Representação - Procuradoria da República no Ceará

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA
desportiva
Representação para Ajuizamento de ADI
Vimos diante de Vossa Excelência formular a presente REPRESENTAÇÃO, pugnando pela
propositura de AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do texto integral da
Lei nº 15.299/2013 do Estado do Ceará , conforme argumentação abaixo deduzida:
Foi publica em de janeiro de 2013 a Lei Estadual nº 15.299, que “Regulamenta a
vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado do Ceará”.
Referida Lei Estadual tem por finalidade estabelecer parâmetros normativos para a
realização de vaquejadas em todo o Estado do Ceará, sendo estruturada da seguinte forma: a)
definição do que é a vaquejada e quem são os competidores desta atividade desportiva; b) como
ocorrem os julgamentos neste tipo de competição; c) quais os cuidados que devem ser adotados
para proteger e pessoas e animais envolvidos no evento; d) como deve ocorrer o transporte dos
animais utilizados nas disputas e, por fim, e) estabelecendo a presença obrigatória de paramédicos
em vaquejadas profissionais.
Eis o inteiro teor da lei impugnada:
LEI Nº 15.299, 08 de janeiro de 2013.
REGULAMENTA A VAQUEJADA COMO
CULTURAL NO ESTADO DO CEARÁ.
PRÁTICA
DESPORTIVA
E
O GOVERNADOR DO ESTADO DO CEARÁ. Faço saber que a
Assembleia Legislativa decretou e eu sanciono a seguinte Lei:
Art.1º Fica regulamentada a vaquejada como atividade desportiva e cultural no
Estado do Ceará.
Art.2º Para efeitos desta Lei, considera-se vaquejada todo evento de natureza
competitiva, no qual uma dupla de vaqueiro a cavalo persegue animal bovino,
objetivando dominá-lo.
§1º Os competidores são julgados na competição pela destreza e perícia,
denominados vaqueiros ou peões de vaquejada, no dominar animal.
§2º A competição dever ser realizada em espaço físico apropriado, com dimensões e
formato que propiciem segurança aos vaqueiros, animais e ao público em geral.
§3º A pista onde ocorre a competição deve, obrigatoriamente, permanecer isolada
por alambrado, não farpado, contendo placas de aviso e sinalização informando os
locais apropriados para acomodação do público.
Art.3º A vaquejada poderá ser organizada nas modalidades amadora e profissional,
mediante inscrição dos vaqueiros em torneio patrocinado por entidade pública ou
privada., como ocorre o transporte
Art.4º Fica obrigado aos organizadores da vaquejada adotar medidas de proteção à
saúde e à integridade física do público, dos vaqueiros e dos animais.
§1º O transporte, o trato, o manejo e a montaria do animal utilizado na vaquejada
devem ser feitos de forma adequada para não prejudicar a saúde do mesmo.
§2º Na vaquejada profissional, fica obrigatória a presença de uma equipe de
paramédicos de plantão no local durante a realização das provas.
§3º O vaqueiro que, por motivo injustificado, se exceder no trato com o animal,
ferindo-o ou maltratando-o de forma intencional, deverá ser excluído da prova.
Art.5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art.6º Revogam-se as disposições em contrário.
PALÁCIO DA ABOLIÇÃO, DO GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ, em
Fortaleza, 08 de janeiro de 2013.
Domingos Gomes de Aguiar Filho
GOVERNADOR DO ESTADO DO CEARÁ EM EXERCÍCIO
Esmerino Oliveira Arruda Coelho Júnior
SECRETÁRIO DO ESPORTE
Passamos a analisar, sob a perspectiva constitucional, o texto integral da Lei
impugnada. No início, no entanto, cumpre definir, pois fundamental a compreensão correta do
enquadramento a ser feito, o que deve ser entendido, na verdade, por vaquejada e como ela
atualmente se desenvolve no país para, em momento seguinte, examinarmos as disposições
constitucionais violadas por esta específica atividade.
Vaquejadas: Considerações Gerais.
A vaquejada é uma prática desportiva, atualmente muito popular no nordeste
brasileiro, na qual dois vaqueiros montados em cavalos devem derrubar um touro (ou novilho),
puxando-o pelo rabo, dentro de uma área previamente demarcada por cal.
Esta prática tipicamente nordestina, conforme os ensinamentos de José Eusébio
Fernandes Bezerra1, começou com a obrigação determinada pelos coronéis do interior do nordeste
(fazendeiros) para que o gado, então criado solto na mata, fosse reunido por seus vaqueiros :
“Na verdade, tudo começou aqui pelo Nordeste com o Ciclo dos Currais. É
onde entram as apartações. Os campos de criar não eram cercados. O gado,
criado em vastos campos abertos, distanciava-se em busca de alimentação
mais abundante nos fundos dos pastos. Para juntar gado disperso pelas serras,
caatingas e tabuleiros, foi que surgiu a apartação.
1 No mundo do vaqueiro. Disponível em: <http://www.barcelona.educ.ufrn.br/mundo.htm>.
Escolhia-se antecipadamente uma determinada fazenda e, no dia marcado
para o início da apartação, numerosos fazendeiros e vaqueiros devidamente
encourados partiam para o campo, guiados pelo fazendeiro anfitrião,
divididos em grupos espalhados em todas as direções à procura da gadaria.
O gado encontrado era cercado em uma malhada ou rodeador, lugar mais ou
menos aberto, comumente sombreado por algumas árvores, onde as reses
costumavam proteger-se do sol, e nesse caso o grupo de vaqueiros se dividia.
Habitualmente ficava um vaqueiro aboiador para dar o sinal do local aos
companheiros ausentes. Um certo número de vaqueiros ficava dando o cerco,
enquanto os outros continuavam a campear. Ao fim da tarde, cada grupo
encaminhava o gado através de um vaquejador, estrada ou caminho aberto por
onde conduzir o gado para os currais da fazenda.
