REH Revista Eletrônica Estudos Hegelianos (Revista Semestral da Sociedade Hegel Brasileira - SHB) Natureza em Hegel - I Ano 6 nº 11 , Dezembro – 2009 ISSN 1980-8372 Expediente Revista Eletrônica Estudos Hegelianos - ISSN 1980-8372 Sociedade Hegel Brasileira – SHB Sede da SHB: Av. Acad. Hélio Ramos, s/n - 15º andar - Cidade Universitária CEP 50740-530 RECIFE - PE (Depto. Filosofia-UFPE) Redação: Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Goiás, sito Campus Samambaia, Cx. Postal 131, Goiânia-GO, CEP: 74001-970 - Tel: (62) 3521-1129 ( A/C Prof. Hans Christian Klotz) Editor: Prof. Hans Christian Klotz (UFG-GO) Conselho editorial Alfredo de Oliveira Moraes (UFPE), Agemir Bavaresco (PUCRS), Denis Lerrer Rosenfield (UFRGS), Draiton Gonzaga de Souza (PUCRS), Marcos Lutz Müller (UNICAMP), Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR), Marly Carvalho Soares (UECE), Paulo Gaspar Meneses (UNICAP), Konrad Christoph Utz (UFC) Conselho científico Diogo Falcão Ferrer (Universidade de Coimbra), Edmundo Balsemão Pires (Universidade de Coimbra), Jean-Claude Bourdin (Université de Poitiers), Jean-Louis Vieillard-Baron (Université de Poitiers), José Pinheiro Pertille (UFRGS), Hans-Christian Klotz (UFG), Leonardo Alves Vieira (UFMG), Manfredo Araújo de Oliveira (UFC), Marco Aurélio Werle (USP), Silvio Rosa (UNIFESP), Miguel Giusti (PUC-Peru), Marcelo Fernandes de Aquino (UNISINOS), Jean-François Kervégan (Université Patheon-Sorbonne - Paris I) Secretário de edição/Diagramação: Danilo Vaz-Curado R.M. Costa (UFRGS - Grupo NEHGL-RS) Capa: Matheus Barreto Pazos de Oliveira Editor de web: Danilo Vaz-Curado R.M. Costa (UFRGS - Grupo NEHGL-RS) Revisão: Hans Christian Klotz (UFG-GO); Danilo Vaz-Curado R.M. Costa (UFRGS). Indexação: QUALIS, Capes, Brasil; LATINDEX, México; SUMÁRIOS, Funpec-RP, Brasil; DIALNET, Espanha. Materiais assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, assim como as idéias e conceitos expressos nos mesmos ou as figuras e imagens aí utilizadas. SUMÁRIO Editorial Christian Klotz..................................................................................................................5 Artigos O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis Alfredo de Oliveira Moraes.............................................................................................7 A Natureza: Promissão, Promessa e Promoção do Espírito Bernard Bourgeois.........................................................................................................19 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer...................................................................................................................32 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch.....................................................................................................57 A Natureza como Objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse ............................................................................................................74 Comienzo, Concepto y Método como Antecendentes del Tránsito de la Idea a la Naturaleza Jorge Eduardo Fernandez.............................................................................................96 A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel Márcia Gonçalves..........................................................................................................113 A Divisão da Ciência da Natureza na Enciclopédia Filosófica para Classe Superior (1808 s.) Marcos Fábio Alexandre Nicolau.................................................................................125 Normas de submissão (Versão resumida)...................................................................134 Editorial O presente número da Revista Estudos Hegelianos reúne contribuições do V Congresso Internacional da Sociedade Hegel Brasileira, que foi realizado nos dias 28 de setembro até 2 de outubro de 2009 em Fortaleza, sob o título “A noiva do Espírito: Natureza em Hegel”. Pesquisadores reconhecidos do Brasil e do exterior enfrentaram o desafio de discutir uma parte do pensamento hegeliano que tem sido negligenciada por muito tempo: sua filosofia da natureza. Pode-se dizer que só em pesquisas mais recentes a significância sistemática do pensamento hegeliano