inafiançabilidade: a genalogia de um equívoco

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INAFIANÇABILIDADE: A GENALOGIA DE UM EQUÍVOCO
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia;
Mestre em Direito Social;
Pós-Graduado com Especialização em Direito Penal e Criminologia;
Professor de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal;
Membro do Grupo de Pesquisa de Bioética e Biodireito da Unisal
1 – INTRODUÇÃO
A legislação não enumera os crimes afiançáveis e sim indica os inafiançáveis, de
modo que se descobrem os primeiros por exclusão.
Ao intérprete cabe perscrutar na Constituição Federal, no Código de Processo
Penal e nas leis ordinárias esparsas para verificar se o caso concreto sob análise se
enquadra em alguma previsão de inafiançabilidade, seja pela natureza da infração, seja
devido a condições pessoais do preso (v.g. aquele que ostenta condenação anterior por
crime doloso – artigo 323, III, CPP).
A Constituição Federal e as legislações processuais penais especiais estabelecem
diversos casos de inafiançabilidade pela natureza da infração, sendo exemplos:
a)Os crimes de racismo – Artigo 5º., XLII, CF e Lei 7716/89, modificada pela
Lei 9459/97;
b)Os crimes de tortura (Lei 9455/97), Tráfico de Drogas (Lei 11.343/06),
Terrorismo (Lei 7170/83) 1 e os Crimes Hediondos (Lei 8072/90) – Artigo 5º., XLIII,
CF;
c)A ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o
estado democrático – Artigo 5º., XLIV, CF e Lei 7170/83;
d)Crimes de Lavagem de Dinheiro – Lei 9613/98;
e)Crimes praticados por agentes de Organizações Criminosas – Lei 9034/95.
Por seu turno, regula o Código de Processo Penal os casos de inafiançabilidade
em geral nos seus artigos 323 e 324, além de estabelecer no artigo 322 os casos em que
a Autoridade Policial poderá arbitrar fiança.
O presente trabalho tem dois objetivos bastante definidos:
1)Chamar a atenção para uma gritante distorção existente no sistema brasileiro
de liberdade provisória, qual seja, o fato de que nossas normas processuais penais e
constitucionais sobre a matéria são formatadas de modo a tornar mais fácil a obtenção
da liberdade provisória sem fiança do que a liberdade provisória com fiança, quando o
mais correto e racional deveria ser o inverso.
2)Diagnosticar as origens desse equívoco legislativo que acaba sendo
contraproducente em relação aos objetivos de maior rigor almejados sempre que o
legislador destaca alguma infração penal como inafiançável.
Para a consecução desses desideratos, inicialmente proceder-se-á uma breve
análise dos princípios constitucionais que regem a liberdade provisória e depois
analisar-se-á como a doutrina tem conceituado a liberdade provisória com fiança,
demonstrando-se que uma equivocada visão do instituto da fiança pode ser um dos
fatores atuantes para a configuração da distorção de nosso sistema anteriormente
destacada.
1
Destaque-se ser discutível na doutrina se realmente o crime previsto no artigo 20 da Lei de Segurança
Nacional (Lei 7170/83) constitui o crime de terrorismo previsto constitucionalmente como equiparado a
hediondo. Entretanto, o desenvolvimento dessa polêmica não cabe nos estritos moldes deste trabalho.
2 – A LIBERDADE PROVISÓRIA DE ACORDO COM A CONSTITUIÇÃO
FEDERAL
Na atualidade torna-se imperioso formular e aplicar as normas processuais
penais em consonância com uma série de garantias individuais insculpidas na
Constituição Federal. Não é mais concebível um Processo Penal que prime pelo
eficientismo e deixe de lado o garantismo. Exige-se um salutar equilíbrio entre
eficiência e garantias para que o Processo Penal possa alcançar o crivo do devido
processo legal constitucionalmente legitimado.
Essa concepção é tão arraigada no moderno processualismo que se reflete na
própria estrutura normativa e define o “locus” privilegiado das principais regulações do
processo. A sede das mais relevantes normatizações processuais não mais deve ser
buscada nas leis processuais ordinárias, mas no seio da própria Constituição.