O gado era tangido na base do traquejo, como era chamada a prática ou jeito
de conduzi-lo para os currais. Quando era encontrado um barbatão da conta
do vaqueiro da fazenda-sede, ou da conta de vaqueiro de outra fazenda, era
necessário pegá-lo de carreira. Barbatão era o touro ou novilho que, por ter
sido criado nos matos, se tornara bravio. Depois de derrubado, o animal era
peado e enchocalhado. Quando a rés não era peada, era algemada com uma
algema de madeira, pequena forquilha colocada em uma de suas patas
dianteiras para não deixa-la correr.
Se o vaqueiro que corria mais próximo do boi não conseguia pegá-lo pela
bassoura, o mesmo que rabo ou cauda do animal, e derrubá-lo, os
companheiros lhe gritavam:
–
Você botou o boi no mato!”
Por volta de 1940, vaqueiros nordestinos passaram a se reunir para tornar público
suas habilidades nesta atividade e os fazendeiros da região passaram então a organizar torneios
entre estes vaqueiros. Este tipo de competição logo foi incorporado ao cotidiano de festividades de
muitas cidades nordestinas e com o passar do tempo tornou-se popular e recebeu o nome de
vaquejada.
Inicialmente amadoras, estas competições, na medida em que foram se tornando
populares, passaram por aperfeiçoamentos em termos de organização, com calendários específicos e
regras bem definidas. Melhor organizada, a competição passou a contar com patrocinadores e
despertou o interesse da mídia, contando hoje com estrutura própria de grandes eventos desportivos,
virando uma industria milionária que movimenta significativas somas de dinheiro e que paga
verdadeiras fortunas em prêmios para o competidores. No nordeste brasileiro, encontramos hoje
dezenas de parques de vaquejada, verdadeiras arenas multi-uso de competição. Trata-se de atividade
consideravelmente lucrativa, como se pode notar pelo teor de trecho da seguinte reportagem2:
“Arenas lotadas, com média de público superior a 80 mil pessoas por noite.
Premiações milionárias, que movimentam cerca de R$ 14 milhões por ano.
Competidores, que podem ganhar até R$ 150 mil vencendo uma prova,
tratados como celebridades. Não, não se trata de nenhum campeonato de
futebol, esporte considerado a paixão nacional. Os vultosos números se
2 “O Milionário Mundo da Vaquejada”. Revista Dinheiro Rural, edição 68, julho de 2010, acessada em 22/-1/2013 no
seguinte endereço eletrônico: http://revistadinheirorural.terra.com.br/secao/agronegocios/o-milionario-mundo-davaquejada.
referem às vaquejadas, festas que há mais de 40 anos conquistaram o
Nordeste brasileiro e que a cada ano avançam para outras regiões do País. De
acordo com a Associação Nacional de Vaquejadas (ANV), são mais de 600
eventos por ano, que reúnem centenas de vaqueiros de olho nos pomposos
prêmios pagos. "No nordeste, esse esporte é a verdadeira paixão, que cresce
cerca de 20% ao ano", afirma o especialista na competição e responsável pelo
site Portal Vaquejada, Fabio Leal. Fato é que as tradicionais festas nos
últimos anos se transformaram em um negócio milionário, reunindo
empresários, criadores de cavalos e empresas. Entre premiações, shows e
publicidade, estima-se que as festas girem algo em torno de R$ 50 milhões
por ano. "A vaquejada é uma paixão que atrai um grande público e,
consequentemente, muitos investidores", explica o empresário e criador
Jonatas Dantas”.
Durante o evento, são formadas duplas de competidores previamente inscritas de
forma onerosa. Paga a inscrição, a dupla esta apta a competir. A competição consiste na
apresentação de cada dupla de vaqueiros, que correm a galopes, cercando o animal (touro ou
novilho) em fuga. O objetivo é conduzir o animal até uma área marcada com cal e, estando ali,
cumpre a um dos componentes da dupla agarrar o animal pelo rabo, torcendo-o, com o objetivo de
fazer com que, na queda, o animal posicione suas quatro patas para cima, conforme a seguinte
descrição3:
“Inclinados, quase deitados sobre o cavalo, cujo pescoço cingem com um
braço, a outra mão estirada para diante e para baixo, já meio fechada como
um gancho, buscam na corrida desenfreada o momento propício e rapidíssimo
em que, segura a extremidade da cauda enrolada na mão, a rês esteja, entre
um e outro contato com a terra, de patas no ar. Então, firmando-se nos
estribos, executam um movimento de tração, em que o jeito e a presteza são
mais valiosos que a força. Desviando repentinamente da direção seguida e
faltando-lhe o apoio do solo, o animal “arrastado” faz meio volta e rola
desamparado por terra, descrevendo com as patas, se a derrubada é perfeita,
um semicírculo no ar.”
Acessando o endereço na internet “BahiaVaquejada.com.br” 4, temos uma descrição
pormenorizada da atividade:
“REGRAS
Numa pista de 120 metros de cumprimento por 30 metros de largura
demarca-se uma faixa aonde os bois deverão ser derrubados. Dentro deste
limite será válido o ponto, somente quando o boi, ao cair, mostrar as quatro
patas e levantar-se dentro das faixas de classificação. O boi será julgado de
3 Policarpo Feitosa (apud BEZERRA, 2007, on line).
4 http://www.bahiavaquejada.com.br/crbst_1.html, acessado em 23/01/2013
pé; deitado, somente caso não tenha condições de levantar-se. Participam
desta competição sempre uma dupla de vaqueiros que terá direito a ter
inscrito o animal designado para puxar em apenas uma vaquejada, estando o
esteira permitido a participar de duas provas. O boi que ficar da pá para frente
, em cima da faixa receberá nota zero de imediato. A disputa do Campeão dos
Campeões será feita na ordem decrescente, ou seja, da última colocação para
a primeira.
Como é a soma dos pontos?
A Vaquejada começa na Sexta-feira, o treino ou o reconhecimento da pista.
