A CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA DE EDUCAÇÃO EM MARTIN BUBER Antonio Wardison C. Silva Júnior Ribeiro da Silva Lins – SP 2009 A CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA DE EDUCAÇÃO EM MARTIN BUBER RESUMO A proposta do trabalho gira em torno das idéias básicas do pensamento de Martin Buber, condensada no princípio dialógico do Eu - Tu, evento presente na elaboração dos seus estudos filosófico-religiosos. Partindo de uma ontologia da presença chegando a uma antropologia do inter-humano, postula-se a promoção da dignidade humana como valor existencial de cada pessoa. A palavra princípio, vinculada pelo logos e práxis, possibilita direcionar a filosofia de Buber para o âmbito educacional com a intenção de promover uma reflexão mais elaborada diante das inúmeras formas de relações estabelecidas no espaço educativo, sendo esta dimensão fundamental no processo de formação da pessoa humana. A pretensão desse texto é discutir, à luz do princípio dialógico, como são estabelecidos os diálogos, e se esses são realmente postos como forma de comprometimento, de reciprocidade e de respeito no âmbito educacional. Palavras-chave: Diálogo. Reciprocidade. Educação. 1 Introdução A reflexão apresentada nesse texto, busca estabelecer, por meio de leituras e análises descritivas, uma construção a cerca da estrutura puramente filosófica e antropológica de Martin Buber numa ótica puramente educacional, cujos parâmetros perpassam pelo elemento central da obra do pensador: o sentido do humano, onde ação e reflexão estão inteiramente ligadas. Este estudo se estabelece somente por meio da estrutura dialógica do Eu – Tu, e não, por meio do Eu - Isso ou do Eu - Tu - Eterno que também são elementos que compõe e demarcam o seu pensamento. O objetivo desse estudo se caracteriza numa possível audácia de propor um novo repensar ou uma nova re-leitura a cerca das condições de possibilidades das quais o sujeito está extremamente inserido no contexto histórico - social e cultural, onde existem inúmeras qualidades de relações existentes entre educando e educadores, que podem ser realizadas de maneira autêntica ou podendo ser até mesmo impostas, garantindo um discurso elaborado, ou uma forma de dominação no ceio educativo. Partindo de uma das bases do compromisso do pensamento buberiano, provindo da experiência concreta com a vida, logos e práxis, postas frente à categoria fundamental do Eu – Tu, possibilita trazer para uma das maiores esferas do mundo humanizante, que é a ação educativa, uma reflexão elaborada por meio de um princípio dialógico, que permite perguntar, se realmente há uma esfera dialogal, de abertura, de respeito e de responsabilidade entre educador e educando, ricas de significados e sentidos nesse mundo educacional. Ao falar dessa relação dialogal é preciso ter por base que se trata de uma proposta baseada num prisma totalmente dinâmico entre sujeitos que se prestam a construir um processo provindo não por meio de uma perspectiva meramente racional ou dedutiva, mas de um eventual encontro que se tece diariamente por uma relação que vem acontecer entre Eu – Tu. E é aqui que gira o comprometimento do estudo em torno do processo educativo, estabelecido entre educando e educador, a luz da palavra princípio do pensamento de Martin Buber. 2 1. Martin Buber e seu pensamento No dia 8 de fevereiro de 1878 na cidade de Viena, nasceu Martin Buber, filho de Carl Buber e Elise Née Wurgast; após a separação de seus pais, ele passou a morar em Lemberg, Galícia, com seus avós paternos Salomão Buber e Adela, até os 14 anos. Salomão Buber era autoridade preeminente do Haskalah, movimento místico popular, que o influenciou mais tarde nos seus estudos; foi nesse local que Buber teve a oportunidade de experimentar a união harmoniosa entre a tradição judaica autêntica e o espírito liberal da Haskalah ou hassidismo. Esse contexto possibilitou compreender o hebraico, a inserção no contato com a cultura judaica. Em 1896 entra para a Universidade de Viena, curso de Filosofia e História da Arte, local típico de uma cultura, aberta a toda sorte de influências, oriundas de todos os quadrantes do mundo intelectual; toda a atmosfera da intensa vida social e cultural de Viena contribuiu para tornar Buber um devoto da literatura, filosofia, arte e do teatro. Mais tarde entrou para a Universidade de Berlim dedicando-se aos estudos da psiquiatria e sociologia, e em 1904 recebeu o título de doutor em filosofia. Em 1923 nomeado como professor de História das Religiões e Ética Judaica na Universidade e Frankufurt. De 1933, quando foi destituído do cargo pelos nazistas; Em 1938 aceitou o convite da Universidade Hebraica de Jerusalém para ensinar Sociologia; esse período ele tinha 60 anos, auge dos seus escritos e da sua intelectualidade. Interessou por estudos em várias áreas: sobre a Bíblia, Judaísmo, Hassidismo; estudos políticos, sociológicos e filosóficos. Por fim, faleceu em Jerusalém a 13 de junho de 1965. (ZUBEN, 1979, Dados bibliográfico). Com um horizonte filosófico de uma ontologia do ser para uma antropologia da relação, buber rompe com o pensamento judaico, de dar continuidade a uma sequencia de estudos, cujo foco se detinha a uma metafísica clássica, cuja ordem é de primar só e exclusivamente pelo estudo do ser. Dessa forma, com a estrutura do seu pensamento, garante ser reconhecido como um pensador voltado exclusivamente para a unicidade que garante um verdadeiro fascínio sobre o comprometimento de um pensamento com a realidade concreta, mediado pela experiência vivida diariamente. “Pensamento e reflexão assinaram um pacto indestrutível com a práxis, com a situação concreta da existência”, (ZUBEN, 2003, p. 60) 3 Marcio Vidal afirma que a presença da intersubejtividade e da alteridade, dá ao homem a capacidade de abertura, tornando-o, uma pessoa de estrutura dialogal; essa caracterização permite dizer que é uma antropologia do diálogo, em que o Eu constitui-se na referência a um Tu. (VIDAL, 1975, p. 146) Sobre o Hassidismo, conforme fora citado acima, é um elemento chave do seu pensamento. O movimento surgiu na Polônia no século XVIII e teve como característica o esforço pela renovação da mística judaica; tinha uma participação densa de judeus, buscavam a união com Deus, pregava a piedade, a santidade para que tudo isso proporcionasse uma vida santificada na terra. “Enfatizavam simplicidade; a devoção de cada dia, na concretude de cada momento e na santificação de cada ação”, com raízes nos profetas e nos salmos. A compreensão do autor nesse período possibilitou-o criar e estabelecer devidas elaborações sobre o homem, sobre a relação com o mundo, “assumindo ao mesmo tempo uma postura mística e política. A Mística encontrada nessa vivência inspirou a sua filosofia do diálogo em seus aspectos mais fundamentais”. (SANTIAGO, 2008, p. 30). O movimento caracterizou três virtudes entre os que dele faziam parte, e “que se tornaram necessárias para a realização de cada um”: o amor, a alegria e a humildade. (ZUBEN, 2003, p. 80). Dentro do Hassidismo não há distinção entre ética e religião, e nem numa determinada relação feita com Deus, e, com uma pessoa. A base da reflexão antropológica desenvolvida por Buber está centrada na possibilidade de constituir intensamente uma verdadeira filosofia da relação, posta no víeis da práxis e do logos, por meio da estrutura conferida nas palavras chaves do modo de ser do homem que são duas: “Os relacionamentos Eu - Coisa (o objeto se manifesta ao Eu) e o Eu - Tu (o Tu se manifesta ao Eu). (MENEZES, 2007, p. 24). A relação com o outro ser humano encontra-se sempre marcada pelo sentimento de estranheza, ante algo grande demais para ser apreendido na sua inteireza; aquele que é para o outro - um Tu infinito: o Tu eterno. 1. 1. O sujeito como pessoa humana O ser humano, cujo mundo da vida é povoado de significados, sentidos e valores, podem a qualquer instante de sua existência, desejar transformar completamente a sua própria condição humana, aprofundando e modificando a sua estrutura política, social, cultural e educacional, sobretudo perante os valores 4 existenciais, dos quais lhe são dados e/ou retirados a todo momento. Entretanto, cabe ao próprio sujeito o interesse por uma construção contínua de por e/ou de estabelecer com o outro, e com o meio, possíveis relações capazes de lançá-los num horizonte onde consiga atingir uma realização plena, total e humanizante. É nessa perspectiva que se mostra a estrutura dialógica buberiana, caracterizada pela especificidade valorativa, dada sobre o sentido do humano - da pessoa, atribuída num horizonte que busca resgatar a dignidade, patrimônio específico e pertinente da sua própria natureza, um suporte primordial na construção e no desenvolvimento para um mundo mais humano e mais autêntico. É inconcebível falar do mundo, sem que haja o indivíduo para garantir ou conferir o seu verdadeiro sentido. A autonomia do ser humano se eleva em função da sua habitação no mundo que se estende para além do observador que ‘no’ mundo se encontra, e que com tal é autônomo [...] o homem é propriamente o serno-mundo e como tal é capaz de diferenciar-se dele, atuando em prol de suas transformações. (SANTIAGO, 2008, p. 54). 