EXCELENTÍSSIMO SENHOR PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA desportiva Representação para Ajuizamento de ADI Vimos diante de Vossa Excelência formular a presente REPRESENTAÇÃO, pugnando pela propositura de AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do texto integral da Lei nº 15.299/2013 do Estado do Ceará , conforme argumentação abaixo deduzida: Foi publica em de janeiro de 2013 a Lei Estadual nº 15.299, que “Regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado do Ceará”. Referida Lei Estadual tem por finalidade estabelecer parâmetros normativos para a realização de vaquejadas em todo o Estado do Ceará, sendo estruturada da seguinte forma: a) definição do que é a vaquejada e quem são os competidores desta atividade desportiva; b) como ocorrem os julgamentos neste tipo de competição; c) quais os cuidados que devem ser adotados para proteger e pessoas e animais envolvidos no evento; d) como deve ocorrer o transporte dos animais utilizados nas disputas e, por fim, e) estabelecendo a presença obrigatória de paramédicos em vaquejadas profissionais. Eis o inteiro teor da lei impugnada: LEI Nº 15.299, 08 de janeiro de 2013. REGULAMENTA A VAQUEJADA COMO CULTURAL NO ESTADO DO CEARÁ. PRÁTICA DESPORTIVA E O GOVERNADOR DO ESTADO DO CEARÁ. Faço saber que a Assembleia Legislativa decretou e eu sanciono a seguinte Lei: Art.1º Fica regulamentada a vaquejada como atividade desportiva e cultural no Estado do Ceará. Art.2º Para efeitos desta Lei, considera-se vaquejada todo evento de natureza competitiva, no qual uma dupla de vaqueiro a cavalo persegue animal bovino, objetivando dominá-lo. §1º Os competidores são julgados na competição pela destreza e perícia, denominados vaqueiros ou peões de vaquejada, no dominar animal. §2º A competição dever ser realizada em espaço físico apropriado, com dimensões e formato que propiciem segurança aos vaqueiros, animais e ao público em geral. §3º A pista onde ocorre a competição deve, obrigatoriamente, permanecer isolada por alambrado, não farpado, contendo placas de aviso e sinalização informando os locais apropriados para acomodação do público. Art.3º A vaquejada poderá ser organizada nas modalidades amadora e profissional, mediante inscrição dos vaqueiros em torneio patrocinado por entidade pública ou privada., como ocorre o transporte Art.4º Fica obrigado aos organizadores da vaquejada adotar medidas de proteção à saúde e à integridade física do público, dos vaqueiros e dos animais. §1º O transporte, o trato, o manejo e a montaria do animal utilizado na vaquejada devem ser feitos de forma adequada para não prejudicar a saúde do mesmo. §2º Na vaquejada profissional, fica obrigatória a presença de uma equipe de paramédicos de plantão no local durante a realização das provas. §3º O vaqueiro que, por motivo injustificado, se exceder no trato com o animal, ferindo-o ou maltratando-o de forma intencional, deverá ser excluído da prova. Art.5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Art.6º Revogam-se as disposições em contrário. PALÁCIO DA ABOLIÇÃO, DO GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ, em Fortaleza, 08 de janeiro de 2013. Domingos Gomes de Aguiar Filho GOVERNADOR DO ESTADO DO CEARÁ EM EXERCÍCIO Esmerino Oliveira Arruda Coelho Júnior SECRETÁRIO DO ESPORTE Passamos a analisar, sob a perspectiva constitucional, o texto integral da Lei impugnada. No início, no entanto, cumpre definir, pois fundamental a compreensão correta do enquadramento a ser feito, o que deve ser entendido, na verdade, por vaquejada e como ela atualmente se desenvolve no país para, em momento seguinte, examinarmos as disposições constitucionais violadas por esta específica atividade. Vaquejadas: Considerações Gerais. A vaquejada é uma prática desportiva, atualmente muito popular no nordeste brasileiro, na qual dois vaqueiros montados em cavalos devem derrubar um touro (ou novilho), puxando-o pelo rabo, dentro de uma área previamente demarcada por cal. Esta prática tipicamente nordestina, conforme os ensinamentos de José Eusébio Fernandes Bezerra1, começou com a obrigação determinada pelos coronéis do interior do nordeste (fazendeiros) para que o gado, então criado solto na mata, fosse reunido por seus vaqueiros : “Na verdade, tudo começou aqui pelo Nordeste com o Ciclo dos Currais. É onde entram as apartações. Os campos de criar não eram cercados. O gado, criado em vastos campos abertos, distanciava-se em busca de alimentação mais abundante nos fundos dos pastos. Para juntar gado disperso pelas serras, caatingas e tabuleiros, foi que surgiu a apartação. 1 No mundo do vaqueiro. Disponível em: <http://www.barcelona.educ.ufrn.br/mundo.htm>. Escolhia-se antecipadamente uma determinada fazenda e, no dia marcado para o início da apartação, numerosos fazendeiros e vaqueiros devidamente encourados partiam para o campo, guiados pelo fazendeiro anfitrião, divididos em grupos espalhados em todas as direções à procura da gadaria. O gado encontrado era cercado em uma malhada ou rodeador, lugar mais ou menos aberto, comumente sombreado por algumas árvores, onde as reses costumavam proteger-se do sol, e nesse caso o grupo de vaqueiros se dividia. Habitualmente ficava um vaqueiro aboiador para dar o sinal do local aos companheiros ausentes. Um certo número de vaqueiros ficava dando o cerco, enquanto os outros continuavam a campear. Ao fim da tarde, cada grupo encaminhava o gado através de um vaquejador, estrada ou caminho aberto por onde conduzir o gado para os currais da fazenda. O gado era tangido na base do traquejo, como era chamada a prática ou jeito de conduzi-lo para os currais. Quando era encontrado um barbatão da conta do vaqueiro da fazenda-sede, ou da conta de vaqueiro de outra fazenda, era necessário pegá-lo de carreira. Barbatão era o touro ou novilho que, por ter sido criado