No Sábado inicia a seleção ou classificação das duplas de vaqueiros, cada
dupla enfrenta três bois. O primeiro boi vale em 8pontos, o segundo 9pontos
e o terceiro 10 pontos. Isso Totaliza 27 pontos. No Domingo começa de novo
só que o numero de pontos são diferentes. O primeiro vale11, o segundo12 e
o terceiro13. Com isso somam 36 pontos, somado com os pontos anteriores
( 27 pontos ) é igual a 63 pontos. Os 20 melhores colocados concorrem para
ver quem é o campeão.
Como é na pista? O que acontece?
A "pista" nada mais é do que um brete, um curral e a pista ( que tem 150m e
de largura começa com 12m e termina com 42m).
A dupla tem que derrubar o boi entre as duas linhas ou faixas que tem 10m
entre uma e outra. Cada dupla tem o vaqueiro de esteira ( aquele que ajuda o
puxador, ajeitando e alinhado o boi na pista ), o puxador ( puxa o boi pelo
rabo e derruba entre as linhas ). Se o puxador derrubar o boi entre as faixas
então "Valeu boi" e a dupla ganha seu respectivo ponto.
Cavalos
Os mais preferidos são os da raça QUARTO DE MILHA, puros ou cruzados
com PSI , ÁRABE, ou APPALOOSA. O cruzamento, além de ser responsável
por mais de 80% do plantel de eqüinos de competição nesta modalidade, vem
se destacando por produzir animais de extrema docilidade, versatilidade,
agilidade e vigor físico.
O treinamento começa assim que o animal tiver condições de ser montado e
após a castração, normalmente feita depois dos dois anos de idade. O freio e o
bridão, muito usados nas outras regiões do país é substituído, aqui, pela
"professorinha", um instrumento de doma articulado que pressiona, por
alavanca, a parte superior das narinas do animal. Na proporção que a doma é
completada, o animal é posto na porteira do brete com a finalidade de
aprender a esperar pacientemente a partida do boi, sem se assustar com
solavancos ou barulhos. Partindo ao mesmo tempo, nem antes nem depois.
Sua obrigação a partir daquele momento é acompanhar qualquer movimento
do boi "pescoço a pescoço" até as imediações da primeira faixa, quando deve
acelerar o máximo que puder, correndo em uma diagonal (quase
perpendicular) para o lado oposto, finalizando com uma parada estanque tal
como nas provas de rédeas, e , o mais próximo possível da cerca. Em outras
palavras, quando atingir este estágio, após aproximadamente um ano de
treinamento, o animal estará formado e pronto para competir e se aprimorar
até sua maturidade total.”
Parecer técnico emito pela Dra. Irvênia Luíza de Santis Prada, registra os danos a que
são submetidos os animais em fuga e que devem ser derrubados pelos vaqueiros5:
“Ao perseguirem o bovino, os peões acabam por segurá-lo fortemente pela
cauda (rabo), fazendo com que ele estanque e seja contido. A cauda dos
animais é composta, em sua estrutura óssea, por uma sequência de vértebras,
chamadas coccígeas ou caudais, que se articulam umas com as outras. Nesse
gesto brusco de tracionar violentamente o animal pelo rabo, é muito provável
que disto resulte luxação das vértebras, ou seja, perda da condição anatômica
de contato de uma com a outra. Com essa ocorrência, existe a ruptura de
ligamentos e de vasos sanguíneos, portanto, estabelecendo-se lesões
traumáticas. Não deve ser rara a desinserção (arrancamento) da cauda, de sua
conexão com o tronco. Como a porção caudal da coluna vertebral representa
continuação dos outros segmentos da coluna vertebral, particularmente na
região sacral, afecções que ocorrem primeiramente nas vértebras caudais
podem repercutir mais para frente, comprometendo inclusive a medula
espinhal que se acha contida dentro do canal vertebral. Esses processos
patológicos são muito dolorosos, dada a conexão da medula espinhal com as
raízes dos nervos espinhais, por onde trafegam inclusive os estímulos
nociceptivos (causadores de dor). Volto a repetir que além de dor física, os
animais submetidos a esses procedimentos vivenciam sofrimento mental.
A estrutura dos eqüinos e bovinos é passível de lesões na ocorrência de
quaisquer procedimentos violentos, bruscos e/ou agressivos, em coerência
com a constituição de todos os corpos formados por matéria viva. Por outro
lado, sendo o “cérebro”, o órgão de expressão da mente, a complexa
configuração morfo-funcional que exibe em eqüinos e bovinos é indicativa da
capacidade psíquica desses animais, de aliviar e interpretar as situações
adversas a que são submetidos, disto resultando sofrimento”.
Nota-se, claramente, que o bovino submetido a perseguição e derrubada sofre
estrema crueldade na realização de vaquejadas. Primeiro porque o animal fica confinado em um
diminuto espaço onde é constantemente açoitado e submetido a uma série de expedientes de tortura.
Neste sentido, transcrevemos o relato dos ativistas Gabriela Toledo e Carlos Rosolen da ONG
projeto Esperança Animal, sobre uma vaquejada realizada em Cotia/SP6:
“Chegamos perto do brete. Diversos animais misturados e com aparência
assustada. Um vaqueiro começou a “tocá-los com um pedaço de pau” para a
fila que daria acesso para a arena. O espaço apertado permitia apenas um boi
por vez. Ali os animais eram avaliados. Quando tinham chifres, seus chifres
eram serrados com serrote. Muitos chifres sangravam. O que chamou a
5 Parecer transcrito em: LEITÃO, Geuza. A voz dos sem voz, direito dos animais. Fortaleza:
INESP, 2002
6 Retirado de “http://www.pea.org.br/denuncia/vaquejada.htm”, acessado em 23/01/2013
atenção foi a agressividade com que os vaqueiros amarravam esses animais
para poder serrar a ponta de seus chifres. Alguns se debatiam, caiam no chão.