1.2. A Compreensão da proposta do Eu - Tu de Martin Buber A Obra Eu - Tu de Martin Buber, ocupa um lugar de extrema singularidade na estrutura do seu pensamento, devido à predominância profundamente intensa de consentir uma perspectiva filosófico-religiosa, timbrado exclusivamente por uma proposta, cujo privilégio, é desenvolver e resgatar a dignidade intrínseca da existência humana, fundada por um viéis que parti de uma ontologia da presença do ser, em direção a uma antropologia da práxis humanas. “A palavra, a relação, a reciprocidade são atos do homem. É no humano que devemos encontrar a raiz e o fundamento da ontologia do face-a-face”. (ZUBEN, 1979, LXIV) O horizonte que Buber nos remete nessa contínua combinação filosófica do Eu - Tu está fundamentada e elaborada sob um prisma que toca continuamente uma categoria fundamental, chamada por ele de diálogo, base da filosofia da relação, cuja expressão, caracteriza uma compreensão profundamente vasta de transmissões de determinados conteúdos vividos a cerca da experiência humana, dentro do um contexto social. “A relação é uma ação imediata que acontece entre o Eu e o outro”. (ZUBEN, 2003, p. 173). A elaboração filosófica construída por Buber, jamais permite compreender o diálogo como um mero processo de comunicação 5 entre pessoas. “O dialógico é para Buber a forma explicativa do fenômeno do inter humano. Inter - humano implica a presença ao evento de encontro mútuo” (ZUBEN, 1979, XLVIII). Como se percebe, a palavra diálogo, que origina do latim dialogus, e do grego diálogos, de dialegesthai, significa conversar, (DICIONÁRIO BÁSICO DE FILOSOFIA, p. 72), nos remete a um conjunto estrutural conotativo, que para a filosofia de Buber, torna-se o elemento fundamental, chamado por ele de palavra princípio. “A base do Eu e Tu não é constituída por conceitos abstratos, mas é a própria experiência existencial se revelando. A palavra princípio é o fundamento da existência humana.” (ZUBEN, 1979, XLII). A filosofia do diálogo composta continuamente na práxis humana a partir da experiência vivida entre relações interpessoais propõe a presença concreta de uma categoria fundamental, que dá credibilidade ao sujeito de realizar dentro do ethos, uma relação sempre nova e atualizada pela reciprocidade vivida e estabelecida na relação dialógica entre aquele que conhece e aquele que é conhecido. Dessa forma, a relação passa a ser plenamente personificada pelo aparato dialógico, ordenada por uma série de reflexões com a finalidade de promover um discurso que não seja coordenado por um viéis monológico ou robótico, mas, por uma composição dialógica, que garanta ao homem a possibilidade de elaborar um discurso, onde haja uma relação que concentre um encontro, movido por uma comunicação entre consciências, a garantir um discurso a vir-a-ser. A relação sujeito-sujeito permite estabelecer uma ação gerenciada por uma dinamicidade, cuja relação se expressa e se distingue, pela reciprocidade, elaborada entre confrontos, criados e conduzidos, pelo Eu e o Tu, com a intenção de obter uma postura, que promova uma abertura, seja de: conhecimento, percepção, apreensão e conquista ao meio ao qual se encontra. A estrutura fundamental do Eu - Tu não são baseadas e nem norteadas por conceitos deveras abstratos, mas segundo Buber, é a própria experiência existencial se revelando, através das principais categorias desta vida projetada, construída, desenvolvida e efetuada em diálogo, que são: palavras; relação; diálogo; reciprocidade como ação totalizadora; subjetividade; pessoa; responsabilidade; decisão - liberdade; inter-humano. Quando se remete o homem na esfera da intersubjetividade, automaticamente ele é profundamente mirado, sob o prisma de 6 uma antropologia ligada a uma ética meramente humana, devido à possibilidade de ser caracterizado como um “sujeito criador de história e de cultura, que realiza e se realiza”. (MARCONETTI, 2003, p 88-89). Contudo, o Eu e o Tu se estrutura numa originalidade genuína de encontro interpessoal, e, somente após a relação face - a face, é que acontece a verdadeira experiência de encontro, marcada pelo distanciamento do Tu diante do Eu; para o autor, “a palavra princípio Eu – Tu só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade. (...) O Eu se realiza na relação com o Tu; e é tornando Eu que digo Tu” (ZUBEN, 1979, p. 3 - 4). 2. O diálogo e a relação como axiologia humanizante Um dado importante e característico na relação dialógica do Eu – Tu é o diálogo do face-a-face, contemplado pela zona do silêncio, marcada pela abertura e pela disponibilidade do Eu, efetuado não só de palavras, gestos, união física, mas pelo diálogo obtido a partir do interior do próprio ser, intercâmbio existencial, círculo hermenêutico, onde cada um, (Eu), procura interpretar em face do outro, (Tu), e interpretar o outro em face de si mesmo. Na perspectiva buberiana, o diálogo não é um conjunto semântico de oralidade, mas, um evento inesperado que implica uma relação de reciprocidade entre sujeitos, que por meio de um encontro realiza um diálogo extremamente autêntico, no qual acontece uma relação puramente genuína entre pessoas. “O “entre”, o “inter - valo” é o lugar de revelação da palavra proferida pelo ser”. (ZUBEN, 1979, XLIX). Quando se fala de diálogo, o autor chama de autêntico aquele que prioriza uma categoria que exclui de forma totalitária a permanência de uma relação dialógica já definida, e pré- estabelecida, a ponto de caracterizar como um detentor de consciência frente ao outro, tornando assim um diálogo inautêntico. A relação de dialogicidade construída sob a fundamentação de uma ontologia da relação permite o sujeito, diante do mundo e do outro, edificar uma construção dia-pessoal e dia-lógica, concretizada por meio de um aparato compreendido pelo entrelaçamento do encontro, e da responsabilidade, cuja dinamicidade, obtida pela relação, dá à pessoa a condição de estabelecer um encontro face-a-face, marcada pela exclusividade do desvelamento onde o Eu se torna Eu em virtude do Tu. (MENEZES, 2007, p. 29). 7 Haja vista que ao deslocar seu pensamento de uma ontologia do ser, para uma antropologia, buber, manifesta uma reflexão que perpassa por uma antropologia concreta da existência humana, onde “palavra e práxis se confundem, isto é, no nível do dialógico, ou em outros termos “dia-logo” é “dia-práxis”, já que existe uma “inter-ação” “entre” Eu e Tu” (ZUBEN, 1979, LIX). O discurso a partir de um diálogo como encontro do Eu – Tu, exige a presença fundamental de dois elementos valiosos no pensamento do autor, que permitem a construção da verdadeira presença viva e atual de um encontro autêntico: espontaneidade e disponibilidade, capaz de gerir um encontro dinâmico de duas presenças presente, de um para o outro - “Eu me realizo através do meu relacionamento com o Tu; na medida em que me torno Eu, digo Tu”. (MENEZES, 2007, p. 26) A palavra princípio, conforme fora mencionado na obra, é uma expressão que tem por trás de si, uma força intensa, diante da proposta que se configura e que ordena a construção de um mundo que se faz no vir a ser, por meio de pessoas, que se postulam em construir determinadas relações consideradas fundamentais dentro de um processo de reconstrução. Todo diálogo que acontece é sempre dirigido, governado e conduzido por um ser dotado de capacidade para alguém; o diálogo como atividade, ou como um conjunto de ações e de modalidades, é um evento no qual possibilita o homem fazer-se homem·. (ABBAGNANO, 2007, p. 324) Para Zuben, o sentido da existência humana e a reflexão que cai sobre ela, estão ligados à sua realização. Pode-se afirmar que: o homem existe, mas não se sentiria realizado se não percebesse na sua existência um valor. É importante para todos os seres humanos que a existência nesta terra garanta, mais do que tudo, a sua felicidade e auto-realização; o diálogo é o meio que torne o homem capaz dessa realização. O outro se posiciona diante dele e ele se abre ao outro. O mundo se torna presente diante do homem e ele é capaz de ver, na sua sensibilidade, não objetos, um “(Eu – Isso)”, mas algo que faz parte da sua existência. Pode-se dizer como Buber que sem o Tu o Eu não é nada. “É o Tu que me torna Eu; e o Eu se constitui na presença do Tu” (REALE , 2006, p. 417). Sem dizer Tu, não pode haver realização humana. Sem os vínculos é impossível conceber uma sociedade humana e justa. 