas por Eneias são acompanhados de descrições sobre as paisagens desses espaços sempre associadas aos acontecimentos. 59 73 primeiros anos de exílio narrados pelo personagem principal no Livro III da Eneida, que nos dará subsídios para entender questões relacionadas à conduta religiosa e política dos cidadãos da Roma augustana, que serão exploradas no capítulo seguinte. Conforme anunciamos, o Livro III se trata de um relato de memória no qual o herói Eneias descreve para a rainha de Cartago, Dido, todas as batalhas que teve de enfrentar até chegar a essa terra. O personagem principal se apropria das suas próprias memórias para contar sua experiência com os espaços que teve contado ao longo de sua viagem. O exílio aparece como um acontecimento tão relevante para Eneias que ele sequer deixa de mencionar as falas de todos os que o acompanharam nessa viagem e daqueles que encontrou ao longo do caminho, do mesmo modo como Simônides é sua visão a responsável pelo seu conhecimento. Partindo desse ponto de vista podemos conceber o Livro III como o “Livro das memórias de Eneias”. Na abertura o herói troiano afirma: Quando aos eternos aprouve destruir sem motivo o invejável império d’Ásia e a progênie de Príamo, em terra soberba Ílio, e em ruínas ardentes a Troia Netúnia mudada, por injunção dos agouros nos vimos lançados no exílio, para buscar novas terras60 (Eneida, III, 1-4). Eneias conta o que viu e viveu, tal como Ulisses, é aquele que sabe por que viu. François Hartog (2004, p.14) ao realizar uma análise sobre a viagem do herói homérico classifica essa qualidade como uma característica essencial do mundo grego, o olho como modo de conhecimento, e chega a essa conclusão se apoiando em Aristóteles, que considerava a visão como o sentido do ser humano capaz de transmitir um maior nível de conhecimento. Procuramos traçar aqui não um simples mapa da viagem de Eneias, mas uma análise da sua narrativa enquanto viajante, exilado, que relatou não somente o que observou, mas também o que viveu. Diferentemente do Ulisses de Homero, Eneias não participa de batalhas ou passa pelas provações dos deuses para poder voltar a sua pátria, mas procura por uma nova. Porém, esses dois personagens podem ser reconhecidos como homens-fronteira, tal como afirma Hartog (2014, p.14-15), eles se perdem no mar, suas viagens são cheias de chegadas e partidas, demarcam as fronteiras entre o divino e o humano ao atravessarem o mundo dos 60 Postquam res Asiae Priamique euertere gentem/immeritam uisum superis, ceciditque superbum/ Ilium et omnis humo fumat Neptunia Troia,/ diuersa exsilia et desertas quaerere terras (Eneida, III, 1-4). 74 vivos e o mundo dos mortos. Esses viajantes se deslocam até lugares antes desconhecidos para eles, delineiam os contornos de uma viagem que os identificam um como grego e outro como romano. A Odisseia foi à pioneira da narrativa de viagem e foi posteriormente evocada metaforicamente por vários poetas, como Virgílio. Eneias e seus companheiros se situavam nos espaços onde aportavam como estrangeiros, viajantes que não possuíam um lugar de pertencimento físico no mundo, pois este existia apenas em suas memórias e nas dos Penates. Na visão de Cabeceiras (2008, p.170) cidade e segurança é um binômio cuja pertinência para a cidade de Roma, a partir do seu desmensurado crescimento, começou a ser posto em questão no final da República. Apesar disso, esses dois elementos continuaram fazendo parte do imaginário mediterrâneo. Fora da “cidade murada” coisas ruins aconteciam, o autor em questão dá como exemplo o encontro entre os dois amantes Píramo e Tisbe que resultou na trágica morte de ambos. Seguindo essa premissa e desviando nossa atenção para a Eneida encontramos esse mesmo princípio. Os troianos exilados estavam desprotegidos, sem uma cidade estavam à mercê dos perigos, tendo sobrevivido graças à ajuda dos deuses. Sem pátria, fora dos “muros da cidade” eles se encontravam em espaços hostis, onde se depararam com morte, pestes, guerras, tempestades e maus augúrios. A partir disso poderíamos pensar que na Eneida os espaços de ordem são as cidades, tendo como exemplo Cartago, onde os troianos encontram um local de repouso e proteção após a tempestade causada por Eólo no Livro I. Nessa cidade são bem recebidos, a rainha lhes oferece um banquete e pede a Eneias que lhe conte suas aventuras. No entanto, o que percebemos ao longo do relato do herói é que a ideia de segurança e ordem da cidade não se aplica homogeneamente. Durante o exílio o líder dos troianos fundou duas cidades, Enea e Pérgamo, mas elas não prosperaram, foram atingidas pela peste e maus presságios, sinais enviados pelos deuses para indicar que se fixar nessas terras não era seu Destino e que novamente as velas dos navios deviam ser levantadas para buscar novas paragens. Na Eneida a proteção e a segurança estão condicionadas à vontade dos deuses e à pietas dos homens. A recompensa pelos esforços era uma garantia divina, mas dependia da atitude devota dos troianos, demonstrada através da realização de sacrifícios e pelo respeito às previsões divinas, como podemos perceber no Livro III. 75 O espaço de ordem deve ser buscado, conquistado e fundado na península itálica pelos troianos sobreviventes de uma guerra. “O disciplinamento do espaço e a sua demarcação podem ser considerados atos fundadores da cidade e a sintonizam com o cosmos” (CABECEIRAS, 2008, p.71). A disciplinarização do espaço da nova pátria dos troianos seria promovida pela guerra empreendida contra Turno no final da epopeia, os quatro cavalos avistados por Eneias quando viu a Itália pela primeira vez era um presságio sobre esse acontecimento. Os troianos só encontrariam a paz depois da guerra. Essa pode ser considerada uma das mensagens da Eneida, um indicativo da pax conquistada por Otávio Augusto através do seu sucesso militar para conter as guerras civis e ampliar o território do Império. A epopeia de Virgílio é um poema sobre origens, mas também da conquista da paz por meio da guerra, de tempestades seguidas de calmaria, de morte seguida de vida, de perda de uma pátria e a conquista de uma mais nova e mais forte. A Eneida pode ser considerada um poema sobre “ressureição”. Conforme observa Langrouva (2003, p.267-269) o tópos literário viagem aparece na literatura antiga vinculado às experiências humanas de fuga, exílio, saudade da pátria e da família, bem como a ritos de passagem, sugerindo uma necessidade de renovação e busca de uma nova ordem social e espiritual. A ideia de viagem faz parte também da cultura grega, em especial das cosmologias pré- socráticas e da cultura grega arcaica. Na Odisseia, um dos mais exponenciais exemplos dessa tradição, a viagem é realizada em um espaço geográfico e mítico, desenvolvida em um tempo cíclico. Embora essa epopeia pareça a princípio um poema de regresso, um olhar mais aprofundado revela que se trata de uma obra aberta para um novo ciclo, pois mesmo depois de ter alcançado seus objetivos, em Itáca, Ulisses se prepara para novas viagens e retornos. Ao lançar um olhar sobre a Eneida esse autor afirma que o espaço da viagem de Eneias também é geográfico e mítico, porém não ocorrem em tempo cíclico e sim aberto. O herói e seus companheiros fogem da desordem e da violência da Guerra de Troia para o espaço desconhecido, num tempo predominantemente linear. O líder dos troianos exilados é um herói mítico fundador de uma nova ordem social, política e religiosa, pois essa foi à vontade do Destino, fato profugus (Eneida, I, 3). A ideia de renovação na Eneida se encontra como uma necessidade devido à degeneração dos homens de Troia (LANGROUVA, 2003, p.269). Conforme observamos 76 anteriormente, no tópico 2.2.1 A partida de Troia e a chegada à Trácia, a cidade dos troianos foi condenada à destruição devido à ganância e ao desrespeito dos homens, principalmente dos reis Laomedonte e Príamo, aos pactos com as divindades. Coube a Eneias a missão de buscar uma nova cidade para os sobreviventes da guerra isenta de todos os males que levaram Troia à condenação. Nesse cenário as aventuras que Eneias e seus sócios tiveram de enfrentar no decorrer do seu percurso funcionaram como uma espécie de ritual de purificação e seleção dos mais dignos de habitarem o novo burgo, concluído pela demonstração de lealdade e capacidade militar para defender sua pátria e seus compatriotas na batalha do final da epopeia, contra Turno. Os espaços ocupados pelos troianos no Livro III são lugares de hostilidade, de perigos, mas também de proteção e adoração aos deuses. Esses homens sem uma pátria, sem um espaço de pertencimento, vagam pelos mares à procura de um lugar para fixar-se, passam por provações enviadas pelos deuses, tempestades, renúncia ao amor e ao desejo de fundar uma nova cidade nas ilhas onde aportam. No que diz respeito ao mar, este pode ser encarado como um espaço de refúgio, mesmo tendo nele se deparado com o perigo das tempestades é nele que sua experiência de exílio se completa. Eneias e seus compatriotas são acolhidos pelo mar, um exemplo disso pode ser observado no episódio em que Eólo61, persuadido por Juno, cria uma tempestade para atingir os troianos, mas eles são salvos pelo deus do mar, Netuno (Eneida, I, 64-144). No que diz respeito a Troia em seu sentido físico ela se torna uma ausência, pois é destruída, porém permanece viva na memória daqueles que viveram nessa cidade. Eneias e seus sociis ainda habitam sua pátria, pelas suas memórias e pelos Penates sua cidade não deixou de existir, além disso, ao longo do exílio esses homens se autoproclamam, são chamados por outros personagens e pelo narrador de troianos62. Na sua Poética do Espaço, Gaston Bachelard (1978, p.188) procura analisar os espaços da sensibilidade, das imagens da intimidade do ser humano, através do estudo da relação que este mantém com os espaços que lhe são familiares, como a casa, por exemplo, e a poética envolvida nesse processo. Para esse filósofo a importância de focar seu trabalho nos espaços íntimos se dá por neles estarem abrigadas as nossas lembranças e 61 Foi transformado em rei dos ventos graças por Júpiter. Ver mais em Eneida, I, 55- 63. Em algumas passagens os exilados de troia são denominados troianos: (I, 562); (I, 626); (II, 48); (V, 420); (V, 690); (IX, 128); (X, 77); (X, 814). Em outras passagens eles são chamados de teucros: (I, 38); (I, 88); (I, 248); (I, 304); (I, 511); (I, 556). 