ESTUDO DE CASO síndrome de Ogilvie após cirurgia citorredutora e quimioterapia hipertérmica: relato de caso Felipe Melo Nogueira, dilson Marreiros Nunes Filho, Vanessa Alexandria Gonçalves Castelo Branco e sabas Carlos Vieira rEsUMO A associação entre cirurgia citorredutora com a quimioterapia intraperitoneal hipertérmica combina a máxima citorredução do peritônio lesado e de diversas partes de órgãos lesados com a administração de um quimioterápico a alta temperatura. Isso permite elevada concentração da droga no local e potencializa seu resultado com um mínimo de efeitos sistêmicos. Relata-se o caso de paciente feminina, 39 anos, submetida a procedimento de peritoniectomia com quimioterapia hipertérmica para câncer de ovário recidivado. Três anos antes, submeteu-se a tratamento para câncer de ovário com cirurgia e quimioterapia baseado em platina. Foi realizada uma combinação da cirurgia citorredutora com a quimioterapia intraperitoneal hipertérmica. No sétimo dia pós-operatório, a paciente teve distensão abdominal, ruídos hidroaéreos aumentados, sem eliminação de fezes ou flatos. A radiografia de abdome mostrou dilatação acentuada do cólon (10 cm) e o diagnóstico foi síndrome de Ogilvie. Foi introduzida sonda por via retal, levando à eliminação de grande volume gasoso com melhora do quadro de distensão abdominal. A sonda foi mantida por quatro dias, quando a paciente começou a eliminar flatos e aceitar dieta, recebendo alta hospitalar no décimo sexto dia pós-operatório. Palavras-chave. Síndrome de Ogilvie; câncer de ovário; quimioterapia intraepitelial; cirurgia citorredutora. ABSTRACT Ogilvie’s syndrome secondary to cytoreductive surgery and hyperthermic chemotherapy: a case report 298 • Brasília Med 2012;49(4):298-301 Felipe Melo Nogueira – graduando em Medicina, Universidade Federal do Piauí, Teresina, Piauí, Brasil dilson Marreiros Nunes Filho – graduando em Medicina, Universidade Federal do Piauí, Teresina, Piauí, Brasil Vanessa Alexandria Gonçalves Castelo Branco – médica oncologista, Teresina, Piauí, Brasil sabas Carlos Vieira – médico, doutor, professor, Universidade Federal do Piauí, Teresina, Piauí, Brasil Correspondência. Felipe Melo Nogueira. Universidade Federal do Piauí, Centro de Ciências da Saúde, Departamento de Clínica Geral, Av. Frei Serafim, n.º 2.280, CEP 64.000-020, Teresina, Piauí. Telefone: 86 32215755. Fax: 86 32155859. internet: [email protected] Recebido em 20-8-2012. Aceito em 30-10-2012. Os autores declaram não haver potencial conflito de interesses. The combination of cytoreductive surgery and hyperthermic intraperitoneal chemotherapy for the treatment of cancer associates maximum cytoreduction of the injured peritoneum and other parts of lesioned organs with the administration of chemotherapy agents at a high temperature. This results in increased levels of the drug at the site of lesion and enhances the cytotoxic effect of the drug with minimal systemic effects. We report the case of a 39-year-old female patient who underwent peritonectomy with hyperthermic chemotherapy to treat a recurrent ovarian cancer. Three Felipe Melo Nogueira e cols. • Síndrome de Ogilvie years earlier, the patient had undergone surgery and platinum-based chemotherapy. A combination of cytoreductive surgery and hyperthermic intraperitoneal chemotherapy was chosen. On the seventh postoperative day, the patient evolved with a distended abdomen, increased bowel sounds and absence of bowel movement or flatulence. An abdominal radiography was performed and revealed a massive colonic dilatation (10 cm). The patient was diagnosed with Olgivie’s syndrome. A tube was inserted