O trabalho pedagógico baseado no interculturalismo - CAp

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O TRABALHO PEDAGÓGICO BASEADO NO
INTERCULTURALISMO É CAPAZ DE NEUTRALIZAR AS
FONTES DE TENSÕES E CONFLITOS ADVINDAS DA
PLURALIDADE CULTURAL PRESENTES NO COTIDIANO
ESCOLAR?
Shirlei BARROS do Canto
[email protected]
PPGEB – UERJ
Nathália CHIANELLO
[email protected]
PPGEB – UERJ
RESUMO
O presente trabalho visa contribuir para a reflexão das práticas ocorridas no contexto escolar que envolvem os
seus sujeitos, em especial o professor regente e seus alunos numa situação atípica, mas que traduz o
distanciamento do professor em relação à diversidade/ pluralidade cultural com a qual se depara no espaço
escolar. A prática analisada neste trabalho está relacionada com a temática da variedade linguística e quão
presente encontra-se no ensino e nas relações sociais, onde se convencionou que a norma padrão (gramatical/
normativa) consiste na língua correta a ser conquistada por todos que almejam ascensão social. Em
contrapartida, o uso das variações da língua passou a ser considerado como a prática de uma “língua
equivocada”, tendo como desdobramentos o preconceito linguístico sustentado pelo etnocentrismo. Das
reflexões sobre a linguagem realizadas até a atualidade, encontramos no Interculturalismo a prática capaz de
promover diálogos entre as diferentes culturas e grupos sociais.
PALAVRAS-CHAVE: Cotidiano Escolar - Variedade Linguística - Interculturalismo.
INTRODUÇÃO
1
Vamos partilhar uma situação inusitada ocorrida com uma professora regente
(Professora A) da Educação Básica da Prefeitura Municipal de Duque de Caxias, em turma de
Educação Infantil, composta por crianças advindas de uma realidade de extrema pobreza e
consequente carência de atendimento às suas necessidades básicas, como higiene,
alimentação, moradia digna e saúde.
As crianças possuem também privação de outra ordem, pois muitos dos responsáveis
são analfabetos ou iletrados. O desemprego é regra, bem como a falta de profissionalização
dentre os mesmos. Em decorrência, não que seja uma regra, há situações de violência física,
assédio, incesto, negligência e abandono.
Convivendo com todas essas especificidades, as crianças têm a instituição escolar da
creche como um alento e também um espaço onde suas necessidades básicas são
contempladas. A relação intrapessoal comprometida responde pelo contínuo trabalho de
elevação da autoestima dessas crianças, desde a acolhida até o desenvolvimento de suas
potencialidades, valorizadas a cada produção, através de culminâncias criativas e
promovedoras de momentos de muita felicidade. Registros em fotos e vídeos seguidos de
exposições conseguem propagar os êxitos desses pequeninos e os enchem de orgulho.
O episódio a ser descrito exemplifica a rejeição inconsciente e irrefletida diante das
variedades linguísticas presentes no ambiente social e escolar.
OBJETIVOS
As reflexões acerca da temática objetivam uma postura assertiva em relação à
valorização do acervo cultural e linguístico que o “outro” traz consigo e que deve ser
valorizado nos contextos da escola e de toda a sociedade.
METODOLOGIA
O presente trabalho se utilizou da análise e da reflexão a partir de uma situação
ocorrida em sala de aula, onde a professora A dedicada em ajudar seus alunos a tecer uma
nova trajetória de vida, visando sempre o incentivo, o reconhecimento, o sucesso e a
perfeição, viu-se na seguinte situação:
A aluna Maria disse:
__ Tia, o imbigo da minha irmãzinha caiu!”
Professora falou:
__ Maria, o correto é “umbigo”. Diga: ”umbigo”.
Maria repetiu:
__ Imbigo.
__Não, Maria. Olhe: UM, lembre-se do número um. Diga agora:
“umbigo”.
Maria reproduziu:
__ Umbigo.
A professora: __Muito bem!
2
__ Maria, preste atenção: o correto é dizer “umbigo”. Caso em sua
casa a mamãe ou a vovó falem diferente; está errado. Você deve
ensiná-las a falar o certo.” (informação verbal)1.
O que aconteceu na situação compartilhada consistiu em um ato irrefletido da
professora e nos perguntamos se a mesma foi pouco sensível à diversidade/ pluralidade
cultural de sua clientela, uma vez que a diferença de vocabulário empregada pela aluna gerou
tensões, as quais foram atenuadas com o empenho em abolir a pronúncia da criança,
considerada equivocada pela professora.