8 2.1. Buber e a educação para a reciprocidade O conceito de reciprocidade no pensamento de Buber atingiu um horizonte significativo por meio da obra Eu e Tu, fruto de um evento estabelecido e criado entre sujeitos, uma ontologia da relação. Afirma o Doutor Anderson Menezes, que a maior contribuição buberiana ou a sua intuição original foi exatamente o sentido do conceito de relação para designar aquilo que, de essencial, acontece entre os seres humanos e entre o ser humano e Deus. (MEZENES, 2007, p 28). Uma das bases fundamentais no movimento Hassidismo é a inter-relação, onde se duplicam a vida entre aqueles que entusiasmam e aqueles que são entusiasmados. Assim, essa relação contida dentro desse movimento, permite a reciprocidade se desenvolve no sentido da máxima clareza. O mestre ajuda os discípulos a se encontrarem. (ZUBEN, 1979, XXXIX). A relação estabelecida entre mestre e discípulo é extremamente intensa e concentrada. A expressão reciprocidade, como se percebe, é uma práxis que acontece a partir do momento em que ocorre entre pessoas, um processo de relação mútua, estabelecida por sujeitos portadores de dignidade, que leva a exercer por meio de uma diversidade relacional, uma experiência de compartilhar com o Tu as riquezas insondáveis do Eu. Somente na relação é que o homem tem a possibilidade de tornar concreta a sua existência humana, visto que existem somente três realidades que se integram na constituição desse evento, que é: o próprio Eu; a relação, compreendida como palavra princípio Eu - Tu que os tornam presentes; e o Tu propriamente dito. A verdadeira relação acontece de forma genuína, somente quando a presença do outro é promovida e valorizada por meio do encontro que o outro faz acontecer, e quando este, o promove como absolutamente outro. Em suma, o conceito de reciprocidade faz referência a uma antropologia que tem como ponto de partida a idéia de que o ser humano é relação e não simplesmente que está em relação (ZUBEN, 1979, p.29 - 31). Xavier Herrero, na obra: O Homem como um ser de linguagem, afirma que o homem com sua configuração biológica e instintiva é aberto ao mundo; os seus membros são estritamente polifacéticos, capazes de uma multiplicidade de atividades superiores e os seus instintos são indeterminados e só se formam por costume e educação. (HERRERO,1999, p.136) 9 É impossível pensar em uma educação sem considerar um mundo “prático“, pois, prescrever determinados métodos educacionais, sem ponderá-los seriamente, resulta em prática que tem pouca substância. Haja vista que o estudo a cerca da educação, parece ter um horizonte de aspecto imperativo, com poucas instâncias de transições relacionais ou até mesmo de estabelecimento de acordo, conduzido sob a plataforma da relação dialogal ao qual nos lança buber. Afirma Maria Betânia que o trabalho sobre o educacional, (Über das Erzieherische) especificamente, condensa essa visão educativa, reconhecendo-a como “postura essencial” (Wesenshltung), que pressupõe a abertura daquele que se coloca numa relação de diálogo com o outro. (SANTIAGO, 2008, p. 249). Um dos víeis importante a serem considerados nesse âmbito, trata-se da palavra princípio Eu - Tu, que postulada nessa mediação da relação dialógica, concorre-se para a formulação de relacionar-se e de identificar-se com o mundo externo, e que, o contrário dessa relação Eu - Tu, ter-se-á a formulação do Eu - Isso, relação marcada pela objetivação, pautada pela concepção de enclausurar a existência como deveras objeto. “Quem diz Tu não possui coisa, não possui nada, Ele permanece na relação” (ZUBEN, 1979, p. 3 - 4). Na relação Eu - Tu, o indivíduo existe enquanto se distingui de outros indivíduos; o Eu (a pessoa) se constitui unicamente entrando em relação com outras pessoas. Assim, o Tu me torna Eu; e somente na presença do Tu é que o Eu se constitui, que o Eu toma consciência de não ser aquele Tu com o qual entrou em relação. (REALE, 2006, p. 420.) Na dimensão relacional do Eu - Tu deve-se: olhar, perceber, reconhecer e conceber que há um mundo de significados intensos e profundos, pessoal de cada indivíduo. Aqui, o Tu não é tido como objeto, Eu - Isso, constituída por uma olhar desumanizante, ou por um viés de destruição, onde há alienação de uns para com os outros. Nem o Eu nem o Tu são superiores ou inferiores um ao outro; simplesmente são distintos e como tais, com diversidade de: pensamentos, sentimentos e ações para realizarem. A reflexão que o autor opera a cerca do Eu como pessoa, evoca uma provocação frente à opção educacional quando se encontra uma relação entre educador (Eu) & educando (Tu), conduzida pelo víeis do Eu - Isso, em que o aluno frente ao professor é considerado e estabelecido meramente como um objeto; ou também quando se vê nas práticas escolares, frente às atividades, o educador oferecer a seus alunos provas, trabalhos e notas em salas de aula, sem observar o 10 que se passa no seu mundo da vida, destarte, o que verdadeiramente se observa, são educandos e educadores trilhando por vias extremamente separadas. Nessa perspectiva dialógica, uma relação adequada e autêntica, entre o educador e o educando, deve existe uma sensibilidade profundamente mútua, seja de sentimento, empatia, comprometido e respeito, simplesmente porque essa, não se trata de uma relação Eu - Isso (sujeito para com o objeto), de manipulação, pautada por uma vivência de experimentação, de posse do outro, independente de quem seja esse outro. Contrário disso, é estabelecida de sujeito para com sujeito, compreendido por um diálogo, autêntico e silencioso, construído e desenvolvido na esfera do ”entre”, que se encontra na mediação existente da relação que acontece, face - a – face, entre o Eu -Tu. Entre o Eu e o Tu não se interpõe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia; o encontro só acontecerá no momento em que for isento todos os meios. (ZUBEN, 1979, p. 13) É diante dessa relação dialogal e dia- pessoal que buber propõe essa perspectiva humanizante, que a partir da relação, surja frutos como: comprometimento, compartilhamento de conhecimento, de aspirações, a ponto que a relação educador e educando, possa ser mediado por uma relação de aproximação, acolhimento, respeito. Sendo assim, pode se proclamar que a responsabilidade como projeto do homem na história de viver num nível real e essencial da vida humana é a resposta ao apelo dialógico. Considerações finais Após a elucidação descritiva e reflexiva da perspectiva educacional baseada no pensamento buberiano, constituída pela proposta da palavra princípio do Eu - Tu, ontologia da presença para uma antropologia do inter-humano, chave central de leitura do estudo desenvolvido, concede-nos a possibilidade de certificar que muitas relações estabelecidas entre sujeitos, não devem ser somente elucidação de palavras. Dialogar é acolher o outro na sua condição real, em que cada Tu, pessoa, se converta numa soma de qualidade e de potencialidades. Maria Betânia destaca que a educação é uma dimensão fundamental que buber considera no humano, que se manifesta como referência para a educação do homem, não como um modelo. (SANTIAGO, 2008, p. 296). A proposta estabelecida no desempenho deste trabalho por meio do pensamento de Buber se postula pela 11 eficácia de suas categorias virem de encontro com uma proposição contida no âmbito educacional, local que deve conter constantemente uma relação dia-logal e dia-pessoal entre educando e educador. Provavelmente muitos filósofos tem se dedicado ao máximo para desenvolver materiais reflexivos sobre educação, e pode-se afirmar que um dos motivos se deve ao fato de que esta, seja realmente uma centelha fundamental, que venha completar a unidade integral da vida da pessoa humana. A elaboração final desse trabalho implica em alguns questionamentos a serem feitos aos sujeitos que exercem essa prática educacional, sobretudo diante da postura que exercem frente ao outro. Nesse ínterim, algo muito importante a ser realçada, se trata da existência de duas consciências que buscam se dialogar. Dessa forma, compete perguntar em que situação se encontra as diversas atitudes tomadas diante dos momentos que ocorrem determinadas relações entre educando e educador. E se estas, realmente são promovidas a partir de um aparato dialogal, com a intenção de que haja realmente o respeito e o comprometimento diante do outro. A relação dialogal na prática educativa, para Buber, só se constrói por meio da confiança, reciprocidade, comprometimento, e do cuidado que marca todo o encontro, própria de um diálogo autêntico de um educador. Este, o faz com o intento de despertar na vida do educando a vontade de possuir o desejo por uma vida centrada e orientada por uma ação, que o faça atingir uma formação de um grande caráter. Portanto, a reflexão desse trabalho provém desse lance dialético presente na formação constante de respostas e perguntas provindas do mosaico estabelecido na relação entre educador e educando, constituído por diversos movimentos dentro do processo da educação. A tecedura não se estabelece por meio de evocação de palavras, de sistemas, ou de métodos, mas por meio de um “encontro”, promovido numa relação de liberdade “entre” o Eu - Tu, movidos pela riqueza de potencialidades, criadas ao longo da práxis no âmbito educacional, porque só o homem é um ser que inova, e é por isso, que somente ele é capaz de valorar. (REALE, 1994, p. 161). 12 DESIGN EDUCATION IN ANTHROPOLOGICAL VENECIA ABSTRACT The purpose of this study revolves around the basic ideas of Martin Buber's thought, epitomized in the principle of dialogue from I - Thou, this event in the development of their philosophical and religious studies. From an ontology of presence reaching an anthropology of inter-human, it is postulated to promote human dignity and existential value of each person. The word principle, bound by the logos and praxis, enables direct Buber's philosophy for the educational context with the intention of promoting a more elaborate discussion on the many forms of relationships established in the education area, this dimension is in the process of formation of the person human. The intention of this paper is to discuss, in light of the dialogic principle, as established dialogs, and if these are actually made as a compromise, reciprocity and respect. Key-words: Dialogue. Reciprocity. Education. 13 Referência Bibliográfica ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BUBER, M. Eu e Tu. Introdução e Tradução por Von Zuben Newton Aquiles. 