Esse fenômeno não passa despercebido por Grinover, Cintra e Dinamarco, que
assim se manifestam sobre o tema:
“Todo o direito processual, como ramo do direito público, tem suas linhas
fundamentais traçadas pelo direito constitucional, que fixa a estrutura dos órgãos
jurisdicionais, que garante a distribuição da justiça e a declaração do direito objetivo,
que estabelece alguns princípios processuais; e o direito processual penal chega a ser
apontado como o direito constitucional aplicado às relações entre autoridade e
liberdade”. 2
Na verdade o processo, mais que apenas orientado por princípios e regras
constitucionais gerais como ocorre com outros ramos do Direito, “é fundamentalmente
determinado pela Constituição em muitos de seus aspectos e institutos característicos”. 3
Como observa Scarance Fernandes, na evolução do pensamento acerca da
relação entre o indivíduo e o Estado, foi sentida a premência de normas garantidoras dos
direitos fundamentais do homem em contraponto ao rigoroso intervencionismo do poder
estatal. Com essa finalidade os países passaram a inserir em suas Constituições
regramentos de caráter garantista que obrigam o Estado e a sociedade em geral ao
respeito aos direitos individuais. Nesse quadro, o Brasil surge como “o primeiro país a
introduzir em seu texto normas desse teor”. 4
Assim sendo, a liberdade provisória somente pode ser regulada tendo em conta
as diretrizes constitucionais que norteiam o devido processo legal (artigo 5º., LIV, CF).
Este se caracteriza por uma teia consistente, coerente e inter - relacional de princípios.
Sobrelevam nesse caso dois aspectos: a presunção de inocência e a regra da
liberdade provisória (CF, artigo 5º., LVII e LXVI). É visível que referidos princípios
constitucionais se interpenetram e completam, de maneira a constituírem um conjunto
harmônico e inseparável. O indivíduo sob investigação ou processado não é considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória; disso decorre que antes da
condenação não deve permanecer encarcerado, a não ser em situações extremas
2
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. 8ª. ed. São Paulo: RT, 1991, p. 75.
3
Op. Cit., p. 75.
4
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 1999, p. 11. Ver
também, conforme indicado pelo autor em destaque: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 6ª. ed. São Paulo: RT, 1990, p. 149 – 151.
devidamente justificadas por interesses processuais que não configurem antecipação
indevida de pena.
Não é dada, portanto, ao legislador ordinário, a faculdade de restringir de forma
absoluta o direito à liberdade provisória, sob pena de incidir em flagrante
inconstitucionalidade. A limitação da liberdade provisória só pode fundar-se na
necessidade estrita para o regular andamento processual e aplicação da lei penal, bem
como para a manutenção da ordem pública ou econômica, de acordo com os
fundamentos da Prisão Preventiva elencados no artigos 312, CPP.
Em face disso a doutrina vem apontando insistentemente a inconstitucionalidade
gritante de dispositivos legais que impedem peremptoriamente a liberdade provisória de
acordo com a natureza da infração, como se a gravidade da acusação implicasse em uma
espúria “presunção de culpabilidade ou autoria”. Como destaca Souza Netto, tais
normatizações dispõem “de direitos fundamentais de forma a suprimi-los totalmente,
sem deixar margem de análise judicial à existência de real necessidade de cautela”. 5
É notável que a liberdade provisória é uma regra no Processo Penal, somente
excepcionada por especiais circunstâncias a legitimarem a custódia antes da
condenação definitiva, isso em obediência aos princípios constitucionais do devido
processo legal e da presunção de inocência.
Afora os casos em que presentes os fundamentos da Prisão Preventiva, a
legislação ordinária, sob pena de inconstitucionalidade, deve dispor ao investigado ou
acusado a liberdade provisória com ou sem fiança. Isso implica em que quando o
legislador veda a fiança, resta sempre ao investigado ou acusado a possibilidade da
liberdade provisória sem fiança, desde que não satisfeitos os requisitos para a custódia
preventiva (vide artigo 310, Parágrafo Único, CPP).
