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SONS DO SILÊNCIO: RELAÇÕES
ENTRE O PARADIGMA DA TEO-POLÍTICA
DO ALTO IMPÉRIO ROMANO
E O CONCEITO DE VIOLÊNCIA
SIMBÓLICA EM BOURDIEU*
DANILO DOURADO GUERRA**
Resumo: o século I traz consigo um conteúdo historiográfico significativo envolvendo as
relações de poder e de dominação operadas pelo Império romano diante das comunidades do
mundo mediterrâneo. Nesse breve estudo pretender-se-á analisar a relação entre a violência
simbólica e o paradigma da teo-política do Império dos Césares. Guardadas as políticas de
interpretação que sustentam criminalizações e heroísmo exacerbados, isso é o que de forma
parcial e fragmentária analisaremos nesse texto.
Palavras-chave: Violência simbólica. Teo-política. Poder. Império Romano.
O pior escravo é aquele que pensa ser livre sem de fato ser.
(Goethe)
T oda forma de agressão constitui-se em um núcleo paradigmático a ser desconstruído. Dentro desse complexo processo de desarticulação das estruturas teo-políticas-sociais-psicológicas que, em alguma medida restringem a
manifestação da dignidade humana, talvez o maior desafio consista em ouvir e reagir ao
que o silêncio tem a dizer. Isto por que a ‘ausência’ de ruídos por muitas vezes esconde
ordenamentos e matrizes de plausibilidade que se configuram como núcleos naturalizantes
* Recebido em: 04.12.2015. Aprovado em: 15.01.2016. Este artigo é fruto do seminário interdisciplinar:
‘Religião, Poder e Violência’ do Programa de Ciências da Religião, da Pontifícia Universidade Católica de
Goiás. Desde já agradecemos as significativas contribuições do professor Dr. Luiz Antonio Signates, bem
como dos(as) colegas que participaram da disciplina
** Doutorando e Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Bolsista da
Capes. Bacharel em Teologia pela Faculdade da Igreja Ministério Fama e pelo Seminário Teológico Batista
Nacional. E-mail: [email protected].
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de protótipos sociais, e, por conseguinte, como formatadores de sonhos e expectativas de
vida. Estas estruturas em alguma proporção se vinculam a produção da violência do tipo
submersa, invisível, e por isso, quase sempre inquestionada.
Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua
força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força
(BOURDIEU; PASSERON apud ALÉSSIO, 2007, s/p). No panorama dessas relações a violência simbólica é uma realidade processual na qual uma classe dominante impõe sua cultura,
modo de pensar sobre os dominados (BOURDIEU, 2003). Nessa imposição de regras que
não são próprias do indivíduo, grupo ou etnia está implícito a negação da alteridade do outro.
Tendo em perspectiva o viés epistemológico de Bourdieu propomos analisar o ordenamento híbrido da teo-política romana do século I. d.C., como um dispositivo de violência simbólica que exprime um tipo de imposição cultural imbricada em um panorama de
conformismo social e naturalização das desigualdades nas esferas de classes e gênero do seu
tempo. Esse regresso crítico às tramas do passado em alguma dimensão nos aproxima de nossa
própria história, ao passo que, em alguma medida também nos encontramos ‘reféns’ de uma
mão invisível e ‘inaudível’ que por muitas vezes nos ‘conduz’ e nos submerge. Nesse complexo
percurso talvez o ‘silêncio’ seja o código para encontramos a base do iceberg.
O CONCEITO DE VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
A violência é sempre uma manifestação de poder e se configura por um desejo
egoísta de ser, ter e poder mais do que o outro, que acaba por converter no receptor do ato
violento e no maior prejudicado dentro dessa realidade. A violência não se pratica no vazio,
senão sobre o outro e suas posses (CROATTO, 1988).
Bourdieu (2003) não ignora a existência da violência no âmbito da coerção física,
no entanto aprofunda a temática ao introduzir e desenvolver o conceito de violência simbólica como categoria analítica da sociedade. Sob essa perspectiva o simbólico não minimiza
ou ignora ou espiritualiza o âmbito das manifestações reais do poder e da violência, como
situações em que pessoas são “[...] espancadas, violentadas, exploradas, mas busca visualizar,
na teoria, a objetividade da experiência subjetiva das relações de dominação” (BOURDIEU,
2003, p. 43).