into her rectum and a large volume of gas was expelled, which immediately reduced her abdominal distention. The tube was left inside her colon for four days, and the patient began to expel flatus and have a good food intake. She was discharged on the 16th postoperative day. Despite being a major surgery, according to our research, this case is the first record of Ogilvie’s syndrome developing as a consequence of cytoreductive surgery combined with hyperthermic intraperitoneal chemotherapy. Relata-se um caso de síndrome de Ogilvie em paciente submetido a cirurgia citorredutora e quimioterapia intraperitoneal hipertérmica. Os autores desconhecem relato semelhante nas bases de dados pesquisadas. Key words. Ogilvie’s syndrome; ovarian neoplasms; hyperthermic chemotherapy; cytoreductive surgery. rElATO dE CAsO iNTrOdUÇÃO A combinação da cirurgia citorredutora com quimioterapia intraperitoneal hipertérmica é uma estratégia agressiva, na qual são removidos peritônio e múltiplos segmentos de órgãos lesados na prerrogativa de obter uma máxima citorredução. Após o procedimento cirúrgico, a administração do quimioterápico intraperitoneal permite alta concentração local da droga citotóxica, com ação mesmo nos focos microscópicos de implante, com mínimos efeitos sistêmicos. Adiciona-se a esse efeito a ação sinérgica da hipertermia com o quimioterápico, a qual possibilita um incremento do efeito citotóxico da droga.1-3 Esse tratamento, entretanto, pode apresentar complicações, principalmente eventos tromboembólicos, insuficiência renal, rabdomiólise, infecção intra-abdominal, hemorragias, fístulas e sepse.4,5 A síndrome de Ogilvie, descrita em 1948 por W. Heneage Ogilvie (1887–1971), cirurgião britânico, é uma condição rara caracterizada por pseudo-obstrução aguda e dilatação maciça do colon.6 Assim, os sinais e sintomas são de obstrução intestinal, sem que sejam observados fatores mecânicos que a justifiquem. A fisiopatogenia dessa síndrome não é completamente conhecida, porém acredita-se que sua base seja uma desregulação do controle motor autonômico da região colônica, tendo como precipitantes fatores metabólicos, medicamentosos ou trauma.7 O tratamento dessa entidade ainda não é consenso, sendo advogada por muitos a descompressão mecânica da região com uso de sondas retais,6 enquanto outros defendem o uso de inibidores da acetilcolinesterase, como a neostigmina.7 Mulher, 39 anos etários, foi submetida a tratamento do mesmo câncer com cirurgia e quimioterapia baseado em platina. Três anos após, apresentou recidiva na forma de carcinomatose peritoneal. O exame PET-CT (tomografia por emissão de pósitrons – tomografia computadorizada) não evidenciou doença extraperitoneal. Optou-se por peritoniectomia com quimioterapia hipertérmica para câncer de ovário recidivado. Foi submetida a peritoniectomia subdiafragmática completa à direita e parcial à esquerda, peritoniectomia pélvica em flancos direito e esquerdo, linfadenectomia pélvica e paraórtica, enterectomia, colecistectomia, omentectomia total, colectomia esquerda total transversa parcial e anastomose colorretal primária após realização da perfusão. A perfusão foi realizada com cisplatina a 42 graus Celsius em dose de 50 mg/ m² durante noventa minutos. A paciente apresentou distensão abdominal no sétimo dia pós-operatório com ruídos hidroaéreos aumentados e sem eliminação de fezes ou flatos. O exame radiológico de abdômen mostrou dilatação acentuada do cólon – 10 cm de Brasília Med 2012;49(4):298-301 • 299 ESTUDO DE CASO diâmetro (figura). Procedeu-se à passagem de sonda por via retal transpondo a anastomose. Houve eliminação de grande