Decorre desse fato que quando o legislador, com ares de rigor, afirma a
inafiançabilidade de uma infração penal, está, na verdade, conferindo ao imputado a
possibilidade de obter a mesma liberdade provisória sem a necessidade de prestar
qualquer espécie de caução.
Ocorre uma situação que até seria cômica se não fosse trágica: o legislador
afirma ao imputado de forma autoritária e imponente:
“__ Não tens o direito de livrar-te solto pagando fiança!”
E a seguir, com um fio de voz, responde ao implicado que pode permanecer
solto sem pagar nada, como no seguinte diálogo:
“__ Mas, e se eu nada pagar?
__Bom,...assim podes livrar-te solto...”
Essa é uma distorção incrível que norteia todo nosso sistema de liberdade
provisória, tendo como honrosa exceção o tratamento dado no artigo 325, § 2º., I a III,
CPP, aos crimes contra a economia popular e aos crimes de sonegação fiscal. 6 Nessas
infrações penais é vedada a liberdade provisória sem fiança, sendo, porém, permitida a
liberdade provisória com fiança a ser arbitrada exclusivamente pelo Juiz.
É visível que um sistema racionalmente estruturado com relação ao tema da
liberdade provisória e atento aos limites traçados constitucionalmente somente poderia
nortear-se por um dos seguintes critérios:
1)A regra seria a concessão da liberdade provisória com ou sem fiança aos
investigados e processados, regra esta que somente seria excepcionada pela necessidade
da Prisão Preventiva (artigo 312, CPP). Em geral, a liberdade provisória deveria ser
5
SOUZA NETTO, José Laurindo de. Processo Penal Sistemas e Princípios. Curitiba: Juruá, 2004, p.
171. Atente-se para o fato de que essa constatação acabou dando origem a recente alteração da Lei dos
Crimes Hediondos (Lei 8072/90) pela Lei 11.464/07, permitindo a liberdade provisória sem fiança para
tais infrações penais, como já ocorria com o crime de tortura por força da Lei 9455/97.
6
Mais tecnicamente denominados de Crimes contra a ordem tributária na Lei 8137/90.
concedida independentemente de fiança, apenas tendo em conta o devido processo legal
e a presunção de inocência. Entretanto, em casos excepcionais, em que o legislador
considerasse tratar-se de infrações mais gravosas ou que por sua natureza necessitem de
alguma caução, estabeleceria a necessidade de fiança para a concessão da liberdade
provisória, vedando a liberdade provisória sem fiança.
2)Outra opção viável ainda poderia ser a possibilidade da concessão da liberdade
provisória com fiança aos delitos em geral, sendo a liberdade provisória sem fiança
reservada somente àqueles economicamente hipossuficientes, conforme já prevê o
artigo 350, CPP. É claro que a liberdade provisória com ou sem fiança continuaria
podendo ser negada nos casos de necessidade da Prisão Preventiva (artigo 312, CPP).
O questionamento que nos resta é por que a legislação brasileira promove a
conformação de um sistema de liberdade provisória claramente distorcido e até
pervertido, o qual, a cada nova legislação processual penal ganha reforço?
3 – A GENEALOGIA DE UM EQUÍVOCO
Essa perversão obtusa a que tem sido submetido o sistema de liberdade
provisória brasileiro certamente tem raízes no despreparo e desconhecimento do
legislador. Mas, nem toda a responsabilidade deve ser atribuída ao legislador e sua
parca cultura jurídica. Deve-se atentar para o fato de que parcela da doutrina também
contribui substancialmente para a conformação dessa sistemática equivocada.
O nó górdio da questão acha-se em algo extremamente simples, ou seja, definir
em que consiste a fiança e saber distingui-la do instituto da liberdade provisória. É
uma inconveniente confusão desses conceitos que tem sido um importante ingrediente
para o tratamento equivocado da inafiançabilidade na legislação brasileira.