Outros tentavam pular a porteira que dava acesso à arena e quando isso
ocorria os vaqueiros batiam com pedaços de pau em suas cabeças. Mais de 15
animais passaram por esse procedimento. Houve situações em que os animais
tiveram suas patas presas entre as madeiras do corredor da arena e por pouco
não tiveram suas patas quebradas.
Quando a porteira era aberta os animais saiam em disparada batendo suas
patas, cabeça, peito na porteira, pois ela era muito estreita. Houve casos em
que os vaqueiros fecham a porteira na cara dos animais ou no meio do corpo e
sempre com muita agressividade.
Não havia fiscais nem veterinários presentes no local.
Investigando o evento descobrimos que muitos animais já morreram na arena
ao bater a cabeça nas madeiras. Outros tiveram seus rabos arrancados durante
a prova, pois os vaqueiros estavam utilizando uma luva não adequada. A
prática de serrar os chifres é super comum. Muitas vezes usam os mesmos
animais por mais de uma vez durante a prova”.
Também os cavalos utilizados na vaquejada sofrem com a atitude dos vaqueiros, pois
para alcançarem maior velocidade na perseguição do bovino, são utilizados apetrechos como
rédeas, cabrestos, açoites e esporas. A utilização de equinos nestas competições causa danos
irreparáveis para estes animais, com sérios prejuízos para a sua qualidade de vida e, muitas vezes,
implicando em sacrifício do animal. Sobre as lesões causadas aos cavalos que são montados em
vaquejadas, um estudo conduzido pela Universidade Federal de Campina Grande/PB 7, revelou o
seguinte:
“Doenças
locomotoras
podem
comprometer
definitivamente
o
aproveitamento equino para as diversas práticas desportivas, estando
naturalmente exposto a condições traumáticas nas diferentes modalidades de
exploração das suas potencialidades. Portanto, objetivando um estudo com
finalidade acadêmica aprimorada, sobre as doenças locomotoras traumáticas
em eqüinos utilizados em vaquejadas, procedeu-se a realização no Setor de
Clínica Médica de grandes animais do Hospital Veterinário (HV) do Centro
de Saúde e Tecnologia Rural (CSTR) da Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG), Patos – PB, no período de junho/ 1997 – 2008. Efetuando-se
o levantamento das ocorrências, mediante acompanhamento clínico
ambulatorial e a coleta de dados das anotações clínicas registradas em fichas
e prontuários arquivados. Revelando uma casuística total de 3.013 animais
atendidos no referido Setor, dos quais, 1.170 eqüinos, representando um
percentual de 38,83% dos atendimentos, dentre estes, 110 acometidos de
afecções locomotoras traumáticas, que corresponde a 9,4 % do total de
eqüinos atendidos. Dos quais, maior casuística de tendinite e tenossinovite
(17,27%), exostose (12,27), miopatias (9,8), fraturas (9,3%) e osteoartrite
társica (8,18%) e, maior ocorrência anual em 2007, perfazendo 20
acometimentos, representando 12,82% do total das ocorrências registradas
em eqüinos (156). Concluindo-se que o percentual das ocorrências de
7 Afecções locomotoras traumáticas em equinos ( Equus caballus, LINNAEUS, 1758) de vaquejada atendidos no
Hospital Veterinário/UFCG, Patos/PB, acessado em
http://www.cstr.ufcg.edu.br/mono_mv_2008_2/monogr_carlos_eduardo_fernandes.pdf.
afecções locomotoras traumáticas em eqüinos de vaquejada constitui um dado
de conotação clínica relevante, quanto à prevalência dessas ocorrências sob
condições climáticas semi-áridas.”
E conclui o estudo acima citado que:
“ As observações permitem concluir que:
nas condições da pesquisa, tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal
e por esforço, fraturas e osteoartrite társica são afecções locomotoras
traumáticas prevalentes em equinos de vaquejadas;
tendinite e tenossinovite são afecções locomotoras traumáticas de maior
ocorrência em equinos de vaquejadas;
osteoartrite társica primárias e secundárias, são mais ocorrentes em equinos
adultos de maior idade, explorados em vaquejadas e, conforme as evidências
referenciadas;
o percentual das ocorrências de afecções locomotoras traumáticas em equinos
de vaquejada constitui-se um dano de conotação clínica relevante.”
Não restam dúvidas de que a vaquejada produz sérios e incontroversos danos
a saúde dos animais envolvidos, bovinos e equinos. A atividade causa maus-tratos destes animais,
submetendo-os a crueldade, em proveito do enriquecimento dos promotores dos eventos, dos
vaqueiros e de todos que, direta ou indiretamente, usufruem do dinheiro gerado por estas
competições, como organizadores, comerciantes, produtores rurais, atletas e bandas de forró, com
significativo apoio da mídia, televisiva e impressa, que tenta transformar esta atividade em um
esporte e em manifestação cultural do povo nordestino, muitas vezes escondendo ou mascarando os
malefícios suportados pelos animais utilizados nas competições.
A Vaquejada e a Proteção Jurídica dos Animais
No Brasil, por expressa conceituação legal, entende-se por meio ambiente “o
conjunto de condições, leis, influências e inter-relações de ordem física, química e biológica, que
permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”, que é qualificado como patrimônio público,
devendo ser assegurado e protegido visando sempre o uso coletivo. 8 Participam portanto desta
ampla conceituação legal, “todos os animais, de todas as espécies, correspondendo a genérica
palavra fauna, conceituada como “toda vida animal” (terrestre e aquática) de uma área, de uma
região ou de um país, em suas categorias de fauna silvestre (o conjunto de animais selvagens e
livres em seu ambiente natural), fauna doméstica (o conjunto de animais domesticados ou
cultivados pelos seres humanos), fauna exótica (o conjunto de animais alienígenas ou originário de
outros países) além de microorganismos, todos fazem parte, cientifica e legalmente, do meio
ambiente, uma vez que integram, de forma indispensável, seus recursos ambientais vivos.”9
Nesta perspectiva, cumpre lembrar que a Constituição Federal , consolidando o
amplo conceito de meio ambiente elaborado pela legislação infraconstitucional que lhe é
8 Lei 6.938/81, art. 3o., I e 2o., I
9 Custódio, Helita Barreira: “Crueldade contra animais e a proteção destes”, artigo publicado na Revista de Direito
Ambiental (RDA) 10/60, abr-jun/1998, p.220.
antecedente, nele incluindo todos os recursos naturais, culturais, vivos e não vivos, assegura a
todos, em seu art. 225 o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a toda a coletividade
o dever de defendê-lo e preservá-lo, para as presentes e futuras gerações”.
