COMO SE FORMA O SER HUMANO? HERANÇA OU AMBIENTE? Ms. Algacir José Rigon Mestre pela Universidade de Passo Fundo – UPF Professor Municipal – E-mail: [email protected] RESUMO Este trabalho visa apresentar, de modo geral, uma hipótese para questão da formação do ser humano. Esse problema é tratado a partir da tese de que o desenvolvimento do ser humano é o resultado do entrelaçamento de sua bagagem genética com o aparato sócioambiental que está em seu entorno. Palavras-chave: herança; ambiente; indivíduo; desenvolvimento psicológico; A resposta para a pergunta sobre a formação do ser humano, tem como um dos pontos de partida a análise das diferenças entre aquilo que cabe ao desenvolvimento biológico (filogênese e ontogênese) e aquilo que cabe ao desenvolvimento cultural de determinado indivíduo. Sabe-se que o ser humano como o conhecemos hoje é o resultado, por um lado, de uma evolução das espécies animais que resultou no aparecimento do Homo sapiens e, por outro, resultado de uma atividade desenvolvida historicamente por meio da qual o homem primitivo se transformou num ser culturalizado (Cf. VIGOTSKI, 2001, p. 153). O desenvolvimento cultural não ocorre à margem do desenvolvimento biológico, ao contrário, são duas linhas de desenvolvimento que estão entrelaçadas entre si. Desse modo é possível afirmar que o desenvolvimento cultural, enquanto um processo histórico, com suas próprias leis, ocorre sob as bases biológicas que outrora foram guiadas estritamente pelas leis da evolução. A partir dos estudos atuais da genética pode-se dizer que os genes “predispõe” o organismo de qualquer ser vivo a ter determinado comportamento como, por exemplo, os genes do câncer ou outras doenças “complexas” ou “poligênicas” (depressão, asma, esquizofrenia, diabetes, hipertensão e doenças cardíacas congênitas), mas “a manifestação desta [s] depende de fatores ambientais” (WATSON, 2005, p. 337). Isso pode ser dito também em relação às características humanas relativas à mente (inteligência) e ao comportamento, ou seja, o pensamento biológico aponta “a possibilidade de que quase todas as características humanas teriam uma parcial base genética” (MAYR, 1998, p. 921). 1. A Questão Biológica O estudo do homem pelo viés da biologia e da genética sempre apresentou controvérsias, principalmente, quando se tentou tirar conclusões ou fazer inferências com a finalidade de “melhorar” os indivíduos, as condições de vida ou, simplesmente, o padrão das ações humanas. Galton (1822-1911), “argumentava que seria possível ‘aprimorar’ a estirpe humana mediante a procriação preferencial dos indivíduos dotados e impedindo os menos dotados de se reproduzir” (WATSON, 2005, p. 33). A tese central é de que, assim como os traços genéticos simples (atributos físicos), os atributos mentais e comportamentais também são perpetuados de geração em geração pelo viés da hereditariedade. Por isso, para obter uma espécie humana com atributos especiais seria necessário apenas utilizar-se dos princípios básicos da eugenia (aperfeiçoamento da espécie via seleção genética e controle da reprodução), em outros termos, uma “‘evolução humana autocontrolada’” (WATSON, 2005, p. 33). A Escola Behaviorista, por sua vez, defendia uma posição contrária. A teoria está baseada nos princípios de Ivan Pavlov (biólogo e fisiologista russo) e John B. Watson (psicólogo norte-americano), com suas respectivas publicações do início do século XX. O nome mais conhecido talvez seja de Skinner (1904-1992), que desenvolveu vastos estudos e pesquisas nesse campo. O princípio do behaviorismo (conhecido também como comportamentalismo) é bastante simples: “a todo estímulo corresponde uma resposta”, ou melhor ainda, “toda resposta é originada por um estímulo”. Assim os fatores socioambientais começaram a preponderar. Isso está explícito na seguinte idéia de John Watson: Dai-me uma dúzia de crianças sadias, bem constituídas, e o espaço de mundo que me seja necessário para educá-las, e me comprometo – a fomá-las de maneira que obtenha de cada uma delas um especialista, um médico, um comerciante, um jurista e inclusive um vagabundo ou ladrão, independente de seu talento, tendências, inclinações e aptidões” (WATSON apud FULIAT, 1995, p. 355). Ou ainda, Skinner: “O indivíduo não é a origem ou uma fonte. Ele não inicia nada. E nem é ele que sobrevive. O que sobrevive é a espécie ou a cultura. Elas estão ‘além do indivíduo’ no sentido de serem responsáveis por ele e sobreviverem a ele” (SKINNER apud MUZUKAMI, 1986, p. 25). Os