nos matos, se tornara bravio. Depois de derrubado, o animal era peado e enchocalhado. Quando a rés não era peada, era algemada com uma algema de madeira, pequena forquilha colocada em uma de suas patas dianteiras para não deixa-la correr. Se o vaqueiro que corria mais próximo do boi não conseguia pegá-lo pela bassoura, o mesmo que rabo ou cauda do animal, e derrubá-lo, os companheiros lhe gritavam: – Você botou o boi no mato!” Por volta de 1940, vaqueiros nordestinos passaram a se reunir para tornar público suas habilidades nesta atividade e os fazendeiros da região passaram então a organizar torneios entre estes vaqueiros. Este tipo de competição logo foi incorporado ao cotidiano de festividades de muitas cidades nordestinas e com o passar do tempo tornou-se popular e recebeu o nome de vaquejada. Inicialmente amadoras, estas competições, na medida em que foram se tornando populares, passaram por aperfeiçoamentos em termos de organização, com calendários específicos e regras bem definidas. Melhor organizada, a competição passou a contar com patrocinadores e despertou o interesse da mídia, contando hoje com estrutura própria de grandes eventos desportivos, virando uma industria milionária que movimenta significativas somas de dinheiro e que paga verdadeiras fortunas em prêmios para o competidores. No nordeste brasileiro, encontramos hoje dezenas de parques de vaquejada, verdadeiras arenas multi-uso de competição. Trata-se de atividade consideravelmente lucrativa, como se pode notar pelo teor de trecho da seguinte reportagem2: “Arenas lotadas, com média de público superior a 80 mil pessoas por noite. Premiações milionárias, que movimentam cerca de R$ 14 milhões por ano. Competidores, que podem ganhar até R$ 150 mil vencendo uma prova, tratados como celebridades. Não, não se trata de nenhum campeonato de futebol, esporte considerado a paixão nacional. Os vultosos números se 2 “O Milionário Mundo da Vaquejada”. Revista Dinheiro Rural, edição 68, julho de 2010, acessada em 22/-1/2013 no seguinte endereço eletrônico: http://revistadinheirorural.terra.com.br/secao/agronegocios/o-milionario-mundo-davaquejada. referem às vaquejadas, festas que há mais de 40 anos conquistaram o Nordeste brasileiro e que a cada ano avançam para outras regiões do País. De acordo com a Associação Nacional de Vaquejadas (ANV), são mais de 600 eventos por ano, que reúnem centenas de vaqueiros de olho nos pomposos prêmios pagos. "No nordeste, esse esporte é a verdadeira paixão, que cresce cerca de 20% ao ano", afirma o especialista na competição e responsável pelo site Portal Vaquejada, Fabio Leal. Fato é que as tradicionais festas nos últimos anos se transformaram em um negócio milionário, reunindo empresários, criadores de cavalos e empresas. Entre premiações, shows e publicidade, estima-se que as festas girem algo em torno de R$ 50 milhões por ano. "A vaquejada é uma paixão que atrai um grande público e, consequentemente, muitos investidores", explica o empresário e criador Jonatas Dantas”. Durante o evento, são formadas duplas de competidores previamente inscritas de forma onerosa. Paga a inscrição, a dupla esta apta a competir. A competição consiste na apresentação de cada dupla de vaqueiros, que correm a galopes, cercando o animal (touro ou novilho) em fuga. O objetivo é conduzir o animal até uma área marcada com cal e, estando ali, cumpre a um dos componentes da dupla agarrar o animal pelo rabo, torcendo-o, com o objetivo de fazer com que, na queda, o animal posicione suas quatro patas para cima, conforme a seguinte descrição3: “Inclinados, quase deitados sobre o cavalo, cujo pescoço cingem com um braço, a outra mão estirada para diante e para baixo, já meio fechada como um gancho, buscam na corrida desenfreada o momento propício e rapidíssimo em que, segura a extremidade da cauda enrolada na mão, a rês esteja, entre um e outro contato com a terra, de patas no ar. Então, firmando-se nos estribos, executam um movimento de tração, em que o jeito e a presteza são mais valiosos que a força. Desviando repentinamente da direção seguida e faltando-lhe o apoio do solo, o animal “arrastado” faz meio volta e rola desamparado por terra, descrevendo com as patas, se a derrubada é perfeita, um semicírculo no ar.” Acessando o endereço na internet “BahiaVaquejada.com.br” 4, temos uma descrição pormenorizada da atividade: “REGRAS Numa pista de 120 metros de cumprimento por 30 metros de largura demarca-se uma faixa aonde os bois deverão ser derrubados. Dentro deste limite será válido o ponto, somente quando o boi, ao cair, mostrar as quatro patas e levantar-se dentro das faixas de classificação. O boi será julgado de 3 Policarpo Feitosa (apud BEZERRA, 2007, on line). 4 http://www.bahiavaquejada.com.br/crbst_1.html, acessado em 23/01/2013 pé; deitado, somente caso não tenha condições de levantar-se. Participam desta competição sempre uma dupla de vaqueiros que terá direito a ter inscrito o animal designado para puxar em apenas uma vaquejada, estando o esteira permitido a participar de duas provas. O boi que ficar da pá para frente , em cima da faixa receberá nota zero de imediato. A disputa do Campeão dos Campeões será feita na ordem decrescente, ou seja, da última colocação para a primeira. Como é a soma dos pontos? A Vaquejada começa na Sexta-feira, o treino ou o reconhecimento da pista. No Sábado inicia a seleção ou classificação das duplas de vaqueiros, cada dupla enfrenta três bois. O primeiro boi vale em 8pontos, o segundo 9pontos e o terceiro 10 pontos. Isso Totaliza 27 pontos. No Domingo começa de novo só que o numero de pontos são diferentes. O primeiro vale11, o segundo12 e o terceiro13. Com isso somam 36 pontos, somado com os pontos anteriores ( 27 pontos ) é igual a 63 pontos. Os 20 melhores colocados concorrem para ver quem é o campeão. Como é na