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J Bras Nefrol 2002;24(4):194-8
Síndrome de Bartter neonatal com acidose metabólica: relato de
caso
Neonatal Bartter’s syndrome with metabolic acidosis: case report
Adauto Barros Amin, Alexandre Tavares Cerqueira e Roberta Granato Casella
Setor de Nefrologia Pediátrica do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG,
Brasil
Resumo
Síndrome de Bartter.
Polidrâmnio. Hipercalciúria. Nefro-calcinose.
Bartter’s syndrome. Polihydramnios. Hypercalciuria. Nephrocalcinosis.
Os autores relatam o caso de um paciente do sexo masculino, com idade de 7 meses e
15 dias que precocemente apresentou sintomatologia sugestiva de síndrome de Bartter
neonatal, no qual a alcalose metabólica estava ausente. Os exames laboratoriais mostraram
acidose metabólica, hipopotassemia, hiponatremia, hipercalciúria, níveis elevados de
renina e aldosterona, com evidências ecográficas de nefrocalcinose. O tratamento baseouse na correção da alimentação, hidratação oral, cloreto de potássio oral e indometacina,
com melhora clínica e, particularmente, da acidose metabólica.
Abstract
The authors report a case of a 7month,15 day-old boy who had early manifestations of
neonatal Bartter’s Syndrome with absence of metabolic alkalosis. The work up revealed
metabolic acidosis, hipokalemia, hyponatremia, hypercalciúria, increased renin and aldosterone
levels, and evidence of nephrocalcinosis on ultrasound scans. The treatment was based on
correction of feeding, oral hydratation, oral potassium cloretum and indomethacine, with a
clinic improvement specially on metabolic acidosis.
I n t r o d u ç ã o
Recentes estudos de biologia molecular demonstraram e estabeleceram que a síndrome de Bartter, tanto
a forma clássica como a forma neonatal e a síndrome
de Gitelman representam um grupo restrito de distúrbio tubular renal causados por um defeito no transporte do Cl e Na em diferentes segmentos do néfron
distal.1,2
A síndrome de Bartter, na forma neonatal foi descrita em 19713 e tem características clínicas, laboratori-
ais e genéticas, destacando-se polidrâmnio, parto prematuro, poliúria, desidratação, perda urinária de sódio e de cloreto seguida de perda de potássio, marcado retardo do crescimento, hipercalciúria com
nefrocalcinose, hiperreninemia, hiperaldosteronismo,
níveis urinários elevados de prostaglandina renal, cursando com pressão arterial normal.1,4
Alguns pacientes têm uma aparência sugestiva: são
delgados, com face de formato triangular, fronte proeminente, olhos grandes e orelhas projetadas para frente.5,6 Estrabismo e surdez neurossensorial foram des-
Trabalho realizado no Setor de Nefrologia Pediátrica do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.
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critos em pacientes com síndrome de Bartter, variante
neonatal.5,6
A síndrome de Bartter neonatal apresenta dois tipos genéticos:2,4,7-11 tipo I e tipo II. Ambos cursam com
hipercalciúria e nefrocalcinose. A distinção maior entre eles é que o tipo I cursa com alcalose metabólica e
hipocalemia, sendo que a mutação genética se faz no
gene NKCC2 que é co-transportador de Na-K-2Cl, enquanto o tipo II tem quadro bioquímico de pseudohipoaldosteronismo tipo I (acidose metabólica, hipercalemia, hiponatremia). A mutação genética do tipo II se
faz no gene ROMK, responsável pela secreção do K no
ducto coletor cortical e pela reciclagem no ramo ascendente espesso da alça de Henle. A perda da função
ROMK pela mutação sofrida altera a sua habilidade
determinando acidose metabólica hipercalêmica.
Ressalta-se que a suspeita diagnóstica da síndrome de Bartter no período pré-natal baseia-se na presença de polidrâmnio que não seja de causa materna
ou placentária, aumento da concentração de cloreto
no líquido amniótico e análise do DNA trofoblástico.4,12
Após o nascimento a suspeita se faz pela presença de
prematuridade, fácies sugestiva, poliúria, desidratação,
episódios de febre que ocorrem nas primeiras semanas de vida, atraso no crescimento, hipercalciúria e
nefrocalcinose de início precoce. Há quadro bioquímico de alcalose metabólica hipocalêmica e elevação
da renina e aldosterona plasmáticas com aumento do
cloreto urinário.1,4,12 Há relatos de recém-nascidos com
desidratação grave que ao contrário do que se encontra normalmente, apresentam-se com acidose metabólica dificultando o diagnóstico.13
A apresentação deste caso tem como objetivo alertar os pediatras para as tubulopatias renais como causa de atraso de desenvolvimento somático e o surgimento precoce do distúrbio na vida intra-uterina.1
Caso clínico
EMC, 7 meses e 15 dias de idade, masculino,
branco,referendado à consulta devido à irritabilidade,
febre, diurese abundante e má evolução ponderal. Os
pais não são consagüíneos. A primeira gestação transcorreu sem intercorrências, parto a termo. O paciente
descrito é da segunda gestação que cursou com polidrâmnio desde o 4o mês e necessitou de cinco amniocenteses. Nasceu de parto cesáreo com idade gestacional de 32 semanas devido a sofrimento fetal, com peso
de nascimento 1.090 g. Não obteve-se informações
quanto à estatura e perímetro cefálico.