sobre a natureza começou a ser descoberta e sua importância destacada, justamente, por autores que levam em conta o desenvolvimento recente da física e de outras ciências. A questão de em que medida a filosofia hegeliana da natureza pode ser entendida no sentido de uma metafísica da natureza que está implícita na física moderna esteve em foco na palavra de abertura do então presidente da Sociedade Hegel, Alfredo Moraes, que abre também este número da REH. As contribuições escolhidas para este número discutem aspectos fundamentais da filosofia hegeliana da natureza: sua fundamentação numa “Lógica”, o conteúdo específico do conceito de natureza estabelecido nela, e a estrutura do seu desdobramento interno. A questão da relação entre a Lógica e Filosofia da Natureza envolve, por um lado, o problema do sentido da “passagem” da Lógica para a Filosofia da Natureza e, por outro lado, como as estruturas desenvolvidas na Lógica estão presentes na Filosofia da Natureza. As contribuições de Diogo Ferrer e Jorge Fernández tratam dessas questões. A noção de que a ideia absoluta, ou seja, a totalidade que é o resultado de todo o desdobramento da Lógica, é, ao mesmo tempo, um novo começo, está em foco no trabalho de Fernandez. Conforme o autor argumenta, entender essa concepção exige considerar a correspondência entre o movimento do começo da Lógica – a negação do “ser” -, e a passagem da ideia para a natureza, na qual se revelaria a estrutura circular do pensamento hegeliano. Diogo Ferrer aborda a presença das estruturas da Lógica na Filosofia da Natureza ao analisar o conceito hegeliano de “vida” no seu nível lógico e natural, destacando o papel do conceito de espécie, que nos dois níveis não seria interpretado de modo essencialista, mas no sentido do universal concreto. O conceito de natureza e a estrutura interna da Filosofia da Natureza de Hegel estão em foco nas contribuições de Gilles Marmasse, Anton Koch, Márcia Gonçalves e Marcos Nicolau. A análise de Marmasse concentra-se na caracterização hegeliana da natureza como exterioridade na qual a unidade do conceito está ausente, mesmo que ela tenda a tal unidade, sendo assim “exterioridade contraditória”. Uma consequência importante disto, enfatizada pelo autor, é que uma filosofia da natureza no sentido de Hegel deve pensar a alteridade da natureza como tal, em vez de extingui-la numa 5 logificação completa. Anton Koch põe o conceito hegeliano de tempo e espaço no contexto de uma problematização da Estética Transcendental de Kant. Segundo a argumentação de Koch, a concepção kantiana do tempo e do espaço como intuições não explica a mediação do tempo e do espaço com nosso pensamento discursivo, a solução deste “enigma” sendo justamente o objetivo da dedução hegeliana de tempo e espaço como conceito na sua exterioridade. Márcia Gonçalves interpreta a Filosofia da Natureza de Hegel como resposta ao projeto de uma física especulativa defendido por Schelling. Segundo a autora, Hegel adota o projeto schellingiano de uma filosofia da natureza que critica o pensamento mecanicista ao reconstruir uma passagem do pensamento mecanicista para a perspectiva organicista, na qual o primeiro se evidencia como delimitado e inadequado. No entanto, o modo como Hegel realiza tal projeto orientar-se-ia por um método diferente, na qual a organicidade da natureza não opera mais como pressuposto imediato. O artigo de Marcos Nicolau discute uma questão acerca do processo de formação da filosofia hegeliana da natureza: na divisão do período em Nuremberg, a primeira seção da filosofia da natureza é a “matemática”, e não a mecânica, como na Enciclopédia. Conforme o autor, entender o porquê dessa mudança na divisão da Filosofia da Natureza é decisivo para compreender o lugar da matemática no pensamento de Hegel. Por fim, a relação intrínseca da natureza com o espírito, que é constitutiva para o próprio conceito hegeliano de natureza, é elucidada na contribuição de Bernard Bourgeois, retomando e aprofundando a metáfora da natureza como ”noiva” do espírito que deu ao congresso seu título. Agradeço ao organizador do V Congresso Internacional da Sociedade Hegel, Konrad Utz, pela sua colaboração. Agradecimentos também aos tradutores: José Pertille, Kleber Amora, Greice Barbieri e Matheus Pelegrino, e a Danilo