Transplante Renal em Pacientes com Deficiência Intelectual

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Artigo Original
Transplante Renal em Pacientes com Deficiência Intelectual Acentuada
Renal Transplantation in Patients with Profound Intellectual Disability
Gustavo Antunes Dib (in memorian), José Osmar Medina Pestana
Departamento de Medicina, Disciplina de Nefrologia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - Brasil
Instituição onde o trabalho foi realizado: Hospital do Rim e Hipertensão – Órgão Suplementar da UNIFESP - Brasil
Trabalho baseado na tese de mestrado de Gustavo Antunes Dib no programa de pós-graduação em Nefrologia da
Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil, 2008. Transplante renal em pacientes com deficiência
intelectual acentuada.
RESUMO
Introdução: O déficit intelectual em portadores de insuficiência renal crônica é considerado uma contra-indicação relativa ao transplante renal, e não
existem publicações referentes a grande série de pacientes transplantados nesta situação. Apenas uma pequena fração dos pacientes renais crônicos
portadores de deficiência intelectual é atualmente selecionada para receber o transplante renal, restringindo muito a experiência mundial no manejo destes
pacientes. Assim, analisamos os resultados clínicos de 16 portadores de deficiência intelectual transplantados no período entre 01/01/1997 a 31/12/2006
no Hospital do Rim e Hipertensão. Método: Estudo de caso controle, com análise retrospectiva de 16 receptores de transplante renal portadores de
deficiência intelectual e de 83 controles sem deficiência intelectual. Resultados: As taxas de sobrevida de 5 anos do enxerto foram semelhantes nos dois
grupos (81,2% vs. 80,2%, p=0,9) bem como a sobrevida do enxerto livre de rejeição aguda (75% vs. 66,6%, p=0,79). Os portadores de deficiência intelectual
apresentaram maior número de infecções que necessitaram tratamento intra-hospitalar (2,1 ± 2,2 vs. 0,9 ± 1,3, p<0,05), entretanto não foram identificados
fatores de risco em associação significante com esta complicação. A função renal foi semelhante nos dois grupos durante todo o período de seguimento,
enquanto a sobrevida de 5 anos do paciente com deficiência intelectual foi menor (81,2% vs. 97,4%, p< 0,05). Conclusões: Embora pacientes portadores
de deficiência intelectual apresentem menor sobrevida em longo prazo, os resultados equivalentes quanto a sobrevida do enxerto, e manutenção da função
renal, indicam que os parâmetros para indicação do transplante em portadores de deficiência intelectual não devem ser distintos daqueles utilizados na
população geral.
Descritores: Transplante de rim. Pessoas com deficiência mental. Rejeição de enxerto. Análise de sobrevida. Estudos de casos e controles. Modelos
logísticos.
ABSTRACT
Introduction: Intellectual disability in chronic renal failure patients is considered a relative contraindication for kidney transplantation, and there is no
published papers analyzing a significant number of kidney transplant recipients in this situation. Only a reduced proportion of chronic renal failure patients
with intellectual disability are currently selected for kidney transplantation, limiting the worldwide experience in the management of these patients. Thus, we
analyzed the results of 16 kidney transplantation in patients with intellectual disability performed at Hospital do rim e Hipertensão between 01/01/1997 and
12/31/2006. Methods: This is a case-control study, with a retrospective analysis of 16 recipients of kidney transplantation with intellectual disability and 83
control recipients without intellectual disability. Results: The 5-year graft survival was similar in both groups (81.2% vs. 80.2%, p=0.9) as well as the survival
free of acute rejection episodes (75% vs. 66.6%, p=0.79). Recipients with intellectual disability had more infection episodes requiring intra-hospital treatment
(2.1 ± 2.2 vs. 0.9 ± 1.3, p<0.05), but no risk factors were identified with significant association with this complication. Renal function was similar in both groups
during follow up , whereas the 5-year survival was lower among recipients with intellectual disability (81.2% vs. 97.4%, p=<0.05). Conclusions: Although
recipients with intellectual disability have lower long-term survival, similar results were found for graft survival and stability of renal function. These findings
suggest that the same parameters should be used to indicate renal transplantation in recipients with intellectual disability and in general population.