Além de incorporar, no plano constitucional, esta definição ampla de meio ambiente
constante da Lei 6.938/81, a Constituição Federal ainda obrigou o Poder Público (União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, em todas as suas funções) a desenvolver suas competências
(legislativas e materiais) para garantir efetividade ao direito fundamental de proteção ao meio
ambiente e, no que se refere especificamente a proteção da fauna, estabeleceu: 1) o dever de
“proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, promovam a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” 10; 2) o dever de
preservar o patrimônio público11 e 3) o dever de preservar as florestas, a fauna e a flora12.
Assim, analisando, em resumo, a proteção conferida no plano constitucional a fauna,
podemos concluir que, no Brasil, por força de expressas disposições constitucionais, todos os
animais, qualquer que seja a sua espécie e categoria, estão compreendidos na definição de meio
ambiente, pois a ele pertencem, e são protegidos contra qualquer prática, seja do poder público, seja
do particular, que possa colocar em risco sua função ecológica, provocar sua extinção ou submetêlos a crueldade.
Especificamente no que se refere a crueldade contra animais, deve esta ser assim
entendida:
“Em princípio, considera-se crueldade contra animais vivos em geral toda
ação ou omissão, dolosa ou culposa (ato ilícito), em locais públicos ou
privados, mediante matança cruel pela caça abusiva (profissional, amadorista,
esportiva, recreativa ou turística), por desmatamentos ou incêndios
criminosos, por poluição ambiental mediante dolorosas experiências diversas
(didáticas, científicas, laboratoriais, genéticas, mecânicas, tecnológicas,
dentre outras), amargurantes práticas diversas (econômicas, sociais,
populares, esportivas como o tiro ao voo, tiro ao alvo, de trabalhos excessivos
ou forçados além dos limites normais, de prisões, cativeiros ou transportes em
condições desumanas, de abandono em condições enfermas, mutiladas,
sedentas, famintas, cegas ou extenuantes, de espetáculos violentos como lutas
entre animais até a exaustão ou morte, touradas, farra do boi ou similares),
abates atrozes, castigos violentos e tiranos, adestramentos por meio de
instrumentos torturantes para fins doméstico, agrícola ou para exposições, ou
quaisquer outras condutas impiedosas resultantes de maus-tratos contra
animais vivos, submetidos a injustificáveis e inadmissíveis angústias, dores,
torturas, dentre outros atrozes sofrimentos causadores de lesões corporais, de
invalidez, de excessiva fadiga ou de exaustão até a morte desumana da
indefesa vítima animal.”13
A prática da vaquejada enquadra-se, assim, perfeitamente na moldura acima
construída para abrigar casos de crueldade contra animais. Como já visto, neste tipo de competição
há submissão dos animais envolvidos, tanto o bois como os cavalos, a expediente de tortura, de
estresse, de mutilações, contusões, deformidades físicas muitas vezes irreparáveis, etc. Nestes
eventos, os animais ficam expostos a condições insatisfatórias de sanidade do ambiente, muitos
10
11
12
13
Art. 225, parágrafo 1o. , VII.
Art. 23,I da CF c/c art. 2o., I da Lei 6.938/81
Art. 23, VII, e 225, parágrafo 1o., VII.
Custódio, Helita Barreira. Ob. Cit. p. 225.
morrem em razão das mutilações provocadas, técnicas de adestramento violento ( encarceramento
do boi em espaço mínimo recebendo chicotadas) para tornar o animal naturalmente manso e dócil
em animal fugitivo a apavorado, tudo isto porque tais circunstâncias elevam a competitividade,
tornam a captura mais difícil e exigem mais destreza dos competidores.
Caracterizada a vaquejada como prática que se desenvolve mediante maus-tratos de
animais, torna-se inconstitucional a sua manutenção. Desta forma, este tipo de evento deveria ser
proibido pelo Poder Público, pois a Constituição Federal a este impõe o dever de atuar no sentido de
concretizar, mediantes deveres específicos, a proteção do meio ambiente, e um destes deveres
específicos é, justamente, evitar práticas que possam resultar em maus-tratos de espécies animais,
qualquer que seja a sua qualificação e categoria.
No entanto, além de omitir-se no cumprimento de um dever constitucional, não
realizando os atos de contenção administrativa que a atividade ambientalmente nociva deveria
sofrer, vem o Poder Público a atuar, como legislador, em sentido diametralmente oposto ao
determinado pela Constituição Federal, elaborando uma normatividade tentando conferir respaldo
legal a uma atividade flagrante violadora do direito fundamental de concretização de uma sociedade
mais saudável, mais justa e solidária.
A Lei Estadual ora impugnada, na verdade, pretende conferir a esta atividade
inconstitucional a capa de legalidade, como se fosse possível ao legislador atuar de forma a tentar
esconder os malefícios que as vaquejadas causam aos animais apenas elaborando uma norma com o
intuito de regulamentar uma atividade que passa a qualificar como de caráter desportivo e de
conteúdo cultural.
Esta Lei Estadual do Ceará, na verdade, equivale a Lei elaborada pelo Estado do Rio
de Janeiro que tentou regulamentar as rinhas de galo, com o intuito de conferir a esta evidente
prática causadora de maus-tratos aos animais o manto da legalidade. Na ocasião, a tentativa, no Rio
de Janeiro foi a idêntica a a tentativa ora engendrada no Estado do Ceará, qual seja, criar, por
imposição legal, uma atividade desportiva, reconhecida como de conteúdo cultural, para esconder
as mazelas causadas por esta atividade aos animais dela participantes.