62 77 esquecimentos, bem como o nosso inconsciente. Tendo esses princípios como norteadores o autor tece um trabalho de análise do espaço baseado na psicologia, através de pesquisas “sobre a imaginação poética”, a produção de imagens poéticas e sua repercussão na alma. Bachelard (1978, p.196) coloca em questão o valor da sensibilidade, da arte, do sonho na constituição psíquica do sujeito. Ele analisa como a imaginação concebe um "espaço feliz" e uma "topofilia" das imagens, ou seja, visa determinar o valor humano dos espaços de posse, dos espaços proibidos, dos espaços amados, tendo como base comum o fato de serem espaços vividos com todas as parcialidades da imaginação. Esta por sua vez é considerada um processo que está em constante movimento, resultando em uma infinidade de imagens novas a cada segundo e é isso que esse filósofo pretende explorar. Para tanto, ele analisa como essas imagens se relacionam com o ambiente, com os espaços vividos. Umas das problemáticas levantadas no trabalho desse autor diz respeito à questão da carga de imagens concentradas na casa através das lembranças que nela inserimos e que nos levam a atribuir diferentes valores para esse espaço, principalmente o de proteção. No ponto de vista do autor não se trata apenas de descrever a casa, mas de mergulhar no psicológico do seu interior inerente a função de habitar (BACHELARD, 1978, p.199). A importância de se analisar os espaços vividos tendo como ponto de partida a casa se dá por ela se constituir como o "lugar no mundo" do sujeito, por ser o seu primeiro universo. O seu sentido poético reside em um sentimento que lhe é intrínseco, nas lembranças que se criam nesse espaço experienciado e que são levadas para qualquer outra moradia que o sujeito venha a possuir ao longo da vida. O espaço vivido é o espaço ao qual o sujeito se sente ligado por laços afetivos, um espaço familiar, é o seu "espaço de pertencimento" (BACHELARD, 1978, p.200). Ao ter a casa como objeto de análise o autor não se refere a ela apenas como a estrutura física a qual damos essa denominação, mas a todo e qualquer espaço habitado, pois ele carrega consigo essa noção de casa. Ao longo da análise de Bachelard (1978, p.200) vemos como a imaginação possui a força de criar "paredes" nesses espaços que convencionamos chamar de lar e lhes encher de sentido de proteção ou de perigo. O ser que vive no espaço é quem delimita as suas fronteiras e o sentido de cada parte que o compõe, do mesmo modo que o morador de uma casa atribui diferentes valores aos cômodos do seu abrigo. Esses valores da casa, do espaço vivido, não são reconhecidos apenas no momento 78 presente, mas é também levado pelo sonho a nova casa que o sujeito venha a habitar no futuro, ou seja, se transforma em memória. Todos os aposentos da casa são "vividos, experienciados pela relação que o individuo possui com cada parte dela e ele guarda lembranças dessa relação de modo que ela passa a ser vivida não somente no presente, mas também no passado e ele pode voltar a viver em uma casa nova” (BACHELARD, 1978, p.200). Ao analisarmos a Eneida podemos partir dessa mesma premissa, Eneias experimentou essa relação ao perder sua pátria, os deuses o obrigaram a se desvincular da sua casa no plano físico, assim como das pessoas que a habitavam, e esse sentimento de perda percorreu todo o seu ser ao longo do seu exílio. O seu passado permanecia vivo não somente na sua memória, mas também nos seus Penates, que enquanto estivessem nas mãos dos troianos garantiriam a existência da sua cidade. A memória e a imaginação trabalham juntas. Elas constituem a comunhão da lembrança, ou seja, são produtoras de imagens, como a lembrança da casa da infância. Essas imagens podem ser acionadas por determinados acontecimentos, como uma casa nova que nos reporta a lembrança da casa que habitávamos na infância, que nos permitem viver momentos de felicidade ao reviver lembranças de um lugar de proteção. Dessa maneira a casa é considerada o abrigo do devaneio, dos sonhos. Tendo deixado isso claro Bachelard procura mostrar como a casa é "um dos maiores poderes de interação para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem" (BACHELARD, 1978, p.201). A casa, o espaço de pertencimento do homem, é uma parte constitutiva do seu ser. "Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "atirado ao mundo", como o professam os metafísicos apressados, o homem é colocado no berço da casa." (BACHELARD, 1978, p.201). Na narrativa de Virgílio, Eneias não sonha especificamente com imagens da sua cidade, mas com pessoas que a habitavam, além de encontrar compatriotas durante a viagem, são lembranças da sua casa, do seu espaço de pertencimento. Antes de sair de Troia é com a sombra do falecido Heitor lhe pedindo para que deixe a cidade e salve os Penates que ele sonha; na Trácia encontra o corpo de Polidoro misturado às plantas que cresciam naquelas terras e que lhe pede para sair daquele lugar amaldiçoado; e em Epiro 79 encontra um simulacro do passado, uma cidade congelada no tempo, uma lembrança, nela Andrômaca ainda chora pela morte de Heitor e juntamente com Heleno cria uma cidade do passado, que não se recuperou das perdas sofridas e por isso permanece estagnada. As sombras de Troia, assim como os seus deuses, os Penates, conduzem o herói troiano para longe dessa cidade. Eneias é levado pelos deuses a afastar-se desse passado em beneficio da fundação de uma nova pátria, ou seja, do futuro. Sob esse ponto de vista tomamos emprestada a teoria de Bachelard (1978, p.202205) segundo a qual a casa é o abrigo das nossas lembranças mais íntimas, elas ficam compartimentadas em seus cômodos e voltamos a elas durante toda a vida, em nossos devaneios. Ao discutir esses aspectos o autor se prontifica a fazer uma topoanálise, um estudo psicológico dos lugares físicos da vida intima do ser humano. Partindo desse pressuposto esse autor se debruça sobre o estudo da memória, levando em consideração a sua incapacidade de registrar a duração concreta da vida e afirma que localizar a lembrança é uma preocupação de uso externo, ou seja, é um esforço de comunicar-se com os outros. Da mesma maneira que cada cômodo da casa guarda memórias intimas dos seres que a habitam ou habitaram e elas se tornam casas da lembrança. Assim, tudo o que podemos descrever da casa da infância é devaneio, sonhos de um passado. Tendo o mito de Eneias como base, percebemos que ele foi escrito não só nas páginas de um livro, mas também nos monumentos arquitetônicos da capital do Império Romano, no século I a. C., imprimindo nesses artefatos um sentimento de pertencimento a esse espaço por aqueles que o vivenciavam. Funcionou como o registro de uma memória compartilhada entre todos aqueles que se identificavam como romanos. Esse processo de apreensão dos gêneros artísticos sejam eles literatura, pintura ou música, visava impactar o receptor. O fato é que mythos e memória andam de mãos dadas, são elementos que despertam a curiosidade e identificação no homem. Com o mito do exílio de Eneias não foi diferente, estudado e utilizado como referência da Antiguidade à Modernidade, esse registro da memória permanece vivo, guiando aqueles que se aventuram a embarcar na viagem rumo à novas descobertas, tendo Eneias como comandante da embarcação. 80 3. REALIZAÇÕES HEROICAS, FUNDAÇÕES E PROFECIAS NO LIVRO III DA ENEIDA Os mitos não são apenas estórias para o deleite do público, são narrativas que indicam os costumes, crenças, relações políticas e militares, que nos permitem ter conhecimento sobre como o homem interagia com a natureza e com outros homens, numa determinada sociedade. Alguns mitos são desconexos e fragmentados, outros mais fáceis de articular numa conexão narrativa, o mito de Eneias é um desses. Virgílio não foi o primeiro a escrever sobre esse personagem. O seu nascimento foi contado nos Hinos Homéricos, sua vida, como guerreiro de Troia, foi contada na Ilíada e Tito Lívio narrou em sua História de Roma como o herói troiano sobreviveu à guerra, chegou à Itália, fundou Lavínio e morreu em uma guerra contra os reis itálicos, Turno e Mezêncio63. Além disso, esse mito esteve presente também em meios imagéticos, precisamente nas paredes da Roma na época de Augusto, o que nos leva a sugerir um amplo alcance das informações sobre Eneias durante o principado. Procuraremos traçar o perfil do herói virgiliano, visto que seu caráter revela muitas informações sobre a conduta que os cidadãos deveriam possuir dentro dos muros de Roma. Para isso, discutiremos como Eneias, personagem pertencente à tradição literária grega e latina, foi descrita nas obras citadas anteriormente, a fim de ter uma noção do material que Virgílio tinha ao seu dispor quando compôs sua epopeia. A partir disso, nos dedicaremos a analisar a Eneida, especificamente o Livro III, destacando como, apesar de ter elaborado o enredo a partir de uma personagem que já possuía uma trajetória na literatura, Virgílio compôs uma obra singular, que tratava de especificidades romanas, apoiado no modelo de epopeia grega. No Livro III da Eneida, Eneias conta como se deu sua viagem de Troia à Cartago, ao longo da qual enfrentou situações que lapidaram sua personalidade como o herói, que pela sua pietas e virtos se mostrou merecedor, diante dos deuses, de se tornar o pater das bases do Império Romano. Nesse contexto daremos prioridade à discussão sobre os feitos heroicos de Eneias, tendo em vista que o caráter desse personagem revela detalhes sobre os 63 Ao longo deste capítulo discutiremos como Eneias foi descrito nessas obras, objetivando compreender quais as principais informações sobre esse personagem estavam ao dispor de Virgílio, quando se propôs a compor sua epopeia. 81 preceitos morais que regiam a sociedade romana, da época do século I a. C. Para dar embasamento a essas afirmações nos apoiaremos na historiografia sobre a “religião romana”, dando destaque aos cultos presididos no ambiente público. 3.1. Para além da narrativa virgiliana: a res gestae de Eneias Nas épicas gregas e romanas o herói geralmente é um individuo que possui algum grau de parentesco com uma divindade e recebe a missão de realizar tarefas enviadas pelos deuses. São essas missões que diferenciam os heróis dos outros homens. Gregory Nagy (2005), analisando o “herói épico” a partir da comparação entre distintas construções poéticas no mundo antigo, afirma que a palavra grega hêrôs na tradição clássica, reúne três características básicas: a) um indivíduo atemporal ou que poderia facilmente ser deslocado de um tempo para o outro; b) um indivíduo feito de extremos positivos ou negativos, que sempre se destaca em todas as atividades; c) um indivíduo que se antagoniza com os deuses, mas que desenvolve uma relação de atração, ao mesmo tempo. O autor exemplifica com os modelos de Héracles e sua relação de antagonismo e reconciliação com Hera, e de Eneias, com relação à Juno (NAGY, 2005, p. 87-88). Na tradição latina, durante o principado de Otavio Augusto (14 a.C. -27 d.C.), o mito do herói fundador das bases do Império Romano, Eneias, narrado por Virgílio na Eneida, ganhou respaldo. Podemos dizer que seu perfil segue o modelo dos heróis da épica grega, traçado por Hesíodo em Trabalhos e Dias e confirmados por Homero na Ilíada e Odisseia64. Além disso, o passado de Eneias estava ligado à tradição grega, pois o herói romano era também um troiano sobrevivente da guerra que devastou sua pátria. O império romano encontrava assim suas raízes no passado grego. Hesíodo narrou como se dava a organização do mundo dos mortais, sua origem, limitações, deveres e como se fundamentava a condição do ser humano. De acordo com seus Trabalhos e Dias (105-195), os homens foram criados pelos deuses, especificamente por Zeus, divididos em cinco raças, ouro, prata, bronze, os heróis e ferro. A primeira raça se origina na época em que Cronos reinava, são homens que desconheciam os males, vivam de 64 Sobre a concepção acerca de como o perfil do herói da épica clássica foi traçado por Hesíodo e confirmado pelos poetas que o sucederam ver também Marques Júnior (2007, p.9-32). 