Dentro dessas relações de dominação circula o poder simbólico compreendido
como um poder invisível que só pode ser exercido dentro de uma esfera de cumplicidade daqueles que não procuram saber que são sujeitos a ele, ou mesmo o exercem de alguma forma.
Essa esfera contempla um poder quase sempre ignorado e esquecido (BOURDIEU, 1989,
p. 7-8).
No âmbito do poder simbólico se configura o que Bourdieu denomina de violência
simbólica. Em suas palavras:
A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de
conceder ao dominante (e, portanto, à dominação), quando ele não dispõe, para pensá-la e para se
pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que
ambos tem em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação,
fazem esta relação ser vista como natural; ou, em outros termos, quando os esquemas que ele põe em
ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/baixo, masculino/feminino,
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branco/negro etc.), resultam da incorporação de classificações, assim naturalizadas, de que seu ser
social é produto (BOURDIEU, 2003, p. 44).
Através do uso da noção de violência simbólica procurasse desvendar o mecanismo
que faz com que os indivíduos vejam como ‘natural’ as representações ou as ideias sociais
dominantes. A violência simbólica é desenvolvida pelas instituições e pelos agentes que as
animam e sobre a qual se apoia o exercício da autoridade (BOURDIEU apud VASCONCELLOS, 2002, p. 80). Nesse contexto o termo violência simbólica aparece como eficaz
para explicar a capacidade de adesão dos dominados, esta se dá em uma esfera de “dominação
imposta pela aceitação das regras, das sanções, a incapacidade de conhecer as regras de direito
ou morais, as práticas linguísticas e outras” (BOURDIEU apud VASCONCELLOS, 2002,
p. 81). Dentro dessa estrutura:
As condições de participação social baseiam-se na herança social. O acúmulo de bens simbólicos e
outros estão inscritos nas estruturas do pensamento (mas também no corpo) e são constitutivos do
habitus através do qual os indivíduos elaboram suas trajetórias e asseguram a reprodução social. Esta
não pode se realizar sem a ação sutil dos agentes e das instituições, preservando as funções sociais
pela violência simbólica exercida sobre os indivíduos e com a adesão deles (BOURDIEU apud VASCONCELLOS, 2002, p. 81).
Esse prisma da violência simbólica pode ser analisado dentro do contexto da
teo-política do Império Romano no fim do século I d.C. Acerca dessa temática trataremos
na sequência.
A RELAÇÃO ENTRE A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E A TEO-POLÍTICA ROMANA
A violência simbólica, por não utilizar os meios da violência direta, seja física ou
armada, torna-se mais complexa de ser detectada ou mesmo categorizada e combatida. Ela é
sentida, mas não percebida com clareza e, muitas vezes, apresenta-se como uma mão invisível
agindo sobre a sociedade. Contudo, suas consequências são claramente desastrosas, principalmente em se tratando da formação de uma sociedade justa e igualitária (BOURDIEU apud
ALÉSSIO, 2007, s/p). Tal espectro de violência em alguma proporção se relaciona com o
amalgama teo-político estabelecido ao longo dos tempos e das sociedades.
O teo-político não é um construto restrito à teologia cristã ou a história do cristianismo. Relações entre reino e sacerdócio, entre imanente e transcendente, sagrado e profano
percorrem a história da humanidade. Ao longo dos tempos, muitas estruturas de plausibilidade se constroem e reconstroem fundamentadas no sagrado1. Diante dessa realidade, o trânsito
do nível religioso com o político pode ser encontrado em diversas épocas e povos (QUADROS, 2009, p. 33). Há uma múltipla dimensão simbólica da coexistência social. Dentro
dessa configuração coexistêncial seria um ‘passo intransponível’ afastar o nível religioso da
análise política à medida que o religioso também institui o vínculo social. Tanto o político
quanto o religioso compõe uma reserva simbólica, no sentido de que comandam, um e o
outro, através de suas próprias articulações, um acesso ao mundo (LEFORT, 1991, p. 259).
Tendo em vista esses pressupostos o teo-político se constitui num labirinto de
imbricações entre o religioso e político. O labirínto teo-político envolve interfaces entre o
político religioso e o religioso político. Relações entre o teológico politizado e o político
teologizado (LEFORT, 1991, p. 289). Em síntese, o conceito do teo-político pode ser comFRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 26, n. 1, p. 15-24, jan./mar. 2016.
