Será que a linguagem determina a cultura? As posições de Humboldt e Cassirer em torno desta questão Bernhard Josef Sylla (Universidade do Minho) 1. Notas preliminares (PP1) Nesta comunicação, pretendo debruçar-me sobre a questão geral da influência da linguagem sobre a cultura, partindo de uma interpretação da obra de Wilhelm von Humboldt. Basta considerar os títulos de várias obras humboldtianas sobre a linguagem para entender que a questão da influência da linguagem sobre o desenvolvimento do espírito, da literatura, das ideias e da humanidade em geral (cf. über den Einfluss der Sprache auf Geistesbildung, Ideenentwicklung, Literatur, geistige Entwicklung, das Menschengeschlecht etc.) estava no centro das preocupações de Humboldt. Sabendo da notória vaguidade com a qual Humboldt usava termos técnicos, poder-se-á, sem distorcer as intenções humboldtianas, reunir as variantes terminológicas sob o tecto do termo de cultura, uma vez que este último também faz parte do leque das variantes usadas por Humboldt. 2. As quatro definições da essência da linguagem em Humboldt Humboldt apresentou quatro definições muito diferentes da essência da linguagem, com uma peculiaridade assaz interessante: cada uma das quatro definições é formulada apodicticamente, de tal forma que as quatro definições se excluem reciprocamente, ou seja, cada uma delas reclama o direito de ser a definição mais essencial e mais fundamental. Humboldt não dissolve esta aporia discursivamente, confrontando o leitor da sua obra com uma dialética insuperada e textualmente encenada, como se não quisesse tirar a nenhuma das definições o seu ‘label de distinção’. Daí que pareça lícito ver na concepção de Humboldt uma versão holística da Filosofia da Linguagem que nos fornece algo como um prisma de posições muito heterogéneas sobre a linguagem que, pela sua diversidade, se completam mutuamente. Para elucidar o caráter específico de cada uma das definições, usarei os célebres termos de langue, parole e langage de Saussure sem pretender com isso que os termos devam ser entendidos num sentido estritamente saussuriano. Passo então às quatro definições humboldtianas da essência da linguagem: (PP2-12) (1) A linguagem é essencialmente linguagem humana e universal (langage no sentido universal), ou enquanto língua una, characteristica universalis, hyperlangue, ou enquanto competência linguística universal do homem. O traço que se destaca nesta definição é o da universalidade. (2) A essência da linguagem encontra-se nas línguas particulares, portanto nas langues enquanto línguas maternas, cujas estruturas, ou seja, cujas respectivas formas internas determinam o pensamento, a fala individual e o agir dos seus falantes. A língua materna é um poder (= Macht) que se impõe aos seus falantes. (3) A essência da linguagem está no uso da língua, na parole, que, em caso ideal, possui a força de mudar e até transformar o sistema da langue. Nesse caso específico, a parole exerce uma influência ‘violenta’ (= Gewalt), usurpativa e renovadora sobre a langue. (4) A linguagem é essencialmente diálogo. Se não houvesse diálogo, se não houvesse nenhum outro sujeito que me respondesse, não haveria linguagem nenhuma (nem razão). Apenas a espontaneidade de uma resposta livre de um outro sujeito garante, afirma e constrói a objetividade e a subjetividade. A linguagem nasce do diálogo entre sujeitos autónomos. O traço essencial desta definição é a intersubjetividade. 3. Utilidade metodológica das quatro definições da linguagem (PP13) Qual é então a especificidade destas quatro definições da linguagem, nomeadamente no âmbito do tema deste congresso? Gostaria de lançar aqui duas teses que tentei fundamentar já em vários outros estudos: Tese 1: Penso que é possível encarar muitas das versões da Filosofia da Linguagem continental e algumas da Filosofia da Linguagem pós-analítica como desenvolvimentos de, respetivamente, uma das quatro definições da essência da linguagem fornecidas por Humboldt, sem que isso fosse, em cada caso, a intenção explicitamente declarada do respetivo autor desse desenvolvimento. Tese 2: (PP14) Penso que o favorecimento de uma das quatro definições se traduz não apenas na formação de paradigmas bastante divergentes das Teorias da Linguagem, mas também na formação de paradigmas diferentes de concepções culturais. Com Humboldt poder-se-á, até mesmo, supor que as respetivas concepções culturais se formam em dependência da escolha do paradigma linguístico favorecido. 