O ENSINO E A APRENDIZAGEM DE CONCEITOS NA ESCOLA INCLUSIVA: UM OLHAR SOBRE AS ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS PAIXÃO, Divaneide Lira Lima – UCB [email protected] ROSSI, Tânia Maria de Freitas – UNICESP [email protected] Eixo Temático: Diversidade e Inclusão Agência Financiadora: FAP/DF Resumo Analisar a dinâmica do processo de ensino e aprendizagem que ocorre nas escolas é fundamental, pois é nesse espaço que o desenvolvimento psicológico da criança pode alcançar níveis de aprimoramento de determinadas funções e estabelecer mudanças dos vínculos e das relações interfuncionais. Nesse sentido, o presente estudo buscou analisar as estratégias pedagógicas adotadas por quatro professoras, para o ensino-aprendizagem de conceitos científicos em quatro turmas formadas com crianças que apresentam desenvolvimento típico e crianças com deficiência intelectual. Foram realizadas filmagens das professoras e seus alunos, buscando identificar e analisar as atividades realizadas com vistas à introdução de um novo conceito e sua apropriação pelas crianças, tendo como base os conceitos propostos por Vygotsky, no que diz respeito à Zona de Desenvolvimento Proximal. Foi realizada, também, com cada professora, uma entrevista semiestruturada para investigar aspectos da ação pedagógica no decurso da apresentação de um conteúdo novo. Os dados apontam que entre as estratégias utilizadas estão: contextualização do conteúdo e vivências por meio de dinâmicas variadas; o processo de aplicar, avaliar, fortalecer e reavaliar os conteúdos programados; o uso da leitura pausada do material selecionado. As professoras relatam fragilidades variadas no decorrer do processo, especialmente com relação à aprendizagem das crianças com deficiência intelectual, como manter a concentração, trabalhar a memória e otimizar o tempo de a realização das atividades; a não compreensão e acompanhamento das atividades, como acontece com o restante da turma. Tal posição corrobora os achados de Bogoyavlensky e Menchisnskaya que sustentam não existir uma relação direta entre a construção de noções e o desenvolvimento cognitivo. O estudo suscita uma melhor compreensão acerca da (1) internalização dos conceitos pelas crianças, a ponto de tornar-se automatizado, isto é, fossilizado; (2) do processo que assegura a continuidade do desenvolvimento. Palavras-chave: Deficiência intelectual. Aprendizagem de conceitos científicos. Estratégias pedagógicas. Fossilização da aprendizagem. 3903 Introdução A aprendizagem de conceitos, sua complexidade e dinâmica As atividades humanas são construídas, segundo Vygotsky (1984), ao longo da vida e são resultado de aprendizagens mediadas na e pela cultura, o que imprime às relações sociais e à atividade psicológica traços comuns que transcendem suas qualidades particulares. O processo pelo qual o ser humano produz conhecimento nem sempre fica evidenciado de modo fácil. Vale, portanto, retomar aqui alguns indicadores da aprendizagem humana a partir da perspectiva teórica aqui assumida – a histórico-cultural. O ser da espécie humana dá inicio ao seu processo de aprendizagem, ainda em idade tenra, a partir das trocas relacionais que estabelece com outras pessoas, e essa aprendizagem continua por toda a vida. Ao estudar o pensamento de Wallon, Galvão (2000) indica que para ele as crianças nascem imersas em um mundo cultural e simbólico e nos primeiros anos de vida sua compreensão das coisas está sujeita à compreensão dos outros. São os outros que darão sentido às suas ações e movimentos. Para esse autor, no início do desenvolvimento, existe uma preponderância do biológico, posteriormente, o social e o cultural ganham mais força e fornecem os elementos para a evolução do pensamento, para a construção de noções, representações e conceitos dos mais simples aos mais complexos. A perspectiva histórico-cultural, da qual comungam tanto Vygotsky quanto Wallon, dissemina a ideia de que os seres humanos são sujeitos interativos que elaboram seus conhecimentos sobre os objetos do mundo que o cercam em um processo que é mediado pelos outros e pelos signos. Essa mediação acontece espontaneamente no processo de utilização da linguagem. Assim, pode-se considerar que o desenvolvimento dos conceitos tem origem nas relações sociais, é produzido na intersubjetividade e, fundamentalmente, é marcado por aspectos culturais, sociais e históricos. Sobre o processo de desenvolvimento de conceitos, Vygotsky (1897, p. 67) observa que Mesmo nas crianças muito novas, os objetos ou situações que apresentam alguns traços comuns evocam respostas semelhantes; no estágio pré-verbal mais precoce, as crianças esperam nitidamente que situações semelhantes levem a resultados idênticos. Quando uma criança associa uma palavra a um objeto, ela prontamente aplica essa palavra a outro objeto que a impressiona, por considerá-lo, sob certos aspectos semelhantes ao primeiro. 