volume gasoso e melhora imediata da distensão abdominal. A sonda foi deixada no cólon por quatro dias, quando a paciente começou a eliminar flatos e aceitar a dieta. Recebeu alta hospitalar no décimo sexto dia pós-operatório. Atualmente, ela se encontra no segundo mês após o procedimento, estável e em vigência de quimioterapia. Figura. Radiografia abdominal da paciente mostra dilatação do cólon disCUssÃO A síndrome de Ogilvie é uma entidade caracterizada por achados físicos e radiológicos iguais àqueles associados à obstrução mecânica dos cólons, porém sem causa orgânica de distensão colônica.6,8 Ocorre dilatação progressiva dos cólons, que habitualmente poupa o cólon descendente e o sigmoide. Pode haver distensão concomitante do intestino delgado, com níveis líquidos em casos de incompetência da papila ileocecal.9 A distensão progressiva pode levar à perfuração do ceco, diástase cecal ou gangrena do ceco e cólon ascendente, sendo essas as principais complicações da síndrome. A perfuração 300 • Brasília Med 2012;49(4):298-301 é mais comum quando o cólon atinge o diâmetro de doze a quatorze centímetros.10 Atualmente a real causa da síndrome de Ogilvie é desconhecida, porém várias teorias tentam explicá-la, sendo a principal a que a atribui a uma possível disfunção parassimpática com uma consequente atonia do cólon distal.11 Possível participação do óxido nítrico nesse evento também foi descrita.12 Um dos motivos para a real causa dessa síndrome permanecer obscura é a variedade de circunstâncias com as quais ela está relacionada. A vasta maioria dos doentes com essa síndrome apresenta alguma comorbidade (95%). Segundo uma série de mais de quatrocentos casos, as causas mais comuns foram trauma não cirúrgico (11%), infecção (10%) e doenças cardíacas (10%). Partos cesarianos e cirurgias de quadril foram as causas cirúrgicas mais comuns.11 Observou-se também que mais da metade dos pacientes receberam narcóticos e dois terços deles tinham algum grau de distúrbio eletrolítico.7 As principais características observadas na pseudo-obstrução intestinal incluem distensão e dor abdominal (80%), bem como náusea e ou vômitos (60%). A passagem de flatos e fezes ainda pode ocorrer em até 40% dos enfermos. Ao exame, esses pacientes apresentam abdome timpânico e ruídos hidroaéreos estão presentes.13 Em pacientes cirúrgicos, esse quadro clínico costuma iniciar no quarto ou quinto dia pós-operatório como ocorreu no presente caso. As manifestações clínicas e o estudo radiológico que mostra acúmulo de gás e dilatação intestinal são em geral suficientes para o diagnóstico. A avaliação do paciente com suspeita de pseudo-obstrução intestinal exige diagnóstico rápido e preciso e abrange a exclusão de obstrução mecânica. Também deve ser avaliada a presença de complicações, como sinais de peritonite ou perfuração, o que acarreta necessidade de cirurgia ou outro tratamento de urgência.7 A terapia de suporte é a abordagem de escolha para todos os pacientes com a síndrome de Ogilvie não complicada. Esta consiste em interromper a ingestão oral e administrar fluidos por via intravenosa. A sucção nasogástrica deve ser instituída para evitar a passagem de gás para o intestino, e a sonda retal Felipe Melo Nogueira e cols. • Síndrome de Ogilvie deve ser posicionada para facilitar a descompressão intestinal. Os distúrbios eletrolíticos devem ser corrigidos rapidamente e os medicamentos que possam alterar a motilidade colônica, tais como opioides, anticolinérgicos e antagonistas do canal de cálcio, devem ser descontinuados assim que possível. Quando houver possibilidade, deve-se estimular a posição de prece maometana e a deambulação.13 Essa abordagem conservadora mostra-se bem sucedida para a maioria dos pacientes, atingindo taxas de cura que chegam até 96% em alguns estudos.14 Após período de 24 a 48 horas sem resposta, deve-se iniciar o tratamento com neostigmina. A descompressão colonoscópica e a cecostomia devem ser reservadas para aqueles casos rebeldes ao tratamento clínico.15-17 rEFErÊNCiAs 1. 