Keywords: Kidney transplantation. Mentally disabled persons. Graft rejection. Survival analysis. Case-control studies. Logistic models.
Recebido em 01/08/08 / Aprovado em 02/09/08
Endereço para correspondência:
José O. Medina-Pestana
Hospital do Rim e Hipertensão
Rua Borges Lagoa, 960, 11° andar, Vila Clementino
04038-002, São Paulo, SP, Brasil
E-mail: [email protected]
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INTRODUÇÃO
Déficit intelectual corresponde a uma anormalidade do desenvolvimento cerebral, de início na infância,
caracterizada por deficiências nas habilidades cognitivas
e adaptativas1. A prevalência do déficit intelectual na população geral é de 1,49%2. Síndromes genéticas e aberrações cromossômicas são as principais causas de deficiência intelectual e podem ser responsáveis também por
anormalidades congênitas do trato urinário e desenvolvimento de insuficiência renal crônica (IRC) terminal3.
A mortalidade de crianças portadoras de deficiência intelectual é geralmente elevada, sendo genericamente relacionada ao grau de imobilidade física, à
impossibilidade de comer sem assistência, à severidade
do déficit cognitivo4 e, especificamente, a outras comorbidades como a IRC.
Embora o transplante renal seja o tratamento de
escolha para a IRC5,6, a maioria dos pacientes portadores
de deficiência intelectual recebe diálise peritoneal e
apenas uma pequena proporção deles é incluída em listas
de espera para transplante7. Nos relatos de Ohta e cols. e
de Baqi e cols., são observados resultados adequados de
transplante renal nestes pacientes8,9. A maioria dos
transplantes com doadores vivos mencionados foi realizada tendo como doadores um dos pais, sendo observado
um forte benefício afetivo, também para os doadores,
além do ganho na qualidade de vida e diminuição do
estresse relacionado à não-aceitação do processo repetitivo da diálise, seja ela peritoneal ou hemodiálise.
Convivendo com esta situação nestes pacientes
estudados, registramos que o perfil de relação afetiva com
os pais e familiares é mais intenso do que o observado
com indivíduos não deficientes, talvez relacionado ao seu
comportamento muito sincero, desprovido de aborrecimento ou tédio sustentado, cobiça ou mania de possuir
coisas ou bens, e também ao seu comportamento que não
inclui ódio na forma de rancor, ou a reconstituição repetitiva de experiências pregressas negativas do relacionamento interpessoal. Entendemos que o deficiente intelectual
provido de suporte familiar deve ter as mesmas opções e
oportunidades de tratamento, e aqui descrevemos a
experiência com transplante renal nesta situação nos
últimos dez anos.
MÉTODOS
Todos os pacientes portadores de deficiência
intelectual transplantados na Unidade de Transplante Renal do
Hospital do Rim e Hipertensão – Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP), entre os meses de janeiro de 1997 e
dezembro de 2006, foram incluídos neste estudo. O projeto de
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pesquisa foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da UNIFESP. Todos os responsáveis pelos pacientes
assinaram o termo de consentimento livre e informado para a
participação no estudo.
Pacientes
Deficiência intelectual foi definida como a presença de
função intelectual significativamente abaixo da média observada na população geral e déficit concomitante da função
adaptativa, ambos iniciados antes dos 18 anos de idade,
conforme preconiza a Associação Americana das Deficiências
Intelectual e do Desenvolvimento1.
Todos os pacientes analisados apresentaram deficiência
intelectual acentuada, sem alcançar nível para alfabetização. A
deficiência intelectual, por si só, não foi utilizada como critério
para contra-indicação ao transplante renal, nem sua etiologia ou
a existência de malformações congênitas associadas. A
incapacidade de tomar medicações por via oral, mesmo sob
supervisão de um cuidador, ou a inexistência de assistência
familiar ou voluntária foram consideradas contra-indicação para
o transplante. A avaliação clínica de receptores e doadores, a
técnica operatória e o acompanhamento no período póstransplante foram previamente detalhados10.