3904 Assim, o processo de formação de conceitos se inicia a partir das experiências que a criança vivencia e das classificações e distinções que faz dos objetos que a cercam. Para Ferreira (2009) é analisando e destacando repetidamente os elementos empíricos diferentes que estão relacionados aos objetos, pessoas e fatos, que as crianças conseguem formar conceitos. É no estabelecimento desses elos e relações que o processo de formação de conceitos se inicia, mas ele envolve etapas muito mais elaboradas que simples associações de elementos empíricos, cujas relações estão desprovidas de percepção consciente. Essa primeira etapa chamada por Vygotsky (1987) de “conceitos espontâneos” traduz-se nos conhecimentos adquiridos pelas experiências vivenciadas nos contextos sociais dos quais as crianças participam, onde estão em constante interação com familiares, grupos de amigos e outros grupos, e que servem para compreender e analisar a realidade circundante. Os conceitos espontâneos ou cotidianos apresentam natureza diferente dos conceitos científicos, mas mantém entre si uma estreita associação. Para Vygotsky (1987), os conceitos científicos oferecem os elementos rudimentares para a formação de conceitos cotidianos. A estrutura psicológica muda de cima para baixo. Primeiro a criança toma contato com os conceitos científicos e transfere os rudimentos de sistematização para os conceitos cotidianos para, posteriormente, reelaborá-los, tendo acesso a formas mais complexas de conceituação. Os conceitos espontâneos e científicos fazem parte de um mesmo processo, pois ambos se influenciam mutuamente. Há um único processo – o desenvolvimento da formação de conceitos, “que é afetado por diferentes condições externas internas, mas que é essencialmente um processo unitário, e não um conflito entre formas de intelecção antagônicas e mutuamente exclusivas” (VYGOTSKY, 2001, p. 74). Rossi (2006, p. 6), ao explicar a diferença entre conceitos cotidianos e científicos, escreve que O conceito cotidiano é definido por seus aspectos fenotípicos, de cunho aparente, sem uma organização consistente e sistemática. As palavras que servem para exprimir esse conceito têm certo apelo ao próprio objeto ou às suas impressões factuais. Em contrapartida, o conceito científico organiza-se dentre de um sistema hierárquico de inter-relações conceituais. Essas relações são tipos de generalizações que implicam em uma estrutura mental superior que acontece no desenvolvimento do indivíduo. São constituídos por meio de sua articulação a outros conceitos subordinados ou supra-ordenados, imprescindíveis à sua compreensão. 3905 Isto significa que mesmo havendo relação entre conceitos espontâneos e nãoespontâneos, há distinção entre as vias de desenvolvimento desses conceitos. Na tentativa de esclarecer o processo de formação de conceitos na perspectiva histórico-cultural, Rossi (2006) e Souza (2009) sinalizam que os conceitos científicos surgem e se desenvolvem no processo de ensino e aprendizagem escolar, e isso acontece de modo diferente daquele que ocorre nas experiências cotidianas, próprias de cada sujeito, mediadas pelo uso da linguagem. Segundo Vygotsky (1987), o que faz com que haja diferença lógica e psicológica entre os conceitos cotidianos e científicos é a falta de um sistema de relações de generalidade. Os conceitos espontâneos, que Luria (1994, p. 39) chama de comuns, são naturalmente distintos porque, para ele, nos conceitos comuns prevalecem as relações circunstanciais e nos científicos as relações lógicas abstratas. “Os conceitos ‘comuns’ se formam com a participação da atividade prática e da experiência figurado-direta, os ‘científicos’, com a participação determinante das operações lógico-verbais”. A formação de conceitos não se estrutura, portanto, de modo linear, não é o resultados da transmissão de palavras, mas estas expressam conceitos que podem ser utilizados na comunicação antes mesmo de serem formados. Nesse sentido, o processo de formação de conceitos se dá, fundamentalmente, por intermédio de signos linguísticos que permitem designar e relacionar objetos, suas qualidades e ações. O emprego do signo