82 festas e bonanças e quando morriam se transformavam em gênios, responsáveis por cuidar dos vivos. A segunda era inferior à antecessora vivia cem anos como crianças, junto às suas mães, e na adolescência morriam, além de sofrerem dores terríveis, pois se entregavam aos Excessos e não queriam servir, nem oferecer sacríficos aos deuses. A terceira preocupavase apenas com as artes bélicas, eram fortes, violentos e suas armas eram feitas de bronze, mas morriam anônimos e sem glória. A quarta raça, os heróis, caracterizava-se pela justiça e coragem, eram semideuses e foram enviados para as guerras em Tebas e em Troia, onde morreriam em busca de glória. Ao contrário dos deuses eram mortais, no entanto depois que morriam Zeus os guiaria até a Ilha dos Bem-Aventurados e três vezes por ano a natureza lhes forneceria uma rica colheita. A quinta raça, Hesíodo lamenta não ter vivido antes ou depois, eram os homens, vivia num misto de bens e males, desrespeitam os deuses, saqueavam cidades e por isso seu futuro era sombrio. Os heróis a raça “mais justa e mais corajosa” (Trabalhos e Dias, 158) deveria lutar pela manutenção da Justiça no mundo dos homens e pela realização da vontade dos deuses, evitando a qualquer custo desrespeitá-los, caso contrário o Respeito (aidós) e a Retribuição65 (némesis) os abandonariam, pestes os acompanhariam e nenhuma força impediria que a vingança divina se concretizasse66 (Trabalhos e Dias, 195-200). Abaixo um trecho do poema de Hesíodo no qual a raça dos heróis é descrita: Zeus Cronida fez a mais justa e corajosa, raça divina de homens heróis e são chamados semideuses, geração anterior à nossa na terra sem fim. A estes a guerra má e o grito temível da tribo a uns, na terra Cadméia, sob Tebas de Sete Portas fizeram perecer pelos rebanhos de Édipo combatendo, e a outros, embarcados para além do grande mar abissal a Troia levaram por causa de Helena de belos cabelos, ali certamente remate de morte os envolveu todos (Trabalhos e dias, 155-165). Essa raça era chamada de semideuses, pois era concebida pela relação de um deus com um mortal. No entanto, vale ressaltar que nos poemas homéricos isso não era uma regra. Apesar de Aquiles ser filho de uma deusa, Thétis, e de um mortal, Peleu, Heitor era 65 De acordo com o Oxford Latin Dictionary (p.1169) o termo nemesis pode ser traduzido como a deusa grega Retribuição. 66 Foi pelo desrespeito a Zeus que Troia, e mais precisamente a linhagem de Príamo, foi condenada à extinção (Eneida, II, 545-560). 83 filho de dois mortais e não possuía um vínculo direto com uma divindade, sendo também considerado um herói67. Os heróis possuem a Thémis, a justiça divina, e por esse motivo sua missão é fazer valer a Díke, justiça que rege o mundo dos homens, garantindo a harmonia com os deuses68. Na Teogonia , (130-138), Hesíodo afirma que a Thémis nasceu das forças primordiais, Urano e Gaia, ou seja, é uma titânide. Além disso, ela é também a segunda esposa de Zeus. Dessa união nasceram as Horas, Irene (Paz), Díke (Justiça) e Eunômia (Equidade), que eram responsáveis por guardar as portas do Olimpo e cuidar dos campos (Teogonia, 901-906). A Díke é uma extensão da Thémis (Trabalhos e Dias, 256264), assim como suas irmãs, mas era responsável por garantir a justiça no mundo dos homens. Sempre que algum mortal se atrevesse a cometer injúria contra ela à dor e o sofrimento seriam lançados á terra até que a dívida por tal insolência fosse paga. Uma vez chamado para realizar as tarefas designadas pelos deuses o herói abandonava o mundo que ele conhecia e passava a viver em outro, ganhava conhecimentos pela experiência e se tornava uma pessoa diferente. No desenrolar da Eneida percebemos essa mudança em Eneias. Ele inicia sua jornada com medo (Eneida, II, 726-729), incertezas (Eneida, III, 5-7), e lágrimas (Eneida, III, 10), mas a encerra como um sacerdote fundador de cidades (Eneida, XII, 193-194) e um líder guerreiro (Eneida, XII, 950-952). No Livro III podemos perceber nitidamente essa transformação na postura de Eneias, pois ao longo das suas andanças se depara com situações que o obrigam a desenvolver determinadas características que culminaram na sua transformação no herói cumpridor da vontade dos deuses e fundador de cidades, do final da epopeia. O personagem Eneias não foi criado por Virgílio, ele faz parte de uma tradição literária anterior à Eneida: seu nascimento foi relatado nos Hinos Homéricos; sua participação na guerra de Troia fez parte da Ilíada; e a sua trajetória da saída de Troia até o dia da sua morte foi contada na História de Roma. Quando compôs a Eneida Virgílio tinha ao seu dispor um acervo de informações sobre o herói troiano, se apoiou no que já existia sobre ele e criou um poema autêntico e rico em referências da literatura grega e latina. Desta forma, como a tradição literária mencionada acima contribuiu para a composição do 67 Heitor também é reconhecido como herói. Sua morte é considerada bela, sangrenta e gloriosa, pois morreu jovem, demonstrando sua coragem ao enfrentar o melhor guerreiro dos dânaos, Aquiles, mesmo sabendo que iria morrer. Essa forma de morrer elevou o herói acima da condição humana, principalmente por ter morrido para defender sua pátria. Sobre o heroísmo de Heitor na Ilíada ver Vernant (1979, p.31-54). 68 Para uma discussão mais aprofundada sobre a thémis e a díke ver Albertim (2013, p.20-37). 84 herói Eneias, da Eneida, mesmo apresentando esse personagem com um caráter distinto do que foi projetado por Virgílio? Pensando nisso, procuraremos analisar como esse personagem foi representado por autores greco-latinos e pela epopeia virgiliana, destacando os seus principais feitos e como seu mito, relacionado à fundação de Roma, estava ligado ao culto da cidade. O nascimento de Eneias é narrado no Hino a Afrodite69 (5, 53-292). Anquises, seu pai, era um pastor troiano. Um dia enquanto estava em um estábulo afastado dos seus companheiros, tocando cítara no monte Ida, foi surpreendido por Afrodite. A deusa estava metamorfoseada em uma bela ninfa, “vestida com peplo certamente mais brilhante que a chama do sol,/ trazia espirais recurvadas e botões de flores brilhantes,/ colares magníficos, todos ornados de ouro” (Hino a Afrodite 5, 85-87) e imediatamente fez acender o desejo no mortal. Após dividirem o leito, ela induziu o sono em Anquises e quando o despertou revelou que teriam um filho, “Eneias será seu nome, porque uma terrível aflição me invade,/ por ter caído no leito de um mortal70 (Hino a Afrodite 5, 198-199). Essa criança deveria passar seus primeiros anos de vida sob os cuidados das ninfas da montanha Sileno, pelas quais seria nutrido e educado. Depois a própria deusa o entregaria ao pai mortal, que de nenhuma forma deveria revelar a origem da criança. A quem perguntasse, Anquises deveria dizer que a mãe de Eneias era uma ninfa, caso contrário Zeus lançaria sua ira sobre o pastor. Assim foi feita a vontade da deusa. Detalhes sobre a fase adulta de Eneias foram relatados por Homero. Na sua Ilíada ele conta como o filho de Anquises se tornou um exímio guerreiro, que lutou bravamente durante a guerra de Troia. A primeira passagem na qual o herói troiano é mencionado é o Canto II, após a catalogação das naus, concomitante com a primeira aparição de Heitor (Ilíada, II, 495-785). Ambos mostrados em posição de comando dos troianos. É colocada em evidência a qualidade de Eneias como um guerreiro e um dos comandantes das forças 69 Esse texto faz parte de um conjunto de 33 poemas, dedicado a 22 divindades, Afrodite, Apolo, Ares, Ártemis, Atena, Asclépio, Deméter, Dionísio, Dióscuros, Gaia, Hefesto, Hélio,Hera, Herácles, Hermes, Héstia, Musas, Pã, Posídon, Reia, Selene e Zeus – reunidos no livro Hinos Homéricos. Apesar do sugestivo título, sua autoria não é atribuída a Homero, mas a autores anônimos. Eles provavelmente eram parte dos festivais das póleis gregas, declamados pelos rapsodos. Ver Ribeiro Júnior (2010). 70 Percebemos que o nome de Eneias aparece como um substantivo ligado a algo ruim, devido a atitude da deusa de ter deitado com um mortal. Muito embora, tenha sido Zeus que incutiu o desejo em Afrodite de se unir a um mortal para que ela nunca se vangloriasse por ter unido os deuses homens às mulheres mortais, pois ela mesma, uma deusa, se uniria a um mortal (Hino a Afrodite, 45-52). 85 troianas: “aos Dardânios, Eneias, filho do valente/ Anquises e da deusa Afrodite, guiava” (Ilíada, II, 819-20). O herói troiano volta a aparecer no Canto V, quando luta bravamente contra os aqueus ao lado de um dos seus compatriotas, Pândaro, que acaba sendo morto. Eneias luta pelo corpo do seu amigo. Nesse momento seu caráter guerreiro é novamente ressaltado e ele é comparado a um leão: Armado, Eneias baixa a defender o morto dos Aqueus; como um leão, gira-lhe em torno e brande lança e escudo equilátero, aos brados, terrível, ávido de matar quem se lhe antepusesse. (Ilíada, V, 298-301) Eneias é salvo pela sua mãe, Afrodite, que “rodeou o filho amado com os braços brancos,/ e desdobrou-lhe diante o peplo resplandecente, amparo contra os dardos dos Dânaos” (Ilíada, V, 314-316). Ele volta a ser mencionado no Canto VI, no momento em que os troianos se encontram em desvantagem na guerra. Heleno, o sacerdote de Apolo, que também aparece na Eneida, se dirige a Heitor e Eneias pedindo para que os dois façam os inimigos recuarem e incentivem seus companheiros a lutarem por sua cidade, pois de ambos fluía o impulso e a decisão dos troianos pelo combate (Ilíada, VI, 77-85). No Canto XII, durante o ataque dos troianos às naus inimigas, Eneias é o comandante dos cinco grupos de combatentes formados para expulsar os aqueus do seu acampamento (Ilíada, XII, 99-101). No Canto XIII dá-se a continuidade desse evento e o herói troiano continua a lutar bravamente, assim como no Canto XVI. No Canto XVIII acontece a luta pelo corpo de Pátroclo, o amigo mais estimado de Aquiles que foi morto por Heitor. Eneias, instigado por Apolo, incentiva Heitor e seus companheiros a lutarem contra os aqueus. Essa luta resulta no recuo dos inimigos. A ultima participação do filho de Anquises na Ilíada se dá no Canto XX. Homero anuncia o futuro glorioso de Eneias e seus descendentes: Vamos, pois, resguardá-lo da morte, senão Zeus Pai há de irritar-se, no caso de Aquiles o abater. Manda a Moira que ele escape, a fim de que, priva de sêmen, não pereça a estirpe 86 de Dárdano, o rebento que Zeus mais amou entre os que, de mulheres mortais, lhe nasceram. Á linhagem de Príamo o Croníade detesta. Agora, sobre os Troícos, Eneias reinará e os seus filhos e os filhos nascituros deles. (Ilíada, XX, 299-307) Essas palavras são proferidas por Netuno durante o encontro de Eneias com Aquiles, na noite em que Troia foi destruída. Júpiter convoca os deuses do Olimpo e solicita a Mercúrio, Juno, Netuno, Minerva e Vulcano colocarem - se ao lado dos gregos, e Marte, Apolo, Diana, Latona, o Xanto e Vênus a defenderem os troianos (Ilíada, XX, 2440). Apolo incita Eneias a lutar contra Aquiles e o troiano quase é morto por seu oponente, Netuno o salva, garantindo que seu Destino se cumprisse e ele se tornasse um herói, cujos filhos também alcançariam a glória. Descendente do filho mais amado de Zeus, Dárdano, Eneias deveria ser salvo da morte para um dia ser o rei dos troianos. Eneias aparece também na História de Roma (I, 1-2), de Tito Lívio. Nessa versão do mito, o percurso do