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Ao ser admitido no serviço em 14 de agosto de
2000, com idade de 7 meses e 15 dias, o paciente apresentava-se ao exame físico com estado geral bastante
comprometido: desnutrido, desidratado, distensão
abdominal, peso 5.450 g (<P3), comprimento 60 cm
(<P3), perímetro cefálico 42 cm (<P3), pressão arterial
(membro superior – manguito 3 cm) 80/40 mmHg, fácies sugestiva (face de forma triangular, olhos grandes
e orelhas de abano).
Os exames laboratoriais estão descritos na Tabela.
A história da gestação com polidrâmnio, o parto
prematuro, o exame do paciente, com destaque à poliúria, fácies sugestiva,5,6 pressão arterial normal, níveis
elevados de renina e aldosterona e nefrocalcinose permitiram o diagnóstico de síndrome de Bartter tipo neonatal apesar da acidose metabólica hipocalêmica, lembrando acidose tubular renal.
O tratamento foi iniciado com correção da alimentação, polivitamínicos, hidratação oral (200 ml/Kg/dia),
cloreto de potássio oral (5 mEq/Kg/dia) e indometacina (2,5 mg/Kg/dia).
A evolução do paciente numa avaliação no 15o dia
após início do tratamento mostrou acentuada melhora
clínica e dos dados laboratoriais como mostrado na
Tabela.
Foi mantido o mesmo esquema terapêutico. O paciente evoluiu satisfatoriamente, sem intercorrências.
Reavaliado no 2o mês após o diagnóstico quando o
exame físico mostrou bom estado geral, peso 5.550 g,
estatura 65 cm, perímetro cefálico 43 cm, pressão arterial 80/40 mmHg.
Os achados laboratoriais do segundo mês de acompanhamento estão descritos na Tabela.
O paciente apresentou ganho pondero-estatural,
com diurese normal de 0,8 ml/Kg/hora. Quanto aos
dados laboratoriais, normalizou-se a bioquímica sangüínea, o equilíbrio ácido-base e a excreção de sódio,
potássio e cloro.
Manteve-se a terapêutica com indometacina e foi
suspenso o uso de cloreto de potássio. O estudo ecográfico mostrou a permanência da nefrocalcinose bilateral, na mesma intensidade, com boa função renal.
D i s c u s s ã o
A síndrome de Bartter pode-se apresentar sob a
forma neonatal, que é uma variante já descrita em 1971.3
A síndrome apresenta sinais cardinais:14 alcalose me-
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tabólica, hipocloremia, hipocalemia, hiperreninemia,
hiperaldosteronismo, pressão sangüínea normal e aumento na excreção urinária de sódio, potássio, cloro e
prostaglandina E2-M. Os sintomas clínicos contudo,
aparecem precocemente, já iniciando-se na vida intrauterina com acentuado polidrâmnio, que pode levar
ao parto prematuro.14
A poliúria pós-natal, que às vezes causa desidratação
grave, pode constituir perigo de morte ao paciente, justificando a presença de acidose metabólica transitória.13
Há particularidades bioquímicas, principalmente
perda precoce de cloreto de sódio e, com freqüência,
hipercalciúria já presentes ao nascer, que é a responsável pela nefrocalcinose de instalação precoce.11 A
atividade da renina plasmática pode estar aumentada,
com hiperaldosteronismo. A prostaglandina E2 pode
Tabela
Parâmetros laboratoriais
Parâmetros laboratoriais do paciente no diagnóstico e durante o seu acompanhamento
15 dias após a
2 meses após a
1a consulta
1a consulta
1a consulta
Sangue
Hematimetria
4.200.000/mm³
Hemoglobina
12,2 g/dl
Hematócrito
37,5%
Leucometria
Hemosedimentação
2 mm (1a hora)
Creatinina
0,3 mg/dl
Uréia
17 mg/dl
Sódio
137 mEq/l
Potássio
2 mEq/l
Cloreto
120 mmol/l
Cálcio
9,0 mg/dl
Fósforo
4,4 mg/dl
Magnésio
2,5 md/dl
Acido úrico
7 mg/dl
Fosfatase alcalina
427 UI/l
pH
7,32
7,45
Bicarbonato (HCO3)
18,2 mEq/l
25,5 mEq/l
Excesso de base
-7,7
+1,8
pCO2
32 mmHg
36,0 mmHg
pO2
70,0 mmHg
38,0 mmHg
Renina (ARP)*
13,04 ng/ml/hora
Aldosterona
32,5 ng/dl
Ânion gap
-1,2
Urina
pH
8,0
8,0
Densidade
1010
1015
Proteinúria
Ausência
Ausência
Hematúria
Ausência
Ausência
Glicosúria
Ausência
Ausência
Sedimentoscopia
Normal
Normal
Cultura quantitativa
Estéril
Estéril
FENa**
1,09 ml/dl FG***
0,32 ml/dl FG***
FECl**
3,0 ml/dl FG***
1,19 ml/dl FG***
FEK**
29,9 ml/dl FG***
49,6 ml/dl FG***
Cálcio/creatinina
0,45
0,30
Ultrassonografia
Nefrocalcinose
abdominal
medular
*ARP: Atividade de renina plasmática em paciente deitado com dieta normossódica;