Vaz-Curado, que cuidou do layout. Espera-se que este número da Revista Estudos Hegelianos contribua para a reatualização da Filosofia da Natureza de Hegel - bem como o próximo número da revista, que vai continuar a publicação de contribuições do congresso dedicadas à mesma temática. Hans Christian Klotz (UFG), Editor 6 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 07-18 O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis Alfredo de Oliveira Moraes* _________________________________________________________________ Resumo: O autor pretende retomar a Filosofia da Natureza de Hegel e à luz das contribuições da ciência atual, notadamente da física, repropor a necessidade de uma leitura do texto hegeliano desde a perspectiva de uma Metafísica de base nãomaterial, suas implicações e desdobramentos. Palavras-chave: metafísica de base não-material, physis, logos. Abstract: The author intends to resume Hegel’s philosophy of nature in the light of the contributions of actual science, especially of physics, and to offer a new reading of the hegelian text, its consequences and implications, from the perspective of a metaphysics founded on a non-material basis. Key-words: metaphysics on a non-material basis, physis, logos. __________________________________________________________________ “La nature et l’histoire sont la manifestation de l’absolu dans l’espace et dans le temps, mais cet Absolu se pense lui-même comme Logos; il se sait lui-même; ce Logos n’est pas un entendement divin qui existerait ailleurs dans un autre monde, il est dans la réalité humaine la lumière de l’Être.” Jean Hyppolite. (1990, p.232) A Filosofia da Natureza de Hegel foi a mais grata surpresa que tivemos nos anos de pesquisa de tese doutoral, não porque houvesse em nós qualquer pretensão a subestimar Hegel nesse âmbito particular de seu sistema, mas sim porque havia uma certa unanimidade entre os doutos quanto à sua superação; era no dizer de muitos o ponto obsoleto do pensamento de Hegel. Com efeito, após seu estudo atento pudemos constatar que a compreensão efetiva desse texto e sua relevância somente podiam ser apreendidas numa leitura que tivesse como base uma metafísica de fundamento nãomaterial. E, simultaneamente, veio-nos à mente Nelson Rodrigues que num de seus rompantes disse: toda unanimidade é burra. * Doutor em Filosofia, Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]. REH – Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Jul./Dez. de 2009 N. 11, v.01 pp.07-18 Alfredo de Oliveira Moraes O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis Durante um longo tempo a Filosofia da Natureza de G. W. F. Hegel pareceu nada mais ter a contribuir para a reflexão filosófica sobre a Natureza até que a primeira indicação de que ela tinha ainda muito a oferecer nos veio da Física, quando David Bohm tomando para si a Ciência da Lógica de Hegel escreveu sob seu impacto Causality and Chance in Modern Physics, pois, sabe-se que a Lógica encontra-se suprassumida na Filosofia da Natureza, na qual as suas determinações ganham efetividade e têm aí o seu desdobramento. Na última década do século passado, novas utopias negativas construídas no estofo das descobertas e avanços da ciência evidenciaram a necessidade de reconstrução da Metafísica e, paradoxalmente, nós filósofos e filósofas deixamos nas mãos dos físicos essa tarefa tão grandiosa quanto urgente, mesmo sabendo que eles não estavam preparados para tal desafio. Os físicos já estão fartos de afirmar que a matéria do seu saber são conceitos, nem nos laboratórios nem nas dimensões macro-universais eles dispõem de matéria no antigo sentido estrito do termo; E=mc² essa equação de Einstein nos desafia a encontrar uma nova base de compreensão do “mundo material” atualmente mais adequadamente denominado de universo visível - e a idéia cibernética de sistema aberto cria nos físicos a necessidade de apreensão dialética dos domínios da física quântica. Como responderemos, nós filósofos e filósofas, a esse desafio? Esse é o vórtice a partir do qual gostaria de apresentar elementos, conceitos e categorias da Filosofia da Natureza de Hegel, como chave de leitura possível para uma abordagem daquilo a que denominamos atualmente por Natureza. Da ingênua compreensão da Natureza a partir de seus