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preendido como um ordenamento temporal sócio religioso que engloba uma fusão dialética
entre poderes soberanos divinos e humanos diante de um sujeito a esse ordenamento. Nessa
estrutura se estabelece uma relação de entrecruzamentos e conflitos entre a religião, o crer e o
poder político. Dentro desse amalgama híbrido estrutural, as relações entre soberania e sujeição encontram-se atravessadas pelo ato de crer, que por si é fator que determina o sujeito em
um contexto de relações de troca e empoderamento (QUADROS, 2009, p. 33- 42).
Em suma, o ambíguo termo teo-político “indica a interdependência do crer com o
poder [...] o hífen do conceito acentua as não coincidências, a autonomia relativa que renova
constantemente as tensões e conflitos entre as duas esferas” (QUADROS, 2009, p. 43). Dentro
dessa dança sistêmica envolvendo relações entre o teológico politizado e o político teologizado
(LEFORT, 1991, p. 289) importa-nos a consideração das duas vertentes de poder. Nesse sentido é válida a observação análoga tanto do processo de politização do teológico (ROSSEAU apud
SCHIMTT, 2006), quanto da teologização do político (ASSMANN apud AGAMBEN, 2011).
Nessa troca de vestes, ambas as realidades soam como possibilidades de movimento.
Essa dança sistêmica pode ser contemplada no mundo mediterrâneo do final do
século I. Dentro desse amalgama estrutural propomos pensar a possibilidade da teo-política
romana como uma matriz estruturante e desencadeadora de uma violência do tipo silenciosa,
natural. Na medida em que o sistema teo-político romano promove a manutenção de mentalidades e arranjo sociais, objetivamos identificá-lo como estrutura de plausibilidade e dispositivo de violência simbólica. Acreditamos que essa engrenagem seja geradora do que Bourdieu
chama de ethos de resignação inserido em um ordenamento naturalizador de desigualdades
que se manifestam nas relações de classes e gênero no início do primeiro século d.C. Isso é o
que ouviremos a seguir.
MECANISMOS E EFEITOS DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NO PANORAMA DAS
RELAÇÕES DE CLASSES E GÊNERO NO MUNDO MEDITERRÂNEO DO SÉCULO I
Conforme Bourdieu (2003), a violência simbólica vincula indivíduos e sociedades
a um espectro de naturalidade e inevitabilidade da situação vivenciada. Nela, “os dominados
aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes, fazendo-as assim ser vistas
como naturais. O que pode levar a uma espécie de autodepreciação ou até autodesprezo sistemáticos” (BOURDIEU, 2003, p. 43).
Segundo Richter Reimer (2006), Cícero, entre 54-51 a.C, em sua obra De Re Publica (“Sobre as Coisas Públicas”), afirma uma estrutura patriarcal de dominação que possuía
quatro níveis de domínio: De deus(s) sobre as pessoas, do Estado sobre a res publica, do pai
sobre a casa e do espírito sobre o corpo. Nesse cenário instituía-se essa a dominação baseada
na desigualdade ideologicamente estipulada como ‘natural’ entre Deus e as pessoas, governantes e governados, pais e filhos, espírito e corpo (RICHTER REIMER, 2006).
Esse lugar demarcado dos estratos inferiores tido como natural; a partir de uma
estrutura teo-política de legitimação, tende a não fornecer perspectivas de melhora, mas sim
conformismo2 com a ‘pseudo-pax romana’. Provavelmente esse modus vivendi se enquadre no
que Bourdieu denomina de ethos3 da resignação e da renuncia “diretamente inculcado pelas
condições de existência” (BOURDIEU, 1998, p. 53).
À luz desse paradigma a cultura das naturalizações das desigualdades transitava de
modo sólido entre as civilizações do mundo mediterrâneo do século I. Pois “é no contexto de
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formatação de ideologias greco-romanas que se elaborou a concepção de que a desigualdade
socioeconômica é ‘natural’” (REIMER e RICHTER REIMER, 2011, p. 42). Em um espaço
onde as práticas de dominação eram instituídas e naturalizadas, a maioria das tentativas de
resistência ou ruptura com o padrão vital estabelecido era coibida pelas autoridades. Estas
tinham nas desigualdades a fonte de manutenção dos seus poderes e formatavam o inquestionar dos necessitados a partir de um ordenamento teo-político que legitimava tal situação.