Desenho do estudo e coleta de dados
Estudo retrospectivo, do tipo caso-controle, que analisou os resultados do transplante renal entre receptores com
deficiência intelectual, comparando-os com receptores sem
deficiência intelectual. A estratégia de pareamento utilizada foi
a de selecionar quatro controles para cada caso, de acordo com
a idade do receptor e a data do transplante.
O intervalo de tolerância fixado para a idade do
receptor foi de ± 4 anos e, para a data do transplante, de ± 30
dias. As informações sobre cada paciente e seus respectivos
controles foram obtidas com revisões das avaliações clínicas
realizadas nos prontuários médicos até agosto de 2007. Os
desfechos clínicos primários analisados foram a sobrevida do
enxerto e a sobrevida do paciente. Como desfechos clínicos
secundários foram também analisados os tempos de sobrevida
livre de rejeição aguda (RA), as incidências de doenças
linfoproliferativas pós-transplante (DLPT), estenose de artéria
renal (EAR), diabetes mellitus pós-transplante (DMPT),
infecções e má aderência ao tratamento, bem como a evolução
da função renal.
Todos os casos de RA e DLPT foram confirmados histologicamente. A EAR foi definida como a presença de obstrução
de mais de 70% da luz vascular observada na arteriografia renal.
O DMPT foi definido como a necessidade de iniciar medicação
hipoglicemiante por via oral e/ou insulina após o transplante. Os
eventos infecciosos analisados foram aqueles que necessitaram
de tratamento intra-hospitalar por período superior a 48 horas. O
método utilizado para a estimativa da função renal foi o
proposto por Crockoft e Gault11.
As variáveis estudadas foram: idade, sexo, causa da
deficiência intelectual, causa da insuficiência renal, tipo de
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diálise, tempo de diálise, tipo de doador, compatibilidade HLA
com o doador, tempo de isquemia fria, número de transfusões
pré-transplante, porcentagem de reatividade contra painel, tipo
de imunossupressão e ocorrência de retardo de função do
enxerto.
A compatibilidade HLA com o doador vivo foi definida
como idêntica quando o doador apresentava os haplótipos HLA
A, B e DR compatíveis com o receptor, haploidêntica quando
até dois destes haplótipos eram compatíveis com o receptor e
distinta quando o doador não compartilhava estes haplótipos
HLA com o receptor. O retardo de função do enxerto foi definido como a necessidade de terapia dialítica na primeira semana
após o transplante.
Imunossupressão
Ambos os grupos receberam imunossupressão tríplice,
incluindo um inibidor de calcineurina [ciclosporina (CSA)
8–12mg/kg/dia ou tacrolimo (TAC) 0,15-0,3mg/kg/dia],
prednisona (PRED) (0,5mg/kg/dia reduzida progressivamente a
0,25mg/kg/dia ao final de quatro meses e a 0,20mg/kg/dia ao
final de seis meses) e uma droga adjuvante [azatioprina (AZA)
1,5-2mg/kg/dia ou micofenolato mofetil (MMF) 2g/dia ou
sirolimo (SRL) 6-15mg/dia reduzida a 2-5mg/dia ao final de
uma semana].
A prescrição de terapia de indução com anticorpos antiIL-2R (basiliximab) e a readequação das doses dos demais
imunossupressores orais foram indicadas de acordo com
critérios padronizados pela instituição10. O tratamento com os
inibidores de calcineurina foi monitorado através de medidas
dos níveis séricos de 12 horas. O monitoramento das concentrações séricas dos inibidores de calcineurina foi também utilizado
como indicador de má aderência. Concentrações de CSA ou
TAC inferiores a 30ng/mL ou a 1,5ng/mL, respectivamente,
caracterizaram má aderência, bem como na ocasião em que os
pacientes deixaram de comparecer a mais de 20% das avaliações
médicas ambulatoriais previamente agendadas.