pista? O que acontece? A "pista" nada mais é do que um brete, um curral e a pista ( que tem 150m e de largura começa com 12m e termina com 42m). A dupla tem que derrubar o boi entre as duas linhas ou faixas que tem 10m entre uma e outra. Cada dupla tem o vaqueiro de esteira ( aquele que ajuda o puxador, ajeitando e alinhado o boi na pista ), o puxador ( puxa o boi pelo rabo e derruba entre as linhas ). Se o puxador derrubar o boi entre as faixas então "Valeu boi" e a dupla ganha seu respectivo ponto. Cavalos Os mais preferidos são os da raça QUARTO DE MILHA, puros ou cruzados com PSI , ÁRABE, ou APPALOOSA. O cruzamento, além de ser responsável por mais de 80% do plantel de eqüinos de competição nesta modalidade, vem se destacando por produzir animais de extrema docilidade, versatilidade, agilidade e vigor físico. O treinamento começa assim que o animal tiver condições de ser montado e após a castração, normalmente feita depois dos dois anos de idade. O freio e o bridão, muito usados nas outras regiões do país é substituído, aqui, pela "professorinha", um instrumento de doma articulado que pressiona, por alavanca, a parte superior das narinas do animal. Na proporção que a doma é completada, o animal é posto na porteira do brete com a finalidade de aprender a esperar pacientemente a partida do boi, sem se assustar com solavancos ou barulhos. Partindo ao mesmo tempo, nem antes nem depois. Sua obrigação a partir daquele momento é acompanhar qualquer movimento do boi "pescoço a pescoço" até as imediações da primeira faixa, quando deve acelerar o máximo que puder, correndo em uma diagonal (quase perpendicular) para o lado oposto, finalizando com uma parada estanque tal como nas provas de rédeas, e , o mais próximo possível da cerca. Em outras palavras, quando atingir este estágio, após aproximadamente um ano de treinamento, o animal estará formado e pronto para competir e se aprimorar até sua maturidade total.” Parecer técnico emito pela Dra. Irvênia Luíza de Santis Prada, registra os danos a que são submetidos os animais em fuga e que devem ser derrubados pelos vaqueiros5: “Ao perseguirem o bovino, os peões acabam por segurá-lo fortemente pela cauda (rabo), fazendo com que ele estanque e seja contido. A cauda dos animais é composta, em sua estrutura óssea, por uma sequência de vértebras, chamadas coccígeas ou caudais, que se articulam umas com as outras. Nesse gesto brusco de tracionar violentamente o animal pelo rabo, é muito provável que disto resulte luxação das vértebras, ou seja, perda da condição anatômica de contato de uma com a outra. Com essa ocorrência, existe a ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, portanto, estabelecendo-se lesões traumáticas. Não deve ser rara a desinserção (arrancamento) da cauda, de sua conexão com o tronco. Como a porção caudal da coluna vertebral representa continuação dos outros segmentos da coluna vertebral, particularmente na região sacral, afecções que ocorrem primeiramente nas vértebras caudais podem repercutir mais para frente, comprometendo inclusive a medula espinhal que se acha contida dentro do canal vertebral. Esses processos patológicos são muito dolorosos, dada a conexão da medula espinhal com as raízes dos nervos espinhais, por onde trafegam inclusive os estímulos nociceptivos (causadores de dor). Volto a repetir que além de dor física, os animais submetidos a esses procedimentos vivenciam sofrimento mental. A estrutura dos eqüinos e bovinos é passível de lesões na ocorrência de quaisquer procedimentos violentos, bruscos e/ou agressivos, em coerência com a constituição de todos os corpos formados por matéria viva. Por outro lado, sendo o “cérebro”, o órgão de expressão da mente, a complexa configuração morfo-funcional que exibe em eqüinos e bovinos é indicativa da capacidade psíquica desses animais, de aliviar e interpretar as situações adversas a que são submetidos, disto resultando sofrimento”. Nota-se, claramente, que o bovino submetido a perseguição e derrubada sofre estrema crueldade na realização de vaquejadas. Primeiro porque o animal fica confinado em um diminuto espaço onde é constantemente açoitado e submetido a uma série de expedientes de tortura. Neste sentido, transcrevemos o relato dos ativistas Gabriela Toledo e Carlos Rosolen da ONG projeto Esperança Animal, sobre uma vaquejada realizada em Cotia/SP6: “Chegamos perto do brete. Diversos animais misturados e com aparência assustada. Um vaqueiro começou a “tocá-los com um pedaço de pau” para a fila que daria acesso para a arena. O espaço apertado permitia apenas um boi por vez. Ali os animais eram avaliados. Quando tinham chifres, seus chifres eram serrados com serrote. Muitos chifres sangravam. O que chamou a 5 Parecer transcrito em: LEITÃO, Geuza. A voz dos sem voz, direito dos animais. Fortaleza: INESP, 2002 6 Retirado de “http://www.pea.org.br/denuncia/vaquejada.htm”, acessado em 23/01/2013 atenção foi a agressividade com que os vaqueiros amarravam esses animais para poder serrar a ponta de seus chifres. Alguns se debatiam, caiam no chão. Outros tentavam pular a porteira que dava acesso à arena e quando isso ocorria os vaqueiros batiam com pedaços de pau em suas cabeças. Mais de 15 animais passaram por esse procedimento. Houve situações em que os animais tiveram suas patas presas entre as madeiras do corredor da arena e por pouco não tiveram suas patas quebradas. Quando a porteira era aberta os animais saiam em disparada batendo suas patas, cabeça, peito na porteira, pois ela era muito estreita. Houve casos em que os vaqueiros fecham a porteira na cara dos animais ou no meio do corpo e sempre com muita agressividade. Não havia fiscais nem veterinários presentes no local. Investigando o evento descobrimos que muitos animais já morreram na arena ao bater a cabeça nas madeiras. Outros tiveram seus rabos