O discurso do ideólogo romano Cícero nos mostra com que naturalidade eram
justificadas as práticas de dominação naquele tempo. Segundo ele, seria natural que os espiritualmente melhores fossem colocados acima dos desprivilegiados (CÍCERO apud REIMER;
RICHTER REIMER, 2011, p. 43). Dentre esses desprivilegiados estavam toda a força de
trabalho do Império, incluindo os pobres, as mulheres e os escravos. Quanto aos pobres, estes eram reféns da ideologia dominante onde “os ricos argumentavam que por natureza lhes
era dado o domínio sobre as demais pessoas e que isso era imutável” (REIMER; RICHTER
REIMER, 2011, p. 36).
Vale ressaltar que a prática da escravidão era também ideologicamente legitimada,
onde a principal escravização acontecia no ‘aprisionar das mentalidades’, lugar onde se interditam ou se iniciam as revoluções e as transformações sociais. Dentro da esfera da naturalização
da escravidão, Aristóteles (apud REIMER; RICHTER REIMER, 2011, p. 42) discursa que:
Por isso o amo não é do escravo outra coisa que amo, porém não lhe pertence, enquanto que o escravo não só é escravo do amo, como lhe pertence por completo. Daqui deduz-se claramente quais são
a natureza e a função do escravo: aquele que por natureza não pertence a si mesmo, senão a outro,
sendo homem, esse é naturalmente escravo .
Plínio, o Jovem (apud STEGEMANN e STEGEMANN, 2004, p. 84), recomendou a um procurador de província na Espanha “‘preservar as diferenças de ordem e as diferentes dignidades’ por ocasião da audiência perante o tribunal, ‘pois se misturarmos essas
diferenças, nada é mais desigual do que a igualdade’”.
Diante desses dados ousamos identificar o ordenamento teo-político romano como
um mecanismo de violência simbólica no panorama das relações de classes do século I. Em
uma sociedade patriarcal e patrimonial com modelo dicotômico que aponta extratos superiores e extratos inferiores, não há espaço para uma concepção de extratos intermediários.
Dessa forma, a distinção social das sociedades antigas é mais ‘simples’, uma “reduzida elite de
poder, por um lado, e a massa dos desprovidos de poder, de outro” (STEGEMANN e STEGEMANN, 2004, p. 87). Adepto dessa mentalidade, o Império romano governa sobre a ideologia da naturalidade das desigualdades legitimada tanto por seus códigos legislativos quanto pelo
víeis da religião. Tendo em mente a religião como um sistema simbólico estruturante
graças ao seu efeito de consagração ou de legitimação (BOURDIEU, 1998) e as palavras
de Berger (1985) sobre a construção do nomos 4como ordem significativa para uma realidade social, podemos observar o processo de sacralização do nomos imperial romano
em alguns aspectos, a partir da instituição do culto ao imperador. É nesse ambiente de
ideologias sacralizadas e amparadas pela estruturação do sistema simbólico religioso, que
se configura a cena estratigráfica do mundo mediterrâneo do século I. É no quadro das
estratificações sociais daquela época que podemos perceber o nível das desigualdades
instituídas e naturalizadas.
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Falamos de estratos “quando grupos relativamente grandes da população de uma
sociedade têm em comum uma situação social comparável que os distingue hierarquicamente
dos outros grupos” (STEGEMANN e STEGEMANN, 2004, p. 77). É esse modelo de setorização social no Império dos Césares quem setoriza também as expectativas de vida de cada
estrato da população.
Compreendemos que a maioria dos relatos históricos são fabricados sob o olhar
da elite. No império romano do primeiro século, ao analisarmos o quadro das estratificações
sociais, vemos uma tendência à invisibilização das massas tanto imediata quanto mediata,
tanto na época em que se viveu a história quanto na época em que se contou a história. É essa
invisibilização naturalizada e instaurada como cultura social que possibilita a invisibilização
dos direitos humanos para aqueles que mais necessitam. Sabemos que dentro do estrato inferior da população do mediterrâneo naquela época transitavam pessoas extremamente pobres5.
O amalgama teo-político romano também pode ser observado como mecanismo
de violência simbólica nas relações de gênero do século I. Retornando às ideias originais de
Bourdieu (2003, p. 7-8), apreendemos que a violência simbólica é uma “[...] violência suave,
insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente
simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento,
do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento”. Essa violência está ligada aos
“processos que são responsáveis pela transformação da história em natureza, do arbitrário
cultural em natural” (BOURDIEU, 2003, p. 8). Dentro desse panorama se instituem papéis
e binarismos entre masculino e feminino. Isso é o que Virgínia Woolf chama de forma magnífica de o ‘poder hipnótico de dominação’.