A conduta mais assertiva, no entanto, seria a de valorizar a participação da aluna, bem
como o desenvolvimento de sua expressão oral e a riqueza do acervo cultural de seu grupo
social. E, em momento algum, convencer a criança a renegar seu grupo social ou menosprezálo diante dela. Cabe ao professor elaborar/ oportunizar situações onde ocorra o contato com
os termos “corretos”. Isso pode se dar através da contação de histórias, por exemplo.
DISCUSSÃO TEÓRICA
Visando refletir a prática iníqua da Professora A, abordaremos questões pertinentes à
variedade linguística presentes nos espaços da escola e da sociedade. Destacamos que Soares
(2000) traz o conceito de bidialetalismo para a transformação como possível solução a ser
considerada nas concepções dos educadores frente à diversidade linguística com que se
deparam no contexto da escola, sendo essa uma realidade da sociedade brasileira.
A concepção da necessidade de uma discussão acerca da temática da variedade
linguística significa um avanço no ensino e nas relações sociais, uma vez que se convencionou
que a norma padrão (gramatical/ normativa) consiste na “língua certa” a ser almejada por
todos os que desejam ascender socialmente. Um exemplo na nossa história abolicionista foi o
fato de os escravos letrados terem alcançado mais rapidamente reconhecimento como
cidadãos brasileiros.
Em pensar que aqui no Brasil há pouco mais de 500 anos não se conhecia a língua
portuguesa; imposta pelos colonizadores de forma contundente e definitiva. A sociedade que
se formou convencionou valorizar a norma dita padrão em detrimento de qualquer outra
variante, desde sempre.
Com essa determinação cerrada as demais variedades linguísticas passaram a ser
vistas como uma “língua equivocada”, “pobre”, utilizada, em geral, pelos iletrados. Tal
concepção nos parece que resistiu a séculos e permanece na sociedade contemporânea.
Em relação a tal feito, coadunamos com Soares (2000) quando nos faz refletir sobre as
diferenças culturais e a importância da linguagem na formação social do cidadão. Soares nos
diz que “negar a existência da cultura em determinado grupo é negar a existência do próprio
grupo” (2000, p. 14). Refletimos que cada grupo social tem sua cultura, fazendo parte dela, a
linguagem.
1
Depoimento proferido pela Professora A durante curso de Pós-graduação Mestrado em Educação Básica,
exemplificando uma conduta equivocada, antes de refletir acerca da pluralidade cultural.
3
A diversidade cultural e linguística fazem parte da essência do cidadão. Necessário que
sejam vistas, aceitas e toleradas, melhor ainda: apreciadas, ouvidas e valorizadas. A temática
aqui abordada retoma a discussão quanto à disseminação do julgamento negativo de valor em
relação à variedade linguística presente na sociedade e no cotidiano escolar.
Soares (2000) nos apresenta uma solução para que esses falares possam conviver de
maneira harmônica e respeitosa. A autora propõe o bidialetalismo para a transformação, ou
seja, a convivência da norma padrão e da não padrão como possibilidades comunicativas
cabíveis na rotina escolar e por que não, social. Dessa forma há uma predominância das
questões ideológicas sobre as linguísticas, reafirmando o valor do acervo cultural do aluno.
Consiste em ensinar a norma padrão aos que utilizam uma norma mesclada ou de todo
popular, enfatizando, todavia, que ambas as variedades de falares se equivalem
linguisticamente, uma vez que a comunicação está assegurada.
Segundo Soares (2000), o mito da “deficiência linguística” é um conceito sem
fundamento intralinguístico, criado e desenvolvido por sociólogos e psicólogos:
Essa ignorância repousa, sobretudo na premissa de que pode haver línguas
ou variedades linguísticas “superiores” e “inferiores”, “melhores” e “piores”.
Do ponto de vista sociolinguístico, tanto quanto do ponto de vista
antropológico, essa premissa é inaceitável, porque cientificamente falsa.
(SOARES, 2000, p. 38).