arrancados durante a prova, pois os vaqueiros estavam utilizando uma luva não adequada. A prática de serrar os chifres é super comum. Muitas vezes usam os mesmos animais por mais de uma vez durante a prova”. Também os cavalos utilizados na vaquejada sofrem com a atitude dos vaqueiros, pois para alcançarem maior velocidade na perseguição do bovino, são utilizados apetrechos como rédeas, cabrestos, açoites e esporas. A utilização de equinos nestas competições causa danos irreparáveis para estes animais, com sérios prejuízos para a sua qualidade de vida e, muitas vezes, implicando em sacrifício do animal. Sobre as lesões causadas aos cavalos que são montados em vaquejadas, um estudo conduzido pela Universidade Federal de Campina Grande/PB 7, revelou o seguinte: “Doenças locomotoras podem comprometer definitivamente o aproveitamento equino para as diversas práticas desportivas, estando naturalmente exposto a condições traumáticas nas diferentes modalidades de exploração das suas potencialidades. Portanto, objetivando um estudo com finalidade acadêmica aprimorada, sobre as doenças locomotoras traumáticas em eqüinos utilizados em vaquejadas, procedeu-se a realização no Setor de Clínica Médica de grandes animais do Hospital Veterinário (HV) do Centro de Saúde e Tecnologia Rural (CSTR) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Patos – PB, no período de junho/ 1997 – 2008. Efetuando-se o levantamento das ocorrências, mediante acompanhamento clínico ambulatorial e a coleta de dados das anotações clínicas registradas em fichas e prontuários arquivados. Revelando uma casuística total de 3.013 animais atendidos no referido Setor, dos quais, 1.170 eqüinos, representando um percentual de 38,83% dos atendimentos, dentre estes, 110 acometidos de afecções locomotoras traumáticas, que corresponde a 9,4 % do total de eqüinos atendidos. Dos quais, maior casuística de tendinite e tenossinovite (17,27%), exostose (12,27), miopatias (9,8), fraturas (9,3%) e osteoartrite társica (8,18%) e, maior ocorrência anual em 2007, perfazendo 20 acometimentos, representando 12,82% do total das ocorrências registradas em eqüinos (156). Concluindo-se que o percentual das ocorrências de 7 Afecções locomotoras traumáticas em equinos ( Equus caballus, LINNAEUS, 1758) de vaquejada atendidos no Hospital Veterinário/UFCG, Patos/PB, acessado em http://www.cstr.ufcg.edu.br/mono_mv_2008_2/monogr_carlos_eduardo_fernandes.pdf. afecções locomotoras traumáticas em eqüinos de vaquejada constitui um dado de conotação clínica relevante, quanto à prevalência dessas ocorrências sob condições climáticas semi-áridas.” E conclui o estudo acima citado que: “ As observações permitem concluir que: nas condições da pesquisa, tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica são afecções locomotoras traumáticas prevalentes em equinos de vaquejadas; tendinite e tenossinovite são afecções locomotoras traumáticas de maior ocorrência em equinos de vaquejadas; osteoartrite társica primárias e secundárias, são mais ocorrentes em equinos adultos de maior idade, explorados em vaquejadas e, conforme as evidências referenciadas; o percentual das ocorrências de afecções locomotoras traumáticas em equinos de vaquejada constitui-se um dano de conotação clínica relevante.” Não restam dúvidas de que a vaquejada produz sérios e incontroversos danos a saúde dos animais envolvidos, bovinos e equinos. A atividade causa maus-tratos destes animais, submetendo-os a crueldade, em proveito do enriquecimento dos promotores dos eventos, dos vaqueiros e de todos que, direta ou indiretamente, usufruem do dinheiro gerado por estas competições, como organizadores, comerciantes, produtores rurais, atletas e bandas de forró, com significativo apoio da mídia, televisiva e impressa, que tenta transformar esta atividade em um esporte e em manifestação cultural do povo nordestino, muitas vezes escondendo ou mascarando os malefícios suportados pelos animais utilizados nas competições. A Vaquejada e a Proteção Jurídica dos Animais No Brasil, por expressa conceituação legal, entende-se por meio ambiente “o conjunto de condições, leis, influências e inter-relações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”, que é qualificado como patrimônio público, devendo ser assegurado e protegido visando sempre o uso coletivo. 8 Participam portanto desta ampla conceituação legal, “todos os animais, de todas as espécies, correspondendo a genérica palavra fauna, conceituada como “toda vida animal” (terrestre e aquática) de uma área, de uma região ou de um país, em suas categorias de fauna silvestre (o conjunto de animais selvagens e livres em seu ambiente natural), fauna doméstica (o conjunto de animais domesticados ou cultivados pelos seres humanos), fauna exótica (o conjunto de animais alienígenas ou originário de outros países) além de microorganismos, todos fazem parte, cientifica e legalmente, do meio ambiente, uma vez que integram, de forma indispensável, seus recursos ambientais vivos.”9 Nesta perspectiva, cumpre lembrar que a Constituição Federal , consolidando o amplo conceito de meio ambiente elaborado pela legislação infraconstitucional que lhe é 8 Lei 6.938/81, art. 3o., I e 2o., I 9 Custódio, Helita Barreira: “Crueldade contra animais e a proteção destes”, artigo publicado na Revista de Direito Ambiental (RDA) 10/60, abr-jun/1998, p.220. antecedente, nele incluindo todos os recursos naturais, culturais, vivos e não vivos, assegura a todos, em seu art. 225 o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a toda a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo, para as presentes e futuras gerações”. Além de incorporar, no plano constitucional, esta definição ampla de meio ambiente constante da Lei 6.938/81, a Constituição Federal ainda obrigou o Poder Público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em