Dentro de um contexto de análise simbólica da dominação masculina, Virgínia
Woolf (apud BOURDIEU, 2003, p. 8), afirma que segundo do o ‘poder hipnótico de dominação’, enquanto o macho realiza seus ritos e usufrui dos prazeres suspeitos do poder e da
dominação, as mulheres se veem trancadas em um ambiente doméstico sem que seja dada
a oportunidade a elas de participar de nenhuma das numerosas sociedades que integram a
sociedade.
Nas palavras de Bourdieu (2003, p. 33):
A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por
sua vez ela própria uma construção social naturalizada.
Dentro dessa perspectiva ‘estratigráfica’ naturalizante acerca das mulheres percebemos o predomínio ideológico patriarcal que organizava e instituía papéis sociais tanto para
homens quanto pra mulheres. Esta ideologia se baseava em argumentos teológicos como o de
Aristóteles (apud STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p. 415) ao dizer que: “a providência divina criou os homens mais fortes do que as mulheres, pois o homem precisa defender o
lar, a mulher ‘temerosa’ deve cuidar dele”.
Dessa forma o mundo antigo se organizava distribuindo papéis teo-politicamente condicionados aos atores sociais. Dentro dessa hermenêutica social as mulheres quase sempre eram restritas ao ambiente privado, pois, “a divindade desde o princípio, adaptou a natureza da mulher aos trabalhos e assuntos internos e a do homem aos externos”
(STEGEMANN;STEGEMANN, 2004, p. 415). Na naturalização divinamente legitimada
dos papéis instauram-se as distinções de determinados conjuntos de tarefas de homens e mu20
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lheres como ‘naturais’ ou divinamente estabelecidos (XENOFONTE apud STEGEMANN;
STEGEMANN, 2004, p. 415). Teo-politicamente consolidado, o argumento da divisão dos
papéis sociais mantinha6 o status quo patriarcal vigente. Nesse contexto o som do silêncio
ecoava.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pierre Bourdieu apresenta a possibilidade de se pensar acerca de um tipo de violência que atua de forma ‘silenciosa’, ‘invisível’. Em outras palavras, a violência simbólica é
aquela que não é comentada7, pode ser observada como estrutura de dominação que opera
de forma oculta nos bastidores das relações de poder. A mesma se instaura por ‘debaixo dos
panos’ e ‘fatos explícitos’ e age como mantenedora de uma ideologia da naturalização das
desigualdades entre dominados e dominantes. Dentro da circulação das relações verificadas
no poder simbólico, a violência simbólica se articula como ordenamento imperceptível onde
os dominados não se sentem dominados. Ao contrário, a partir de um processo de interiorização da cultura naturaliza-se o status quo dominante e perpetua-se o ethos de conformismo
e resignação social.
Esse quadro pode ser contemplado na paisagem das comunidades do mediterrâneo
ao fim do século I d.C. No âmbito do Império romano o ‘silêncio’ que produzia súditos se
estruturava sob a matriz de plausibilidade do concatenamento entre as esferas da teologia e
da política. Sob essa perspectiva, de forma parcial e fragmentária localizamos o ordenamento
teo-político do Império romano como um paradigma naturalizador dos painéis de estratificações sociais e da discriminação feminina visíveis em seu tecido social. Ao final de nossa breve
investigação designamos o ordenamento teo-político do Império romano como a base de um
iceberg desencadeador e legitimador de diversas práticas de dominação plasmadas em seu tempo. Tal hipótese se evidencia ainda que essa engrenagem de poderes, bem como seus efeitos
não sejam deveras audíveis aos ‘ouvidos da história’ tanto para a maioria dos que a escreveram
como para parte significativa dos que a interpretam8.
Não obstante, identificamos que o sistema teo-político do Império atua como um
dispositivo de violência simbólica, podendo ser vislumbrado como a mão invisível e ‘silenciosa’ que rege, mantém e condiciona as estruturas sociais de sua época. Esse mecanismo de
agressão invisível e invisibilizadora bem como seus desencadeamentos se encontram de forma
‘visível’ no âmbito da manutenção das desigualdades no que tange às relações de classes e
gênero do Império dos Césares.