genes, de forma geral, a hereditariedade, e tudo o que representam, estavam rejeitados, ou seja, tudo passou a ser culpa das variedades do ambiente, no caso das doenças mentais, do estresse ambiental. Em última instância, o paradigma da tabula rasa. Com a finalidade de rejeitar ambas as posições, pretende-se apontar a possibilidade de uma terceira via que parece, ao menos em parte, mais coerente com os estudos recentes, principalmente, a partir dos “primeiros vislumbres da genética que subjaz ao comportamento” (WATSON, 2005, p. 400). A partir de Dobzhansky (1900-1975), já se encontra uma separação entre aquilo que deve ser imputado ao ambiente ou à herança. A princípio infere-se a seguinte tese: as características físicas são hereditárias no sentido genético, porém, as culturais devem ser entendidas, principalmente, a partir do fato de o homem ser um agente ativo e, por isso, terem uma forte influência socioambiental. Para isso, faz-se necessário considerar que “tanto genótipo como ambiente são igualmente importantes, porque ambos são indispensáveis. Não existe organismo sem genes, e o genótipo somente pode atuar em um meio dado” (DOBZHANSKY, 1969, p. 65). Com os estudos de Dobzhansky, torna-se evidente ainda que não existem genes especiais “de cultura”, ou seja, não há genes que o tornem um pintor, um estadista ou um bandido; a raça negra não é homozigótica para um inexistente gene de jazz, nem são os balineses geneticamente dançarinos nem os judeus comerciantes. O assunto é consideravelmente mais sutil. Os genes criam a base para os traços culturais, mas não forçam o desenvolvimento de quaisquer traços particulares (DOBZHANSKY, 1968, p. 357). Para Ingold, “os cérebros dos caçadores-coletores presumivelmente primitivos são tão bons e tão capazes de conduzir as idéias sofisticadas e complexas quanto os dos filósofos e cientistas ocidentais” (INGOLD in FABIAN, 2003, p. 121). Têm-se motivos suficientes para dizer que as aptidões psíquicas (capacidades) e as características especificamente humanas não são transmitidas apenas por hereditariedade. Conforme Dawkins, embora algumas características como altruísmo e egoísmo sejam um tanto hereditárias, seria uma falácia “supor que características herdadas geneticamente são por definição fixas e inalteráveis. Nossos genes poderão nos instruir a sermos egoístas, mas não estamos necessariamente compelidos a obedecê-los por toda nossa vida” (DAWKINS, 2001, p. 23). Ademais, considera-se que a sociabilidade humana (relações sociais) não pode ser completamente explicada pela associação de múltiplos indivíduos que carregam hereditariamente um pré-programa de comportamento egoísta ou altruísta. Tendo como referência o medo, faz sentido, biologicamente, que ele seja instintivo, porém a criança precisa aprender a ter medo de cobras o que pode, por sua vez, ocorrer por meio da percepção da reação emotiva de outro indivíduo ou pela instrução de outro indivíduo. Seria ruim se a criança aprendesse por experiência própria. Ter um “ouvido tonal” é uma capacidade, entre outras, adquirida no decurso da vida por um processo de apropriação da cultura criada pelas gerações precedentes. [...] Podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana (LEONTIEV, 1978, p. 267). Os membros de uma mesma família possuem uma semelhança maior entre si do que com outros que não possuem um grau de parentesco (ou o grau de parentesco é mais distante). É fato conhecido que compartilhamos a metade de nossos genes com cada progenitor. As leis da herança, que foram descobertas por Mendel (Genética Mendeliana) nos auxiliam a predizer algumas características da descendência dos cruzamentos (Cf. ZIMMER, 2004, p. 131-136). Por exemplo, o filho tem olhos verdes, cabelos cacheados e pele escura; seus pais também possuíam essas características. Mas o filho fala italiano e nenhum de seus antepassados falava. Esse diferencial se distancia um pouco das leis da hereditariedade genética. Em alguns casos, principalmente para as características humanas físicas, a participação dos genes é maior, em outros, como as características humanas culturais, a participação do ambiente. Como hipótese geral, “a herança, o genótipo, os genes não determinam ‘caracteres’ tais como a propensão ao crime ou ao hábito de fumar; os genes determinam a reação do organismo diante do meio circundante” (DOBZHANSKY, 1969, p. 78). Principalmente, no que tange aos aspectos culturais ou aos traços poligênicos, pode-se dizer que a herança é um condicionamento