2ª ed. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979. CASTRO, Afonso de. Carisma para educar e conquistar: Espiritualidade, alegria e prazer na educação salesiana. São Paulo: Salesiana, 2002. Dicionário Houaiss de sinônimos e antônimos da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. HERRERO, Xavier. O homem como ser de linguagem. Um capítulo sobre antropologia filosófica. In: Carlos Palácio, S. J. Cristianismo e História. Coleção Fé e Realidade – X, São Paulo> Loyola, 1982. JAPIASSU, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Jorge Zahar LUCKESI, Cipriano C. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 1990. MENEZES, Anderson de Alencar. A Evolução do Diálogo na Igreja Católica: a Ecclesiam Suam. Recife: Faculdades Salesianas do Nordeste, 2007. NATOLI, Salvatore. 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Silva – Graduando em Teologia pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo e Pós-graduado em Filosofia Existencial [email protected] Fone: (11) 3649-0200 Júnior Ribeiro da Silva – Graduando em Teologia pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo e Pós-graduando em Educação Sexual [email protected] Fone: (11) 3649-0200 A META EDUCACIONAL NA PERSPECTIVA DA FILOSOFIA DIALÓGICA DE MARTIN BUBER Roberta Gulart 1 Ferdinand Röhr 2 O presente trabalho faz parte da discussão geral sobre a Constituição da Educação enquanto Ciência. A temática apontada, que gira em torno da meta educacional na perspectiva da visão do pensamento buberiano, a partir dos próprios pressupostos filosóficos e teóricos é de fundamental importância para uma Teoria da Educação que se entende como base da Ciência da Educação, sendo que a mesma não pode ser orientada apenas com base nos objetos e metodologias das ciências chamadas da natureza, e por isso mesmo fazem parte de uma discussão cientifica da educação nas perspectivas da hermenêutica e da fenomenologia. A proposta de nosso objeto epistêmico gira em torno da tríade: o educador, o educando e a tarefa pedagógica. Temos com isso o intuito de debater sobre o status cientifico da educação, propondo que a mesma deva ter seu objeto epistêmico próprio, sendo esse objeto o ponto central, de partida e chegada, de qualquer estudo que envolva outras áreas afins como: psicologia, sociologia, filosofia, antropologia, etc. Esse estudo tem como intenção contribuir numa melhor reflexão à cerca da meta educacional, que parece não ser algo muito definido entre os teóricos da educação e entre os próprios educadores que não têm ao certo qual meta deve guiar sua prática e suas ações no âmbito pedagógico. Essas metas se encontram dentro de uma multiplicidade de fins, voltadas para os interesses dos mais variados grupos políticos, sociais, econômicos, religiosos e étnicos, cada grupo que defina a especificidade do fim educacional a partir de suas visões de mundo. Percebemos com isso que essa multiplicidade de fins também contribui para que nós, estudiosos da área educacional, neguemos que a educação dispõe de um objeto epistêmico próprio. Porém deixamos claro que não temos com isso a pretensão de definir qual seria o fim último da educação, mas sim contribuir e propor aos educadores uma maior reflexão sobre os propósitos que norteiam o ato pedagógico, uma vez que o consideramos um ato intencional e por isso mesmo enfatizamos a importância de pensar sobre sua finalidade. Compreendemos a educação como uma contribuição para a humanização do homem percebendo-o em sua totalidade, um trabalho que proporcione ao mesmo emergir de si aquilo que lhe é essencialmente humano. A meta educacional estaria voltada aqui, mais especificamente, no que concerne a questão da tarefa educacional. Desejamos com isso dar continuidade a nossa proposta de uma educação pautada no princípio da integralidade do Ser. Baseamos nosso estudo na obra do pensador Martin Buber, na medida em que consideramos sua filosofia como um suporte importante para refletirmos os fins pedagógicos. Ele parte da meta educacional como sendo a integralidade do ser humano, propondo a constituição de um ser pleno que busque sempre a totalidade em todos os aspectos de sua vida, pois somente assim ele pode fazer de sua existência algo realmente autêntico, uma existência fundada no diálogo, na relação com o outro. Está idéia permite a possibilidade de todas as dimensões humanas serem desenvolvidas, pois para Buber o educador deve: (...) auxiliar a realização das melhores possibilidades existenciais do aluno, o professor deve apreendê-lo como esta pessoa bem determinada em sua potencialidade... Ele não deve ver nele uma simples soma de qualidades, tendências e obstáculos, ele deve compreendê-lo como uma totalidade e afirmá-lo nesta sua totalidade. (Buber, 2004, p.137, grifo nosso) Não somente enfatizar alguma dimensão e sobrepô-la às outras, mas o que é proposto é desenvolver as dimensões como um todo dentro das possibilidades existentes. Tomamos aqui a meta educacional como uma idéia regulativa 3 porque não encontramos uma pessoa totalmente desenvolvida nas suas dimensões diversas na realidade empírica. Nosso objetivo é refletir e traçar a meta educacional vista do prisma da relação Eu-Tu, trazendo elementos do pensamento de Martin Buber a fim de refletir sobre o processo educacional que contribui na humanização nessa perspectiva. Dentro de nossa proposta a meta educacional está diretamente ligada ao sentido da vida e, sendo assim, pressupomos que há um sentido para a vida, se assim não fosse não faria sentido educar, uma vez que cada um tem o livre arbítrio para escolher qual sentido deve nortear sua existência. Pensar sobre o sentido da vida, ou melhor se há sentido ou não, é algo 3 Cf. Röhr, Ferdinand. A Multidimensionalidade na Formação do Educador. Revista de Educação ACE, v28, nº110, p.100-108. 1999. 3 bastante controverso, não há um consenso sobre isso, uma vez que pensar num sentido para a vida seria dizer que há algo pré-determinado ao qual temos que corresponder, não havendo possibilidade de escolhas, ou então o sentido poderia ser arbitrário e cada um que escolhesse o seu. Dentro da perspectiva de que há um sentido para a vida, colocamos a questão educacional enquadrando-a no que conceituamos aqui como Teorias da Educação de Correspondência, o contrário: Teorias da Educação de Irreverência. Citando alguns exemplos de Teorias de Correspondência temos: (...) a de Platão, em que o homem tem como referência as idéias; a de Aristóteles, em que o homem tem que corresponder às exigências de um desenvolvimento pleno da racionalidade e de uma vida políticosocial equilibrada; as teorias medievais nas necessidades de seguir as idéias cristãs; a de Kant, em obedecer ao imperativo categórico; a de Marx, em corresponder à dialética da história nas mudanças econômicas, políticas e sociais; as teorias neoliberais, que visam adequar as novas gerações ao modelo de sociedade vigente. (Röhr, 2001, p.5). Esses são apenas alguns exemplos, valendo ressaltar que os sentidos variam de acordo com as diferentes posições de pensamento, uns mais fechados outros menos. Dentro dessa visão o homem precisa corresponder a algo que já está determinado. Nas Teorias de Irreverência há uma contraposição de que exista algo pré-determinando nossa existência, ou seja, há a negação de uma referência para nortear nossa vida. Podemos encontrar exemplos dessa corrente de pensamento na filosofia de Sartre, no seu período existencialista, nas teorias anarquistas da Educação, na pedagogia anti-autoritária, a experiência de Summerhill, entre outros. Estando a meta da educação, dentro de nossa perspectiva, convergindo com a meta da vida, entendemos que a busca pela plenitude (integralidade) é o destino que cabe ao homem e na medida em que ele se torna mais completo a liberdade surge como reflexo dessa plenitude, acabando por assim dizer a aparente contradição entre liberdade e destino. Enquadramos a filosofia de Buber dentro das Teorias da Educação de Correspondência, uma vez que ele acredita que há um destino pré-definido que deve guiar o homem, sendo a meta da vida humana: a vida dialógica. 4 Como respaldo teórico nos baseamos no livro intitulado Eu e Tu, principal obra de Buber, onde ele caracteriza de forma mais profunda sua filosofia dialógica e com isso procuramos traçar a meta educacional a partir do prisma da relação Eu-Tu e suas conseqüências para se pensar o processo educacional. Todo procedimento metodológico está baseado na abordagem hermenêutica e na abordagem fenomenológica. 