Por outra parte, sob outras configurações e travestido de outras faces, o quadro
que abarca a relação entre o ideário teo-político, violência simbólica e práticas de dominação
também alcança o nosso tempo. Tal paradigma nos leva a repensar nossos passos, bem como
nossa qualidade de (re)construtores da história.
Nesse sentido torna-se pontual a lembrança de que os fotogramas de violência simbólica não estão isentos das heterotopias9 instaladas como possibilidades espaciais de contrapocisionamentos e alteração de paradigmas supostamente estruturados e naturalizados dentro
de determinado prisma social. Apesar da realidade da violência simbólica que se instala de
diversas formas e em diversos âmbitos da história e das sociedades, nada é tão linear, natural
e inquestionável quanto parece ser. Diante do ordenamento teo-político que ultrapassa temporalidades, assim como, do processo de continuidades e descontinuidades da história a face
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heterotópica da moeda ainda se deixa ser (des)coberta e contada a partir de um processo de
reconstrução dos fatos.
Devido ao caráter introdutório de nosso texto deixamos essa discussão para reflexões posteriores. Contudo, o diálogo com o passado nos permite um colóquio com nosso
próprio presente e fomenta um outro futuro. Nesse aguçar de olhares e ouvidos, na medida
em que as violências simbólicas tendem a se reconfigurar e se instalar em meio a outras tramas
e contextos, somos convidados a refletir e principalmente nos posicionar diante dos ‘sons do
silêncio’ e das estruturas invisíveis de poder que veladamente nos submergem. Nisso ainda
consiste nosso desafio.
SOUNDS OF SILENCE: RELATIONS BETWEEN THE PARADIGM
OF THEO-POLITICS OF THE HIGH ROMAN EMPIRE AND THE CONCEPT
OF SYMBOLIC VIOLENCE IN BOURDIEU.
Abstract: the first century brings with it a significant historiographical content involving relations
of power and domination operated by the Roman Empire in the face of the Mediterranean world
communities. In this brief study we will want to analyze the relationship between the symbolic
violence and the paradigm of theo-politics of the Empire of the Caesars. Saved the interpretation
of policies that support criminalization and exacerbated heroism, that’s what partial and fragmentary form analyze this text.
Keywords: Symbolic violence. Theo-political. Power. Roman Empire.
Notas
1 Segundo Otto (1985, p.11) o sagrado, “é antes de mais nada, interpretação e avaliação do que existe no
domínio exclusivamente religioso”, sendo uma complexa categoria que está acima de predicados teológicos
e filosóficos, constituindo-se por algo numinoso, tremendum, inefável (REIMER, 2009). Essa concepção se
relaciona com a estrutura religiosa do Império dos Césares.
2 Porém nesse mesmo cenário as comunidades dos cristianismos originários podem ser vistas como ‘espaços
outros’, ou construções heterotópicas que compartilham e reproduzem ideais de resistência e de rupturas
com o sistema vigente. Para mais ver em Richter Reimer (2004) e Guerra (2015).
3 Conjunto de normas, regras e valores, ética, estética; elementos dispostos na subjetividade do sujeito e do
coletivo.
4 Berger (1985) trabalha a questão do nomos como ordem e sentido para indivíduos e sociedades.
5 Eram homens, mulheres, idosos e crianças que enfrentavam dificuldades econômicas e sociais em lugares e
situações abaixo do nível de sobrevivência para um ser humano. Estes eram chamados de ptochós, termo
grego que “designa, em princípio, a seguinte situação das pessoas pobres: elas têm fome e sede, vestem apenas
farrapos, encontram-se desprovidas de moradia e esperança” (STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p.
114).
6 No entanto, não podemos nos esquecer da influência e da participação de muitas mulheres nas relações de
poder, principalmente dentro do estrato superior daquela sociedade, ainda que sua influência administrativa
estivesse localizada quase sempre nos bastidores do poder.
7 Expressão utilizada pelo Dr. Luiz Signates em sala de aula.
8 Refiro-me aos que ainda interpretam e contam a história sob um viés androcêntrico e discriminatório.
9 De acordo com Foucault (2009, p. 415), ao contrário das utopias que se caracterizam por serem irrealidades
espaciais e posicionamentos sem lugar real, as heterotopias são: “Lugares reais, lugares efetivos, lugares que
são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de
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utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais que podem se encontrar no interior da
cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de
todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis”. Para mais acerca do assunto ver em Richter
Reimer (2004) e Guerra (2015).
Referências
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