como a palavra permite ao individuo lidar com objetos ausentes, realizar abstrações, sínteses e generalizações de modo que o indivíduo organize o real em categorias conceituais. Vygotsky (1987, p. 70) afirma que [...] um conceito se forma não pela interação das associações, mas mediante uma operação intelectual em que todas as funções mentais elementares participam de uma combinação específica. Essa operação é dirigida pelo uso das palavras como meio para centrar ativamente a atenção, abstrair determinados traços, sintetizá-los e simbolizá-los por meio de um signo. Mais adiante o autor acrescenta: A formação de conceitos é o resultado de uma atividade complexa, em que todas as funções intelectuais básicas tomam parte. No entanto, o processo não pode ser reduzido à associação, à atenção, à formação de imagens, à inferência ou às tendências determinantes. Todas são indispensáveis, porém, insuficientes. (VYGOTSKY, 1987, p. 71). 3906 Para Vygotsky (1987), o conceito é um ato real e complexo de pensamento que para ser estruturado necessita, dialeticamente, de outros processos igualmente complexos, e elaborados a partir da mediação com signos. Estes, por sua vez, se constituem como o meio básico para dominar e dirigir as funções mentais superiores. Isso significa que os signos auxiliam não apenas na formação de conceitos, mas no desenvolvimento da capacidade de atenção voluntária, memória lógica, análise, síntese, abstração, generalização, por exemplo. Desta maneira, as formas de mediação permitem ao sujeito realizar operações cada vez mais complexas sobre os objetos. Assim, a palavra influencia nesse processo, ainda que assuma significados diferentes no caminho da formação de conceitos. Linguagem e conceito se encontram unidos de tal modo que, sem a mediação da linguagem, os conceitos não podem existir. Ao investigar a formação de conceitos, Vygotsky (2002) descreveu três momentos distintos que estão presentes no processo de generalização e que, portanto, constituem as fases do desenvolvimento de conceitos. São eles: pensamento sincrético, pensamento por complexo e pensamento conceitual. Ao empreender esforço de compreensão de cada um desses momentos, Rossi (2006) explica que na primeira fase, chamada de amontoados sincréticos, percebe-se um baixo nível de generalização e abstração nas tentativas da criança de agrupar objetos de forma não organizada, em que os signos são utilizados como um contíguo de informações vagas e sincréticas de objetos isolados. Na segunda fase, dos pensamentos por complexos, Rossi indica que na mente das crianças já se estabelecem relações entre os objetos factuais, decorrente do funcionamento do pensamento verbal e das experiências concretas e imediatas vivenciadas pelas crianças. Aqui ainda não se percebe o plano lógico-abstrato de operações com signos, mas os agrupamentos são feitos em um plano real-concreto. Já na chamada de pensamento conceitual o sujeito mostra-se capaz de isolar os atributos do objeto e examinar os elementos abstratos de forma separada da totalidade da experiência concreta de que fazem parte. A análise e a síntese dos atributos do objeto são combinadas de modo a abstrair os atributos criteriais, ou seja, aquelas características que definem o objeto como um membro de uma da classe e o diferencia das demais classes de objetos. O signo, então, representa o objeto em seus aspectos essenciais, desloca-se dos traços reais e imediatos, exprimindo por meio da palavra seus enlaces lógicos e verbais. 3907 Os signos e as funções mentais superiores Duas mudanças qualitativas ocorrem por ocasião do uso de signos, a saber: o processo de internalização e a utilização de sistemas simbólicos. É na interação com o outro que a internalização de instrumentos e signos se concretiza, primeiro em um nível interpsicológico, social, depois em um nível intrapsicológico, individual, tal como explica Vygotsky (1984). Os sistemas simbólicos, por sua vez, organizam os signos em estruturas complexas e articuladas. Este movimento do social para o individual denominado internalização, está na base do pensamento sociogenético de inúmeros autores como Janet, Baldwin, etc. (BRANCO, 1993). Este processo se revela do mesmo modo para a atenção voluntária, para a memória lógica e para a formação de conceitos. Na verdade, para a perspectiva histórico-cultural, todas as funções psicológicas superiores resultam das relações entre indivíduos nas quais são internalizadas formas culturais de comportamento, reconstruídas com base nas operações com