A tentativa do Estado do Rio de Janeiro, embora majoritária no parlamento estadual,
foi expurgada do ordenamento jurídico pátrio por uma decisão unânime do Supremo Tribunal
Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.856, cuja ementa é esclarecedora:
E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE –
BRIGA DE GALOS (LEI FLUMINENSE Nº 2.895/98) – LEGISLAÇÃO
ESTADUAL QUE, PERTINENTE A EXPOSIÇÕES E A COMPETIÇÕES
ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES, FAVORECE ESSA
PRÁTICA CRIMINOSA – DIPLOMA LEGISLATIVO QUE ESTIMULA O
COMETIMENTO DE ATOS DE CRUELDADE CONTRA GALOS DE
BRIGA – CRIME AMBIENTAL (LEI Nº 9.605/98, ART. 32) – MEIO
AMBIENTE – DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF,
ART. 225) – PRERROGATIVAQUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE
METAINDIVIDUALIDADE – DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE
NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA
SOLIDARIEDADE – PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAUNA (CF,
ART. 225, § 1º, VII) – DESCARACTERIZAÇÃO DA BRIGA DE GALO
COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL – RECONHECIMENTO DA
INCONSTITUIONALIDADE DA LEI ESTADUAL IMPUGNADA - AÇÃO
DIRETA PROCEDENTE. LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE AUTORIZA A
REALIZAÇÃO DE EXPOSIÇÕES E COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS
RAÇAS COMBATENTES - NORMA QUE INSTITUCIONALIZA A
PRÁTICA
DE
CRUELDADE
CONTRA
A
FAUNA
INCONSTITUCIONALIDADE.
- A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa
tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à
Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos de
crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi” (RE
153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente
manifestação cultural, de caráter
meramente folclórico. Precedentes. - A proteção jurídico-constitucional
dispensada à fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos
ou domesticados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o
texto da Lei Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de
submissão de animais a atos de crueldade.
- Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da
Constituição da República, é motivada pela necessidade de impedir a
ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas
as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida
animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação
constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres
irracionais, como os galos de briga (“gallus-gallus”). Magistério da doutrina.
ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL.
- Não se revela inepta a petição inicial, que, ao impugnar a validade
constitucional de lei estadual, (a) indica, de forma adequada, a norma de
parâmetro, cuja autoridade teria sido desrespeitada, (b) estabelece, de
maneira clara, a relação de antagonismo entre essa legislação de menor
positividade jurídica e o texto da Constituição da República, (c) fundamenta,
de modo inteligível, as razões consubstanciadoras da pretensão de
inconstitucionalidade deduzida pelo autor e (d) postula, com objetividade, o
reconhecimento da procedência do pedido, com a consequente declaração de
ilegitimidade constitucional da lei questionada em sede de controle normativo
abstrato, delimitando, assim, o âmbito material do julgamento a ser proferido
pelo Supremo Tribunal Federal. Precedentes.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Cezar
Peluso, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, em rejeitar as preliminares arguidas e, no mérito,
também por unanimidade, julgar procedente a ação direta para declarar a
inconstitucionalidade da Lei nº 2.895, de 20 de março de 1998, do Estado do
Rio de Janeiro, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro
Cezar Peluso. Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie.
Brasília, 26 de maio de 2011. CELSO DE MELLO - RELATOR
Nota-se, pela análise do precedente, que as situações ora comparadas são similares.
Vaquejadas e rinhas de galos foram caracterizadas, por leis estaduais, como atividades desportivas e
culturais. Ao analisar o caso das rinhas de galo, o Supremo Tribunal Federal entendeu que tais
práticas importavam em maus-tratos de animais e, assim, concluiu que a lei do Estado do Rio de
Janeiro, em sua integralidade, violava, diretamente, o comando contido no art. 225, parágrafo 1o.,
VII da Constituição Federal. Mesmo destino deve ter a Lei Estadual 15.299, 08 de janeiro de 2013,
de iniciativa da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará e sancionada pelo Exmo. Sr.
Governador do Estado e que tem por objeto regulamentar as vaquejadas também como atividade
desportiva e cultural, muito embora se desenvolva, como já demonstrado, através de práticas que
submetem os animais participantes a tratamento cruel, violando da mesma forma que a lei carioca,
de forma direta, a Constituição Federal.
Considerando que é pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o
entendimento de que todas as práticas que ensejam tratamento cruel a animais, sejam eles de
qualquer espécie e categoria, violam diretamente a Constituição Federal, especialmente seu art. 225,
parágrafo 1o., VII, em sendo a prática da vaquejada ensejadoras de maus-tratos aos animais
participantes, como já se demonstrou pela descrição de como é a atividade atualmente
desenvolvida, outra conclusão não nos resta senão caracterizar a vaquejada, em similitude ao que
ocorreu com as rinhas de galo, como prática inconstitucional, devendo ser banida do ordenamento
jurídico toda e qualquer norma legal que pretenda regulamentá-la, sob o pífio argumento de se tratar
de uma atividade de cunho cultural.
Sem adentrar no mérito da caracterização da vaquejada como patrimônio cultural,
pois para muitos historiadores a vaquejada de hoje não guarda nenhuma identidade com as práticas
que ensejaram seu surgimento, podendo atualmente ser caracterizada como um esporte da
aristocracia rural nordestina14, mesmo na hipótese de ser tal atividade reconhecida como patrimônio
cultural, não poderia se manter em realização, tendo em vista que para o Supremo Tribunal Federal,
as manifestações culturais, que devem se difundidas e valorizadas, não podem prescindir da
observância da norma constitucional que veda a prática que submeta animais a maus-tratos.
Esta decisão, adotada com referência a farra do boi, deixa muito claro o
entendimento do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito a exigibilidade de ponderação de
interesses para a resolução do aparente conflito de normas constitucionais de mesma densidade
normativa, ou seja, de direitos fundamentais garantidos pela ordem constitucional e que
aparentemente se opõem, consistentes na proteção do patrimônio cultural e do meio ambiente.