Análise estatística
As variáveis categóricas relacionadas às características
demográficas dos receptores, às incidências de DLPT, EAR,
DMPT, infecções e à má aderência ao tratamento foram comparadas entre os dois grupos utilizando o teste do qui-quadrado
ou o teste exato de Fischer, dependendo do número de observações. As variáveis numéricas foram comparadas utilizando-se
o teste t de Student. Os valores das estimativas da função renal
foram comparados entre os dois grupos utilizando a análise de
variância de medidas repetidas. O método de Kaplan-Meier foi
utilizado para análises univariadas de sobrevida do enxerto,
sobrevida do paciente e sobrevida livre de rejeição aguda.
A verificação das diferenças entre as curvas de
sobrevida foi feita empregando as comparações de log-rank.
Análises de regressão logística simples e múltipla foram
também utilizadas para estimar a contribuição das variáveis,
imunossupressão com AZA ou MMF e SRL, CSA ou TAC,
utilização de terapia de indução, ocorrência de retardo de função
do enxerto e a presença do déficit intelectual sobre o risco de
infecção após o transplante. Um valor de p<0,05 foi considerado
estatisticamente significativo.
RESULTADOS
Características dos pacientes
A idade no momento do transplante, a etiologia da
deficiência intelectual, a causa da insuficiência renal
crônica e as comorbidades identificadas em cada um dos
16 pacientes estudados são mostradas na Tabela 1. A
média de idade foi de 15 ± 8,7 anos (2 – 40 anos).
A síndrome de Down foi responsável pela
etiologia da deficiência intelectual em quatro pacientes
(25%), seguida por paralisia cerebral em três pacientes
Tabela 1. Características clínicas dos pacientes portadores de deficiência intelectual e sua etiologia.
Paciente (nº)
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
Idade (anos)
17
9
6
6
10
21
2
14
16
19
16
9
17
20
19
40
Etiologia da deficiência intelectual l
Doença de Wilson
Síndrome de Robinow
Paralisia cerebral
Duplicação do cromossomo 2
Síndrome de Lesh-Nyhan
Síndrome de Down
Paralisia cerebral
Cistinose
Síndrome de Down
Paralisia cerebral
Síndrome de Down
Malformação cerebral
Malformação cerebral
Monossomia do cromossomo 9
Malformação cerebral
Síndrome de Down
Causa da insuficiência renal
Indeterminada
Indeterminada
Válvula de uretra posterior
Refluxo Vesicoureteral
Indeterminada
Indeterminada
Síndrome Hemolítico-Urêmica
Cistinose
Refluxo Vesicoureteral
Indeterminada
Glomeruloesclerose segmentar e focal
Indeterminada
Síndrome nefrótica
Refluxo Vesicoureteral
Indeterminada
Indeterminada
Comorbidades
Rim hipoplásico
Vesicostomia
Hepatite B e C, gota
Hepatite B
Ampliação vesical
Acesso vascular precário
Esplenectomia
Cardiopatia cianótica
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(18,7%), doença de Wilson em um paciente (6,25%),
síndrome de Robinow em um paciente (6,25%), duplicação do cromossomo 2 em um paciente (6,25%),
síndrome de Lesh-Nyhan em um paciente (6,25%),
cistinose em um paciente (6,25%), monossomia do
cromossomo 9 em um paciente (6,25%) e malformação
cerebral não especificamente categorizada em três
pacientes (18,7%).
As causas da insuficiência renal foram: refluxo
vesicoureteral em três pacientes (18,7%), válvula de uretra
posterior em um paciente (6,25%), síndrome hemolíticourêmica em um paciente (6,25%), cistinose em um paciente (6,25%), glomeruloesclerose segmentar e focal em um
paciente (6,25%), síndrome nefrótica sem diagnóstico
histológico em um paciente (6,25%) e indeterminada em
oito pacientes (50%).