signos. A transformação do interpsíquico em intrapsíquico e a internalização de formas culturais de comportamento dá-se por intermédio da linguagem. Ou seja, uma das maneiras pelas quais a socialização empreende as normas sociais é pelo aprendizado da linguagem que se refere ao processo de ensino da língua mais do que às propriedades da própria língua (SAPIR & WHORF apud RATNER, 1996). A linguagem, portanto, é admitida como importante por permitir a comunicação e por sua função de representar e expressar o pensamento (GÓES, 1997). De acordo com Vygotsky (1987), a experiência do gênero humano é adquirida por intermédio da linguagem, em todas as suas modalidades, pois é pela generalização da linguagem que a criança traz para si um novo fator de desenvolvimento mental. É nesse sentido que a linguagem, por incorporar conceitos generalizados socialmente e que são fontes do conhecimento humano, é o sistema de signos culturalmente construído que impulsiona tanto a constituição de conhecimentos como a socialização dos mesmos. O signo mediador é incorporado à sua estrutura como uma parte indispensável, na verdade a parte central do processo como um todo. Na formação de conceitos, esse signo é a palavra, que em princípio tem o papel de meio na formação de um conceito e, posteriormente, torna-se seu símbolo. (VYGOTSKY, 1987, p. 48). 3908 Os signos e os instrumentos constituem a atividade mediada, mas eles se diferenciam radicalmente porque os instrumentos constituem um meio pelo qual a atividade humana externa é dirigida para o controle e domínio da natureza; já o signo é orientado internamente e constitui um meio de atividade dirigido para o controle do próprio indivíduo. (VYGOTSKY, 1984). O desenvolvimento dos signos, conforme postulados de Vygotsky (2002), caracterizase em quatro estágios. O primeiro denominado estágio natural, referem-se a linguagem préintelectual e ao pensamento pré-verbal, correspondendo, assim, a fase primitiva do comportamento humano. O estágio seguinte, chamado de psicologia ingênua, traduz-se no exercício inicial de inteligência prática da criança em que estão em jogo as propriedades físicas do seu corpo e dos objetos em sua volta. O terceiro estágio diz respeito ao uso de signos exteriores e representa as atividades em que operações externas são utilizadas como assistenciais à resolução de problemas internos. Por fim, as operações externas se interiorizam dando margem a uma ampla transformação no desenvolvimento cognitivo da criança e ela passa a usar a memória lógica revelando o crescimento para dentro. É o uso de signos interiores que agora se efetiva na ação do sujeito. No seio do processo de mediação em que os elementos da cultura passam a ser cada vez mais de domínio das crianças, o funcionamento dos signos surge como meio de uma operação psicológica, tal como evidencia Souza (2009). Isto significa que os estágios do signo assinalam a passagem, nos processos culturais mediados, das formas mais rudimentares de pensamento para formas superiores de elaboração mental. Sendo assim, o processo de escolarização surge como uma significativa experiência que abre possibilidade de aprendizagem e, consequentemente, de desenvolvimento. Analisar a dinâmica do processo de ensino e aprendizagem que ocorre nas escolas torna-se, pois, fundamental, uma vez que é nesse espaço que o desenvolvimento psicológico da criança pode alcançar níveis de aprimoramento de determinadas funções e estabelecer mudanças dos vínculos e das relações interfuncionais tal como indicadas por Luria e Yudovich (1985). O desenvolvimento de cada função psicológica particular, por sua vez, depende dessa mudança, como no caso do desenvolvimento de conceitos. Na aprendizagem de um conceito, as funções psicológicas superiores que pressupõem o uso das ferramentas intelectuais, são ativadas pela interação social, especialmente, sob a orientação ou a supervisão de pessoas mais experientes. Por isso, no tocante ao desenvolvimento de conceitos, as propostas pedagógicas devem levar 3909 em conta a adequação do material ao nível real e potencial dos sujeitos aprendizes, considerando a diversidade da aprendizagem e os ritmos diferenciados de cada um. Nessa perspectiva, ao iniciar o processo de escolarização, as crianças já apresentam explicações variadas sobre fenômenos e conceitos adquiridos fora mesmo da esfera escolar. Tais experiências de aprendizagem são facilitadoras do amadurecimento de diferentes processos psicológicos importantes para a formação dos chamados conceitos