3.1. Aplicação no âmbito das teorias da linguagem Dando alguns exemplos explicativos para a primeira tese, o enfoque filosófico na hyperlangue corresponde, de modo geral, a uma teoria que tende a identificar o factor mais importante da linguagem ou com a razão humana, enquanto organon universal do pensamento (e.g. Husserl, Hönigswald ou o Humboldt kantiano), ou com um logos/espírito supra-individual (e.g. Cassirer) ou com a competência linguística universal (e.g. Chomsky). O enfoque nas langues particulares corresponde a teorias que partem do princípio que a estrutura de uma respetiva língua materna determina o modo de pensar e de agir dos seus falantes (e.g. Whorf, Weisgerber). O enfoque na dialogicidade parte do princípio que a linguagem, enquanto nexo de atos de fala, se prende, em última instância, ao debate e ao diálogo, ou seja, usando as palavras de Habermas, à negociação racional sobre as verdadeiras pretensões de validade levantadas por cada locutor em atos de fala (e.g. Habermas / Apel / de maneira diferente em Gadamer). O enfoque na parole ‘violenta’ ou revolucionária parte do princípio que a langue, ou seja a linguagem enquanto língua, estrutura ou sistema, pode ser modificada, transformada e até revolucionada mediante usos estético-criativos da linguagem. Estes usos heterodoxos não apenas revolucionariam as normas do sistema langue, mas estariam, para além disso, na origem de alargamentos e mudanças do horizonte da interpretação humana do mundo (e.g. Heidegger, Rorty, Ricoeur, Blumenberg, Josef Simon, Goodman, Barthes, Eco). O seguinte esquema (PP15) apresenta algumas características metódicas e hermenêuticas destes quatro paradigmas. Os quatro paradigmas da Filosofia da Linguagem (continental) Orientação metódica Tipo de hermenêutica - Orientação no sistema - A hermenêutica como descoberta do hyperlangue universal universal (Husserl, Hönigswald, Cassirer, - Problematização da Chomsky) transcendentalidade Filosofia do langage ou da Filosofia da langue (Whorf, Weisgerber) - Orientação no sistema particular - Método estruturalista - A hermenêutica das estruturas - A hermenêutica como comparatística universal Filosofia da dialogicidade - Método pragmático (Habermas, Apel) - Com fundamentação justificação e negociação de sistemática pretensões de validade Filosofia da parole (Nietzsche, Heidegger, Goodman, Ricoeur, Eco, Barthes, Blumenberg, Rorty) - Evocação de valores e procedimentos estéticos - A hermenêutica como interpretação, - A hermenêutica poética - A hermenêutica das metáforas Não é intenção minha mostrar aqui a utilidade sistemática deste esquema para a interpretação de muitas das teorias filosóficas da linguagem. Pretendo apenas chamar a atenção para dois aspetos interessantes. Quanto às teorias que se enquadram habitualmente na tradição da Filosofia da Linguagem continental, verifica-se uma característica comum: todas elas favorecem claramente um dos quatro paradigmas mencionados, sem, no entanto, assentar nele de forma exclusiva. Muito antes, procuram apoiar-se em mais um dos quatro paradigmas. Darei, muito resumidamente, quatro exemplos: (PP16-19) Autor Paradigma favorecido Paradigma auxiliar Cassirer Hyperlangue: Langue: O pensamento é As diversas línguas maternas linguisticamente. determinam o pensamento dos Esta determinação desenvolve- seus falantes, mas apenas na se e realiza-se historicamente. A fase média do desenvolvimento história deste desenvolvimento do Logos, tratando-se portanto terminará na construção do de um factor a longo prazo reino do Logos universal. superável. Langue: Hyperlangue: As diversas línguas maternas Aspira-se à construção de um determinam o pensamento e o conhecimento agir dos seus falantes. estruturas determinado Whorf humano de todas (particulares) as do pensamento humano, através do trabalho da Linguística comparativa. Habermas Dialogicidade: Langue: Questões universais de validade Mesmo (verdade, correcção, horizonte dificilmente analisável negoceiam-se que é o background das nossas mediante diálogos orientados convicções e verdades à partida na racionalidade justificadora. aceites porque impostas pelo sinceridade) assim, existe um apriori da língua materna. Heidegger Parole: Langue: É urgente a libertação dos As grilhões da transportam e inculcam modos Metafísica, ao revolucionar a de pensar. São elas os agentes nossa fala. A fala revolucionária da tradição (e responsáveis pelo tem de e deve destruir a língua declínio da História línguas da maternas História da enquanto norma e sistema. Metafísica devido às suas ‘más’ traduções). No que concerne à tradição da Filosofia da Linguagem anglo-saxónica (PP20), ou seja, atentando às respetivas críticas de Dummett, austro-germânica e só seguidamente anglo-americana, as respetivas teorias da