1. Martin Buber Martin Buber nasceu em Viena aos oito de fevereiro de 1878 4 Como uma das . primeiras recordações de sua vida, Buber, com apenas três anos de idade, vivenciou a separação de seus pais. Após o divórcio partiu aos quatro anos para Lemberg, na Galícia, região onde moravam seus avós paternos. Sua mãe por motivos desconhecidos, verdadeiramente o abandonou. O fato do divórcio dos seus pais fora um acontecimento tão marcante na vida do pequeno Buber que está indicado relatar como ele o vivenciou. A família não lhe trazia explicações por aquela separação e seu desejo em rever sua mãe foi guardado em seu íntimo. Buber, ainda muito pequeno, inquieto em saber o paradeiro de sua mãe, questionara à menina que lhe prestava cuidados, sobre a volta de sua mãe. A menina, respondendo sinceramente, afirma que sua mãe não voltaria. Ocorreu neste momento, através de um processo intuitivo, o real entendimento de que sua mãe não voltaria mais. Aos 14 anos Buber voltou a morar com seu pai, porém o contato com sua mãe, desfeito desde muito criança, só fora refeito após 20 anos, quando já adulto, casado e com filhos. Este reencontro foi igualmente marcante na vida de Buber, embora, de tão frustrante, tenha se mostrado um real desencontro. Este triste fato, que ao mesmo tempo serviu de ponto de partida para sua busca de vivenciar momentos autênticos de encontro entre seres humanos, foi relatado por ele no seu livro autobiográfico, estando ele na galeria da sua casa, da seguinte forma: Mais tarde, construí para mim mesmo o sentido da palavra “desencontro”, através da qual estava descrito, aproximadamente, o fracasso de um verdadeiro encontro entre seres humanos. Quando, após outros vinte anos, revi minha mãe, que viera de longe visitar a mim, minha mulher e meus filhos, eu não conseguia olhar nos seus 4 Os dados sobre vida e obra do autor foram coletados da introdução do livro: “Eu e Tu” (1979), escrito pelo tradutor da obra, Newton Aquiles Von Zuben e “Encontro: Fragmentos Autobiográficos” (1991). 5 olhos, ainda espantosamente bonitos, sem ouvir de algum lugar a palavra “desencontro” como se fosse dita a mim. Suponho que tudo o que experimentei, no decorrer da minha vida, sobre o autêntico encontro, tenha a sua origem naquela hora na galeria. (Buber, 1991, p.8) Buber, ao lado de seu avô Salomão Buber, renomado estudioso da tradição e literatura judaicas de Viena, e junto desta família, teve a oportunidade de experimentar a união da tradição judaica autêntica e o espírito liberal da Haskalah 5 Salomão Buber foi um . dos líderes do Haskalah na Galícia, no início do século XX. Foi neste ambiente que Buber tomou respeito pelo estudo, aprendeu o hebraico, teve a oportunidade de ler os textos bíblicos e teve contato com a tradição judaica. Em 1896 estudou na Universidade de Viena, no curso de Filosofia e História da Arte. Buber então se dedicou à literatura, à filosofia, à arte e ao teatro, o que de certa forma contribuiu para seu afastamento temporário das raízes judaicas. Somente no final de seus cursos ele volta-se com profundidade para a tradição judaica. Em Leipzig e Zurique aprofundou-se nos estudos da psiquiatria e da sociologia. Em 1904 recebeu o título de doutor em filosofia. Cedo aderiu ao movimento Sionista 6 , sendo um participante ativo. Porém algum tempo mais tarde chefia uma revolta de cisão do movimento por razões de natureza religiosa e cultural, muito mais do que a política. Discordando da postura política radical promovida pela liderança do movimento, Buber, na verdade, (...) defendeu uma concepção mais ampla do sionismo: uma concepção que fosse, em sua essência, um esforço de libertação e purificação interior e um meio de elevar o nível social e cultural das massas judaicas. (Von Zuben. In. Buber, 1991, p. XVII) 5 Geralmente, “Haskalah” indica o movimento entre os judeus que teve início no fim do século XVIII na Europa Oriental voltada ao abandono da exclusividade no seguimento das normas e tradições judaicas. Admitiu-se a aquisição de conhecimento, maneiras e aspirações de vida moderna das nações que gentilmente permitiram a residência dos judeus. Em um senso mais restrito, o termo denota o estudo do hebraico bíblico e partes da literatura hebraica poética, científica e critica. O termo é algumas vezes usado para descrever o estudo critico moderno de livros religiosos judeus, tais como o Talmude e o Mishna, quando usado para diferenciar esses estudos modernos de antigos métodos usados pelos judeus ortodoxos. Seus aderentes são comumente chamados de Maskilim. 6 Movimento que busca a segregação do povo judeu em uma base nacional e em um território próprio a ele. Especificamente, a forma moderna do movimento que procura para os judeus um lar público e legalmente assegurado na palestina. 6 Em parceria com Franz Rosenweig (1886-1929), traduziu o Velho Testamento do hebraico para o alemão. A tradução do Velho Testamento teve como objetivo e preocupação demonstrar a atitude dialógica de Deus com o povo judeu. Este aspecto dialógico é a intenção de destaque para tal aventura, apresentando Deus na relação com o homem como uma pessoa. Dentro da perspectiva de Buber, a maneira como nos relacionamos com os outros reflete o modo como nos relacionamos com o próprio Deus. A relação com o próximo é este espelho refletindo nossa postura diante de Deus ou do “Tu Eterno”. Entre 1924 e 1933, lecionou Filosofia da Religião na Universidade de Frankfurt. Ao mesmo tempo em que lecionava em Frankfurt, Buber atuava como educador popular de adultos. Nesta sua atividade teve grande preocupação em retornar à origem cultural do judaísmo que se encontrava na situação de diáspora. Para ele a maior importância não estava centrada em criar um estado judeu, mas mais urgente era a preservação das origens culturais do judaísmo, não necessariamente na forma de religião. Em virtude da perseguição nazista, com a ascensão de Hitler ao poder, Buber, em 1936, viu-se forçado a deixar a Alemanha, passando, desde então, a lecionar na Universidade Hebraica de Jerusalém, ensinando sociologia. Pela formação religiosa e filosófica, a cátedra mais indicada para Buber seria em religião ou filosofia, mas por não ser adepto das formalidades religiosas do judaísmo, somente lhe concederam uma cátedra na sociologia. Uma das razões para este acontecimento, através das afirmações de alguns parentes, era a conexão amigável que Buber mantinha com os palestinos. Atitude recriminada pelos conservadores entre os judeus, Buber sempre promovia o diálogo entre judeus e árabes buscando a convivência pacífica. Em Israel, foi importante interlocutor nos anos após a Segunda Guerra Mundial e após a Guerra de Independência de Israel – nos esforços de reaproximação entre árabes e israelenses e no restabelecimento do diálogo com instituições e intelectuais da Alemanha. Buber ganhou o maior prêmio literário da Alemanha, além do Prêmio Erasmo de Roterdã. Foi o autor de numerosas obras nos campos da arte, educação, sociologia, filosofia, filosofia da religião e interpretação bíblica. Martin Buber faleceu em Jerusalém a 13 de junho de 1965, aos 87 anos. 7 O Diálogo como principio fundante no Ser humano Para Buber o diálogo se situa no princípio de tudo. Diálogo significa falar algo a alguém, entrar em relação com algo que me causa alguma reação, que me toca profundamente e vice-versa. Buber, quando propõe falar e descrever uma vida fundada no diálogo, vai além de uma mera análise objetiva sobre a estrutura lógica ou semântica da linguagem, para ele a palavra e o ato de proferi-la carrega consigo o sentido de portadora de ser e é somente através dela que homem pode se introduzir na existência, mas não é ele que a conduz, mas sim ela que o mantém no ser, porém quando Buber fala de diálogo não está se referindo necessariamente, ou se restringindo à linguagem falada, pois o diálogo surge antes mesmo da criação da linguagem falada ou escrita, o autêntico diálogo não carece desse aparato “a linguagem pode renunciar a toda mediação de sentidos e ainda assim é linguagem” (Buber, 1982, p.35). Ou seja diálogo é comunicação, mas pode ocorrer sem o uso da palavra falada, embora ele tenha como característica principal o signo. Todos esses limites, porém, submergem frente ao autêntico diálogo. O mundo pode ser duplo para o homem e isso varia de acordo com sua opção em proferir a palavra-princípio Eu-Tu ou Eu-Isso. As atitudes que fundamentam o mundo do Tu são totalmente diferentes das que fundamentam o mundo do Isso. A primeira, Eu-Tu, diz respeito a um “ato essencial do homem, atitude de encontro entre dois parceiros na reciprocidade e na confirmação mútua” (Von Zuben, 2004, p.32), nos define como ser da relação dialógica. A segunda, Eu-Isso, diz respeito ao mundo experimental, ao mundo das idéias e dos conceitos, uma atitude objetivada onde está contido o modelo sujeito e objeto, passível de normatizações e apropriação meramente utilitária, nos define como ser de relacionamento objetivante. Para Buber o ser humano só se torna, de fato, humano quando ele experiência a relação Eu-Tu. A realização da humanidade se encontra na relação entre os seres, num mundo fundado no diálogo. A relação Eu-Tu pode ser vivida em três esferas diferentes: a vida com a natureza, a vida com os homens e a vida com os seres espirituais, em cada uma dessas esferas o diálogo ocorre de forma diferente. Na esfera que abrange a natureza a relação está aquém da linguagem, na esfera dos homens a relação é algo visível e explicito, na esfera dos seres espirituais a relação é silenciosa, mas ainda sim gera a linguagem. Profere-se a palavra princípio sem que nossos lábios precisem se mexer. 