científicos. Isso significa dizer que o estudante, ainda que tenha pouca idade, é um ser ativo na construção de sua aprendizagem e o trabalho pedagógico realizado na escola não pode desconsiderar essa característica humana. Os professores não podem apresentar às crianças conceituações prontas e acabadas dos objetos de conhecimento. Deficiência Intelectual e Desenvolvimento Fatores biológicos, geneticamente determinados, interagem com fatores ambientais/culturais para produzir resultados desenvolvimentais. O debate em torno da participação das predisposições biológicas herdadas do indivíduo e da educação sobre o desenvolvimento humano considera que não se pode descrever adequadamente o desenvolvimento considerando a natureza ou a educação isoladas uma da outra; o organismo e seu ambiente se constituem num único processo de vida (COLE, 2003). Ao se pensar a interação de fatores biológicos e ambientais no desenvolvimento humano, não há como derrogar a diversidade humana. Tanto a natureza quanto a dimensão social resultam de um processo histórico; um movimento permanente que produz e modifica os aspectos fisiológicos e psíquicos da atividade humana, entendidos como instâncias de um único processo que os constitui e os relaciona. Assim, o desenvolvimento humano pode ser concebido como o estudo científico das maneiras pelas quais as pessoas se modificam quantitativa e qualitativamente no decorrer do tempo (PAPALIA, 2000) e em contextos sociais específicos, historicamente determinados, o que determina grande diversidade nos cursos que os processos de desenvolvimento podem seguir, sendo um deles a deficiência intelectual. Consoante a American Association on Mental Retardation (AAMR, 2004), a deficiência intelectual é considerada um estado particular de funcionamento que encobre o desenvolvimento inicial da criança, caracteriza-se por limitações no nível de inteligência e nas qualidades adaptativas e reflete a relação entre a capacidade individual e a expectativa de desenvolvimento da pessoa. É uma inabilidade na qual há significativas limitações nas 3910 funções intelectuais e nos comportamentos adaptativos, expressos em habilidades conceituais, sociais a qualidades adaptativas práticas. Há o comprometimento, durante o período de desenvolvimento manifesto, até os dezoito anos de idade, de funções responsáveis pelo nível global de inteligência. O funcionamento da cognição, da motricidade, do comportamento social adaptativo pode ficar prejudicado em diferentes níveis. Tal definição tenta incorporar um modelo multidimensional da AARM (2004) de modo a explicar a deficiência intelectual de acordo com cinco dimensões que envolvem aspectos desenvolvimentais relacionados à pessoa, ao seu funcionamento individual no ambiente físico e social, ao contexto e aos sistemas de apoio aos quais está vinculado. O desenvolvimento natural e desenvolvimento cultural na constituição do ser humano, em geral, coincidem e se fundem; na criança com deficiência intelectual, não se observa este tipo de fusão (VIGOTSKI, 1995). O próprio defeito desencadeia a divergência. As atividades de uma cultura são construídas para um biótipo comum. Ao nascer, a criança com deficiência intelectual pode não encontrar em seu meio condutas culturais de atividades que sejam adequadas à sua atuação, o que dificultará o seu desenvolvimento histórico-cultural. Consequentemente, seu desenvolvimento cultural transcorre numa direção distinta da direção do desenvolvimento da criança típica, à semelhança da plasticidade de sua inteligência, ainda que sejam prevalecentes as mesmas leis gerais do processo de internalização. Em função disso, o ritmo da aprendizagem e do desenvolvimento apresenta características de um processo incompleto. A evolução intelectual na deficiência intelectual configura uma situação análoga a uma construção inacabada. No uso prático de seus instrumentos cognitivos na resolução de problemas, a pessoa demonstra um nível inferior de realização. Não obstante, tanto para a criança com desenvolvimento típico quanto para aquela com deficiência intelectual, as características das funções psicológicas superiores são alteradas, significativamente, com a formação dos conceitos, pois o conceito, em termos psicológicos, em qualquer nível do seu desenvolvimento, é um ato de generalização. O desenvolvimento dos conceitos coincide com o desenvolvimento dos significados das palavras e requer atenção arbitrária, memória lógica, abstração, comparação, discriminação, enfim, processos psicológicos complexos, conforme mencionado. Pressupõe a discriminação dos próprios processos intelectuais que lhe servem de base; inclui reflexões de natureza predominantemente heurística, prática e a descoberta de relações mais complexas entre a aprendizagem e a atividade da criança (VYGOYSKY, 2001). 