linguagem concentraram-se inicialmente sobretudo no modo como a linguagem se relaciona com aquilo que através dela é denotado ou referido. A instância do referido ou denotado tornou-se, porém, no decurso do desenvolvimento desta tradição numa instância cada vez mais precária. E quanto mais precária se tornou, mais imperativamente surgiram questões que se detiveram em aspectos pertencentes à tradição continental. O surgimento de questões como a indeterminação da tradução (Quine), a influência do potencial significativo das diversas línguas maternas (Wittgenstein, Quine, Strawson, Putnam), a pragmaticidade a nível do discurso e das teorias (Wittgenstein II, Morris, Carnap, Quine) e o potencial revolucionário da ‘parole’ (Goodman, Rorty, Davidson) são indícios fortes de que as duas tradições, temporariamente muito afastadas, voltarão (ou já voltaram) a aproximar-se. 3.2. Aplicação no âmbito das teorias da cultura Passo a uma breve explicitação da Tese 2. Não entendo esta tese como algo que se possa provar ou demonstrar, mas antes como uma hipótese de trabalho, ou melhor, como um convite para usar um esquema novo com a expectativa de que a orientação nele inerente possa propiciar novas perspetivas e vias de interpretação da cultura e do pensamento contemporâneos. Penso que há, digamos assim, estilos de pensar relacionados com os quatro paradigmas da linguagem, em áreas bem distintas e heterogéneas do vasto campo de Cultura. Deter-me-ei, muito sucintamente, apenas em dois casos para exemplificar dois tipos de repercussão do paradigma da linguagem na concepção geral de ‘Cultura’. (PP21) O primeiro caso é a Filosofia da Cultura de Ernst Cassirer. A posição de Cassirer, embora chamada neokantiana, assenta na aceitação da crítica humboldtiana de Kant. Não existem formas de intuição e conceitos transcendentais aprioristicamente dados. Ao invés, o grande esforço de Cassirer reside em mostrar que qualquer forma de intuição e qualquer conceito resultam de uma conquista feita ao longo do desenvolvimento humano, e em particular das inúmeras línguas, graças ao poder de uma crescente capacidade de sintetizar quaisquer tipos de impressões e percepções. Esta síntese ocorre por meio de simbolizações que, em grande parte, são de origem linguística. Os símbolos caraterizam-se assim como output de um processo de sintetização, como fixação transitória de tipos de relações, e como base para o constante e continuado refinamento da nossa capacidade de tecer e conceber redes de relações cada vez mais abstratas. Este Logos de funcionalidades e relações em vias de construção é, segundo Cassirer, o telos e terminus ad quem do desenvolvimento humano. A legitimação para rotular a filosofia de Cassirer com a designação de Filosofia da Cultura reside no facto de Cassirer ter assumido a tese da existência de várias formas simbólicas (i.e. sistemas semióticos) para além da forma simbólica da linguagem, conferindo a todas elas a função de produção de símbolos. Esta colaboração das formas simbólicas tem a sua matriz profunda na arquitetónica kantiana da razão humana. Enquanto a tarefa primordial da linguagem seria a construção de um saber lógico-científico puro que diz respeito ao conhecimento, à Razão teórica, destacar-se-iam a função sintetizante da Religião e, em parte, do Mito no âmbito do refinamento da Razão prática e a Arte no refinamento do Juízo estético. A colaboração, no entanto, conduziria a um único fim: o de aspirar a um certo tipo de purificação ou subtilização do homem, na plena posse da sua capacidade espiritual e intelectual. Este seria, segundo Cassirer, o telos da crescente culturalização do homem e forneceria assim uma resposta clara à pergunta “Why Culture?”. A Cultura é o processo da crescente e cada vez mais ‘delgada’ sintetização das experiências vividas. A Cultura aspiraria à plena humanização e espiritualização do homem. Parece que este modelo de cariz idealista, inspirado ainda nos grandes sistemas da Filosofia do Idealismo alemão, caiu em descrédito, particularmente a partir dos anos sessenta do século XX, década que se associa às tendências pós-modernas da fragmentarização ou até morte do sujeito e da abolição de uma qualquer tentativa de se agarrar a supostos valores ou ideias de alcance universal. O mesmo não se pode dizer em relação às linhas de pensamento que se prendem com os paradigmas da langue e da dialogicidade. O paradigma da langue faz-se, aparentemente, notar em Cultural Studies que assentam na legitimidade e fecundidade do ponto de vista metódico que parte da existência de national cultures. E quanto ao paradigma da dialogicidade, julgo que é o paradigma