que incide no agir do homem, mas não é uma fatalidade que define de antemão como um indivíduo se comportará ou o que ele irá evitar. Muitos estudos foram realizados com gêmeos idênticos e fraternos com a pretensão de se separar as contribuições da hereditariedade e do ambiente (Cf. LURIA, 1992; DOBZHANSKY, 1968 e 1969). Essas pesquisas foram realizadas nos fins da década de 20, principalmente na URSS e, atualmente, nos EUA. A hipótese é de que em gêmeos idênticos, por exemplo, as diferenças de comportamento se devam exatamente à mudança do ambiente, uma vez que, excluindo a possibilidade de mutações, eles são geneticamente idênticos, portadores dos mesmos genes. Ou, então, se o ambiente fosse igual, os seus fenótipos deveriam ser “idênticos”. Cabe ressalvar, no entanto, que, apesar desses gêmeos estarem em ambientes familiares, sempre há variação nos estímulos que chegam a cada um e, uma vez separados, mas dentro de uma mesma região ou país, sofrem, ligeiramente, a influência de uma cultura homogênea. Isso tem dificultado as pesquisas, mas algumas conclusões gerais puderam ser tiradas. A primeira delas refere-se ao fato de que, em relação às características físicas, “os processo naturais de uma criança mudam quantitativamente” (LURIA, 1992, p. 88): os gêmeos idênticos são muito mais parecidos que os fraternos, “traços como largura da cabeça, índice cefálico (a relação entre a largura e o comprimento do crânio), estatura, e comprimentos da perna, braço e pé apresentam alta hereditabilidade (isto é, nesses traços, os gêmeos idênticos são muito mais próximos que os fraternos)” (DOBZHNSKY, 1968, p. 93), ou seja, as diferenças são relativas à bagagem genética. “Os processos culturais, por outro lado, mudam qualitativamente” (LURIA, 1992, p. 89): as diferenças foram aguçadas a partir de uma diferenciação nos processos de criação e de educação. Nesse caso, por exemplo, a memória natural depende prioritariamente das condições genéticas, enquanto que a memória cultural é relativa ao ambiente. Assim, “o gêmeo superior em QI era geralmente aquele que tinha crescido num ambiente superior ao de seu irmão, e vice-versa” (DOBZHANSKY, 1968, p. 97). A genialidade tem uma parcial base genética, tanto é que foram encontrados alguns genes capazes de afetar o QI, dentre eles, uma variação na parte que cabe ao cromossomo 6. Como a genialidade é um traço poligênico (depende da reação de diversos genes) ela está ligada a diversas variantes (genéticas), o que também, por sua vez, não garante a genialidade, pois “mesmo um sólida base genética pode acabar em nada se o indivíduo não for criado num ambiente em que aprender e raciocinar tenham primazia sobre assistir a programas infantis no canal Nichleodeon” (WATSON, 2005, p. 401). 2. A Questão Cultural Em relação ao desenvolvimento da mente (psíquico) é possível perceber que, principalmente nos últimos tempos, houve uma extraordinária mudança cultural, mas biologicamente há certa estabilidade, ou seja, as mudanças culturais ocorrem mais rapidamente que as mudanças genéticas. Leontiev (1903-1979) afirmou, em sua tese de doutorado, que aquilo que nos separa dos primeiros representantes do Homo sapiens, é, por um lado, transformações extraordinárias de uma importância sem precedentes e feitas segundo ritmos cada vez mais rápidos, das condições e do modo de vida humana; por outro lado, a estabilidade das particularidades morfológicas humanas, cuja variação não ultrapassa as simples variantes que não têm qualquer significado adaptador socialmente essencial (LEONTIEV, 1978, p. 163). Hoje essa afirmação continua atual. Para isso tem-se a auspiciosa prova do efeito Flynn, ou seja, “o fenômeno da tendência ascendente do QI em todo o mundo [...] não está havendo um modificação genética em massa da população global. Logo, essas mudanças precisam ser reconhecidas basicamente como fruto da melhoria nos padrões gerais de educação, saúde e nutrição” (WATSON, 2005, p. 408). A diferença principal, determinante, entre o processo evolutivo biológico e o processo histórico é a circunstância de que o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores ocorre sem que se modifique o tipo biológico do homem, embora a mudança do tipo biológico seja a base evolutiva do desenvolvimento. No homem, cuja adaptação ao meio se modifica por completo, se destaca, em primeiro lugar, o desenvolvimento de seus órgãos artificiais – as ferramentas – e não a mudança de seus próprios órgãos ou, tampouco, a estrutura do seu corpo (Cf. VIGOTSKI, 