3911 Há uma tentativa de reordenação dos grupos de pessoas com necessidades educativas especiais na organização social, e as políticas públicas investem, de forma evidente, no aumento da distância entre o paradigma da exclusão e o paradigma da inclusão, focalizando o processo de escolarização como alternativa que amplia o convívio social e a possibilidade de aprendizagem (ROSSI & ALMEIDA, 2007). Cabe, nesse sentido, interrogar essa escola inclusiva divulgada por todas as políticas públicas de educação sobre a ação pedagógica que envida; se como produto logra ultrapassar os prejuízos típicos da deficiência intelectual e se sobrepuja as expectativas fortemente negativas sobre o desenvolvimento e aprendizagem que a família e a própria escola ostentam sobre a criança com desenvolvimento atípico. Método O estudo ora apresentado buscou analisar as estratégias pedagógicas adotadas por quatro professoras, para o ensino-aprendizagem de conceitos científicos em quatro turmas formadas com crianças que apresentam desenvolvimento típico e crianças com deficiência intelectual (DI). Foram realizadas filmagens das professoras e seus alunos, buscando identificar e analisar as atividades realizadas com vistas à introdução de um novo conceito e sua apropriação pelas crianças, tendo como base os conceitos propostos por Vygotsky (1984), no que diz respeito à Zona de Desenvolvimento Proximal. Nas filmagens em vídeo foram privilegiadas as interações entre as professoras e as crianças, especialmente aquelas com DI, retratando três momentos distintos da constituição do conceito científico: apresentação, desenvolvimento e conclusão. Foi realizada, também, com cada professora uma entrevista semiestruturada para investigar aspectos da ação pedagógica no decurso da apresentação de um conteúdo novo. Resultados e discussão Os dados apontam que entre as estratégias utilizadas pelas professoras para introduzir um novo conceito científico estão: contextualização do conteúdo e vivências por meio de dinâmicas variadas; o processo de aplicar, avaliar, fortalecer e reavaliar os conteúdos programados; o uso da leitura pausada do material selecionado. Quanto aos recursos acionados, são identificados: material concreto, música, figura/imagem, poemas, material do tipo impresso e cartazes. As professoras elaboram materiais diversificados para permitir e imprimir diferentes modos de abordar o assunto, evidenciando considerar o processo como 3912 diferenciado para cada um de seus estudantes, o que possibilita a todas as crianças com ou sem DI a construção de conhecimentos e de modos de funcionamento para lidar com o desenvolvimento dos conceitos. Alternam momentos de atendimento individual ao aluno com aprendizagem colaborativa, buscam empregar atividades lúdicas e de fixação de conteúdos, de forma a motivar os estudantes e levá-los a perceber a vinculação entre certos elementos estruturantes do conceito. São promovidas condições para o desenvolvimento de competências e internalização dos conceitos científicos, por intermédio de jogos, reálias, que, para elas contribuem para promover as funções psicológicas superiores como memória técnica, criatividade, raciocínio, comparação, discriminação e generalização de ideias, além do pensamento abstrato. As professoras relatam fragilidades variadas no decorrer do processo, especialmente com relação à aprendizagem das crianças com DI, como manter a concentração, trabalhar a memória e otimizar o tempo de a realização das atividades; a não fixação dos conceitos e informações; a não compreensão e acompanhamento das atividades, como acontece com o restante da turma. Tal posição corrobora os achados de Bogoyavlensky e Menchisnskaya (1991) que sustentam não existir uma relação direta entre a construção de noções e desenvolvimento cognitivo e, portanto, nem toda aprendizagem escolar possibilita ao aluno o desenvolvimento das funções mentais superiores. De fato, e também para Vygotsky (1995), as pessoas com DI apresentam um desenvolvimento das funções psíquicas superiores com ritmo diferenciado, em relação às crianças com desenvolvimento típico, e um dos maiores entraves no desenvolvimento de conceitos para aquele grupo está justamente no processo de generalização e abstração, que não depende