que, nos últimos 50 anos, tem tido maior impacto em todo o vasto campo dos valores cívicos e educacionais. O objetivo principal, presente nos curricula da formação escolar básica e secundária alemães sob o título Selbstverwirklichung in sozialer Verantwortung, visa conjugar dois objetivos diferentes: a auto-realização do indivíduo e a sua responsabilidade social, testemunhando assim a convicção de que a realização dos ideais da formação e auto-realização do indivíduo apenas se obterá no seio de uma cultura democrática que se oriente nos valores da tolerância e da argumentação racional. Eu penso, no entanto, que o quarto paradigma, o da parole violenta, merece uma atenção muito particular. Segundo o meu ponto de vista, é o paradigma que, por um lado, é mais difícil de detectar por não se encontrar ligado a nenhuma doutrina corrente. Por outro lado, está subjacente a inúmeras teorias, concepções ou atitudes culturais que têm sido assumidas ao longo de todo o século XX até aos dias de hoje. A atitude que corresponde a este paradigma é a de sentir uma profunda necessidade de quebrar regras ou normas que ganharam um tal vigor que nos fazem sentir seus reféns, quase que impotentes para lhes fazer frente. Só através de um esforço extraordinário será talvez possível que o sujeito pós-moderno se esquive do raio de influência das imposições do sistema destas normas e regras. Este sonho usurpador e revolucionário encontra-se ligado, em obras filosóficas, poéticas e artísticas, ao uso revolucionário da linguagem. As versões deste sonho podem variar bastante, contudo, todas elas partilham uma ideia nuclear que implica o desejo profundo de poder usar a linguagem (ou, falando com Umberto Eco, as cultural units), de um modo tão diferente, tão estranho que o próprio sistema se comece a desfazer, sofrendo perturbações tão graves que porão em causa o seu funcionamento e o exercício do seu poder. Nietzsche com o seu Zaratustra, Heidegger com a sua linguagem do Ereignis, Barthes com as suas invectivas contra o poder do mito, Rorty com a sua concepção de ironia, e ainda todos aqueles que, como Ricoeur, Derrida, Goodman e Eco, se socorreram na crença no efeito revolucionário e daí curativo da metáfora, alimentaram este mesmo sonho. Usando a metáfora de Otto Neurath, que Blumenberg enquadrou magistralmente no horizonte mais vasto do pensamento moderno e contemporâneo, podemos dizer que a empresa geral destes pensadores, tal como da maioria dos vanguardistas na arte do século XX, consiste em derrubar o sistema e reconstruir de novo o barco naufragado e feito em destroços, em pleno alto-mar. Quero terminar estas breves indicações sobre o paradigma da parole violenta com a referência a um assunto que está, por assim dizer, no pique da atualidade. Em 16 de Outubro de 2011, numa entrevista 1 dada à RTP , o sociólogo Boaventura Sousa Santos alegou que o chamado ‘Movimento dos Indignados’ teria o significado do aparecimento de um novo discurso político global. Tendo em conta o que se disse sobre o paradigma da parole violenta, parece-me que a utilização do atributo ‘novo’ estabelece, conscientemente ou não, uma referência a um tipo de discurso capaz de estabelecer regras novas e capaz de usurpar as regras em vigor por estas se terem mostrado incapazes de servir a sua finalidade essencial de contribuir para o bem-estar dos cidadãos em regimes democráticos. Se bem que Boaventura Sousa Santos, ao contrário de outros filósofos que se alimentaram neste paradigma, queira de modo algum desafiar a democracia enquanto tal, pretendendo antes que a democracia retorne às suas origens mais dignas, ele alude sim aos essentials do paradigma da parole violenta, pois considera que um ato individual da parole tem o poder espontâneo e libertador de mudar uma certa normatividade discursiva em vigor. Em jeito de uma breve conclusão, defendo que vale a pena usar como guia de investigação o panorama dos quatro paradigmas que Wilhelm von Humboldt nos legou, não só para investigações no âmbito da Filosofia da Linguagem, mas também em Ciências vizinhas com a dos Culture Studies. Este guia não pretende ser o único nem o mais essencial, mas apenas um que promete investigações frutíferas e perspetivações novas. 1 Cf. http://www.rtp.pt/noticias/?t=Boaventura-Sousa-Santos-diz-que-o-Movimento-dos-Indignados-significa-o- aparecimento-de-um-novo-discurso-politico-global.rtp&headline=20&visual=9&article=489171&tm=9 (consultado em 24 de Outubro de 2011) Agradeço à minha doutoranda Patrícia Fernandes ter chamado a minha atenção para esta entrevista e a sua significância no âmbito do paradigma da ‘parole violenta’.