8 Quando proferimos o Tu não temos nenhum objeto em mente, não enxergamos àquele com o qual dialogamos de forma parcial, ao contrário captamos esse ente em toda sua essência, mas sem procurar reter qualquer qualidade, não há intenção de decompor o ser com o qual eu entro em relação, nesse momento o Tu não está confinado a nada. No mundo do Isso, enxergamos tudo em forma de parcialidades ou o todo como uma simples soma de qualidades, já vamos intencionados em avaliar, classificar, atribuir conceitos frente àquilo que estamos vendo. Buber sinaliza que existem três formas de perceber as coisas ao nosso redor. Na primeira forma [o observador] nós tentamos capturar o objeto nos seus mínimos detalhes, queremos anotar o máximo possível de suas qualidades, numa segunda atitude [o contemplador], não estamos necessariamente preocupados com esses detalhes, procuramos deixar o objeto livre. Não temos intenções para com aquele objeto, embora possamos tê-las no início, capturamos apenas àquilo que sentimos que é essencial. Num terceiro momento entramos em relação com esse algo, não podemos captá-lo de maneira objetiva, e sentimos que ele, de alguma forma tem a ver conosco, ele diz algo que se introduz profundamente em nossa vida, em nosso ser. A cada evento de relação saímos de forma diferente, pois algo nos toca, algo se modifica. Nesse caso não posso de forma alguma descrever o ente com o qual entro em relação, pois se assim o fizesse estaria impossibilitando o dizer Tu. Essa forma de perceber as coisas é o que Buber chama de: Tomada de conhecimento íntimo, quando eu percebo o outro na sua diferença, quando eu o percebo como único, com sua maneira de ser própria. Somente assim posso dirigir-lhe a palavra, somente assim posso dizer Tu. Isso não significa que devo abrir mão do meu jeito, de minhas opiniões, de minhas convicções e peculiaridades, basta apenas que eu o aceite como um ser que diverge de mim nos seus mais variados aspectos, uma criatura singular, se assim não fosse não faria sentido dialogar com iguais. O diálogo é baseado na alteridade e no respeito mútuo dessas diferenças. Aquilo de que tomo conhecimento íntimo não precisa ser, de forma alguma, um homem; pode ser um animal, uma planta, uma pedra. Nenhuma espécie de fenômeno, nenhuma espécie de conhecimento é fundamentalmente excluído do rol das coisas através das quais algo me é dito todas às vezes. Nada pode se recusar a servir de recipiente à palavra. (Buber, 1982, p.43) 9 Aqui Buber afirma que podemos entrar em relação com qualquer coisa, pois cada um delas tem uma forma peculiar de responder ou de lançar um apelo a nós, uma vez que a linguagem dialógica está situada numa dimensão espiritual e, portanto uma linguagem universal que não se limita a nenhum conceito e da qual todos os seres tem acesso, basta que ele esteja em consonância com o todo. Pensemos o homem com um ser composto de quatro dimensões basicamente: a dimensão físico-sensorial, a dimensão emocional, a dimensão racional e a dimensão espiritual que é a mais sutil de todas. A tendência, salvo algumas exceções, é desenvolvermos nossas dimensões mais densas em detrimento do espiritual 7 Para . que o homem possa entrar num evento de relação ele deve estar em harmonia com todas as suas dimensões. Para todas essas dimensões existe um tipo de linguagem, uma forma de expressá-las, porém o espiritual é a única dimensão da qual não podemos dispor de conceitos. Assim, uma vez que o diálogo é de natureza espiritual não podemos aqui descrevê-lo de forma conceituável. Sendo assim nos dois primeiros exemplos: o observador e o contemplador, ambos tentam apreender as coisas a partir de um processo analista, elas nada têm a ver com esse homem, elas não lhe dizem nada. Já na tomada de conhecimento íntimo eu “me coloco de forma elementar em relação com o outro, portanto quando ele se torna presença para mim.” (Buber, 1982, p.147) A relação dialógica, o dizer Eu-Tu não se confina a nada. Buber cita o exemplo de uma árvore: podemos, numa atitude Eu-Isso, apreendê-la em suas qualidades, classificá-la, decompor sua estrutura, etc. Ela é um objeto de observação, porém pode ocorrer que num dado momento eu passe a enxergá-la em sua totalidade, todas as minhas considerações concernentes a ela estão unidas numa relação e não mais separadas, todos os seus elementos, seus mecanismos, sua cor estão incluídos numa totalidade, eu e ela, embora de forma diferente temos a ver um com o outro. Ela deixa de ser um objeto (Isso) para ser meu Tu, considerando toda a sua exclusividade, ela se apresenta em pessoa. Quando entramos no mundo da relação não podemos ter nenhuma experiência do Tu, diferentemente do mundo do Isso que é repleto de conteúdos e conceitos, embora todo Tu esteja sujeito por obrigação a tornar-se logo em seguida termine o evento de relação num Isso que, por sua vez, pode a qualquer momento fazer parte de um evento de relação, transformando-se em um Tu. 7 O espiritual, aqui colocado, nada tem a ver com religiosidade. Não pensamos o espiritual como a ligação a uma determinada doutrina religiosa, com seus dogmas e formalidades que, muita vezes, nada tem a ver com a autêntica espiritualidade.O espiritual é colocado aqui como uma realidade primordial que está situada além do alcance de nossa razão. 10 Um dos exemplos que Buber usa para representar o homem ontologicamente dialógico encontra-se na vida pré-natal da criança que, no caso, não é só uma relação com o ente materno, mas existe também um vínculo cósmico, embora esse vínculo seja “esquecido” a partir de seu nascimento, porém “permanece nele como uma imagem secreta de seu desejo.(...) A nostalgia da procura do vínculo cósmico, do ser que se desabrocha ao espírito com seu Tu verdadeiro”. (Buber, 2004, p.68). Sendo assim toda criança e todo ser em formação “repousa no seio da grande mãe, isto é, do mundo primordial indiferenciado e que precede toda forma.” (Idem) A criança se desliga desse elo cósmico 8 para uma vida pessoal, porém ela leva um tempo para substituir essa ligação, por uma ligação que Buber caracteriza como: ligação espiritual. Isso ocorre na medida em que ela contempla o seu mundo, buscando interagir com ele, ela vai ao encontro das coisas que se lhe defrontam e o mundo se revela para ela, a priori, a partir do encontro na reciprocidade do face-a-face. A originalidade da aspiração de relação já aparece claramente desde o estado mais precoce e obscuro. Antes de poder perceber alguma coisa isolada, os tímidos olhares procuram no espaço obscuro algo de indefinido (...) é sem finalidade, ao que parece, que as suaves e pequeninas mãos gesticulam, procuram algo de indefinido no vazio (...) estes olhares, depois de minuciosas tentativas, se fixarão em um arabesco vermelho de um tapete e dele não se desprenderão até que a essência do vermelho se lhes tenha revelado. (...) não se trata de uma experiência de um objeto, mas de um confronto, que sem dúvida se passa na “fantasia”, com um parceiro vivo e atuante (Esta “fantasia” não é de modo algum, uma “animação”: ela é o instinto de tudo transformar em Tu, o instinto de relação [...]) (Buber, 2004, p.69) O que Buber pretende mostrar com isso é que o homem é originariamente um ser dialógico, há nele, mesmo que latente, o instinto de relação. Na criança ocorre a forma primitiva e não-verbal do dizer Tu. A separação entre objeto e sujeito é um produto posterior advindo da dissociação daquelas experiências primordiais. O Tu inato atua desde cedo, surge essa necessidade de contato, de relação e dessa mesma necessidade surge o instinto de conceituar, decompor, separar, diferenciar, analisar as coisas e na alternância desses modos de 8 Elo cósmico = força divina [espiritual], a força natural que emerge do poder universal da qual provém toda ação essencial. *[Essa força da qual provém todo ato essencial [o encontro], é a força que está no princípio de toda relação: o espiritual. Buber diz que a cada encontro nós vislumbramos a orla do Tu eterno, cada evento de relação só pode ocorrer a priori na dependência dessa ligação do homem com Deus [o Tu Eterno]. “o em cima e o embaixo estão ligados um ao outro. A palavra daquele que quer falar com os homens, sem falar com Deus, não se realiza; mas a palavra daquele que quer falar com Deus, sem falar com os homens, extravia-se”.(Buber, 1982, p.48). Mais à frente de nosso texto discorreremos de maneira sintética sobre a forma como Buber define Deus, que é diferente da forma como usualmente o entendemos.] 11 se relacionar com o mundo, o Eu vai ganhando cada vez mais consciência de si, isso ocorre de forma crescente, até que a ligação se desfaz, mas o instinto de relação permanece. Embora em alguns momentos de alternância dessa relação o Eu tenha se separado do Tu, não necessariamente quer dizer que o Tu se transformou num Isso, num objeto passível de experimentação, como ocorrerá posteriormente. O Tu se tornou um Isso num breve momento, apenas esperando o ressurgimento de um evento de relação. A separação definitiva entre sujeito e objeto ocorre quando o homem dá vazão as suas sensações físicas, quando ele se vê portador de sensações próprias, na medida em que ele começa a se distinguir do seu ambiente. (...) o Eu desligado se encontra transformado. Reduzido da plenitude substancial à realidade funcional e unidimensional de um sujeito de experiência e utilização, aborda todo “Isso-em si”, apodera-se dele e se associa a ele para formar outra palavra principio. (Buber, 2004, p.71) Nesse momento o homem torna-se parcial, e sua plenitude, sua consonância com o Universo se perde, ele se coloca à frente das coisas, ao invés de confrontá-las no face-a-face. Ele agora se volta para o mundo como um observador que deve captar as coisas nos seus mínimos detalhes, colher suas qualidades, conceituá-las. Ele passa a enxergar as coisas de forma parcial, perdendo assim o sentimento de universalidade que antes o levava a entrar em relação com o mundo, ele deixa a plenitude para experimentar uma simples soma de qualidades. Quando isso ocorre, ele começa a ordenar o mundo dentro de uma relação espaçotemporal-causal, as coisas do mundo se tornam mensuráveis e ele passa a determinar sua evolução e qual o lugar das mesmas, porém ele não percebe que “o mundo ordenado não significa [necessariamente] a ordem do mundo”.