Walter P. Acosta assim redige suas primeiras linhas acerca do tema da fiança:
“Preso o indiciado ou réu, em flagrante ou por motivo de sentença de pronúncia
ou de condenação recorrível, casos há em que lhe assiste o direito de recuperar a
liberdade, mediante certas condições, entre as quais poderá figurar a de depositar certa
quantia em dinheiro, títulos ou valores, como caução. Quando houver esta obrigação
econômica com o fim de sustar a prisão legal, estaremos em face do instituto da fiança.
A fiança criminal, como meio de fazer cessar ou evitar a prisão legal, é, pois, um
direito subjetivo do réu, em algumas infrações, mediante uma caução e determinadas
obrigações, de manter-se em liberdade para, no gozo dela, cuidar com amplitude de sua
defesa”. 7
Semelhante é o ensinamento de Edgard Magalhães Noronha ao asseverar que a
fiança é “meio de liberdade provisória” e a conceituando como “um direito subjetivo
do acusado, que lhe permite, mediante caução e cumprimento de certas obrigações,
conservar sua liberdade até a sentença condenatória irrecorrível”. 8
Acontece que se tem dado muita ênfase apenas a uma parcela desses tradicionais
ensinamentos, propiciando uma noção parcial e errônea do instituto da fiança. A
afirmação de que a fiança é um “direito subjetivo do indiciado ou réu” tem se
sobreposto à real natureza do instituto sob comento e ensejado uma verdadeira
miscelânea em que “liberdade provisória” e “fiança” se confundem.
7
8
O Processo Penal. 4ª. ed. Porto Alegre: Editora do Autor, 1962, p. 98 – 99.
Curso de Direito Processual Penal. 19ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 185.
Autores como Capez9 e Mirabete10, embora não deixem de indicar a fiança como
caução e meio para a obtenção da liberdade provisória, acabam atribuindo-lhe a
“natureza jurídica” de “direito subjetivo constitucional do acusado”.
Esta é uma espécie de exposição que conduz a equívocos quanto ao modo de
encarar o instituto da fiança no Processo Penal. Na realidade o que é um “direito
subjetivo do acusado ou indiciado” não é propriamente a fiança e sim a liberdade
provisória. A fiança é apenas um meio para a obtenção do direito à liberdade provisória.
Longe de ser um direito do imputado, a fiança emerge no Processo Penal como uma
condição, um ônus ou encargo a ser cumprido pelo imputado para que possa gozar de
seu verdadeiro direito à liberdade provisória.
Poucos são aqueles que, a exemplo de José Frederico Marques, dão o necessário
destaque à característica de ônus da fiança como requisito para a obtenção da liberdade
provisória:
“A fiança criminal é ônus imposto ao réu ou indiciado em quase todos os casos
de liberdade provisória, para que assim ele possa defender-se solto em processo penal
condenatório. Consiste o referido ônus em caução prestada em juízo para garantia da
liberdade provisória. Tal ônus é um acessório da liberdade provisória que o réu obtém.
Todavia, nos casos em que a caução é exigida, não pode a liberdade provisória ser
concedida sem que essa caução seja prestada”. 11
Heráclito Antonio Mossin acata abertamente o entendimento exposto por
Frederico Marques, apontando-o como modelo ideal de conceituação do instituto da
fiança. 12
Também Eduardo Espínola Filho apresenta a fiança como uma caução ou
garantia exigível do imputado como meio para sua liberdade provisória, portanto, com a
característica de encargo, condição ou ônus e não com a feição de um direito. Em suas
palavras:
“Assim, configurado, nos seus principais característicos, o instituto, é de ser
definida a fiança como a caução, prestada em favor do acusado, para obter a sua
liberdade provisória, até o pronunciamento final da causa, em decisão passada em
julgado, dando a garantia de que cumprirá as obrigações fixadas pela lei, atenderá às
intimações para os atos do inquérito, da instrução criminal e do julgamento, se
sujeitará à execução da condenação, se lhe for imposta, e satisfará as obrigações
pecuniárias cuja responsabilidade , em tal caso, lhe for atribuída”. 13
Por seu turno, Bento de Faria colabora para a confusão entre a fiança e a
liberdade provisória ao conceituar a primeira como “a permissão deferida ao acusado,
em certos crimes, de conservar provisoriamente a liberdade para, assim, tratar do seu
9
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 273.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 415.