Restou assim ementada a decisão em referência:
EMENTA: COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMULO –
RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E FLORA – ANIMAIS
– CRUELDADE.
A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos
culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não
prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da
Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais
a crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado
“farra do boi”.15
Resta claro, portanto, que demonstrado que a vaquejada se realiza mediante práticas
que infligem maus-tratos aos animais participantes, não há nenhuma relevância jurídico14 CAMARA CASCUDO, Luis da. A vaquejada nordestina e sua origem. Natal: Fundação José
Augusto, 1976.
15 Recurso Extraordinário 153.531-8 Santa Catarina, Relator para o acórdão Ministro Marco Aurélio
constitucional em se reconhecer, ou não, tal atividade como patrimônio cultural. Mesmo que a
atividade venha a ser assim reconhecida, sua manutenção, segundo já decidido pelo Supremo
Tribunal Federal, somente pode ser assegurada se retirados todos os elementos que configuram atos
de crueldade animal e, sendo assim, para atender a este parâmetro a própria atividade não poderá
mais subsistir, pois terá que se descaracterizar por completo, na medida em que as práticas abusivas
e contrárias a Constituição Federal fazem parte de sua essência.
Da Proteção Insuficiente e da Vedação de Retrocesso.
Há consenso de que o Estado deve agir na proteção de bens jurídicos de índole
constitucional. Nesta perspectiva, a doutrina de direito constitucional vem assentando que a
violação à proporcionalidade pode se verificar tanto em face da proibição de excesso quanto em
razão de proibição de proteção deficiente.
O próprio Supremo Tribunal Federal, ao recusar a aplicação de dispositivo do Código
Penal (atualmente não mais em vigor), prevendo a extinção de punibilidade do crime de estupro
sempre que o autor casasse com a vítima, teve a questão apreciada por este ângulo no voto do
Ministro Gilmar Mendes16:
“ Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para
uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que
se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado), já consagrado pelo
princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção deficiente adquire
importância na aplicação de direitos fundamentais de proteção, ou seja, na
perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o
Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a
proteção de um direito fundamental”.
A possível violação à proporcionalidade, na sua faceta de proibição insuficiente, se
materializa, no caso, diante da constatação de que, ao regulamentar uma atividade que se
desenvolve com maus-tratos de animais, o legislador estadual expôs bens jurídicos de máxima
importância ( a integridade física de animais) sem uma razão forte capaz de justificar a sua opção.
A norma constitucional do art. 225, parágrafo 1o., VII da Constituição Federal
protege todos os animais contra maus-tratos e é, neste particular, segundo entende o Supremo
Tribunal Federal, autoaplicável. Assim, tais práticas estão proibidas pela norma máxima do
ordenamento jurídico, independentemente de legislação infraconstitucional específica.
Mesmo assim, o legislador federal elaborou norma criminalizando a conduta
consistente em “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos
ou domesticados, nativos ou exóticos”17, estabelecendo como pena “detenção, de três meses a um
ano e multa”. Nota-se que o legislador federal atuou seguindo a diretriz constitucional e criando
normatividade inibidora de condutas contrárias ao determinado pela Magna Carta, reforçando assim
o campo de proteção do meio ambiente.
No entanto, o legislador estadual atua, no caso, em sentido contrário, criando norma
que regulamenta uma atividade flagrantemente inconstitucional. Ao assim agir, difunde o
entendimento equivocado de que a vaquejada deve ser tolerada e pode ser livremente praticada, por
se tratar apenas de uma competição consolidada na cultura nordestina.
16 RE 418.376, Plenário, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel para o acórdão Min. Joaquim Barbosa, DJ 23/3/2007
17 Art. 32 da lei 9.605/98
Esta última atuação legislativa, confirmada pelo Executivo Estadual através da
sanção da malfadada Lei atua contra os parâmetros de proteção constitucional e da legislação
federal que já tinha inclusive criminalizado a conduta ora permitida pela Lei Estadual impugnada.
Trata-se, assim, de atuação que não se apresenta como proporcional, pois a Constituição Federal
proclama que a proteção ambiental (incluída a salvaguarda da integridade dos animais) é direito
fundamental e o sacrifício deste direito fundamental, ante a consecução de benefícios meramente
econômicos a uma pequena parcela de setores envolvidos com esta atividade é totalmente
desproporcional.
A inovação legislativa ora impugnada afrouxa os controles da atividade ilícita, e
assim, expõe ao risco o direito fundamental de proteção ambiental, caracterizando-se como
legislação criadora de uma proteção insuficiente deste direito fundamental.
Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer18, com maestria, enfatizam que:
“Considerando os deveres de proteção ambiental dos entes federativos
delineados na nossa Constituição, a não-atuação (quando lhe é imposto
juridicamente agir) ou a atuação insuficiente (de moda a não proteger o direito
fundamental de modo adequado e suficiente), no tocante a medidas legislativas e
administrativas voltadas ao combate às causas geradoras de degradação do
ambiente, pode ensejar até mesmo responsabilidade do Estado, inclusive no
sentido de reparar os danos causados a indivíduos e grupo sociais afetados pelos
efeitos negativos dos danos ambientais. (…) o Estado está obrigado a assegurar
um nível mínimo adequado de proteção dos direitos fundamentais, sendo,
inclusive, responsável pelas omissões legislativas que não assegurem o
cumprimento dessa imposição genérica.”
A legislação cearense combatida, quando posta em confronto com os parâmetros
federais já expostos, evidencia significativo retrocesso. Segundo Sarlet e Fensterseifer, a finalidade
da garantia de proibição de retrocesso é “preservar o bloco normativo – constitucional e
infraconstitucional – já construído e consolidado no ordenamento jurídico, especialmente
naquilo em que objetiva assegurar a fruição de direitos fundamentais, impedindo ou
assegurando o controle de atos que venham a provocar a supressão ou restrição dos níveis de
efetividade vigentes dos direitos fundamentais”19.