herói troiano é contado da sua saída de Troia até o dia de sua morte. Após a destruição dessa cidade dois heróis foram salvos, Antenor e Eneias, pois sempre haviam aconselhado o estabelecimento da paz e a devolução de Helena. Ambos passaram por várias aventuras. O primeiro seguiu para o mar Adriático e ao final de sua viagem fundou uma cidade chamada Troia. O segundo dirigiu-se a Macedônia e à Sicília, desembarcou nas terras do rei Latino, com o qual se aliou. Essa união se fortaleceu quando Eneias se casou com a filha do rei, Lavínia, e fundou uma cidade em homenagem a esposa, Lavínio. Desse casamento nasceu Ascânio. O momento de calmaria durou pouco tempo. Os troianos e os aliados do rei Latino tiveram de pegar nas armas contra o rei dos rútulos, Turno, que fora pretendente de Lavínia. Este foi derrotado e se uniu ao rei da Etúria, Mezêncio, que não via com bons olhos a chegada dos troianos e o aparecimento de uma nova cidade, Lavínio (História de Roma, I, 1-2). Diante da ameaça de uma nova guerra, Eneias estabeleceu uma aliança com os aborígenes e lhes concedeu o direito de serem chamados de latinos. A partir desse momento os aborígenes rivalizaram com os troianos pela atenção do rei Eneias. Este confiando no sentimento de lealdade levou tropas aos campos de batalha contra o rei da Etúria e Turno. O líder troiano mais uma vez obteve a vitória, mas realizou seu ultimo feito. “Sejam quais 87 forem às qualidades humanas ou divinas que se lhe atribuam, jaz agora à margem do rio Númico e é chamado Júpiter Indígete” (História de Roma, I, 2). O Eneias de Homero e Tito Lívio possui o caráter de guerreiro mais evidenciado, ele é o defensor da cidade, tanto em Troia, como em Lavínio. Na Eneida isso não é ofuscado, mas o herói assume um papeis complementares mais enfatizados que nessas narrativas, como o de fundador de cidades e de seguidor dos fados. O Eneias de Virgílio passa por uma série de provações para se tornar o herói cumpridor da vontade dos deuses ao seguir para o exílio no mar, junto com seus companheiros71. O Destino de Troia e de Roma estava em suas mãos, pois esse era um plano divino. O percurso da viagem dos troianos exilados, descrito por Eneias no Livro III, pode ser encarado como parte de um ritual de iniciação desse troiano como “herói fundador”. Ele é forçado a passar por uma série de provações que visam testar sua capacidade de realizar a missão dada pelos deuses, passando por etapas que incitam o aprimoramento de certos detalhes da sua personalidade, desenvolvidos nos episódios seguintes, concretizando-se no Livro XII quando vence a guerra contra Turno e conclui a missão de fundar uma nova cidade, Lavínio, e dar origem a estirpe cuja fama e gloria se espalhariam sobre o mundo. Além disso, são os próprios deuses, principalmente Vênus, a mãe do herói, que fornecem auxílio, por meio de adivinhos, sacerdotes, “aparições”, para o cumprimento dessas tarefas. A confiança nas divindades é uma das marcas mais visíveis de Eneias. Durante toda a viagem ele não questiona os deuses, sempre realiza preces e rituais em sua homenagem, demonstrando sua lealdade. No entanto, a confiança nos deuses não é uma das características apenas de Eneias, seus sócios também confiam nos seres divinos, bem como no seu líder o qual seguem do início ao fim da viagem e por ele e pelo Destino profetizado vão à luta, pegam nas armas, oferecem sacríficos aos deuses, enfrentam tempestades, pestes e morte, até a luta final contra o exército de Turno, no Livro XII. O relato de Eneias sobre seus primeiros anos de viagem no Livro III começa com a lembrança do dia em que junto com seus companheiros partem de Atandro, cidade próxima à Troia, onde após a guerra se abrigaram para construir as naus que os levaria ao exílio no 71 Atentar para o resumo do Livro III da Eneida, no capítulo III, no qual percebemos diferenças entre o Eneias personagem da epopeia de Virgílio e do Eneias personagem da tradição literária que acabamos de citar, sobretudo, quando tratamos da Ilíada. Na poesia de Homero ele aparece como o guerreiro que busca a glória no combate, já na versão virgiliana ele é apresentado como um heroi piedoso e fundador de cidades, que foi impedido pelos deuses de morrer lutando na guerra que devastou sua pátria. 88 mar (Eneida, III, 1-7). Lidamos então com uma seção da Eneida que trata especificamente da memória de uma viagem. São lembranças perturbadoras para aquele que as rememora, pois o obrigam a lembrar da morte da sua pátria, daqueles que junto com ela pereceram, como sua esposa Créusa, e dos que seguiram para o barco do Caronte durante a viagem, como o seu pai, Anquises. Eneias é o herói que chora ao se despedir da sua pátria e lamenta a perda dos seus companheiros, mas continua a fazer a vontade dos deuses, prestando-lhes cultos em todos os lugares onde aporta com suas naus. A pietas é uma das principais qualidades de Eneias. Ela é anunciada por Virgílio no Livro I, quando o poeta pede auxílio às Musas para recordar-se das causas da guerra que fez Juno se voltar contra os troianos: “Musa!, recorda-me as causas da guerra, a deidade agravada:/ por qual ofensa a rainha dos deuses levou um guerreiro/ tão religioso a enfrentar sem descanso esses duros trabalhos?72” (Eneida, I, 8-10). No texto em latim a piedade aparece como insignem pietate, que traduzida ao pé da letra é “notável piedade”, entendida como estrita devoção ou obediência aos deuses. Não é por gosto (non sponte) que o herói empreende sua viagem (Eneida, IV, 361), mas contra seu próprio querer (inuitus), pela “vontade dos deuses” (iussa deum), pelas “ordens de cima imperiosas” (imperiis). São os argumentos de Eneias, para Dido quando a encontra no mundo dos mortos e tenta justificar o motivo de tê-la abandonado, para seguir viagem rumo ao destino profetizado pelos deuses (Eneida, VI, 458-464). Vemos na Eneida características de um herói que não apresentava otimismo com relação a sua missão. Eneias antes de ser o herói fundador das bases de um império era um homem, possuía desejos e sentimentos humanos. Foi por respeito ou até mesmo temor aos deuses que se prontificou a cumprir seu Destino. Até aqui destacamos a visão positiva da Eneida de Virgílio73, pautada no anúncio divino da fundação de uma cidade que se tornaria império, cujas bases deveriam ser firmadas por um homem, sobrevivente de uma guerra que durou 10 anos e causou feridas difíceis de cicatrizar, como a morte da sua esposa, Creusa (Eneida, II, 769-770). Ao aprofundarmos nossa análise sobre o relato de Eneias a respeito dos seus primeiros anos de 72 Musa, mihi causas memora, quo numine laeso,/quidue dolens regina deum tot uoluere casus/ insignem pietat uirum, tot ardire labores impulerit (Eneida, I, 8-10). 73 As interpretações da epopeia virgiliana como um poema que revela o pessimismo do autor e do personagem principal se tornou pauta de vários estudos , dentre eles: The two voices of Virgil's Aeneid (A. PARRY); Sementes de Frustração na Eneida (V. SOARES); L'inspiration tragique de l'Enéide (W. S. MAGUINNESS); An interpretation of the Aeneid (W. CLAUSEN); Darkness visible: a study of Vergil's “Aeneid” (W. R. JOHNSON); A outra face de Eneias (W. S. MEDEIROS). 89 exílio no mar encontramos um herói que antes de tudo é um homem, mortal, que carrega sobre os ombros o peso de uma missão dada pelos deuses. Ele cumpre as provações que as divindades colocam à sua frente, mas o seu maior desejo é fixar-se em uma terra. O herói troiano é o cumpridor da vontade dos deuses, o pio. No entanto, isso não quer dizer que ele aceitou de bom grado a sua missão. A voz de Eneias ecoa para contar o passado. O herói troiano é um vencido, que vagou durante anos sem ter consciência clara sobre a sua missão e que transmite na sua fala as incertezas que o perturbam: “Mandas, rainha, contar-te o sofrer indizível dos meus”74 (Eneida, II, 3). No Livro III ele conta suas errâncias de Troia à Cartago e se revela um homem que depositou em cada ponto de parada a esperança de poder enfim se fixar numa terra, mas foram todas tentativas vãs, frustradas pelos deuses. Todo esse relato emana sofrimento. Nos deparamos com a voz de um homem que perdeu sua pátria, a esposa, os amigos e o pai. No primeiro ponto de parada dos troianos, a Trácia, Eneias funda um povoado e realiza todos os rituais necessários para honrar aos deuses. No entanto, um presságio o impele a partir da nova cidade o mais rápido possível. Enquanto desbrava as novas terras, encontra um campo de mirtos e cerejeiras e ao tentar arrancar alguns galhos vê que no lugar da seiva as plantas jorravam sangue. Era Polidoro, o filho de Príamo, que havia sido mandado para essas terras e acabou sendo assassinado pelo rei logo que as noticias sobre o fim da Guerra de Troia se espalharam. Tal como Troia essas terras estavam condenadas à destruição, pois a lei da hospitalidade havia sido desrespeitada75. Sabendo disso, o herói reúne seus companheiros, prestam as honras funérias ao compatriota morto e novamente se lançam ao mar (Eneida, III, 13-68). Uma nova tentativa de fundar outra cidade, dessa vez chamada de Pérgamo, se dá em Creta, quando os troianos exilados acreditam ter encontrado a antiquam matrem, profetizada pelo oráculo de Apolo, em Delos, como o local no qual deveriam erguer sua nova pátria. Essa também é destruída pela vontade dos deuses. Um ano pestífero (Eneida, III, 94-144) deixa os homens e a vegetação doentes e destrói o novo burgo. Em Butroto Eneias não funda uma cidade, mas encontra uma em ascensão, construída pelo adivinho Heleno, e pela esposa do falecido Heitor, Andrômaca. Epiro foi 74 Infantum, regina, iubes renouare dolorem (Eneida, II, vv.3). Conforme destacamos no capítulo II, ao ter abrigado Páris, após o rapto de Helena, Príamo desrespeitou Zeus, o deus da hospitalidade, condenando assim Troia à destruição. 75 90 construída à imagem e semelhança de Troia, mas tudo nela emanava lembranças das mortes causadas pela guerra. Por um lado, Andrômaca ainda chorava pela morte do seu esposo e do seu filho, Astianax (Eneida, III, 302-332). Do outro lado, Eneias e seus companheiros se animaram com a visão da cidade (Eneida, III, 351-352). As ultimas palavras de Eneias para Heleno e Andrômaca expressam um elogio por terem encontrado a paz e não precisarem vagar por terras desconhecidas (Eneida, III, 493-496), revelando o seu descontentamento com o exílio, embora tenha se comprometido a seguir o Destino que os deuses haviam profetizado. O Destino (fatum) é uma constante na Eneida. Do Livro I ao III o termo fata76 aparece várias vezes designando as profecias dos deuses para os homens. As divindades são os guias de Eneias e seus sócios no exílio, aparecendo em sonhos, inspirando oráculos, enviando sinais divinos, eles não desamparam o herói e seus companheiros, piedosos e seguidores do fatum. Segundo Robert Coleman (2009, p.143) este termo se refere à vontade arbitrária dos deuses e foi bastante explorado por Virgílio. Podemos perceber isso nas primeiras linhas do poema: “as armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Troia/ por injunções do Destino77, instalou-se na Itália primeiro/ e de Lavínio nas praias78” (Eneida, I, 1-3). Serão as “injunções do Destino” que guiarão Eneias e seus companheiros até a Itália e permitiram que seu descendente, Ascânio, funde Alba Longa e que mais tarde sua gens obtenha glória. Essa concepção do fatum como vontade dos deuses também pode ser observada quando os troianos chegam às praias de Cartago, após serem salvos por Netuno de uma tempestade causada por Éolo. Vênus pergunta ao seu pai, Júpiter, se ele havia mudado de ideia quanto ao Destino dos troianos exilados: Ó tu, que o destino dos homens, dos deuses diriges do alto do teu poderio, e os espantas com raios ardentes: em quê te pôde ofender meu Eneias, em quê meus troianos para, depois de vencerem trabalhos sem conta, os caminhos 76 Os derivados desse termo aparecem várias vezes do Livro I ao III da Eneida relacionada a vontade dos deuses: Fato (I, 1-4) Fata (I, 205); Fatorum (I, 261); Fati (I, 299); Fata (I, 382); Fata (II, 34); Futuris (II, 246); Fatis (III, 9); Fatis (III, 182); Fata (III, 337); Fata (III, 444); Fata (III, 494). Sobre o modo como o Destino foi explorado por Virgílio ver Coleman (2009, p. 143-168). 