somente do caráter da gravidade da deficiência, mas também da realidade social na qual ele se desenvolve e dos recursos mediacionais que lhe são apresentados. Considerações Finais Ao discutir o processo de construção do conhecimento de crianças com DI, Vygotsky (2002) analisa que elas apresentam certa dificuldade em constituir o pensamento abstrato, e que se o conteúdo e as situações de aprendizagem não forem mediadas, isso fica mais difícil. Nesta direção é que a escola e professores devem assumir a iniciativa e a intervenção no processo de aprendizado de forma competente e consciente, na medida em que os esforços devem se focar para estágios de desenvolvimentos ainda não alcançados. O trabalho educativo 3913 deve fomentar novos conhecimentos, habilidades e competências, reconhecendo o nível real de desenvolvimento do aluno. Os procedimentos utilizados pelas professoras e o modo como elas os justificam corroboram a perspectiva teórica histórico-cultural ao passo que elas buscam introduzir um conceito paulatinamente, ressaltando sua construção social. Das quatro professoras, três salientaram empregar estratégias diversificadas para atender especificamente as crianças com DI. Ao serem planejadas estas atividades levam em consideração a necessidade e o direito de adaptação curricular e isso pressupõe o emprego de situações de aprendizagem em pequenos grupos ou duplas, considerando os níveis de aprendizagem e as dificuldades apresentadas, frente a um dado conteúdo. As análises até aqui engendradas apontam que as estratégias e recursos utilizados pelas professoras participantes deste estudo contribuem para o desenvolvimento dos conceitos científicos nos dois grupos de crianças e suscitam uma melhor compreensão acerca da (1) internalização dos conceitos pelas crianças, a ponto de tornar-se automatizado, isto é, fossilizado; (2) do processo que assegura a continuidade do desenvolvimento. REFERÊNCIAS AMERICAN ASSOCIATION ON MENTAL RETARDATION (AAMR). Retardo mental: definição, classificação e sistemas de apoio. 10ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. BOGOYAVELENSKY, D.N.; MENCHINSKAYA, N.A. Relação entre aprendizagem e desenvolvimento psico-intelectual da criança em idade escolar. IN: LURIA, A. R. et al. Psicologia e Pedagogia: bases psicológica da aprendizagem e do desenvolvimento. V. 1.2. ed. Lisboa: Estampa, 1991, p. 73-98 BRANCO, A. U. Sociogênese e Canalização Cultural: contribuições à análise do contexto das salas de aula. Temas em Psicologia, n.º 03. São Paulo, Sociedade Brasileira de Psicologi, 1993.) COLE, M. O desenvolvimento da criança e do adolescente. (Lopes, M., Trad.). Porto Alegre: Artmed, 2003. FERREIRA, M. S. Buscando caminhos: uma metodologia para o ensino-aprendizagem de conceitos. Brasília: liberlivro, 2009. GALVÃO, IZABEL. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. 7ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.(Educação e conhecimento). 134 p. GÓES, M. C. R. de. Linguagem, Surdez e Educação. Campinas, S.P.: Autores Associados, 1997. 3914 LURIA, A. R.; YUDOVICH, F. I. Linguagem e desenvolvimento intelectual na criança. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Medicas, 1985. PAPALIA, D. Desenvolvimento Humano. 7ª ed.(Bueno, D., Trad.) Porto Alegre: Artmed, 2000. RATNER, C. A Psicologia Sócio-Histórica de Vygotsky. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. ROSSI, T. M. F. Comportamento fossilizado no desenvolvimento de conceitos científicos em crianças com deficiência mental. Projeto de pesquisa. Conselho Nacional de Pesquisa. Brasília, 2006. ROSSI, T. M. F.; ALMEIDA, S. F. C. O conceito de internalização em Vygotsky: algumas aproximações teóricas desde a semiótica peirceana. IV Congresso Latinoamericano de Alternativas em Psicologia: Hacia la construcción de um mundo posible, y el VII Congresso Al Encuentro de la Psicologia Mexicana, março de 2007. SOUZA, A. D. G. Aprendizagem e comportamento fossilizado: a compreensão da constituição de conceitos científicos na deficiência intelectual. Dissertação de Mestrado. Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2009. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, 1a ed. Tradução: J. Cipolla Neto, L. S. M. Barreto & S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. Tradução: P. Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1987. VIGOTSKI, L. S. Obras Escogidas: Fundamentos de Defectologia. Vol. V, Madri: Visor, 1995. VYGOTSKY, L. S. A Construção do Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2002.