Comorbidades foram identificadas em oito pacientes (50%), enumerando-se uma para cada um destes
(6,25%), a saber: rim hipoplásico, vesicostomia, hepatite
por vírus B, gota e co-infecção por vírus B e C, antecedente de ampliação vesical, precariedade de acesso
vascular para hemodiálise, esplenectomia e antecedente
de cardiopatia cianótica corrigida.
As características demográficas dos pacientes em
ambos os grupos são mostradas na Tabela 2. Os pacientes e
o grupo controle não apresentaram diferenças significativas
quanto à idade em anos (15 ± 8,7 vs. 20 ± 9,8, p=0,054), ao
sexo (75% do sexo masculino vs. 52%, p=0,09), ao tempo
em diálise em meses (32 ± 24 vs. 22 ± 25, p=0,17), à compatibilidade HLA com o doador entre os receptores de transplantes com doadores vivos (haploidêntica 100% vs. 86%,
p=1,0), ao tempo de isquemia fria em horas (18 ± 6,9 vs.
19±7,3, p=0,93), à ocorrência de retardo de função do enxerto
(25% vs. 85%, p=0,18), à reatividade contra painel (8 ± 17,9%
vs. 8 ± 21,4%, p=0,91), à utilização de imunossupressão de
indução com basiliximab (50% vs. 41%, p=0,58) e quanto
à utilização dos dois diferentes inibidores de calcineurina
(CSA /TAC) (50%/50% vs. 46%/54%, p=0,79).
Os pacientes com deficiência intelectual foram tratados com diálise peritoneal com freqüência significativamente maior do que os controles (57% vs. 18%, p<0,05),
receberam principalmente rins de doadores falecidos
(75% vs 41%, p<0,05), foram submetidos a maior número
de transfusões sangüíneas antes do transplante (6 ± 7,2 vs.
3 ± 3,8, p<0,05) e receberam exclusivamente AZA como
droga imunossupressora adjuvante (100% vs 68%, p<0,05).
Tabela 2. Características demográficas dos 16 pacientes portadores de deficiência intelectual e dos 83 controles.
Idade (anos)
Sexo Feminino / Masculino
Tipo de diálise
Hemodiálise
Diálise Peritoneal
Tratamento Conservador
Tempo de diálise (meses)
Tipo de doador
Vivo
Falecido
Compatibilidade HLA com o doador vivo*
Idêntica
Haploidêntica
Nenhuma
Tempo de isquemia fria (horas)
Função tardia do enxerto
Transfusões de sangue antes do transplante (n)
Anticorpos reativos contra painel
Imunossupressão
Indução com basiliximab
Inibidor da calcineurina
Ciclosporina
Tacrolimo
Droga adjuvante
Azatioprina
Micofenolato mofetil
Sirolimo
Com deficiência intelectual
n=16
15 ± 8,7
Sem deficiência intelectual
n=83
20 ± 9,8
4 (25%) / 12 (75%)
40 (48%) / 43 (52%)
5 (31%)
9 (56%)
2 (12%)
32 ± 24
58 (70%)
15 (18%)
10 (12%)
22 ± 25
4 (25%)
12 (75%)
49 (59%)
34 (41%)
0
16 (100%)
0
18 ± 6,9
4 (25%)
6 ± 7,2
8 ± 17,9
10 (12%)
71 (86%)
2 (2%)
19 ± 7,3
70 (85%)
3 ± 3,8
8 ± 21,4
8 (50%)
34 (41%)
8 (50%)
8 (50%)
38 (46%)
45 (54%)
16 (100%)
0
0
56 (68%)
22 (26%)
5 (6%)
p
0,05
0,09
<0,05
0,17
<0,05
1,0
0,93
0,18
<0,05
0,91
0,58
0,79
<0,05
*Compatibilidade HLA: Idêntica, haplótipos HLA A, B e DR do doador compatíveis com os do receptor; Haploidêntica, compatibilidade em até dois destes
haplótipos; Distinta, nenhuma compatibilidade entre estes haplótipos.
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Análises de sobrevida
As curvas de sobrevida do paciente e do enxerto,
incluindo todas as perdas, e do enxerto, censurando o
óbito com o rim funcionando, são mostradas na Figura 1.