77 Grifo da autora. 78 Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris/Italiam, fato profugus, Laviniaque venit/ litora. (Eneida, I, 1-3) 91 de acesso a Itália por mares e terras lhes sejam vedados?79 (Eneida, I, 229-233) Nessa declaração Vênus afirma que Júpiter possui o poder de definir o Destino dos deuses e dos homens. A promessa de glória do Império Romano era o que consolava a mãe de Eneias, o povo descendente da gens do herói se tornaria o senhor dos mares e da terra (Eneida, I, 234-237). Júpiter acalma sua filha e responde que “imutáveis encontram-se os Fados80 [...]. Mudança não houve no meu pensamento81” (Eneida, I, 257, 260). Ou seja, era da sua vontade que dependia o desenrolar dos acontecimentos no mundo dos homens, do futuro de Eneias. No Livro II (54) também verificamos essa relação. Quando Eneias descreve a noite em que Troia foi destruída, lamenta e afirma que foi pelo fata deum (vontade dos deuses) e pela ingenuidade dos seus habitantes, por terem aceitado o cavalo dos gregos, que sua pátria deixou de existir. A intervenção divina era característica da épica, evocando um mundo onde os deuses e os homens estavam próximos uns dos outros. Tito Lívio fez uma declaração sobre isso: No que se refere aos acontecimentos que precederam ou acompanharam a fundação de Roma, a essas tradições mais ilustradas por lendas poéticas do que apoiadas no testemunho irrecusável da história não pretendo afirmá-las nem contestá-las. Concede-se aos antigos a permissão de introduzir a interferência divina nas ações humanas, para tornar mais veneráveis as origens das cidades. E se alguma nação possui o direito de santificar a sua origem relacionando-a com a intervenção dos deuses, a glória militar do povo romano é de tal ordem que, quando ele atribui sua origem e a de seu fundador ao deus Marte, de preferência a qualquer outro, aceitem as demais nações essa pretensão com a mesma tolerância com que aceitaram seu poderio. (Prefácio, História de Roma) Tito Lívio não se dedicou a tecer uma crítica aos relatos poéticos, visto que a função destes era servir de deleite aos seus ouvintes e mais que isso de tornar grandiosas as histórias sobre a fundação das cidades, cabendo aos romanos o direito legítimo de fazer o uso dessas narrativas, mais que qualquer outro povo, como podemos observar no final 79 O qui res hominunque deumque/ aeternis regis imperiis et fulmine terres,/ quis meus Aeneas in te committere tantum,/ quid Troes potuere, quibus, tot funera passis,/ cunctus ob Italiam terrarum clauditur orbis? (Eneida, I, 229-233). 80 Manent immota tuorum/fata tibi. (Eneida, I, 257) 81 Neque me sententia vertit. (Eneida, I, 260) 92 desse trecho. Ao analisar essa passagem Coleman (2009, p.143-147) afirma que o impacto da presença dos deuses variava de acordo com o grau de crença do leitor na sua existência. Onde a narrativa está ligada a eventos históricos reais sua interpretação pode ser dependente da crença. A alegação de que Marte foi o pater dos romanos se tornaria trivial caso não houvesse alguém que acreditasse em uma realidade onde isso fosse possível. Esses mitos permaneceram como a forma poética mais eficaz de retratar a presença divina nos assuntos humanos. Portanto, não é por mera coincidência ou apenas efeito retórico que Virgílio inseriu na Eneida a participação divina nos assuntos do mundo dos homens, característica das épicas dos poetas que o antecederam, e de alguns ritos, principalmente aqueles relacionados à pax augusta. Na Eneida a piedade romana foi configurada na era heroica pela piedade dos latinos e arcadianos e, sobretudo, pelos troianos exilados. Percebemos na Eneida preceitos morais que possivelmente regiam a sociedade romana. O homem devia respeitar os deuses os quais deviam honrar e prestar cultos, o que revela a importância da realização das obrigações religiosas, exemplificadas pelas ações de Eneias, que se manteve obediente e temente aos deuses do início até a conclusão da epopeia. A fundação de Roma havia sido permitida pela vontade dos deuses e pelo respeito do fundador das suas bases às divindades, principalmente aquelas que o acompanharam e o protegeram na sua jornada, Júpiter, Vênus e Apolo. As raízes romanas estavam ligadas ao mais piedoso de todos os heróis troianos, Eneias, o fundador de Lavínio. Destacamos aqui os principais feitos heroicos de Eneias como fundador de cidades, no Livro III da Eneida, bem como a importância do respeito e busca de harmonia dos homens para com os deuses, representada pelo comprometimento do heroi com os desígnios do fatum. A seguir continuaremos nossa discussão com uma análise sobre como as características do perfil heroico de Eneias podem ser trabalhadas como elementos auxiliares ao entendimento do cotidiano dos cidadãos de Roma, no século I a. C., e mais precisamente aos cultos públicos. 3.2. Pietas, virtus e religio: da Eneida aos cultos públicos de Roma Eneias é um herói romano. Seus feitos heroicos se destacam no desenrolar da Eneida e podem ser entendidos como evidências das características da moral e dos valores 93 que cabiam aos cidadãos romanos cultivarem, principalmente no que tange às práticas religiosas públicas. Ao tratar de “religião romana” devemos estar atentos que seu uso sem uma prévia explicação pode tender a uma visão simplista desse complexo sistema de crenças. Não estamos lidando com uma religião que possuía um conjunto de dogmas bem estruturados reunidos em um livro, como a Bíblia dos cristãos, ou de uma forma única de vida religiosa compartilhada por todos aqueles que se identificavam como romanos. Rosa (2008, p.77-78) reitera que um dos maiores problemas no estudo de crenças religiosas do passado é reconhecer que nossas ideias e atitudes são históricas e culturalmente determinadas, e não um dado natural. “Diferentes religiões têm diferentes modos de expressão e princípios, e o nosso próprio enquadramento religioso jamais é objetivo, muito menos neutro” (ROSA, 2008, p.78). A “religião romana” corresponde a uma abrangência espaço-temporal significativa e não deve ser tratada de forma homogênea82. Isso exige que nós tenhamos bem definidos os aspectos, o lugar e o tempo que pretendemos direcionar nossa análise. Concentraremos nosso estudo na cidade de Roma, século I a. C., no período de governo de Otávio Augusto e da publicação da Eneida. Levando em consideração a mensagem da epopeia de Virgílio sobre o nascimento de uma cidade cuja “fama há de aos astros chegar83” (Eneida, I, 287), tendo suas bases fundadas por um sobrevivente da Guerra de Troia, procuraremos perceber como as características desse personagem podem ser entendidas enquanto elementos relacionados aos cultos públicos da cidade de Roma, aos princípios da moral que regia a vida cívica dessa cidade. No século I a. C. o autor romano Varrão84 afirmou existirem três formas de teologia, ciência dos deuses: a mítica; a física ou natural; e a civil (Civ. Dei VI, V, 1). A primeira corresponderia aos jogos de palavras e ficções criadas pelos poetas, cuja função era de causar deleite e divertir o público, mas representavam também um atentado à moralidade e à natureza dos deuses, pois nela se atribuíam aos deuses as mais terríveis injúrias, como roubo, assassinato e o adultério. A segunda estava ligada à atividade filosófica, muito elogiada pelo autor romano. Ela se dedicava ao estudo da essência dos deuses, suas 82 Sobre a complexidade do termo “religião romana” ver Bondioli (2012, p. 31-44). Fama qui terminet astris (Eneida, I, vv.287). 84 A obra de Varrão não chegou até nós, temos conhecimento sobre suas assertivas através das extensas citações de Agostinho de Hipona, autor do século IV d.C., em sua obra Cidade de Deus. 83 94 funções, qualidades, se eram eternos ou não, mas apesar do seu rico conteúdo encontrava-se limitada aos muros das escolas, ao contrário da teologia mítica, considerada mais “mentirosa”, no entanto, mantida livre nas ruas das cidades. A terceira dizia respeito ao que os cidadãos e principalmente os sacerdotes deveriam conhecer e pôr em prática no cotidiano das cidades. Estava ligada aos cultos públicos, rituais e sacrifícios que todos os cidadãos eram obrigados a conhecerem. Jörg Rüpke (2007, p.125-130), ao analisar as três esferas de compreensão do divino de Varrão, afirma que elas eram autônomas e, embora não fosse uma regra, podiam interagir. Todas elas eram consideradas visões legítimas sobre o sagrado. Além disso, não havia uniformidade nas formas como os romanos cultuavam seus deuses, embora algumas fossem mais aceitas que outras. No entanto, isso não significa que não existia um conjunto de práticas religiosas características do culto público. John Scheid (2003, p.117-118) destaca que quando nos referimos aos cultos públicos (sacra publica), de Roma durante o governo de Augusto, devemos ter em mente que eles se estendiam ao princeps e à sua família. A “religião da pólis” estava ligada á estrutura sócio-política, seus cultos eram presididos por uma elite cívica, que possuía autoridade sobre as práticas religiosas e os cidadãos. A sacra publica romana era “política e politizada”. Isso se explica pelo fato de que seus sacerdotes eram eleitos através de votação, assim como os magistrados. A diferença é que os cargos religiosos eram vitalícios. O colégio pontifical e o augural eram ferramentas do Senado, só entravam em ação quando solicitados. Essa situação perdurou até Otávio Augusto assumir o governo de Roma, visto que ele reuniu em sua pessoa o poder de várias magistraturas, dentre elas a de pontífice máximo, membro do colégio augural e chefe militar, que até então era vetado a qualquer cidadão. Tito Lívio, autor romano do século I a. C., discutindo sobre seu tempo articulou a questão da tradição e da prosperidade alertando para a ameaça da degeneração moral dos cidadãos. Do seu ponto de vista conforme Roma expandiu seu território declinou a moral dos cidadãos fazendo com que cada vez mais houvesse um distanciamento das tradições ancestrais, o que representava um risco à cidade (História de Roma, Prefácio, 9). Temos de levar em consideração no argumento de Lívio que ele escreveu em um momento conturbado da história romana, logo após as guerras civis que deixaram o Estado em uma situação caótica. Encontramos também na literatura essa preocupação com o afastamento 95 do povo romano das tradições