Por conseguinte, a autora nos apresenta uma visão sobre essa temática que é
consequência do etnocentrismo, ou seja, “uma tendência a considerar a própria cultura como
preferível, e superior, a todas as outras” (2000, p. 39). Magda Soares contesta a visão elitista aí
guardada – que desconhece a variação linguística:
O estudo das línguas de diferentes culturas deixa claro, da mesma forma,
que não há línguas mais complexas ou mais simples, mais lógicas ou menos
lógicas: todas elas são adequadas às necessidades e características da
cultura a que servem, e igualmente válidas como instrumentos de
comunicação social. (idem, p.39)
Bakhtin (2006) também defende a presença, de forma valorizada, da oralidade como
variedade linguística, presente fortemente nas camadas sociais mais populares. As práticas de
oralidade na escola corroboram para ampliar a competência comunicativa dos alunos. Para o
autor a palavra é a ponte de interação entre os indivíduos.
Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da
palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em
relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim
e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se
sobre meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do
interlocutor. (BAKHTIN, 2006, p.117)
As reflexões do autor sobre a linguagem nos remetem à incompreensão do processo
de construção do indivíduo como ser social, que se constitui pela linguagem. Embora resida
aqui grande dilema, pois como se dará tal feito se a linguagem fruto do acervo cultural é
4
negada pela escola? E, juntamente com ela, são negadas também as marcas dessas
experiências vividas, que constituem esse sujeito que agora tem acesso à escola e sente-se
aviltado ao sofrer preconceito linguístico. Além de passar por árduas tentativas frustradas de
aprender a língua padrão, pois há um consenso de que o “português é muito difícil”, como nos
dá a conhecer Bagno (1999):
Essa afirmação preconceituosa é prima-irmã da idéia que acabamos de
derrubar, a de que “brasileiro não sabe português”. Como o nosso ensino da
língua sempre se baseou na norma gramatical de Portugal, as regras que
aprendemos na escola em boa parte não correspondem à língua que
realmente falamos e escrevemos no Brasil. Por isso achamos que
“português é uma língua difícil”: porque temos de decorar conceitos e fixar
regras que não significam nada para nós. No dia em que nosso ensino de
português se concentrar no uso real, vivo e verdadeiro da língua portuguesa
do Brasil é bem provável que ninguém mais continue a repetir essa
bobagem. (BAGNO, 1999, p. 33).
Marcos Bagno (1999) apresenta como solução o respeito à gramática intuitiva do
aluno, o que facilitaria o ensino da língua portuguesa:
Se tanta gente continua a repetir que “português é difícil” é porque o ensino
tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do
português. Um caso típico é o da regência verbal. O professor pode mandar
o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase: “Assisti ao filme”. Quando esse
mesmo aluno puser o pé fora da sala de aula, ele vai dizer ao colega: “Ainda
não assisti o filme do Zorro!” Porque a gramática brasileira não sente a
necessidade daquela preposição a, que era exigida na norma clássica
literária, cem anos atrás, e que ainda está em vigor no português falado em
Portugal, a dez mil quilômetros daqui! É um esforço árduo e inútil, um
verdadeiro trabalho de Sísifo, tentar impor uma regra que não encontra
justificativa na gramática intuitiva do falante. (p.34).
Marcushi (2003) também colabora conosco quando em seu trabalho busca desfazer o
mito da supremacia da escrita diante da oralidade. Ele situa a escrita e a oralidade num lugar
de co-importância, em que ambas se auxiliam para que uma efetiva comunicação ocorra.
Como prática assertiva, considerar e valorizar a fala do aluno é primordial para que o
processo de ensino e de aprendizagem seja dialógico e dinâmico, buscando a realização dos
seus sujeitos. Através da palavra dita muito se apreende desse indivíduo que a emite. A
palavra tem, em si, a capacidade de emanar a vivência cultural e os posicionamentos frente ao
que se reflete, frente à prática do discurso que se estabelece. Segundo nos explana Bakhtin
(2006), é indispensável à interação entre os participantes do discurso, sendo a palavra a ponte
que os une.
Em contrapartida, podemos pensar, então, no infortúnio dos alunos das classes
populares, vítimas desse preconceito e dessa violência que, em última análise, resulta num
processo de desconstrução de sua identidade humana/ cidadã, porque não podem se
constituir como sujeitos de discurso, nem como interlocutores do discurso do professor. Esse é
o capital cultural de que nos fala Bourdieu:
5
Desta maneira, as disposições negativas no tocante à escola que levam a
maioria das crianças das classes e frações de classe mais desfavorecidas
culturalmente à auto-eliminação, como por exemplo, a depreciação de si
mesmas, a desvalorização da escola e de suas sanções ou a resignação ao
fracasso e à exclusão, devem ser compreendidas em termos de uma
antecipação fundada na estimativa inconsciente das probabilidades
objetivas de êxito viáveis para o conjunto da categoria social, sanções que a
escola reserva objetivamente às classes ou frações de classe desprovidas de
capital cultural. (BOURDIEU,2002, p. 310).
