Nobel para a «morte celular» HELENA MENDONÇA Diário de Notícias, 8 de Março 2002 Sydney Brenner, John Sulston (Reino Unido) e Robert Horvitz (EUA) são nomes de referência na comunidade científica. Foram os autores de uma descoberta, nos anos 60 e 70, que tem vindo a atravessar os fundamentos não só da investigação genética mas também da prática clínica das últimas décadas. Identificaram os genes que regulam o desenvolvimento dos órgãos e a morte das células. Esse trabalho fundamental valeu-lhes o Prémio Nobel da Medicina, anunciado ontem pelo Instituto Karolinska de Estocolmo. A descoberta não surgiu num único momento. Foi desenvolvida ao longo de mais de uma década, em que o trabalho iniciado por Sydney Brenner, na década de 60, foi seguido por Sulston, na década de 70, que, por sua vez, deixou uma «herança» científica a Horvitz, para prosseguir a pesquisa. «A regulação genética da organogénese e da morte celular programada», o título do trabalho anunciado pelo Comité Nobel, consistiu na identificação, num organismo simples, do processo de morte celular programada, um mecanismo necessário para as espécies serem aquilo que são. O corpo humano, por exemplo, é constituído por centenas de tipos celulares, que se formam a partir do ovo fecundado. Durante o período embrionário e fetal, o número de células aumenta exponencialmente. A certa altura, as células amadurecem e diferenciam-se, «fabricando» os vários tecidos e órgãos do corpo. Só que em alguns deles, como o sistema nervoso, é necessário um número excessivo de células para que este se desenvolva correctamente. Por isso, a dada altura, este excesso tem de ser corrigido. Dá-se, então, a chamada «morte celular», ou o «suicídio das células». Outro caso exemplar deste mecanismo é a formação dos dedos. No início do desenvolvimento embrionário, começam por estar todos ligados. É a morte celular que permite «esculpi-los» _ na expressão do investigador do Instituto Gulbenkian de Ciência, António Jacinto _ para tomarem a forma de uma palma com cinco dedos. O mesmo acontece com outros órgãos do organismo. Os laureados recorreram a uma minhoca para desenvolver este trabalho. A Caenorhabditis elegans (C. elegans) é muito utilizada pelos cientistas, a exemplo do que acontece com a mosca-da-fruta ou os ratos, em virtude de todas as divisões celulares e diferenciações serem idênticas em todos os indivíduos, facilitando a construção de um modelo das divisões celulares. Descobriram, assim, os genes centrais de regulação do desenvolvimento de órgãos e a morte celular programada e comprovaram a existência de genes idênticos nos organismos superiores, como o homem. Todo este processo de suicídio celular decorre, em situações normais, de forma muito precisa, mantendo-se sempre o equilíbrio entre o processo de expansão de células e a sua morte. Qualquer disfunção ou desequilíbrio pode desencadear uma proliferação descontrolada de células e provocar o cancro. Ao contrário, se as células morrerem a um ritmo em que o organismo perde a capacidade de as repor, pode-se assistir ao surgimento das doenças degenerativas, como Parkinson ou Alzheimer. São cerca de 20 os genes envolvidos nos dois processos antagónicos. O trabalho pioneiro destes cientistas ultrapassou há muito as paredes dos laboratórios de pesquisa. Já existem testes de análise clínica apoiados neste trabalho, referiu ao DN Carolino Monteiro, especialista em genética humana do Instituto de Higiene e Medicina Tropical. «A presença, ausência ou presença anormal destes genes, detectável nas análises laboratoriais, dão ao clínico a informação do tipo de patologia que tem em mãos», sublinhou o investigador português, realçando a importância da descoberta tanto para a prática clínica como para a pesquisa nesta área. Esta linha de investigação poderá ainda ser o ponto de partida para a criação de medicamentos mais direccionados no combate à morte celular e, consequentemente, do cancro. Também o futuro da engenharia genética terá necessariamente de recorrer aos fundamentos do trabalho dos três cientistas laureados.