ancestrais. A Eneida apresenta uma narrativa sobre Eneias, um troiano que se tornou ancestral dos romanos graças à vontade dos deuses e por ter sempre lhes prestado culto. Essa obra pode ser entendida como uma poesia alicerçada em questões políticas e religiosas que ligava acontecimentos contemporâneos da época na qual foi escrita a acontecimentos passados, sobretudo, relacionados à importância dos ancestrais romanos para a fundação de Roma e à manutenção da pax deorum. Na epopeia virgiliana as “profecias” são uma constante, avisos sobre o futuro de Roma apontam para a grandiosidade do império alcançada durante o governo de Augusto. No entanto, não se trata apenas de destacar o papel desse governante, mas também de colocar em evidência a importância dos ancestrais romanos, bem como suas qualidades, principalmente a pietas, a fim de que os homens do presente valorizassem e adotassem para si as tradições e qualidades dos homens do passado. Como aponta Rüpke (2010, p.230232), apesar de fazer parte da propaganda política do princeps ele ser apresentado como o restaurador das “tradições romanas”, mos maiorum, esse apelo só foi possível devido à presença permanente dos antepassados no cotidiano do cidadão romano, através de estátuas, rituais e da literatura, por exemplo. Coleman (2009, p.145) destaca que a missão de Eneias era levar os deuses domésticos, os Penates, da sua pátria para o Lácio. Mas isso não quer dizer que o Lácio não possuía suas próprias divindades. Vários deles são mencionados na epopeia virgiliana, todos ainda adorados na época de Virgílio. Fauno aparece na Eneida como um deus local da Itália, ele é o pai de Latino (Eneida,VII, 81); e é para esse deus que Turno reza pedindo que o ajude a vencer Eneias (Eneida, XII, 766-779). Além disso, cerimônia de abrir e fechar o portão de Jano já se encontrava estabelecido no Lácio antes da chegada dos troianos (Eneida, VII, 610) e é para essa divindade, juntamente à Diana e Apolo que Latino dirige orações no Livro XII (198). Os troianos também têm as suas próprias divindades na Eneida. Cibele é a deusa frígia85 que no Livro IX (80-110) intervêm, juntamente com Júpiter, para salvar os navios troianos de um incêndio causado por Turno, transformando-os em Nereidas, ninfas do mar. Muito mais importantes são Vesta e os Lares e Penates, pois estes são os deuses que Eneias trouxe com ele de Troia para o Lácio. Vesta aparece pela primeira vez junto com Fides na profecia de Júpiter sobre o futuro de Roma (Eneida, I, 85 A região da Frígia correspondia a Anatólia, onde se localizava Troia. 96 292), mas sua origem troiana é explicitada no Livro II (293-296), quando ela e os Penates são confiados a Eneias pelo fantasma de Heitor. Coleman (2009, p.146-147) observa que a presença dos Penates é frequente na epopeia de Virgílio. Eles possuíam um lugar de honra ao lado do grande altar no palácio de Príamo (Eneida, II, 514) antes da destruição de Troia e, uma vez confiados a Eneias por Heitor, passam a ter o estatuto de talismã para lembrar o herói da sua missão e garantir a sua segurança na realização desta. Essas divindades aparecem para Eneias, em uma visão, durante a praga em Creta (Eneida, III, 148-171) para avisá-lo de que seu Destino se concretizaria na Hespéria (Itália). Essa é a sua única intervenção direta no poema e também a única em que são equiparados a outros deuses, visto que são reconhecidos por Eneias pelas suas feições (Eneida, III, 174-175). Esses deuses formariam a religião da nova cidade que seria fundada no Lácio, alicerçada na pietas do herói troiano e dos seus companheiros exilados. Paulo Martins (2011, p.16-17) ao analisar a pietas na sociedade romana da época augustana afirmou que esse conceito significava a valoração das coisas, principalmente o amor pela pátria e pelos ancestrais (Manes, Lares, Penates), associando-se ao domínio político por ser uma das bases da política de Otávio. Vinculava-se diretamente ao termo uirtus que designava as qualidades que um homem romano deveria possuir, como o gosto pela prática do “bem” e da “retidão”. É um conceito bastante complexo, mas que tinha grande importância, pois foi representado em diversos monumentos, além de ser um objeto de culto associado a honor. Vale ressaltar ainda que em Roma não existia distinção entre moralidade e política, pois elas se encontravam entrelaçadas nas práticas dos cidadãos. A honor e a gloria eram termos que estavam ligados a virtus, todos eles entendidos como conceitos políticos. Se distinguiam pelo primeiro ser um pressuposto de todo vir honestus (homem honrado, nobre, distinto) e o segundo do vir magnus (homem de elevado status social e político). Era digno de glória aquele que fosse amado pela multidão, pois ele inspirava a fides, obtida pela realização de boas ações e prestação de serviços a res publica. Isso explica a importância da divulgação da imagem das ações dos homens que promoveram bens notáveis à sociedade romana, seja na arquitetura ou na literatura (MARTINS, 2011, p.18). No caso da literatura romana, por exemplo, Cícero, autor do século I a. C., escreveu sobre a pietas no seu tempo e nela encontrou a explicação para o 97 sucesso romano, no seu De haruspicum responso86, afirma que o fator militar não foi o responsável pelo domínio romano sobre o mundo, mas sim o fato de fazerem um bom uso da pietas e da religio87, características próprias desse povo. Além disso, nesse texto encontramos articulada a questão da tradição religiosa romana no cenário político do final da República, que nos permite ter conhecimento sobre as práticas religiosas na sociedade romana desse período. O respeito às tradições e aos cultos dos deuses são reconhecidos por esse autor como valores que norteavam a vida dos cidadãos romanos88. Martins (2011, p.154-155) destaca que o culto dos antepassados ocupava um lugar privilegiado na sociedade romana da época augustana. No ambiente da domus junto aos manes, os ancestrais eram cultuados. Quando um cidadão notável romano morria era feita uma máscara de cera, para que a partir dela fossem feitas outras imagens mais duradouras, de materiais como mármore ou bronze, ou simplesmente para ser colocada junto às imagens dos ancestrais da sua gens. Esse ritual visava preencher o vazio deixado pela ausência física do morto no seu ambiente mais íntimo, sua casa. A máscara de cera era um objeto de preservação da memória. A história da gens se amplificava com o acúmulo de imagens daqueles que fizeram parte do seu passado. Esse tipo de representatio não se restringia apenas ao espaço privado, mas podia extrapolar a domus a fazer parte da esfera pública. O direito de cultuar imagens era resguardado aos patrícios, somente eles podiam realizar os gentilica funera, rituais funerários públicos, se tornando a “efetiva extrapolação da imagem privada ao âmbito público” (MARTINS, 2011, p.156). Rosa (2009, p.78-85) ao discutir sobre a relevância da religio na sociedade romana da época de Augusto, afirma que as estátuas e outras imagens de divindades eram, mesmo para os mais céticos, símbolos do seu poder. Elas podiam ser encontradas em vários lugares: as casas, domus, possuíam pequenos altares dedicados ás divindades domésticas; no campo existiam santuários dedicados a divindades locais; nas cidades havia templos modestos e bem adornados, os quais eram residência terrena dos deuses e locais de cultos. 86 Nesse discurso Cícero lamenta o exílio por tê-lo obrigado a se afastar da sua casa, que para ele era o símbolo de tudo o que o cidadão romano significa, em decorrência do seu banimento de Roma decretado por Clódio, um funcionário de César incumbido de cuidar dos interesses do ditador na cidade quando decidiu se juntar às legiões na Gália, no ano de 58 a.C. 87 É importante destacar que na época de Cícero o termo religio não possuía a mesma conotação que na modernidade, significava um tipo de gratidão do homem para com os deuses (FINNIS, 2011, p. 1-14). 88 Para uma discussão aprofundada sobre o De haruspicum responso, de Cícero ver Carpinetti & Corrêa (2013, p.08-22). 98 Quando falamos de "religião romana" nos referimos a uma categoria bastante complexa, que compreende um grande número de divindades, práticas, instituições e crenças. A religio estava entrelaçada à vida do cidadão romano, disseminada pelas domus e na urbs, encontrava-se relacionada ao respeito e cultos das divindades, assim como aos antepassados. A casa era considerada um santuário, lar dos Lares e Penates, onde a função de sacerdote era exercida pelo pater familiae. Em um altar (ara) de pedra, que ficava próximo à lareira, eram realizados sacrifícios que visavam homenagear as divindades e os antepassados. O símbolo que melhor representava a união dos membros das gens era a lareira, ela era o coração da domus, onde ardia o fogo sagrado, emblema de estabilidade, imutabilidade e permanência. De modo análogo, no centro da urbs havia uma lareira circular que abrigava o fogo sagrado de Vesta, que nunca devia ser apagado, pois enraizava a morada dos seres humanos na terra e simbolizava a perpetuidade da res publica. A defesa das lareiras familiares e da ara dos deuses, em muitos momentos, levou os romanos a empunharem suas armas e marcharem para a guerra. A “religião romana” estava diretamente ligada à cidade, se baseava na exaltação da liberdade dos seus cidadãos, principalmente no que tange à relação com o plano divino. Os deuses romanos não exigiam dos seus adoradores uma submissão radical a uma autoridade religiosa. Podemos dizer que a cidade preconizava a libertas89 do cidadão, pois estava aberta a várias formas de religiosidades. “O único "artigo de fé" da religião romana é a libertas. A racionalidade cívica era a garantia da liberdade e da dignidade dos membros da urbs, humanos e divinos” (ROSA, 2009, p.86). Na epopeia virgiliana encontramos descritos alguns dos preceitos morais e das condutas religiosas que os cidadãos de Roma deveriam possuir. Não pautamos nossa análise somente em uma visão positiva do herói da Eneida, mas elencamos também o pesar que esse personagem sentia por ter de abandonar tudo ao que se prendia antes e durante o exílio. Percebemos que a epopeia de Virgílio não se trata apenas de uma obra que elogia a figura do princeps, apesar de ter sido escrita a seu pedido, mas da relação de gratidão que os cidadãos romanos mantinham para com seus deuses, desde antes da fundação da sua cidade. Ela mostra os sacrifícios que os 89 O princípio fundamental pelo qual a “religião romana”, pelo menos no período clássico, se baseava era a racionalidade, que garantia aos cidadãos a liberdade e a dignidade. Logo verifica-se em todo o Império a existência não de apenas um tipo de religiosidade, mas sim de vários, resultado, principalmente, da expansão do seu território. Ver Rosa (2008. p.85-86). 