todas as suas funções) a desenvolver suas competências (legislativas e materiais) para garantir efetividade ao direito fundamental de proteção ao meio ambiente e, no que se refere especificamente a proteção da fauna, estabeleceu: 1) o dever de “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, promovam a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” 10; 2) o dever de preservar o patrimônio público11 e 3) o dever de preservar as florestas, a fauna e a flora12. Assim, analisando, em resumo, a proteção conferida no plano constitucional a fauna, podemos concluir que, no Brasil, por força de expressas disposições constitucionais, todos os animais, qualquer que seja a sua espécie e categoria, estão compreendidos na definição de meio ambiente, pois a ele pertencem, e são protegidos contra qualquer prática, seja do poder público, seja do particular, que possa colocar em risco sua função ecológica, provocar sua extinção ou submetêlos a crueldade. Especificamente no que se refere a crueldade contra animais, deve esta ser assim entendida: “Em princípio, considera-se crueldade contra animais vivos em geral toda ação ou omissão, dolosa ou culposa (ato ilícito), em locais públicos ou privados, mediante matança cruel pela caça abusiva (profissional, amadorista, esportiva, recreativa ou turística), por desmatamentos ou incêndios criminosos, por poluição ambiental mediante dolorosas experiências diversas (didáticas, científicas, laboratoriais, genéticas, mecânicas, tecnológicas, dentre outras), amargurantes práticas diversas (econômicas, sociais, populares, esportivas como o tiro ao voo, tiro ao alvo, de trabalhos excessivos ou forçados além dos limites normais, de prisões, cativeiros ou transportes em condições desumanas, de abandono em condições enfermas, mutiladas, sedentas, famintas, cegas ou extenuantes, de espetáculos violentos como lutas entre animais até a exaustão ou morte, touradas, farra do boi ou similares), abates atrozes, castigos violentos e tiranos, adestramentos por meio de instrumentos torturantes para fins doméstico, agrícola ou para exposições, ou quaisquer outras condutas impiedosas resultantes de maus-tratos contra animais vivos, submetidos a injustificáveis e inadmissíveis angústias, dores, torturas, dentre outros atrozes sofrimentos causadores de lesões corporais, de invalidez, de excessiva fadiga ou de exaustão até a morte desumana da indefesa vítima animal.”13 A prática da vaquejada enquadra-se, assim, perfeitamente na moldura acima construída para abrigar casos de crueldade contra animais. Como já visto, neste tipo de competição há submissão dos animais envolvidos, tanto o bois como os cavalos, a expediente de tortura, de estresse, de mutilações, contusões, deformidades físicas muitas vezes irreparáveis, etc. Nestes eventos, os animais ficam expostos a condições insatisfatórias de sanidade do ambiente, muitos 10 11 12 13 Art. 225, parágrafo 1o. , VII. Art. 23,I da CF c/c art. 2o., I da Lei 6.938/81 Art. 23, VII, e 225, parágrafo 1o., VII. Custódio, Helita Barreira. Ob. Cit. p. 225. morrem em razão das mutilações provocadas, técnicas de adestramento violento ( encarceramento do boi em espaço mínimo recebendo chicotadas) para tornar o animal naturalmente manso e dócil em animal fugitivo a apavorado, tudo isto porque tais circunstâncias elevam a competitividade, tornam a captura mais difícil e exigem mais destreza dos competidores. Caracterizada a vaquejada como prática que se desenvolve mediante maus-tratos de animais, torna-se inconstitucional a sua manutenção. Desta forma, este tipo de evento deveria ser proibido pelo Poder Público, pois a Constituição Federal a este impõe o dever de atuar no sentido de concretizar, mediantes deveres específicos, a proteção do meio ambiente, e um destes deveres específicos é, justamente, evitar práticas que possam resultar em maus-tratos de espécies animais, qualquer que seja a sua qualificação e categoria. No entanto, além de omitir-se no cumprimento de um dever constitucional, não realizando os atos de contenção administrativa que a atividade ambientalmente nociva deveria sofrer, vem o Poder Público a atuar, como legislador, em sentido diametralmente oposto ao determinado pela Constituição Federal, elaborando uma normatividade tentando conferir respaldo legal a uma atividade flagrante violadora do direito fundamental de concretização de uma sociedade mais saudável, mais justa e solidária. A Lei Estadual ora impugnada, na verdade, pretende conferir a esta atividade inconstitucional a capa de legalidade, como se fosse possível ao legislador atuar de forma a tentar esconder os malefícios que as vaquejadas causam aos animais apenas elaborando uma norma com o intuito de regulamentar uma atividade que passa a qualificar como de caráter desportivo e de conteúdo cultural. Esta Lei Estadual do Ceará, na verdade, equivale a Lei elaborada pelo Estado do Rio de Janeiro que tentou regulamentar as rinhas de galo, com o intuito de conferir a esta evidente prática causadora de maus-tratos aos animais o manto da legalidade. Na ocasião, a tentativa, no Rio de Janeiro foi a idêntica a a tentativa ora engendrada no Estado do Ceará, qual seja, criar, por imposição legal, uma atividade desportiva, reconhecida como de conteúdo cultural, para esconder as mazelas causadas por esta atividade aos animais dela participantes. A tentativa do Estado do Rio de Janeiro, embora majoritária no parlamento estadual, foi expurgada do ordenamento jurídico pátrio por uma decisão unânime do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.856, cuja ementa é esclarecedora: E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – BRIGA DE GALOS (LEI FLUMINENSE Nº 2.895/98) – LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE, PERTINENTE A EXPOSIÇÕES E A COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES, FAVORECE ESSA PRÁTICA CRIMINOSA – DIPLOMA LEGISLATIVO QUE ESTIMULA O COMETIMENTO DE ATOS DE CRUELDADE CONTRA GALOS DE BRIGA – CRIME AMBIENTAL (LEI Nº 9.605/98, ART. 32) – MEIO AMBIENTE – DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) – PRERROGATIVAQUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE – DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE – PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAUNA (CF, ART. 225, § 1º, VII) – DESCARACTERIZAÇÃO DA BRIGA DE GALO COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL – RECONHECIMENTO DA INCONSTITUIONALIDADE DA LEI ESTADUAL IMPUGNADA - AÇÃO DIRETA PROCEDENTE. LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE AUTORIZA A REALIZAÇÃO DE EXPOSIÇÕES E COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES - NORMA QUE INSTITUCIONALIZA A PRÁTICA DE CRUELDADE CONTRA A FAUNA INCONSTITUCIONALIDADE. - A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi” (RE 153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente folclórico. Precedentes. - A proteção jurídico-constitucional dispensada à fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de crueldade. - Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República, é motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, como os galos de briga (“gallus-gallus”). Magistério da doutrina. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL. - Não se revela inepta a petição inicial, que, ao impugnar a validade constitucional de lei estadual, (a) indica, de forma adequada, a norma de parâmetro, cuja autoridade teria sido desrespeitada, (b) estabelece, de maneira clara, a relação de antagonismo entre essa legislação de menor positividade jurídica e o texto da Constituição da República, (c) fundamenta, de modo inteligível, as razões consubstanciadoras da pretensão de inconstitucionalidade deduzida pelo autor e (d) postula, com objetividade, o reconhecimento da procedência do pedido, com a consequente declaração de ilegitimidade constitucional da lei questionada em sede de controle normativo abstrato, delimitando, assim, o âmbito material do julgamento a ser proferido pelo Supremo Tribunal Federal. Precedentes. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em rejeitar as preliminares arguidas e, no mérito, também por unanimidade, julgar procedente a ação direta para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 2.895, de 20 de março de 1998, do Estado do Rio de Janeiro, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie. Brasília, 26 de maio de 2011. CELSO DE MELLO - RELATOR Nota-se, pela análise do precedente, que as situações ora comparadas são similares. Vaquejadas e rinhas de galos foram caracterizadas, por leis estaduais, como atividades desportivas e culturais. Ao analisar o caso das rinhas de galo, o Supremo Tribunal Federal entendeu que tais práticas importavam em maus-tratos de animais e, assim, concluiu que a lei do Estado do Rio de Janeiro, em sua integralidade, violava, diretamente, o comando contido no art. 225, parágrafo 1o., VII da Constituição Federal. Mesmo destino deve ter a Lei Estadual 15.299, 08 de janeiro de 2013, de iniciativa da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará e sancionada pelo Exmo. Sr. Governador do Estado e que tem por objeto regulamentar as vaquejadas também como atividade desportiva e cultural, muito embora se desenvolva, como já demonstrado, através de práticas que submetem os animais participantes a tratamento cruel, violando da mesma forma que a lei carioca, de forma direta, a Constituição Federal. Considerando que é pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o entendimento de que todas as práticas que ensejam tratamento cruel a animais, sejam eles de qualquer espécie e categoria, violam diretamente a Constituição Federal, especialmente seu art. 225, parágrafo 1o., VII, em sendo a prática da vaquejada ensejadoras de maus-tratos aos animais participantes, como já se demonstrou pela descrição de como é a atividade atualmente desenvolvida, outra conclusão não nos resta senão caracterizar a vaquejada, em similitude ao que ocorreu com as rinhas de galo, como prática inconstitucional, devendo ser banida do ordenamento jurídico toda e qualquer norma legal que pretenda regulamentá-la, sob o pífio argumento de se tratar de uma atividade de cunho cultural. Sem adentrar no mérito da caracterização da vaquejada como patrimônio cultural, pois para muitos historiadores a vaquejada de hoje não guarda nenhuma identidade com as práticas que ensejaram seu surgimento, podendo atualmente ser caracterizada como um esporte da aristocracia rural nordestina14, mesmo na hipótese de ser tal atividade reconhecida como patrimônio cultural, não poderia se manter em realização, tendo em vista que para o Supremo Tribunal Federal, as manifestações culturais, que devem se difundidas e valorizadas, não podem prescindir da observância da norma constitucional que veda a prática que submeta animais a maus-tratos. Esta decisão, adotada com referência a farra do boi, deixa muito claro o entendimento do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito a exigibilidade de ponderação de interesses para a resolução do aparente conflito de normas constitucionais de mesma densidade normativa, ou seja, de direitos fundamentais garantidos pela ordem constitucional e que aparentemente se opõem, consistentes na proteção do patrimônio cultural e do meio ambiente. Restou assim ementada a decisão em referência: EMENTA: COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais a crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado “farra do boi”.15 Resta claro, portanto, que demonstrado que a vaquejada se realiza mediante práticas que infligem maus-tratos aos animais participantes, não há nenhuma relevância jurídico14 CAMARA CASCUDO, Luis da. A vaquejada nordestina e sua origem. Natal: Fundação José Augusto, 1976. 