2000, p. 31). O comportamento do homem passa para uma forma mais complexa tanto no sentido genético quanto no sentido funcional, ou seja, há uma nova orientação do seu comportamento que parte da base dinâmico-causal e atinge o todo funcional. Sugere-se que esse processo tem início com o trabalho, na medida em que este exige um certo controle do homem sobre si mesmo, baseado no mesmo princípio em que se baseia o nosso controle sobre a natureza (Cf. VIGOTSKI; LURIA, 1996, p. 89). A característica principal que representa esse novo evento é a auto-estimulação por meio da criação de estímulos-médios que Vigotski denomina, no que tange às funções externas, de instrumentos e, em relação às funções internas (psíquicas), de signos. Esses estímulos artificiais possibilitam a determinação ou o controle do próprio comportamento e, também, de certa forma, uma reorientação nas leis que regulam o comportamento que chamaremos de leis históricas. Leontiev, ao tratar da mesma problemática, a partir da teoria da atividade, se refere a essa passagem como a mudança para uma nova forma de atividade que, grosso modo, não tem mais um “sentido biológico” direto, ao contrário, portanto, dos demais animais que, para a realização de qualquer atividade, a mesma deve estar dentro de seu “campo visual” ou ter um sentido biológico imediato. O próprio Leontiev (1978, p. 76-77) exemplifica este tipo de atividade (sem sentido biológico) como aquela desempenhada pelos caçadores primitivos, sendo que aquele que tem como papel afugentar o animal para a direção dos que estão a espreita somente tem sentido se for considerado o conjunto da operação, ou seja, que ao final da caça aquele que afugentou o animal irá ganhar o seu quinhão. Os indivíduos passam agora a sofrer a influência direta das leis históricas, aquelas que eles mesmos vão forjando aos poucos, uma vez que se tornam sujeitos do processo social (agentes ativos). Cabe destacar, ainda, que eles obedecem “simultaneamente, à ação de leis biológicas (graças às quais se produzem às transformações morfológicas ulteriores, tornadas necessárias pelo desenvolvimento da produção e da comunicação) e à ação das leis sociais (que regem o desenvolvimento da própria produção social)” (LEONTIEV, 1978, p. 162). As leis biológicas da variação e da hereditariedade não cessam, mas a luta pela existência toma outro sentido, pois as regras de luta pela existência são históricas (sociais e culturais). Doravante o homem deve ser entendido em sua realidade, ou seja, no conjunto das condições sociais. O indivíduo torna-se igual à totalidade das condições sociais (natureza, atividade, processo de alienação ou negação da sua produtividade, etc.), portanto muito além da tese geral de que o homem é tanto parte da natureza como da sociedade. Isso porque, conforme Schaff, “o homem, além de um produto da evolução biológica das espécies, é um produto histórico, um produto de certa forma mutável nas diversas etapas da evolução da sociedade, conforme pertença a um ou outra das classes e camadas da mesma sociedade” (SCHAFF, 1967, p. 65). Essas são, grosso modo, algumas das questões gerais que precisam ser consideradas no processo de condução racional da educação, ou propriamente, para o entendimento de como se forma o ser humano, principalmente no que tange à formação de sua estrutura sociopsicológica e cultural. Referências bibliográficas DAWKINS, R. O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, 2001. DOBZHANSKY, T. Herencia y naturaleza del hombre. Buenos Aires: Losada, 1969. _____. O homem em evolução. São Paulo: Polígono, 1968. FABIAN, A. C. (Org.). Evolução, sociedade, ciência e universo. Bauru: EDUSC, 2003. FULLAT, O. Filosofias da educação. Petrópolis: Vozes, 1995. LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte Universitário, 1978. LURIA, A. R. A construção da mente. São Paulo: Ícone, 1992. MAYR, E. O desenvolvimento do pensamento biológico. Brasília: UNB, 1998. MUZUKAMI, M. da Graça. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986. SCHAFF, A. O marxismo e o indivíduo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. VIGOTSKI, L. S. Obras Escogidas. Madrid: Visor, 2000. V. III. _____. Obras Escogidas. Madrid: Visor, 2001. V. II. VYGOTSKY, LURIA. Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. WATSON, James. DNA: o segredo da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ZIMMER, C. O livro de ouro da Evolução: o triunfo de uma idéia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.