99 antepassados dos romanos, os troianos, tiveram de realizar para alcançar a glória e a harmonia com seus deuses. O fundador de Roma, Rômulo, descendia da gens cuja história estava marcada pela fúria das divindades. A destruição de Troia foi resultado do desrespeito do seu primeiro rei a Zeus, talvez para mostrar que mesmo a soberania de um monarca não era párea para a força das deidades. Os deuses salvaram da destruição da cidade o descendente do filho mais estimado de Zeus, Dárdano, por ter sempre honrado a pietas. Porém, foi necessário que esse homem atravessasse mares e terras em busca de um lugar distante e desconhecido, não profanado pela desonra aos deuses, a Itália. Nesse local os deuses troianos foram bem recebidos pelas divindades nativas, garantindo o sucesso da nova cidade que seria fundada, livre de tudo o que levou Troia à destruição. Podemos dizer que o exílio aparece na Eneida como sinônimo de liberdade e de purificação daqueles que enfrentaram os anos de desterro. Mesmo descendendo do filho preferido de Zeus, os sobreviventes da Guerra de Troia tiveram de fazer por merecer a salvação encontrada na Itália, enfrentando várias provações, que serviram como aprendizado ao longo da sua viagem. A experiência do exílio, principalmente nos primeiros anos quando vagaram pelos mares à procura de um espaço para se fixar, levaram os troianos a passarem por situações que o transformaram em um povo piedoso, virtuoso e glorioso. Eles cumpriram suas obrigações religiosas, civis e militares, realizando sacríficos aos deuses, fundando cidades, mesmo que elas não tenham prosperado, e indo à guerra, conforme a descrição do próprio Eneias, no Livro III. Para nós, todos esses acontecimentos funcionaram como exemplos caros aos personagens no desenrolar da epopeia, pois toda a experiência adquirida foi necessária para enfrentar os novos desafios que surgiram, até a última batalha, no Livro XII, contra Turno. Na Itália os troianos tiveram de brigar para se estabelecer na sua nova terra. A Eneida revela assim a importância do solo, da patriae e da vida cívica para os romanos. 3.3. Religião e cidade em Roma e na Eneida Nessa seção nos dedicaremos a abordar a importância da patriae para os romanos da época de governo de Otávio Augusto e da escrita da Eneida. Para isso, trataremos de temas relativos aos rituais cívicos praticados nos ambientes públicos de Roma. De acordo com o 100 Shorter Oxford Dictionary o termo cívico é definido como “adequado para um cidadão ou cidadãos, ou ainda, relativo à cidadania, em oposição ao militar, eclesiástico, etc”. Esse conceito foi empregado por Adam Ziolkowski (2013, p.389) para o estudo dos rituais nos espaços públicos e privados da Roma republicana e imperial e de acordo com seu ponto de vista essa definição teria feito pouco sentido para os romanos. O autor justifica tal afirmativa pelo fato que nessa sociedade a vida cívica e o culto público, comandados mais pelo Estado que pelos sacerdotes, faziam parte de um todo inseparável. Tomaremos aqui de empréstimo a análise desse autor sobre como a religião e a política se entrelaçavam nos rituais cívicos da capital do império, a fim de ampliar nossa discussão em torno da trajetória política, militar e religiosa do personagem principal da Eneida, Eneias, documento através do qual podemos identificar como essas questões estavam enraizadas na Roma augustana. Do ponto de vista de Ziolkowski (2013, p.394-403) a cidade Antiga era a comunidade dos deuses e dos homens, consequentemente o ritual cívico incluía elementos culturais. Em Roma todo ato político era significativo e estava relacionado diretamente a um ritual. Claúdia Beltrão da Rosa (2010, p.317) ao analisar a importância do solo para os romanos no período imperial observa que um dos aspectos mais relevantes no processo de integração política e territorial era a questão da cidadania romana. Era esperado o reconhecimento dos deuses romanos no momento que um indivíduo recebia o direito à cidadania romana, logo “aqueles que contavam como ‘romanos’ em termos cívicos, também contavam como ‘romanos’ em termos religiosos” (BEARD, NORTH & PRINCE, 1998 apud. ROSA, 2010, P.317). As divindades das mais variadas instâncias, lugares, atividades e grupos humanos, possuíam um papel de grande relevância nas relações de poder existentes entre as cidades imperiais, desde que os homens participassem dos seus cultos. Essa era a condição para a preservação da pax deorum, da concordia cívica, bem como da integração das províncias, levando a uma integração dos cultos que possuíam alguma ligação com o poder imperial. Este por sua vez era consolidado através da construção de altares em homenagem a Roma e a Otávio Augusto e pela realização de um juramento de fidelidade anual ao imperador (TÁCITO, Ag., 21, PLINIO, Ep., 10.35-36 apud ROSA, 2010, p.193). Rosa (2010, p.193-194) frisa que os deuses eram uma parte integrante da urbs. O calendário festivo designava os dias regulares para as comemorações religiosas, no entanto 101 a presença das divindades não era uma garantia, pois elas respeitavam algumas leis físicas de tempo e espaço. Sua presença num ritual não podia ser considerada certa de imediato, por mais importante que fosse o grupo que a invocava. Era necessário que a deidade fosse convidada a participar do ritual, de um festival ou ser testemunha de pleiteantes. Isso implicava que os homens se esforçassem para atrair os deuses. A religião romana pode ser classificada como uma “religião do lugar”, centrada e localizada na cidade de Roma e isso parece ter sido um fator que dificultou a expansão dos seus cultos pelas províncias imperiais, que eram anexadas ao domínio romano. Essa relação da religião ao solo pode ser verificada nos mitos e nas regras que designavam o lugar ideal dos objetos de culto em caso de sua transferência para outro local, na qual a deidade era representada pelo deslocamento dos objetos de seu culto. No entanto, se tratando de uma religião cuja centralidade estava em Roma, onde deuses estavam ligados a lugares e objetos específicos, exportar um culto para outras cidades poder ter causado algumas dificuldades. De acordo com Ziolkowski (2013, p.468-469) havia uma correlação entre o número e diversidade de habitantes da cidade e a heterogeneidade das suas divindades, bem como de seus cultos. Até o período imperial Roma viveu no auge da sua pluralidade cultural e religiosa. A percepção da capital como a casa de todos os deuses contidos no imperium romano e da imagem de todos eles como imigrantes em Roma se repetem como um tópos da literatura divulgada a partir de Augusto. Nem os novos cidadãos, nem os imigrantes sem cidadania romana, estavam dispostos a abandonar seus deuses e renunciar suas próprias tradições religiosas. Eles traziam os deuses de suas respectivas pátrias (patrii di) e necessitavam de abrigo em Roma. Além disso, comerciantes romanos e soldados levavam constantemente para sua cidade divindades que encontraram em terras distantes. A liberdade da comunidade para adotar deuses estrangeiros parece ter sido levada mais longe na capital do Império Romano que em outros lugares. Da República ao Império havia nessa cidade santuários dedicados as divindades recém-chegadas, movimento que acompanhou seu crescimento e favoreceu o desenvolvimento de sua influência em várias regiões. O pomerium definia a linha interna da ager effatus, um espaço demarcado pelos augúrios a partir dos auspícios retirados do voo dos pássaros e cujo perímetro exterior, a cerca de 6 milhas da cidade romana era simbolizado por um amontoado de pedras (Varrão, De língua, 5.33). A principal função desses limites estava na separação das esferas da domi 102 (‘em casa’, na cidade) e militae (zona de guerra). Ao exército não era permitido caminhar no solo do pomerium, bem como a assembleia centuriata, que era um corpo de cidadãos militarizados, às vezes chamado de exercitus (exército), seu lugar era fora da cidade, nos Campos de Marte. Vale ressaltar que a tríade Capitolina, Júpiter Juno e Minerva, foram um símbolo da República e, em menor medida, do Império, seu significado religioso estava intimamente envolvidos em rituais políticos de Roma. Há quem defenda também que o pomerium serviu como um separador de deuses romanos e estrangeiros, com apenas os autorizados a receber culto público dentro do perímetro sagrado da cidade (ZIOLKOWSKI, 2013, p.464). Sobre os deuses romanos Beard, North & Prince (1998, p.41) observam que é possível fornecer um esboço do seu lugar na vida de Roma: intimamente envolvida na atividade política e militar da cidade, eles eram vistos como forças fora da comunidade humana com a qual o homem podia negociar e se comunicar através de regras, tradições e rituais. As atividades dos líderes da cidade em nome dela não deviam ser realizadas em negociações e ações conjuntas com os deuses, assim a benevolência divina foi essencial para o sucesso do Estado. A história de Roma, em outras palavras foi determinada pelas ações de homens e deuses em conjunto. Uma parte fundamental da relação entre homens e deuses era a realização de sacrifícios. Muitas das informações sobre esses eventos foram obtidas através de vestígios arqueológicos e da literatura. Em algumas ocasiões o animal que seria sacrificado era testado e verificado para garantir que era adequado, por isso era preciso o controle sobre a escolha do sexo, idade e cor, em relação à divindade homenageada e a ocasião em questão. Depois de uma procissão para o altar e dos ritos preparatórios era realizada uma oração na qual o destinatário divino era nomeado. Em seguida, a vítima era “consagrada” com vinho e uma refeição colocada próxima a ela. Sua morte deveria ocorrer por um único golpe, suas entranhas eram examinadas pelo haruspice, que verificava se os augúrios eram favoráveis, o animal era então cozido e comido pelos adoradores. Se o exame mostrasse sinais desfavoráveis o ritual era repetido e outras vítimas poderiam ser sacrificadas. Todo o processo era conduzido de acordo com regras e tradições, qualquer erro ou infortúnio, a vítima fugir ou lutar ou as entranhas caírem no chão, por exemplo, era considerado um mal presságio (BEARD, NORTH & PRINCE, 1998, p.36). 103 No Livro III da Eneida encontramos referências sobre a importância da manutenção da pax deorum através da realização de sacrifícios de animais. Em vários dos lugares onde Eneias e seus companheiros aportam são realizados esse tipo de ritual em homenagem aos deuses, principalmente para Netuno, Apolo, Júpiter e Vênus, os principais protetores desses homens ao longo da epopeia, em busca de bons presságios. Na Trácia, Eneias funda um povoado chamado Eneia, mas reconhece que ele não foi abençoado com prósperos auspícios (Eneida, III, 16-17). A ausência de boas previsões divinas significa que essa terra não renderia bons frutos, mas mesmo assim os troianos exilados insistem em ficar nessas paragens até o momento em que recebem um segundo aviso para saírem da ilha 90. Em Delos, quando os troianos se preparam para partirem em direção a Creta realizam novos sacrifícios, em altares dedicados aos deuses Netuno e Apolo imolam um touro para cada um desses deuses (Eneida, III, 118-119), buscando a proteção dessas divindades ao longo do seu percurso. Mais à frente, quando aportam na Ilha das Harpias os troianos sacrificam touros e cabras em homenagem aos deuses (Eneida, III, 219-224). No Ácio, onde participam dos jogos ilíacos, realizam rituais de sacríficos em homenagem a Júpiter (Eneida, III, 278-279). Percebemos nessas passagens a relação de troca que os homens possuíam para com os deuses, além do destaque às deidades protetoras do Império, principalmente Júpiter, o pai de Rômulo, fundador de Roma, e Vênus, a mãe de Eneias e da gens Iulia, que desempenhavam o papel de guarda da linhagem que daria origem aos romanos ao longo da epopeia, pois no decorrer da narrativa são mais enfatizados. Os deuses, em especial Júpiter, Vênus e Apolo, interferem na vida dos exilados de Troia através de aparições, oráculos e em fenômenos da natureza, guiando-os até a Itália e promovendo vitórias nas batalhas que enfrentam no desterro, principalmente, conforme eles se dedicam a seguir seus conselhos e oferecer-lhes as devidas homenagens. Na Eneida os deuses não interferem apenas nos assuntos relacionados à religião, eles interagem com os homens em várias instâncias do seu cotidiano, como a guerra e a política. Foi pela garantia dos seres divinos que Eneias se tornou o líder dos sobreviventes da guerra de Troia, são eles também que os protegem durante as tempestades e guerras causadas também por interferências dos imortais, mais especificamente por Juno. Na epopeia virgiliana questões 90 Enquanto fazia uma caminhada pela ilha, encontra o corpo de um dos filhos de Príamo, Polidoro, que adverte Eneias para que fuja dessa terra o mais rápido possível, pois ela estava condenada a destruição, tal como Troia (Eneida, III, 37-46). 