As taxas de sobrevida do paciente cinco e dez anos após
o transplante foram significativamente menores entre os
pacientes com deficiência intelectual do que as
apresentadas pelo grupo controle: 81,25% e 72,22% vs
97,37% e 97,37% respectivamente, p<0,05.
Durante o período de seguimento, quatro (25%)
pacientes faleceram, todos eles devido a causas
infecciosas. Entre os controles, foi registrado apenas um
óbito (1,2%). Os pacientes com deficiência intelectual
apresentaram taxas de sobrevida do enxerto cinco e dez
anos após o transplante semelhantes às apresentadas pelo
grupo controle: 81,2% e 72,2% vs. 80,2% e 68,59%
respectivamente, p=0,97.
Todos os pacientes com deficiência intelectual que
sobreviveram durante o período de observação
permaneceram com seus enxertos funcionando, enquanto,
no grupo controle, foram registradas 14 (16,8%) perdas
de enxertos. A análise da sobrevida do enxerto, excluindo
as perdas atribuídas ao óbito do paciente com o rim
funcionando, mostrou taxas de sobrevida do enxerto
cinco e dez anos após o transplante de 100% e 100% vs
82,2% e 70,4%, respectivamente, comparando o grupo de
pacientes portadores de deficiência intelectual com o
grupo controle, p=0,05.
A Figura 1 mostra que os receptores do grupo
controle apresentaram maior incidência de rejeição aguda
e ocorrência mais precoce deste evento, entretanto sem
alcançar diferença estatística. As sobrevidas livres de
rejeição aguda cinco e dez anos após o transplante foram
75% e 75% vs. 66,6% e 66,6%, respectivamente, entre os
pacientes e os controles (p=0,79).
Complicações após o transplante
As complicações após o transplante são mostradas
na Tabela 3. Os pacientes portadores de deficiência
intelectual apresentaram maior número médio de
episódios de infecções com necessidade de tratamento
intra-hospitalar e a diferença observada foi estatisticamente significativa (2,1 ± 2,2 vs. 0,9 ± 1,3, no grupo
controle - p<0,05). Por outro lado, não foram observadas
Figura 1. Curvas de sobrevida do paciente (A), do enxerto, incluindo-se todas as perdas (B), do enxerto, censurando-se o óbito com o
rim funcionando (C) e sobrevida livre de rejeição aguda (D) entre receptores de transplante renal com e sem deficiência intelectual.
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diferenças significativas com relação às incidências de
EAR (6,3% vs. 13,3%, p=0,43), DLPT (6,3% vs. 2,4%,
p=0,41) e DMPT (0% vs. 6%, p=0,58). A aderência ao
tratamento, conforme definida em métodos, foi 100%
entre os portadores de deficiência intelectual e 94% entre
os pacientes do grupo controle (p=0,58).
As análises de regressão logística dos fatores de
risco para o desenvolvimento de infecções após o
transplante são mostradas na Tabela 4. Tanto a análise
univariada quanto a multivariada não identificaram
correlação significativa entre os fatores de risco estudados
e a maior incidência de infecções observada entre os
pacientes com deficiência intelectual.
deficiência intelectual severa não seja considerada contraindicação ao transplante renal quando adequada assistência e suporte social estiverem assegurados12, o número de
transplantes realizados com estes pacientes não aumentou
significativamente nos últimos anos, prevalecendo argumentações éticas de caráter utilitário contrárias à alocação de
rins de doadores falecidos para estes pacientes8,13.
A sobrevida do paciente transplantado renal
portador de deficiência intelectual tem sido comparável a
dos demais receptores. Benedetti e cols., analisando sete
transplantes realizados em um único centro - cinco
receptores de rins de doadores falecidos e um de doador
vivo -, observaram 100% de sobrevida do paciente cinco
anos após o transplante14.