(Buber, 2004, p.72, grifo nosso). Sem dúvida, quando o homem passa a ter o poder de “ordenar” o seu mundo e as coisas, este mundo passa a lhe inspirar confiança, até certo ponto, fazendo com que ele se sinta mais confortável na medida em que acredita que tem controle sobre as coisas que o cercam, um mundo passível de experimentação e utilização, que “permanece” segundo a sua vontade. (...) fazes dele tua “verdade”, ele se deixa tomar nas mãos, mas não se entrega a ti. Ele é o único objeto a respeito do qual tu podes “entender” com o outro. Mesmo que ele se apresente de um modo diferente a cada um, ele está pronto a ser para ambos um objeto 12 comum, mas nele tu não podes te encontrar com o outro. Sem ele tu não podes subsistir, tu te conservas graças à sua segurança, mas se te reabsorveres nele, será sepultado no nada. (Buber, 2004, p.72) As experiências não ocorrem entre o homem e o mundo, mas somente no homem ou fora dele, o fora e o dentro não se cruzam em nenhum momento, o homem nada tem a ver com o mundo e vice-versa, nada o atinge. Não há encontro, nada se modifica, tudo permanece na inércia. O homem, a partir de então, faz questão de esquecer sua característica primordial. Ele deixa sua existência à margem do nada, e procura, mesmo que de forma muitas vezes inconsciente, criar mecanismos de defesa contra a palavra que lhe é dirigida, contra o ente que se lhe defronta convidando-o num incessante apelo a entrar num diálogo, embora o gérmen da relação esteja de forma latente em seu interior. O fato de não querermos estar atentos advém da necessidade que sentimos em controlar e dominar as situações que se apresentam em nossa vida. O mundo cientifico, que tem por finalidade, de um modo geral, a objetividade e a utilização do mundo e das coisas, faz com que haja um crescente desenvolvimento do mundo do Isso e Buber critica, em certo ponto, a ciência quando diz que ela tem a tendência a assegurar ao homem: Sê tranqüilo, tudo acontece da forma como tem que acontecer, mas nada é dirigido a ti, não se trata de ti; este é simplesmente o “mundo”, tu podes vivenciá-lo como queres, mas o que quer que seja que em ti dele faças, provém de ti somente; nada é exigido de ti, a palavra não te é dirigida, tudo é silêncio. (Buber, 1982, p.43) O existir se torna carente de eventos de relação, distinguindo-se da época em que o homem pronunciava o Tu que já era inato a ele. Um dos motivos que nos faz optar em não querer vivenciar o mundo da relação, é o fato de que o evento de relação se encontra fora da “ordem” costumeira de nosso mundo, não temos controle sobre ele, não podemos manipulá-lo, nada podemos guardar dele, pois ele se revela a cada vez de um modo diferente. Eles tornar-se-iam mais constantes se estivéssemos mais atentos e abertos ao apelo dos entes com os quais nos defrontamos a todo instante, pois Buber coloca que esses eventos de relação não estão situados fora do âmbito de nossa vida cotidiana, ao contrário todos os eventos do mundo e de nosso dia a dia são palavras dirigidas a nós, podem se transformar em encontros. No mundo do Isso nada parece escapar de nosso 13 domínio e isso nos conforta trazendo-nos uma aparente tranqüilidade e por vivermos tão enclausurados nesse mundo utilitário os eventos de relação, tão raros de acontecer, nos parecem demasiadamente místicos ou fora de nossa realidade concreta, fazendo com que duvidemos de sua autenticidade e veracidade. Toda vida atual é encontro, as relações acontecem no presente, embora não devamos entender o presente aqui colocado como se estivéssemos situando o mundo do Tu dentro de uma percepção espaço-temporal, pois aquele que diz Tu, no momento da relação transcende esses limites, presente significa o instante atual e não o instante pontual no sentidos das horas, do tempo convencional. Presente significa o Eu e o Tu plenamente presente, o momento do encontro rico de presença que “não é algo fugaz e passageiro, mas o que aguarda e permanece diante de nós.” (Buber, 2004, p.60) O mundo do Isso é coerente no tempo e no espaço, o Isso vive de/no passado, o mundo está aprisionada no tempo histórico ordenado a partir de uma lógica espaço-temporal convencional que ajuda a ordenar o que em sua origem tem por principio uma ordem diferente e até certo ponto desconhecida. O Eu da palavra princípio EuIsso não está com nenhum Tu face-a-face, porque ele é egocêntrico 9 , é um ser que vive uma vida monológica, ele se volta para si mesmo e toma consciência de si como sujeito de experiência e utilização. O Eu que diz Tu surge como pessoa e toma consciência de si como subjetividade, ele é um ser de vida dialógica, está num constante voltar-se para o outro, surgindo no instante em que entra em relação com outras pessoas, no momento em que eu estou agindo sobre o outro. Os motivos pelos quais eu entro em relação não devem ser confundidos em termos de sentimentos ou com afetividade, que pertencem ao domínio do emocional, embora eles possam acompanhar esse evento. Quando meu Ser profere o Tu, não está se restringindo aos entes que me são queridos, não se trata do gostar e do não gostar, isso seria limitar o meu dizer. O encontro desconhece os limites dos, às vezes, efêmeros e condicionados sentimentos que acompanham o ser humano. Quem vive no mundo do Isso está destinado a cair na fatalidade, pois a vida, como a entendemos normalmente, é construída em cima de experiências: nascemos, crescemos, morremos num ciclo de causalidades, tudo começa e termina, pois nada mais é do que uma experiência que tem o seu começo, meio e fim: “todo o fenômeno ‘físico’ perceptível pelos sentidos e cada fenômeno psíquico pré-existente ou que se encontra na experiência própria, passa necessariamente por causado e causador” (Buber, 2004, p.84). Acreditamos que a vida 9 Buber procura deixar claro que quando ele está falando do ser egoísta, não está descartando àqueles que se dizem altruísta, pois não é a esse tipo de diferenciação que ele se refere: “o egoísta” e “o altruísta”. Pois existem inúmeras pessoas que se dizem solidárias em suas ações sociais para com os outros, e no entanto nunca entraram num evento de relação com os mesmos. 14 mortal é a autêntica vida, porém Buber sinaliza que o berço da verdadeira vida pertence ao domínio do Tu, mesmo que vivamos a maior parte dela presos ao mundo do Isso, não estamos limitados a ele, uma vez que poderemos sempre nos evadir para o mundo da relação. No momento do encontro o Eu e o Tu se relacionam entre seres livres, uma liberdade que não está condicionada a nenhuma causalidade, na relação “o homem encontra a garantia da liberdade de seu ser e do Ser” (Buber, 2004, p.85). Para Buber a vida mortal nada mais é do que uma oscilação entre o Tu e o Isso, e o homem passa a ter garantia de sua liberdade e não mais ser oprimido pela causalidade quando ele mantém uma atitude de abertura e não reservas, numa intenção constante de viver encontros plenos de presença, alguém que busca enxergar e viver sua existência, não em parcialidades, mas numa caminhada contínua por sua plenitude, não relegando ao esquecimento nenhuma de suas dimensões que permitem a ele, uma vez que estão em consonância, em raros momentos emergir do mundo do Isso revelandolhe o eterno, momentos esses que se introduzem profundamente em sua vida mortal, modificando de forma significativa sua maneira de existir no mundo. Seu destino não lhe parece mais uma fatalidade ou um puro evento envolvido numa trama de causas e efeitos, mas sim se apresenta como uma réplica de sua liberdade, não sendo mais seu limite e sim seu complemento, “liberdade e destino unem-se mutuamente para dar sentido; e neste sentido o destino, até há pouco olhar severo suaviza-se, como se fosse a própria graça” (Buber, 2004, p.86). Nesse instante constatamos que Buber acredita que o destino do homem é a plenitude, existe algo ao qual ele deve corresponder. Mas esse destino não se apresenta como algo fechado e obscuro, o destino enxergado desse prisma faz parte do mundo do Isso, “o destino sábio e soberano que, harmonizado com a plenitude de sentido do universo, reinava sobre toda causalidade primitiva” (Buber, 2004, p.87) , na medida em que o homem entra no domínio do Isso ele também cai nessa causalidade. 