104 religiosas, políticas e militares se entrelaçam. A obediência de Eneias aos deuses demonstra a importância da observância religiosa dos romanos como garantia da manutenção da pax. Além disso, essa poesia enaltece o passado glorioso de Roma, marcado pelos sacrifícios do herói que levou sua pátria, deuses e compatriotas de Troia á Itália abdicando da sua própria vontade, principalmente de morrer lutando na Guerra de Troia e de se fixar em alguma das ilhas pelas quais aportou durante o desterro, como aconteceu em Cartago, onde encontrou o amor da rainha Dido. Tudo isso em beneficio da vontade dos deuses e da missão que lhe deram de fundar as bases de um futuro império. A Eneida traduz a possibilidade de reestruturação de uma cidade, mesmo após um período de caos – no caso de Troia, através da sua transferência para a Itália, e da Roma augustana, através da pacificação promovida por Otavio Augusto ao fechar os portões do templo do deus Jano, inaugurando o período de pax. Os sacrifícios que os troianos exilados realizaram em homenagem aos deuses podem ser vistos como forma de promover a transformação de um espaço anteriormente alheio ao seu conhecimento em um espaço conhecido e experienciado, pela busca de bons auspícios. O exílio na Eneida é uma experiência com o divino. Os troianos em todo o seu percurso, descrito no Livro III, se deparam com situações que testam sua fidelidade aos deuses sempre partindo, de onde encontram terra firme para repousar ou encontrando ambientes hostis, são levados pelos presságios divinos a seguirem para outras paragens. A deusa mãe, Vênus, Júpiter, Apolo e os Penates são os guias dessa viagem e Eneias é o intermediário entre essas deidades e os seus compatriotas. O herói troiano pode ser interpretado como uma representação de Otávio Augusto, que guiara seu povo ao “século de ouro”, mas também como o próprio povo romano, um incentivo para que este último se reconhecesse como descendente do herói piedoso de Troia, sempre cumpridor da vontade dos deuses, prestando-lhes homenagens nos tempos mais difíceis, assim como nos mais prósperos, defensor dos Penates e do respeito para com seus pares. Encontramos representados na Eneida os princípios que regiam a relação dos homens com os deuses, amalgamados nas relações politicas e militares. A vida cívica da Roma augustana era pautada na realização de rituais públicos e privados que visavam manter a pax deorum, garantindo assim os sucessos militares e políticos. Os poetas da Antiguidade romana, entre eles Virgílio, foram responsáveis pela propagação de modelos 105 de comportamento social entre os cidadãos, criando uma ideologia sobre os valores morais instituídos não somente pelos seus trabalhos, mas também e, principalmente, pelo meio no qual se encontravam inseridos. A fonte literária se revela para nós como um importante acervo documental sobre essas questões, pois se encontra impregnada de interpretações e preocupações próprias de seu tempo. 106 Considerações finais Acreditamos que a Eneida é uma rica fonte de estudo sobre a história de Roma, do século I a. C. Quando questionado sobre a importância da Eneida nos dias atuais, em entrevista realizada por ocasião da sua recente tradução da epopeia, Paul Veyne não esconde a sua admiração por Virgílio. Para o historiador e latinista francês, o poeta romano, como homem patriota e amante da ordem, queria dar a Roma o equivalente do que era a Ilíada para os gregos: “uma origem mítica, uma lenda de fundação” (VEYNE, 2012). A Eneida, aos olhos de Veyne, “é um romance de aventuras, rápido, nervoso, cujo poder evocativo é incrível”, por isso, Virgílio poderia ter sido o autor de um filme de ação, porque sua obra fornece “dezenas de aventuras em ritmo frenético” (VEYNE, 2012). Não apenas Veyne, mas outros autores chamaram a atenção para a força poética e a construção narrativa admiravelmente bem realizada por Virgílio. Mas os historiadores também, nunca deixaram de ler a Eneida como uma rica fonte de estudo sobre a história de Roma, do século I a.C. Nesta pesquisa, procuramos demonstrar como a experiência, transformação do espaço e fundação de cidades na Eneida articulou três elementos ligados à sociedade romana, a política, a religião e a vida cívica, pensados a partir da relação entre mythos e memória no mundo romano, dentro e fora da epopeia. Tentamos demonstrar aqui a viabilidade desse estudo na interpretação de como se dava a relação dos romanos com o espaço que a cidade abrangia e como o culto desta, ligado ao sacrifício que os antepassados romanos enfrentaram para fundar as bases do império pautava-se na ideia de obediência aos deuses demonstrada por Eneias e seus companheiros de exílio. Tentamos mapear na Eneida a configuração que o principado augustano deu ao mito de Eneias não só na literatura, mas também na estatuária, especificamente na Ara Pacis, onde a imagem emblemática do herói e seu filho, Ascânio, se preparando para a realização de um ritual de sacrifício em homenagem aos Penates, aparece em um dos painéis que a compõem. Otávio Augusto buscou divulgar sua imagem como descendente da gens do fundador das bases do Império Romano e na epopeia virgiliana essa relação foi explorada nas profecias que os deuses realizaram sobre o futuro de Roma e os descendentes de Eneias. Essa conexão entre o nascimento de Roma e a gens do princeps aparece na epopeia 107 virgiliana de maneira tão íntima que ambas as histórias chegam a se confundir. Acreditamos que essa questão deva ser investigada com mais profundidade. O tempo imposto para a realização desse trabalho não nos permitiu dar mais ênfase a essa questão, por esse motivo nos limitamos a uma observação mais disponível no capítulo I. Foi uma de nossas principais preocupações problematizar a Eneida como documento histórico. Diante de uma tradição literária sobre o personagem principal da Eneida, Virgílio produziu um poema singular, mais que uma continuação dos eventos narrados na Ilíada. A epopeia virgiliana apresenta sua própria abordagem sobre o papel do herói, que ao contrário daqueles que foram cantados nos poemas homéricos, Aquiles e Odisseu, não era um vencedor, mas um perdedor. Na Guerra de Troia sua cidade foi destruída, sua esposa foi morta, assim como o rei a quem jurara fidelidade e muitos outros compatriotas. Apesar disso, era filho de uma deusa, Vênus, que não o abandonou durante o exílio, o auxiliou e protegeu em vários momentos. Tendo sido amparado também por Júpiter e Apolo. Procuramos avaliar como o mito de Eneias se encontrava entrelaçado a duas tradições, a grega e a latina, com o objetivo de problematizar como Virgílio se apropriou de uma personagem que já havia feito parte de outros poemas para construir seu perfil, de acordo com as especificidades necessárias para tratar de questões romanas, principalmente relacionadas à interação entre homens e deuses. No Livro III da epopeia virgiliana a narrativa traz à tona a importância da rememoração do passado mítico de Roma e principalmente dos seus antepassados, fundadores das suas bases. Eneias relembra episódios que marcaram sua viagem de Troia à Cartago, na qual seu pai Anquises desempenhou o papel de guia do heroi, bem como de interprete das previsões divinas até o momento da sua morte, ressaltando assim a importância da obediência aos homens mais velhos, principalmente se este fosse membro de sua gens. Percebemos, no decorrer da narrativa do personagem sobre seus primeiros anos como exilado, que este adquire, nas provações que enfrenta, um conjunto de características que delineiam a sua personalidade como herói, desenvolvida nos episódios dos Livros seguintes. Fundador de uma cidade, Lavínio, que nasceria livre da condenação dos deuses que levara Troia à destruição, principalmente no que se refere ao desrespeito da linhagem de governantes pertencente à gens de Príamo aos pactos selados com os deuses. Eneias é o 108 heroi piedoso, seguidor do fatum, que realiza sacrifícios em honra aos deuses, mas também um líder político e um guerreiro que pega nas armas para defender seu povo quando necessário, tal como observamos no episódio da ilha das Harpias. As provações que Eneias tem de enfrentar no percurso de Troia à Itália podem ser entendidas como garantias que os deuses teriam de que o líder escolhido não cometeria os mesmo erros que os reis de Troia. Isso nos leva a pensar sobre as questões políticas e religiosas ligadas à vida cívica da cidade de Roma, durante o principado augustano, quando o princeps buscava se afirmar como imperador utilizando-se da valorização dos antepassados romanos e das suas tradições como uma das ferramentas para a legitimação do poder. A religião nesse período, conforme destacamos no capítulo III andava de mãos dadas com as questões referentes ao Estado. Mas, isso não significa que o herói da Eneida seja apenas uma metáfora da figura de Otávio Augusto. A nosso ver Eneias trazia em si características que deviam fazer parte também da conduta dos cidadãos de Roma, herdeiros de Eneias. O respeito aos antepassados e às tradições religiosas, a manutenção da pax deorum e a proteção da cidade nos tempos de guerra não eram tarefas apenas do princeps. Sendo assim, compreendemos que provavelmente o perfil de Eneias foi elaborado por Virgílio como símbolo da coletividade, do compartilhamento de uma memória que exaltava a história dos antepassados dos romanos, cuja conduta deveria ser considerada como exemplo para os cidadãos. Mesmo se tratando de um texto que certamente não chegou a todas as camadas da sociedade, a trajetória de Eneias narrada na Eneida foi divulgada de várias formas, como na estatuária e na numismática, outras importantes fontes de estudo da história de Roma. 109 REFERÊNCIAS: A)Fontes: AGOSTINHO. Cidade de Deus. v.1 (Livro I a VIII). Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1991 ARISTÓTELES. Poética. Trad. Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008 CÍCERO, Marco Túlio. Liber II. In_De Oratore. Trans. E.W. Sutton; B.C.L.; M.A. Cambridge: Harvard University Press, 1942, p.197-479. Disponível em: < https://archive.org/details/deorator00cice >. 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