11
Elementos de Direito Processual Penal.Volume IV. Campinas: Bookseller, 1997, p. 132. Anote-se que
a afirmação do autor quanto ao fato de ser a fiança criminal exigida em “quase todos os casos de
liberdade provisória”, deve ser acolhida com a cautela de atentar para a ulterior redação do artigo 310,
Parágrafo Único, CPP, que ampliou sobremaneira as hipóteses de concessão da liberdade provisória sem
fiança. Tal mudança legislativa, porém, somente fez reforçar a constatação do autor de que a fiança é
mesmo um ônus imposto ao imputado.
12
Comentários ao Código de Processo Penal à luz da doutrina e da jurisprudência. Barueri: Manole,
2005, p. 322.
13
Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Volume III. Campinas: Bookseller, 2000, p. 565 – 566.
Ver ainda no mesmo sentido: BONFIM, Edílson Mongenot. Curso de Processo Penal. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 399. CARVALHO, Djalma Eutímio de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro:
Forense, 2007, p. 201.
10
livramento mediante a prestação de uma garantia, observadas as obrigações que lhe
forem impostas”. 14
Novamente a doutrina enseja uma mistura indevida entre os conceitos de
“liberdade provisória” e “fiança” e, portanto, entre um “direito” e um “ônus” do
imputado. A fiança não é a “permissão deferida ao acusado” de livrar-se solto das
imputações, isso é a liberdade provisória. A fiança propriamente dita é, na verdade, “a
prestação de uma garantia” imposta ao imputado para assegurar o cumprimento de suas
obrigações.
Mais esclarecedor é o autor contemporâneo, Denílson Feitosa Pacheco, que
conceitua a fiança como uma “caução” prestada pelo increpado e “destinada a garantir o
cumprimento das obrigações processuais”. No seguimento, afirma, distintamente, o
“direito público subjetivo constitucional” do preso à “liberdade provisória com fiança”,
de forma que, nos casos legalmente previstos, o arbitramento não é uma faculdade do
Delegado de Polícia ou do Juiz, mas sim um verdadeiro poder – dever das autoridades.15
Dessa forma fica clara a necessária distinção entre a “fiança” como garantia do
processo e ônus do imputado e a “liberdade provisória”, direito do acusado ou
investigado, eventualmente condicionado à prestação da fiança.
Percebe-se, de acordo com o exposto, que a doutrina em geral, embora
certamente vislumbre, ao menos em sua maioria, a distinção existente entre os institutos
da “fiança” e da “liberdade provisória com fiança”, não traduz com a devida clareza
essa importante noção. A maneira muitas vezes confusa com que os conceitos são
expostos é certamente fonte de equívocos interpretativos, especialmente aquele de
pensar a fiança como um direito subjetivo do imputado quando é ela, na realidade, um
ônus, sendo o verdadeiro direito aquele à liberdade provisória, que pode ser com ou sem
fiança.
Eis, portanto, a gênese da errônea postura do legislador pátrio ao acenar com a
inafiançabilidade sempre que pretende ser rigoroso com o tratamento de certas infrações
penais. Pensa ele estar retirando do imputado um “direito” quando, na realidade, o está
aliviando de um ônus.
4 – CONCLUSÃO
O presente trabalho teve por objeto a análise da sistemática adotada pelo
legislador brasileiro para regulamentar os casos de inafiançabilidade de acordo com as
normas constitucionais e ordinárias a respeito da matéria.
Constatou-se uma notável distorção em que é muito mais fácil obter a liberdade
provisória sem fiança do que aquela com fiança, mesmo nas infrações penais de maior
gravidade.