15 Recurso Extraordinário 153.531-8 Santa Catarina, Relator para o acórdão Ministro Marco Aurélio constitucional em se reconhecer, ou não, tal atividade como patrimônio cultural. Mesmo que a atividade venha a ser assim reconhecida, sua manutenção, segundo já decidido pelo Supremo Tribunal Federal, somente pode ser assegurada se retirados todos os elementos que configuram atos de crueldade animal e, sendo assim, para atender a este parâmetro a própria atividade não poderá mais subsistir, pois terá que se descaracterizar por completo, na medida em que as práticas abusivas e contrárias a Constituição Federal fazem parte de sua essência. Da Proteção Insuficiente e da Vedação de Retrocesso. Há consenso de que o Estado deve agir na proteção de bens jurídicos de índole constitucional. Nesta perspectiva, a doutrina de direito constitucional vem assentando que a violação à proporcionalidade pode se verificar tanto em face da proibição de excesso quanto em razão de proibição de proteção deficiente. O próprio Supremo Tribunal Federal, ao recusar a aplicação de dispositivo do Código Penal (atualmente não mais em vigor), prevendo a extinção de punibilidade do crime de estupro sempre que o autor casasse com a vítima, teve a questão apreciada por este ângulo no voto do Ministro Gilmar Mendes16: “ Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado), já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção deficiente adquire importância na aplicação de direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental”. A possível violação à proporcionalidade, na sua faceta de proibição insuficiente, se materializa, no caso, diante da constatação de que, ao regulamentar uma atividade que se desenvolve com maus-tratos de animais, o legislador estadual expôs bens jurídicos de máxima importância ( a integridade física de animais) sem uma razão forte capaz de justificar a sua opção. A norma constitucional do art. 225, parágrafo 1o., VII da Constituição Federal protege todos os animais contra maus-tratos e é, neste particular, segundo entende o Supremo Tribunal Federal, autoaplicável. Assim, tais práticas estão proibidas pela norma máxima do ordenamento jurídico, independentemente de legislação infraconstitucional específica. Mesmo assim, o legislador federal elaborou norma criminalizando a conduta consistente em “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”17, estabelecendo como pena “detenção, de três meses a um ano e multa”. Nota-se que o legislador federal atuou seguindo a diretriz constitucional e criando normatividade inibidora de condutas contrárias ao determinado pela Magna Carta, reforçando assim o campo de proteção do meio ambiente. No entanto, o legislador estadual atua, no caso, em sentido contrário, criando norma que regulamenta uma atividade flagrantemente inconstitucional. Ao assim agir, difunde o entendimento equivocado de que a vaquejada deve ser tolerada e pode ser livremente praticada, por se tratar apenas de uma competição consolidada na cultura nordestina. 16 RE 418.376, Plenário, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel para o acórdão Min. Joaquim Barbosa, DJ 23/3/2007 17 Art. 32 da lei 9.605/98 Esta última atuação legislativa, confirmada pelo Executivo Estadual através da sanção da malfadada Lei atua contra os parâmetros de proteção constitucional e da legislação federal que já tinha inclusive criminalizado a conduta ora permitida pela Lei Estadual impugnada. Trata-se, assim, de atuação que não se apresenta como proporcional, pois a Constituição Federal proclama que a proteção ambiental (incluída a salvaguarda da integridade dos animais) é direito fundamental e o sacrifício deste direito fundamental, ante a consecução de benefícios meramente econômicos a uma pequena parcela de setores envolvidos com esta atividade é totalmente desproporcional. A inovação legislativa ora impugnada afrouxa os controles da atividade ilícita, e assim, expõe ao risco o direito fundamental de proteção ambiental, caracterizando-se como legislação criadora de uma proteção insuficiente deste direito fundamental. Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer18, com maestria, enfatizam que: “Considerando os deveres de proteção ambiental dos entes federativos delineados na nossa Constituição, a não-atuação (quando lhe é imposto juridicamente agir) ou a atuação insuficiente (de moda a não proteger o direito fundamental de modo adequado e suficiente), no tocante a medidas legislativas e administrativas voltadas ao combate às causas geradoras de degradação do ambiente, pode ensejar até mesmo responsabilidade do Estado, inclusive no sentido de reparar os danos causados a indivíduos e grupo sociais afetados pelos efeitos negativos dos danos ambientais. (…) o Estado está obrigado a assegurar um nível mínimo adequado de proteção dos direitos fundamentais, sendo, inclusive, responsável pelas omissões legislativas que não assegurem o cumprimento dessa imposição genérica.” A legislação cearense combatida, quando posta em confronto com os parâmetros federais já expostos, evidencia significativo retrocesso. Segundo Sarlet e Fensterseifer, a finalidade da garantia de proibição de retrocesso é “preservar o bloco normativo – constitucional e infraconstitucional – já construído e consolidado no ordenamento jurídico, especialmente naquilo em que objetiva assegurar a fruição de direitos fundamentais, impedindo ou assegurando o controle de atos que venham a provocar a supressão ou restrição dos níveis de efetividade vigentes dos direitos fundamentais”19. E especificamente quanto a matéria ambiental arrematam os mesmo autores que há que “assegurar a sua blindagem contra retrocessos que a tornem menos rigorosa ou