No Japão, uma análise multicêntrica, reunindo 25
transplantes renais, a maioria dos quais (23) com doadores
vivos, também alcançou 100% de sobrevida do paciente
cinco anos após o transplante, comparado com grupo
controle com 164 receptores com sobrevida de cinco anos
de 98,2%8. A seleção de candidatos com disponibilidade
de adequado suporte familiar ou institucional foi criticamente importante para os bons resultados observados em
ambos os estudos.
De acordo com o registro Norte Americano UNOS,
a sobrevida do paciente entre receptores sem deficiência
intelectual, cinco anos após o transplante, é de 85,2% para
transplantes com doadores falecidos e de 92% com doadores vivos15. Na população de transplantados de nossa
instituição, a sobrevida de três anos foi de respectivamente
86,7% e 96,3% em 2.461 pacientes analisados até 200310.
Função renal
A evolução da função renal dos pacientes com
deficiência intelectual durante o período de observação
após o transplante foi comparável à dos pacientes do
grupo controle. Ao final de cinco anos após o transplante,
os valores médios das estimativas dos clearances de
creatinina foram respectivamente de 62 ± 3,3mL/min e 62
± 6,1mL/min, p=0,93.
DISCUSSÃO
O transplante renal ainda não é amplamente aceito
como a melhor opção terapêutica para os pacientes renais
crônicos portadores de deficiência intelectual. Embora a
Tabela 3. Complicações após o transplante entre 16 pacientes portadores de deficiência intelectual e 83 controles.
Infecções (número por paciente)
Estenose da artéria renal
Com deficiência intelectual
n=16
2,1 ± 2,22
1 (6,3%)
Sem deficiência intelectual
n=83
0,95 ± 1,35
11 (13,3%)
<0,05
0,43
1 (6,3%)
2 (2,4%)
0,41
0
5 (6%)
0,59
16 (100%)
78 (94%)
0,59
Doença linfoproliferativa após o transplante
Diabetes mellitus após o transplante
Aderência ao tratamento
p
Tabela 4. Fatores de risco para infecção após o transplante renal.
Análise univariada
RR (IC 95%)
P
Imunossupressão
Drogas adjuvantes*
Inibidores de calcineurina+
Terapia de indução±
1,98 (1,31 - 12,6)
1,59 (0,14 - 7,52)
0,85 (0,38 - 1,90)
0,48
0,97
0,70
Análise multivariada
RR (IC 95%)
p
0,25 (0,03 - 1,77)
2,48 (0,59 - 10,31)
0,30 (0,06 - 1,34)
0,18
0,21
0,11
Função tardia do enxerto
0,38 (0,11 - 1,38)
0,14
0,26 (0,05 - 1,22)
0,09
Déficit Intelectual
0,31 (0,09 - 1,04)
0,06
0,21 (0,03 - 1,16)
0,07
*Drogas adjuvantes, AZA ou MMF e SRL; +Inibidores de calcineurina, CSA ou TAC; AZA, ±Terapia de indução, anti-IL-2R; AZA, azatioprina; MMF,
micofenolato mofetil; SRL, sirolimo; CSA, ciclosporina; TAC, tacrolimo; RR, risco relativo; IC, intervalo de confiança.
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Neste estudo caso controle, em que avaliamos 16
receptores portadores de deficiência intelectual e 83
controles, a sobrevida do paciente cinco anos após o
transplante foi de 81,2% e, no grupo controle, de 97,4%.
As possíveis causas de evolução inferior do transplante
renal em portadores de deficiência intelectual são
múltiplas e interdependentes. As alterações genéticas
predispõem à maior incidência de neoplasias16 e o uso
concomitante de imunossupressão contribui também com
este risco17, bem como com o de infecções18.
Neste estudo, os portadores de deficiência
intelectual apresentaram número significativamente maior
de episódios de infecções do que o grupo controle, porém
sem diferença estatística nas incidências de doenças
linfoproliferativas. Embora tenham recebido imunossupressão teoricamente menos potente (nenhum dos
pacientes portadores de deficiência intelectual recebeu
MMF ou SRL), todos os quatro óbitos observados entre
os portadores de deficiência intelectual foram atribuídos a
causas infecciosas. O foco infeccioso foi proveniente do
trato urinário em dois pacientes que apresentavam
anormalidades anatômicas prévias da via excretora, e foi
indeterminado nos outros dois. Todos apresentaram
evolução clínica rápida para choque séptico irreversível.