E especificamente quanto a matéria ambiental arrematam os mesmo autores que há
que “assegurar a sua blindagem contra retrocessos que a tornem menos rigorosa ou flexível,
admitindo práticas poluidoras hoje proibidas, assim como buscar sempre um nível mais
rigoroso de proteção, considerando especialmente o déficit legado pelo nosso passado e um
'ajuste de contas' com o futuro, no sentido de manter um equilíbrio ambiental também para
as futuras gerações”20.
Por estes ensinamentos, que sintetizam o pensamento democrático-constitucional
mais avançado, um Estado-membro, embora dotado de competência legislativa suplementar em
matéria ambiental não pode exercer esta prerrogativa com o objetivo de criar novos instrumentos
que, ao final, com sua aplicabilidade, acabam por abrandar, flexibilizar os padrões de proteção já
existentes no ordenamento jurídico. Ao assim fazer, estabelecendo um regramento para uma
atividade que se desenvolve com maus-tratos de animais, como é a vaquejada, pondo em risco o
18 SARLET, Ingo & FENSTERSEIFER, Tiago. Breves considerações sobre os deveres de proteção do Estado e a
garantia da proibição de retrocesso em matéria ambiental. Revista de Direito Ambiental, 58, abril-junho 2010, no
prelo.
19 Idem, ibidem.
20 Idem, ibidem
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras
gerações, age com violação do princípio constitucional implícito da proibição de criação de
proteção jurídica inadequada a este direito fundamental, em face da desproporção entre as medidas
propostas e os benefícios a serem atingidos, como também promove um significativo retrocesso
normativo, retirando eficácia do direito fundamental em comento.
Diante de tudo o que fora exposto, considerando-se que a Lei Estadual 15.299, 08 de
janeiro de 2013, contraria, em todas as suas disposições, os preceitos constitucionais federais
mencionados, além de ensejar uma flagrante violação as normas gerais de proteção ambiental e à
efetividade do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, é de se concluir
estarem presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora para justificar, nos termos do art. 170, §
1º, c/c o art. 21, V, do Regimento Interno do STF, a suspensão ad cautelam da eficácia das normas
citadas. No mesmo sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal na ADI 1.856/RJ referente a rinha
de galos ser elevante os motivos da arguição de inconstitucionalidade fundada em comprovada
alegação de prática que acarreta maus-tratos a animais. Eis a decisão:
EMENTA:
CONSTITUCIONAL.
MEIO
ANIMAIS.PROTEÇÃO.CRUELDADE.BRIGA DE GALOS.
AMBIENTE.
1.A Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e
disciplinar a realização de competições entre galos combatentes, autoriza e
disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a
Constituição Federal não permite: CF, art. 225, parágrafo 1o., VII.
2.Cautelar deferida, suspendendo a eficácia da Lei 2.895, de 20.03.98, do
Estado do Rio de Janeiro.
No voto do relator, Ministro Carlos Velloso, restou assentado que:
“A Lei 2.895, de 20.03.98 do Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e
disciplinar a realização de competições entre galos combatentes, autoriza a
disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a
Constituição não permite.
Tem-se, no caso, portanto, arguição de inconstitucionalidade relevante, que
autoriza o deferimento da cautelar.”
Do entendimento do relator nenhum outro Ministro discordou, sendo unânime a
decisão, o que nos autoriza a afirmar ser entendimento do Supremo Tribunal Federal que em casos
de alegação de prática que submete animais a maus-tratos, amparadas por Leis, esta o Tribunal
diante de caso relevante de arguição de inconstitucionalidade autorizadora do deferimento de
medida cautelar para suspensão da eficácia da norma infraconstitucional que disciplina atividades
correspondentes a rinha de galos, o que ocorre com a vaquejada, como já demonstrado.
Por fim, importante salientar o oportuno momento de ajuizamento de ADI nestes
caso. Até a edição da Lei ora impugnada, a vaquejada foi combatida, judicialmente, em diversas
ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público, em diversas comarcas do País,
principalmente na região nordeste. Em diversas destas ações, as liminares deferidas impedindo a
realização deste tipo de evento, foram rapidamente cassadas por decisões de Tribunais de Justiça.
Assim, o controle difuso de constitucionalidade efetivado nestas demandas não resultou na
contenção da prática indevida de vaquejadas em todo o país, pois não se tem notícia de qualquer
pronunciamento definitivo do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, uma vez que estes
conflitos iniciados em juízos de primeira instância ainda não foram submetidos, pela via recursal
extraordinária, a uma apreciação do Supremo Tribunal Federal.
A Lei Estadual produzida pelo Estado do Ceará e ora impugnada, é a primeira
manifestação legislativa sobre o tema e permite uma provocação direta ao Supremo Tribunal
Federal, a quem caberá analisar a conformidade, ou não, da prática da vaquejada com os
dispositivos constitucionais que impedem maus-tratos de animais. Assim, há uma real possibilidade
do Supremo Tribunal Federal, devidamente provocado pelo Procurador Geral da República,
estabelecer, de forma definitiva, se a vaquejada é, ou não, prática desportiva constitucional, o que
acabaria, de uma vez por todas com os questionamentos judiciais pontuais ainda pendentes de
resolução final em todo o país.
Por todo o exposto, rogamos que seja formalizada ADI para, em medida cautelar,
suspender a eficácia e no julgamento de mérito retirar a validade de todos os artigos da Lei Estadual
15.299, 08 de janeiro de 2013, do Estado do Ceará, os quais contrariam, diretamente, o disposto no
art. 225, parágrafo 1o., VII da Constituição da República e a interpretação remansosa e pacífica que
lhe confere o Supremo Tribunal Federal, declarando-lhes a inconstitucionalidade.
P. deferimento.
Fortaleza, 24 de janeiro de 2013.
Alessander Wilckson Cabral Sales
Procurador da República
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