Tal distorção decorre da insistência legislativa, seja em nível constitucional ou
infraconstitucional, em prodigalizar os casos de inafiançabilidade com ares de suposto
rigor legal. Olvida-se, porém, o legislador, de que princípios constitucionais como o
devido processo legal e a presunção de inocência, impõem a regra da liberdade
provisória, o que torna a atuação legislativa supra mencionada pífia e contraproducente.
Por fim, diagnosticou-se que a origem dessa equivocada regulamentação da
liberdade provisória encontra-se não somente no despreparo jurídico do legislador, mas
também na confusão reinante na doutrina quanto à devida distinção entre os institutos
da “fiança” e da “liberdade provisória com fiança”, o que induz ao erro de encarar a
primeira como sinônima da segunda e, por isso, como um “direito” e não como aquilo
14
15
Código de Processo Penal. Volume II. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 1960, p. 64 – 65.
Direito Processual Penal. 3ª. ed. Niterói: Impetus, 2005, p. 1065.
que realmente é, um “ônus” imposto ao imputado como “meio” para a obtenção de um
“direito”, qual seja, o da “liberdade provisória. Esse erro faz com que as iniciativas
legislativas se contaminem por uma noção equivocada de que a inafiançabilidade
suprime um “direito” do imputado quando, na maioria das vezes, o alivia de um fardo,
obrigação ou ônus.
Diz-se “na maioria das vezes” porque eventualmente a inafiançabilidade pode
acarretar um retardamento na concessão da liberdade provisória ao implicado. Tratamse dos casos em que a fiança poderia ser arbitrada imediatamente pela Autoridade
Policial nos termos do artigo 322, CPP. Erigida a infração penal à categoria de
inafiançável, somente ao Juiz seria dado conceder a liberdade provisória sem fiança
(artigo 310, Parágrafo Único, CPP).
Não obstante, parca é a relevância desse aspecto, pois que a maioria das
infrações penais inafiançáveis não permitiria mesmo arbitramento pela Autoridade
Policial, eis que normalmente apenadas com reclusão.
Seria oportuna uma reforma na sistemática legal da liberdade provisória no
Brasil, adotando-se um sistema mais racional que reabilitasse a função da fiança como
garantia processual, passando inclusive por uma revisão dos seus valores hoje irrisórios
e meramente simbólicos, sem esquecer, é claro, a realidade social, de maneira a não
deixar ao desabrigo os financeiramente hipossuficientes, do que é corolário o disposto
no artigo 350, CPP.
Por derradeiro deve-se observar, porém, que uma reforma nessa matéria enfrenta
um grave entrave. É que boa parte dos casos de inafiançabilidade produzidos com base
em uma interpretação equivocada do instituto da fiança criminal, encontram assento no
texto constitucional na condição de Cláusulas Pétreas (artigo 5º. c/c art. 60, § 4º. IV,
CF). Infelizmente, trata-se de um erro que se cristalizou de tal forma que não há outro
remédio senão conviver com suas distorções e lamentá-las, ao menos até o advento de
uma nova ordem constitucional. Por agora pode ao menos o legislador abster-se de
alimentar e agigantar essa inútil e falaciosa criação de mais e mais casos de
inafiançabilidade na legislação brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACOSTA, Walter P. O Processo Penal. 4ª. ed. Porto Alegre: Editora do Autor, 1962.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 8ª. ed. São Paulo: RT, 1991.
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Volume
III. Campinas: Bookseller, 2000.
FARIA, Bento de. Código de Processo Penal. Volume II. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Record, 1960.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT,
1999.
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Volume IV.
Campinas: Bookseller, 1997.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
MOSSIN, Heráclito Antonio. Comentários ao Código de Processo Penal à luz da
doutrina e da jurisprudência. Barueri: Manole, 2005.
NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 13ª. ed. São
Paulo: Saraiva, 1989.
PACHECO, Denílson Feitosa. Direito Processual Penal. 3ª. ed. Niterói: Impetus, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6ª. ed. São Paulo:
RT, 1990.
SOUZA NETTO, José Laurindo da. Processo Penal Sistemas e Princípios. Curitiba:
Juruá, 2004.
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