Estas observações podem sugerir um perfil de resposta
imune menos intensa entre os portadores de deficiência
intelectual do que no grupo controle ou ainda uma maior
exposição a fatores de risco associados a infecções mais
graves.
Nesse sentido, o comprometimento numérico e
funcional de populações celulares específicas com
prejuízo significativo das imunidades inata e adaptativa é
evidente em crianças portadoras de síndrome de
Down19,20, indicando que um monitoramento mais
apropriado dos níveis terapêuticos dos agentes imunossupressores e o diagnóstico precoce de infecções podem
beneficiar esta população. Entretanto, relação causal
direta entre os episódios infecciosos e as taxas de
sobrevida dos pacientes não pôde ser estabelecida, e a
análise de regressão logística não identificou associação
entre o tipo de droga imunossupressora ou o uso de
terapia de indução e o risco de infecções.
Também a presença de função tardia do enxerto,
habitualmente associada com maior tempo de permanência no hospital, não foi um fator preditivo do risco de
infecção. Estes achados indicam que cuidados e medidas
específicas devem ser estudados e aplicados a estes
pacientes buscando reduzir sua mortalidade4.
Destacamos a ocorrência de menor incidência de
rejeição aguda, bem como o maior tempo de sobrevida
livre de rejeição aguda no grupo de pacientes com
deficiência intelectual. Além de fatores relacionados à
possível redução da intensidade da resposta imune em
deficiente intelectuais19,20, este achado também deve estar
relacionado a observações relatadas anteriormente14, e
também constatadas neste estudo, como, por exemplo, de
que a má aderência ao tratamento neste grupo de pacientes é muito rara e possivelmente relacionada à atuação do
cuidador e aos hábitos rotineiros pouco mutáveis e
domésticos destes pacientes.
A maioria dos pacientes portadores de deficiência
intelectual incluídos neste estudo recebeu enxertos renais
provenientes de doadores falecidos, obtendo sobrevida de
cinco anos do enxerto de 81,2%, comparados com
receptores sem deficiência intelectual que apresentam
sobrevida de cinco anos ao redor de 70%15.
Esta taxa de sobrevida em longo prazo do enxerto
observada entre os receptores com deficiência intelectual
foi acompanhada por manutenção de um nível adequado
de função renal do enxerto e também semelhante à do
grupo controle durante todo o período de observação.
Portanto, apesar de o tempo de sobrevida dos pacientes
portadores de deficiência intelectual em nosso estudo ter
sido menor após o transplante renal que o observado no
grupo controle, as taxas de sobrevida do enxerto e a
função renal em longo prazo, equivalentes às dos
receptores sem deficiência intelectual, reforçam a
indicação do transplante renal como opção segura para o
tratamento da IRC em pacientes portadores de deficiência
intelectual.
Os resultados deste estudo apresentam uma
contribuição a questões relacionadas ao transplante em
pacientes com déficit intelectual, oferecendo dados que
indicam que o transplante renal pode beneficiar este
grupo especifico, sendo que a diferença nos resultados
não mostra a imposição de restrições relacionadas ao
déficit intelectual. A consideração subseqüente pode ser
de que: a necessidade de dependência de um cuidador em
tempo integral, na maioria das vezes a mãe, e a
dependência econômica de uma única fonte de trabalho,
geralmente o pai, e a grande sobrecarga laboral e
emocional adicionada pelo procedimento dialítico podem
indicar que estes pacientes devam ser de alguma forma
priorizados na lista de candidatos a transplante com
doador falecido.
AGRADECIMENTOS
Especial agradecimento ao Dr. Nelson Zocoler
Galante pela valiosa contribuição na organização, análise
e interpretação dos dados e também pelos criteriosos
desenho e revisão final do manuscrito.
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Transplante Renal e Deficiência Intelectual
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