flexível, admitindo práticas poluidoras hoje proibidas, assim como buscar sempre um nível mais rigoroso de proteção, considerando especialmente o déficit legado pelo nosso passado e um 'ajuste de contas' com o futuro, no sentido de manter um equilíbrio ambiental também para as futuras gerações”20. Por estes ensinamentos, que sintetizam o pensamento democrático-constitucional mais avançado, um Estado-membro, embora dotado de competência legislativa suplementar em matéria ambiental não pode exercer esta prerrogativa com o objetivo de criar novos instrumentos que, ao final, com sua aplicabilidade, acabam por abrandar, flexibilizar os padrões de proteção já existentes no ordenamento jurídico. Ao assim fazer, estabelecendo um regramento para uma atividade que se desenvolve com maus-tratos de animais, como é a vaquejada, pondo em risco o 18 SARLET, Ingo & FENSTERSEIFER, Tiago. Breves considerações sobre os deveres de proteção do Estado e a garantia da proibição de retrocesso em matéria ambiental. Revista de Direito Ambiental, 58, abril-junho 2010, no prelo. 19 Idem, ibidem. 20 Idem, ibidem direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações, age com violação do princípio constitucional implícito da proibição de criação de proteção jurídica inadequada a este direito fundamental, em face da desproporção entre as medidas propostas e os benefícios a serem atingidos, como também promove um significativo retrocesso normativo, retirando eficácia do direito fundamental em comento. Diante de tudo o que fora exposto, considerando-se que a Lei Estadual 15.299, 08 de janeiro de 2013, contraria, em todas as suas disposições, os preceitos constitucionais federais mencionados, além de ensejar uma flagrante violação as normas gerais de proteção ambiental e à efetividade do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, é de se concluir estarem presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora para justificar, nos termos do art. 170, § 1º, c/c o art. 21, V, do Regimento Interno do STF, a suspensão ad cautelam da eficácia das normas citadas. No mesmo sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal na ADI 1.856/RJ referente a rinha de galos ser elevante os motivos da arguição de inconstitucionalidade fundada em comprovada alegação de prática que acarreta maus-tratos a animais. Eis a decisão: EMENTA: CONSTITUCIONAL. MEIO ANIMAIS.PROTEÇÃO.CRUELDADE.BRIGA DE GALOS. AMBIENTE. 1.A Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de competições entre galos combatentes, autoriza e disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a Constituição Federal não permite: CF, art. 225, parágrafo 1o., VII. 2.Cautelar deferida, suspendendo a eficácia da Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro. No voto do relator, Ministro Carlos Velloso, restou assentado que: “A Lei 2.895, de 20.03.98 do Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de competições entre galos combatentes, autoriza a disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a Constituição não permite. Tem-se, no caso, portanto, arguição de inconstitucionalidade relevante, que autoriza o deferimento da cautelar.” Do entendimento do relator nenhum outro Ministro discordou, sendo unânime a decisão, o que nos autoriza a afirmar ser entendimento do Supremo Tribunal Federal que em casos de alegação de prática que submete animais a maus-tratos, amparadas por Leis, esta o Tribunal diante de caso relevante de arguição de inconstitucionalidade autorizadora do deferimento de medida cautelar para suspensão da eficácia da norma infraconstitucional que disciplina atividades correspondentes a rinha de galos, o que ocorre com a vaquejada, como já demonstrado. Por fim, importante salientar o oportuno momento de ajuizamento de ADI nestes caso. Até a edição da Lei ora impugnada, a vaquejada foi combatida, judicialmente, em diversas ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público, em diversas comarcas do País, principalmente na região nordeste. Em diversas destas ações, as liminares deferidas impedindo a realização deste tipo de evento, foram rapidamente cassadas por decisões de Tribunais de Justiça. Assim, o controle difuso de constitucionalidade efetivado nestas demandas não resultou na contenção da prática indevida de vaquejadas em todo o país, pois não se tem notícia de qualquer pronunciamento definitivo do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, uma vez que estes conflitos iniciados em juízos de primeira instância ainda não foram submetidos, pela via recursal extraordinária, a uma apreciação do Supremo Tribunal Federal. A Lei Estadual produzida pelo Estado do Ceará e ora impugnada, é a primeira manifestação legislativa sobre o tema e permite uma provocação direta ao Supremo Tribunal Federal, a quem caberá analisar a conformidade, ou não, da prática da vaquejada com os dispositivos constitucionais que impedem maus-tratos de animais. Assim, há uma real possibilidade do Supremo Tribunal Federal, devidamente provocado pelo Procurador Geral da República, estabelecer, de forma definitiva, se a vaquejada é, ou não, prática desportiva constitucional, o que acabaria, de uma vez por todas com os questionamentos judiciais pontuais ainda pendentes de resolução final em todo o país. Por todo o exposto, rogamos que seja formalizada ADI para, em medida cautelar, suspender a eficácia e no julgamento de mérito retirar a validade de todos os artigos da Lei Estadual 15.299, 08 de janeiro de 2013, do Estado do Ceará, os quais contrariam, diretamente, o disposto no art. 225, parágrafo 1o., VII da Constituição da República e a interpretação remansosa e pacífica que lhe confere o Supremo Tribunal Federal, declarando-lhes a inconstitucionalidade. P. deferimento. Fortaleza, 24 de janeiro de 2013. Alessander Wilckson Cabral Sales Procurador da República