Concordamos que as reflexões sociolinguísticas nas práticas escolares se fazem
necessárias, uma vez que possibilitam o exercício de uma pedagogia mais sensível à cultura do
aluno, sobretudo de seu falar rico em variedades linguísticas, as quais precisam ser valorizadas
e pensadas como contribuições efetivas de trocas sociais da cultura do aluno. E que essa
mudança de paradigma frente ao preconceito linguístico pode permear o ajustamento nos
processos interacionais facilitadores da aprendizagem.
A prática pedagógica do bidialetalismo para a transformação proposto por Soares
(2000), que ocorre na relação aluno-professor e sociedade, enriquecido dialeticamente pelo
multiculturalismo presente nessas relações sociais de amplitude planetária, abarcando uma
variedade ainda maior de saberes e falares; tem sua aplicabilidade através da
interculturalidade como proposta educacional fundamentada na prática inevitável da interrelação entre as várias culturas.
Entretanto, Candau (2000) nos alerta ser o multiculturalismo nossa realidade social, ou
seja, a presença de várias culturas numa mesma sociedade; porém, a simples tomada de
consciência da possibilidade do interculturalismo entre tais culturas não garante dinâmicas
sociais capazes de solidificar as relações de troca sem que haja segregação cultural.
O multiculturalismo que Candau (2000) alerta se faz pela presença de diferentes
grupos culturais dentro de uma mesma sociedade, com diferentes interesses que explicitam as
discriminações e preconceitos aflorados no tecido social.
Neste movimento Candau no II Seminário Internacional sobre Educação Intercultural,
Gênero e Movimentos Sociais, apresenta propostas para promover uma educação
intercultural, que seja capaz de reconhecer o “outro”, promovendo assim diálogos entre as
diferentes culturas e os grupos sociais. São elas:
• Reconhecer o caráter desigual, discriminador e racista da nossa sociedade;
• Questionar o caráter monocultural e o etnocentrismo presentes da escola e nas
políticas educativas;
• Articular as políticas educativas e as práticas pedagógicas com o reconhecimento e
valorização da diversidade cultural;
• Resgatar a construção das identidades;
• Promover experiências de interação com os “outros” para que sejamos capazes de
situarmos-nos diante do mundo e atribui sentido a isso.
• Favorecer o empoderamento, no sentido que cada pessoa possa ser ator e sujeito
de sua própria vida e;
• Reconstruir a dinâmica educacional.
6
Percebemos que a promoção de uma educação intercultural é complexa, esta exige a
problematização da nossa prática pedagógica e como construímos essa relação com o “outro”.
A construção de uma educação intercultural é através da quebra das barreiras físicas, afetivas
e ideológicas dentro de uma sociedade em que seja possível conceder práticas pedagógicas em
que os aspectos sociais, políticos e culturais individuais não se sobressaltem aos interesses do
coletivo.
[...] a educação intercultural surge não somente por razões pedagógicas,
mas principalmente por motivos sociais, políticos, ideológicos e culturais. A
origem desta corrente pedagógica pode ser situada aproximadamente há
trinta anos, nos Estados Unidos, a partir dos movimentos de pressão e
reivindicação de algumas minorias étnico-culturais, principalmente negras.
(JORDÁN, 1996. apud CANDAU, 2002, p.106).
RESULTADOS
Concluímos, então, a necessidade de práticas escolares que promovam uma educação
intercultural na perspectiva crítica emancipatória, capaz de desconstruir os preconceitos
existentes no seio educacional. Assim, estaremos construindo uma escola capaz de formar o
homem como um genuíno ser social, valorizado com a riqueza de seu acervo cultural e
evitando a reprodução de práticas como a da Professora A.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. Edições Loyola, São Paulo,
Brasil, 1999.
BAKHTIN, M.M. (V.N.VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. A 1ª
ed. é de 1930.
CANDAU, V. M. (org). Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2002.
______. Interculturalidade e educação escolar. In: CANDAU, Vera Maria. Reinventar a escola.
Petrópolis: Vozes, 2000.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 4a.ed. São
Paulo: Cortez, 2003.
SOARES, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 17ª. ed. São Paulo: Ática, 2000.
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