2. 3. 4. Helm CW. The role of hyperthermic intraperitoneal chemotherapy (HIPEC) in ovarian cancer. Oncologist. 2009;14(7):683-94. Varban O, Levine EA, Stewart JH, McCoy TP, Shen P. Outcomes associated with cytoreductive surgery and intraperitoneal hyperthermic chemotherapy in colorectal cancer patients with peritoneal surface disease and hepatic metastases. Cancer. 2009;115(15):3427-36. Chua TC, Robertson G, Liauw W, Farrell R, Yan TD, Morris DL. Intraoperative hyperthermic intraperitoneal chemotherapy after cytoreductive surgery in ovarian cancer peritoneal carcinomatosis: systematic review of current results. J Cancer Res Clin Oncol. 2009;135(12):1637-45. Chua TC, Yan TD, Saxena A, Morris DL. Should the treatment of peritoneal carcinomatosis by cytoreductive surgery and hyperthermic intraperitoneal chemotherapy still be regarded as a highly morbid procedure? A systematic review of morbidity and mortality. Ann Surg. 2009;249(6):900-7 5. Kerscher AG, Mallalieu J, Pitroff A, Kerscher F, Esquivel J. Morbidity and mortality of 109 consecutive cytoreductive procedures with hyperthermic intraperitoneal chemotherapy (HIPEC) performed at a community hospital. World J Surg. 2010;34(1):62-9. 6. Ogilvie H. Large intestine colic due to sympathetic deprivation: a new clinical syndrome. Br Med J. 1948;2(4579):671-3. 7. Saunders MD, Kimmey MB. Systematic review: acute colonic pseudo-obstruction. Aliment Pharmacol Ther. 2005;22(10):917-25. 8. Geller A, Petersen BT, Gostout CJ. Endoscopic decompression for acute colonic pseudo-obstruction. Gastrointest Endosc. 1996;44(2):144-50. 9. Ribas Filho JM, Malafaia O, Fouani NM, Fouani MM, Justen MS, Trevisan NB, et al. Síndrome de Ogilvie (pseudo-obstrução intestinal aguda) – relato de caso. ABCD Arq Bras Cir Dig. 2009;22(2):124-6. 10. Luderer JR, Demers LM, Bonnem EM, Saleem A, Jeffries GH. Elevated prostaglandin e in idiopathic intestinal pseudo-obstruction. N Engl J Med. 1976;295(21):1179. 11. Vanek VW, Al-Salti M. Acute pseudo-obstruction of the colon (Ogilvie’s syndrome): an analysis of 400 cases. Dis Colon Rectum. 1986;29(3):203-10. 12. Leelakusolvong S, Sarr MG, Miller SM, Phillips SF, Bharucha AE. Role of extrinsic innervation in modulating nitrergic transmission in the canine ileocolonic region. Am J Physiol Gastrointes Liver Physiol. 2002;283(1):G230-9. 13. Eisen GM, Baron TH, Dominitz JA, Faigel DO, Goldstein JL, Johanson JF, et al. Acute colonic pseudo-obstruction. Gastrointest Endosc. 2002;56(6):789-92. 14. Loftus CG, Harewood GC, Baron TH. Assessment of predictors of response to neostigmine for acute colonic pseudoobstruction. Am J Gastroenterol. 2002;97(12):3118-22. 15. Catena F, Caira A, Ansaloni L, Calò G, De Bonis F, Agrusti S, et al. Ogilvie’s syndrome treatment. Acta Biomed. 2003;74(Suppl 2):26-9. 16. Saha AK, Newman E, Giles M, Horgan K. Ogilvie’s syndrome with caecal perforation after Caesarean section: a case report. J Med Case Rep. 2009;3:6177. 17. Bertolini D, De Saussure P, Chilcott M, Girardin M, Dumonceau JM. Severe delayed complication after percutaneous endoscopic colostomy for chronic intestinal pseudo-obstruction: a case report and review of the literature. World J Gastroenterol 2007;13(15):2255-7. Brasília Med 2012;49(4):298-301 • 301