**FE: Excreção fracionada em urina basal (amostra única);
***ml/dl FG: mililitro por decilitro do filtrado glomerular.
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7,38
23,0 mEq/l
-1,0
39,0 mmHg
38 mmHg
7,0
1010
Ausência
Ausência
Ausência
Normal
Estéril
0,6 ml/dl FG***
0,69 ml/dl FG***
3 ml/dl FG***
0,31
Nefrocalcinose
medular
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Valores normais
para idade
12 g/dl
40%
6.000-16.000/mm³
0-15 mm
0,5±0,08 mg/dl
15-40 mg/dl
136-145 mEq/l
3,5-5,5 mEq/l
96-111 mmol/l
8,8-10,2 mg/dl
3,8-6,2 mg/dl
1,4-2,4 mg/dl
1,5-6 mg/dl
75-390 UI/l
7,35-7,45
22-27 mEq/l
35-45 mmHg
80-100 mmHg
0,3 a 2 ng/ml/hora*
5 a 30 ng/dl
8-16
5,0
0,2-1 ml/dl FG***
0,5-1,3 ml/dl FG***
5-15 ml/dl FG***
<0,21
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estar elevada na urina como um epifenômeno da hipocalemia crônica,15 mas em alguns casos pode apresentar-se em estado normal, sobretudo se o paciente
recebeu apropriadamente líquidos e eletrólitos. A hiponatremia pode estar presente, inicialmente sem alterações do potássio plasmático. A perda renal de sódio pode ser transitória, dando lugar, mais tarde, a
perda renal de potássio.13 Deste modo entende-se que
a apresentação da forma neonatal da síndrome de Bartter é variável.
A síndrome de Bartter neonatal tem suas características clínicas, bioquímicas e genéticas, com evolução que pode chegar a insuficiência renal crônica6 e
Mimetiza algumas entidades clínicas obrigando a diagnósticos diferenciais como pseudo-Bartter,16 acidose tubular renal e uma síndrome familial caracterizada
por hipomagnesemia, hipercalciúria, nefrocalcinose, de
observação pessoal de Rodriguez-Soriano.4
O paciente relatado apresenta aspectos condizentes com a forma neonatal da síndrome de Bartter (polidrâmnio, parto prematuro, episódios de febre e desi-
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dratação, retardo ponderal, hipercalciúria e nefrocalcinose). A dificuldade do diagnóstico se deveu à presença de acidose metabólica hipocalêmica que se apresentou transitória. Este acontecimento não é freqüente
e a a explicação não está completamente esclarecida.
A perda intensa de fluidos e eletrólitos associada à
síndrome de Bartter neonatal pode justificar a acidose
metabólica.13
A terapêutica bem conduzida traz benefícios, como
a retomada do crescimento, com a idade óssea correspondendo à idade cronológica. O desenvolvimento
neuropsicomotor se faz dentro da normalidade. Há
redução da hipercalciúria, no entanto, não impede a
progressão da nefrocalcinose.4,12
Proesman relata decréscimo da filtração glomerular, após alguns anos de doença, devido a nefropatia
túbulo-intersticial crônica.6,14
Até o final do presente relato, o paciente apresentava evolução de acordo com estas informações. A função renal estava dentro dos limites da normalidade,
mantendo-se a nefrocalcinose.
R e f e r ê n c i a
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Aceito em 4/7/2002. Recebido em 23/1/2002.
Fonte de financiamento e conflito de interesses¾ inexistente
Endereço para correspondência:
Adauto Barros Amin
Rua Vereador José Gasparetti, 360 Vale do Ipê
36035-790 Juiz de Fora, MG, Brasil
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