15 A Meta Educacional na perspectiva de Buber Tracemos agora um paralelo entre a meta educacional e a visão de Buber tendo como intuito principal, a partir do seu pensamento, dar suporte para uma meta da educação que vise à formação humana. De início o que podemos perceber a partir do que foi exposto acima, é que a meta educacional na perspectiva da filosofia buberiana deve estar voltada para a formação de um ser integral, em busca da plenitude, da vivência com o outro numa perspectiva dialógica, o mundo da relação que o permite experimentar por um instante o Todo, momento esse que reflete de forma essencial em sua visão sobre o mundo. Nesse sentido a meta educacional não está submetida a interesses unilaterais de grupos específicos, que carregam consigo suas próprias visões de mundo. Deixando claro que, de qualquer forma, é impossível e até mesmo não desejável formar alguém fora de uma visão de mundo, porém a questão principal é: até que ponto essa “visão de mundo”, que se toma como o princípio para educar, favorece ou obstrui a relação do educando com o mundo vivente em relação ao “mundo” contemplado? Para Buber é importante que analisemos qual conceito de formação temos em mente a partir do mundo atual percebendo e compreendendo que para se chegar a algum lugar é importante vermos de onde partimos, sendo assim não basta se direcionar a algo, mas também, e essencialmente, de onde parto para ir buscar esse algo. Buber então coloca que o ponto de partida de uma visão não pode ser qualquer coisa, não pode ser algo que dependa de um convencimento que parta de mim mesmo, tem que ser algo que difere do meu ponto de vista, da forma como eu vejo e assumo as coisas e o mundo. Ele diz que precisa ser um sustento verdadeiro, o que ele chama de uma realidade primordial, um princípio que, independente das contrariedades da vida, que seja incondicional para mim, um princípio que nunca perde sua validade e que está presente na forma como eu guio minha vida, “uma realidade que me gerou e que quando eu tenho confiança nela ela é capaz de me sustentar, de me proteger e de me formar” (Buber, 1969, p.42 10 ). Sendo assim o intuito de formação precisa estar voltado para um trabalho que proporcione, tanto ao educando quanto ao educador, a abertura, o acesso a essa realidade primordial, as forças formativas que essa origem contém e que aos poucos foram se perdendo e diminuindo. Essa realidade primordial de onde advêm as forças formativas, como já foi colocada, é a capacidade dialógica do ser humano. O dialógico não é algo que podemos manipular, mas podemos nos guiar e guiar nosso educando em direção a isso. São “forças específicas e fundamentais que ainda não são étnicas e tão pouco 10 Não existe tradução original em português desse livro, a tradução foi feita em grupo de estudo para fins de debate sobre a filosofia de Buber. Retirada do original: Reden über Erziehung (Discursos sobre Educação). 16 são de natureza religiosa [nem política, nem econômica, nem social, etc.], mas as duas coisas em conjunto e mais, e ainda coisas diferentes...” (Buber, 1969, p.43). Existe portanto uma totalidade que advém dessa realidade primordial, que abrange o Todo e o que retiramos desse Todo deve ser integrado e adaptado à situação concreta, ao momento presente, aquilo que o homem necessita, não deve estar além ou aquém de sua vida atual. A formação colocada dessa forma está voltada para o mundo e não para visões de mundo específicas, porém esse trabalho de formação não pretende substituir “(...) as visões de mundo pelo mundo; ele não pode impor o mundo, nem pode querer isso; ele sabe que o desenvolvimento de uma pessoa (...) depende do fato de até que ponto [essa pessoa] vai lidar com o mundo mesmo. Esse mundo que as visões de mundo interpretam.” (Buber, 1969, p.43 e 44, grifo nosso). Esse processo de formação que visa à relação dialógica, a plenitude do individuo, questiona as várias visões de mundo que tendem a separar “o mundo” e consequentemente o individuo conforme seu entendimento e vêem na educação uma ponte para tal finalidade. A abertura por parte do educador para a vivência da relação Eu-Tu se mostra deveras pertinente na medida em que ambos se beneficiam de forma significativa desse encontro, uma vez que, para Buber a realidade primordial, o Todo, só pode ser contemplado numa unicidade, essa unicidade só pode ser vivenciada com o outro, na relação com o outro. Não outro igual a mim, mas outro diferente de mim, com pontos de vista diferentes de mim. A meta educacional dentro dessa perspectiva faz com que o educador assuma uma outra postura frente ao educando e também frente a sua própria vida, pois exige dele um amadurecimento pessoal que refletirá na execução de seu trabalho. A tarefa educacional vista desse paradigma mostra que não existem fórmulas prontas, técnicas específicas que possam favorecer o educador em termos meramente práticos, uma vez que nós educadores, de um modo geral, estamos à espera de uma solução pronta como se esquecêssemos, por um momento que estamos lidando com seres humanos, pessoas com subjetividades próprias e não com coisas e objetos passiveis de mera manipulação. Sendo assim parece-nos mais conveniente e confortável que nos fechemos para o mundo da relação, pois como Buber coloca é mais fácil lidarmos com aquilo que parece estar sobre o nosso controle, com o mundo do Isso e não da relação, optamos por não ter que nos comprometer demasiadamente 17 com o outro. Dessa forma os educadores jogam a culpa do insucesso de seu trabalho e da indeterminação de sua atuação nas condições externas a ele que são de naturezas diversas. O que se propõe aqui é um trabalho pedagógico voltado para o resgate da condição ontológica do homem: o ser dialógico que em sua origem se encontra dentro de uma totalidade e que apenas mais tarde se decompõe em variadas faces, perdendo a ligação, embora não total, com o Universo. A ruptura dessa ligação ocasiona danos para sua evolução humana, estagnando-o e impedindo-o de adentrar no mundo da verdadeira existência. Vê-se portando o quão importante é pensar num trabalho pedagógico que se volte para a formação humana e que proponha extrair do homem o que lhe é essencialmente humano. Nesse trabalho que propõe a vivência da relação Eu-Tu por ambas as partes, tanto educador quanto educando, visa o encontro de seres que nesse momento complementam um ao outro, que estão no caminho da busca pela plenitude, exige de ambas as partes uma constante abertura para que o evento de relação ocorra. Dessa forma podemos concluir, a partir do que foi exposto, que a meta da educação não estará mais limitando a formações do Ser em instâncias específicas, mas sim estará preocupada em enxergá-lo como um todo. Nesse sentido a educação estará trabalhando na formação de um Ser mais completo, que é a condição primordial, para que o mesmo possa viver eventos de relação, eventos esses que o permitem adentrar no mundo da verdadeira existência. Na medida em que eu me fecho para o mundo da relação, deparo-me com a estagnação de minha existência, torno-me um Ser utilitário e que, da mesma forma que experimenta e utiliza as coisas do mundo, torna-se uma coisa decomponível e passível de experimentação. Embora não tenhamos por intenção condenar de todo o mundo do Isso, pois ele tem suas utilidades, percebemos que há um demasiado crescimento dessa forma de ver o mundo. O diálogo está desaparecendo e havendo uma crescente monologização do comportamento humano, e a educação é comumente colocada como um meio para o crescimento do mundo do Isso, pois raramente encontramos propostas pedagógicas que se preocupem com o desenvolvimento do lado humano no homem, ele é apenas visto como um meio para fins que convergem para o mundo do Isso e não das relações. Sendo assim, esse trabalho se mostra pertinente, na medida em que dá embasamento à perspectiva de situar a meta educacional dentro de uma visão que abrange o homem em todas as suas dimensões, onde a ação dialógica trazida por Buber, refere-se a uma postura em que ambas as partes envolvidas no processo possam perceber o outro na sua totalidade, não como objeto. Na relação pedagógica, a tarefa de perceber o outro é somente do educador e nesse sentido o 18 diálogo se faz incompleto. Quando o educando corresponde a esta tentativa de diálogo, termina a relação pedagógica e inicia a dialógica que permite aos dois viverem o evento de relação, onde cada um influencia a existência do outro, tornando a convivência pedagógica entre educador e educando numa constante abertura de possibilidades para a relação dialógica. A relevância deste trabalho pode ser compreendida na importante discussão teórica sobre o tema em estudo com repercussões na prática pedagógica, trazendo reflexões bastante pertinentes que nos tocam no cerne da questão: “Educar para quê?”, e em que medida, de fato, podemos considerar nosso ato sobre o outro como um ato autenticamente educativo. 19 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUBER, Martin. Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982. ______. Eu e Tu. 8ª edição. São Paulo: Cortez & Moraes, 2004. ______. Encontro: Fragmentos Autobiográficos. 4ª edição. Rio de Janeiro: Vozes, 1991. ______. Reden Über Erziehung. Heidelberg: Verlag Lambert Schneider, 1969. RÖHR, Ferdinand. A Ética Pedagógica no Pensamento de Martin Buber. In: XV Encontro de Pesquisa Educacional do Nordeste – XV EPENN. Universidade Federal do Maranhão. São Luis, 2001. ______. A Multidimensionalidade na Formação do Educador. In: Revista de Educação AEC. Paixão e Educação, nº110, p.100-108, 1999. ______. Ética Pedagógica na Educação Espiritual – Um Estudo Comparativo. In: 24ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Caxambu, Anais, 2001. ______. Liberdade ou Destino: Reflexões sobre a Meta da Educação. In: Revista de Educação e Cultura. II Encontro de Filosofia da Educação. Salvador, Anais, 2003. ______. O Caminho do Homem Segundo a Doutrina Hassídica, por Martin Buber – Uma Contribuição à Educação Espiritual. In: 24ª Reunião Anual da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação. Caxambu, Anais, 2001. http://elogica.br.inter.net/ferdinan/robertagulart_tra.pdf