elementos macros: terra, ar, água, fogo à descoberta da inexistência do átomo, hoje não só divisível, mas multidivisível, nós nos encontramos em meio a uma Natureza constituída de relações de relações, jogo de forças, implicando na metamorfose do objeto enquanto ‘coisa’ compacta dada aos sentidos, numa compreensão que apresenta o objeto como uma fronteira de padrão discernível e sua conseqüente dissolução das entidades hipostasiadas do sujeito e do objeto. Não é sem razão que se preferiu falar no fim da Metafísica em vez de assumir a árdua tarefa de reconstruí-la, mas se queremos ser sujeitos-partícipes da labuta filosófica ou, o que é o mesmo, afirmamo-nos como homens e mulheres que se ocupam das urgências do seu tempo não podemos deixar de atender a esse desafio, Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 8 Alfredo de Oliveira Moraes O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis temos de encarar o negativo de frente, assumir o espírito em sua verdade e suprassumir as determinações ou negações do presente. Ora, mais precisamente diríamos que a Filosofia da Natureza de Hegel é parte de sua Metafísica, posto que esta não pode ser reduzida à Lógica e muito menos pode ser apreendida como se seus momentos – (Ciência da) Lógica, (Filosofia da) Natureza e (Filosofia do) Espírito – fossem apenas opostos que se superam numa sucessão nãodialética, deixando cada um atrás de si o cadáver da figura precedente; na verdade, são momentos do movimento imanente do ser na efetivação das determinações que o conduzem à plenitude de Si mesmo no conhecimento Absoluto. Apenas para recordar lembremos que o próprio Hegel na Ciência da Lógica da Enciclopédia nos diz que: “A lógica coincide pois com a metafísica, a ciência das coisas apreendidas no pensamento, que passavam por exprimir as essencialidades das coisas. (...) Se considerarmos a Lógica, em conseqüência do que foi dito até agora, como o sistema das puras determinações-de-pensamento, então aparecerão, ao contrário, as outras ciências filosóficas – a filosofia da natureza e a filosofia do espírito – por assim dizer como uma lógica aplicada, pois a lógica é sua alma vivificante.” (Hegel, 1995, p.77,78). Com efeito, não se pode começar de chofre pela Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel, em qualquer de seus volumes, sem passar pelo “pórtico majestoso” (expressão usada pelo saudoso Pe. Vaz para designar a Fenomenologia do Espírito de Hegel), ainda que não se tenha a pretensão de suprassumir as determinações ali presentes, mas ao menos para assumir suas categorias, conceitos e elementos num esforço por alcançar o patamar das exigências do saber. Em certa ocasião enfatizamos que se sobre a Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel, Bernard Bourgeois pôde dizer com acerto que lê-la implica em reescrevê-la, o que constitui um desafio e tanto, da Fenomenologia do Espírito se pode dizer que lê-la implica em refazer internamente o seu percurso, assumindo para si a vivência da experiência que nela faz a consciência, o que constitui um desafio ainda maior. Mas, sem isso não se chega a estar pronto para a Ciência. Na verdade, é imprescindível a presença da Fenomenologia do Espírito numa reflexão sobre a Natureza, pois nela se encontra a chave de leitura da especulação hegeliana que conduz à necessidade de uma nova compreensão da Physis. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 9 Alfredo de Oliveira Moraes O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis É de nosso conhecimento que, de um modo geral, mesmo o “conceito preliminar da ‘Ciência da Lógica’ da Enciclopédia se faz ele mesmo preceder, em sua função de introdução ao ponto de vista filosófico verdadeiro – o do Saber Absoluto -, pela Fenomenologia do Espírito.” (Bourgeois, In Hegel, 1994, p.12). A tese aqui defendida, portanto, nada teria de novo ou original, corresponderia mais adequadamente apenas a uma tentativa de explicitação do ponto de partida da Filosofia da Natureza na Fenomenologia do Espírito. Por conseguinte, teremos de nos ocupar, mesmo que brevemente, do III Capítulo da Fenomenologia para atender às nossas pretensões, ainda que isso implique encarar o desafio de abordar aquele que é considerado por muitos como o mais difícil entre os capítulos dessa obra nada fácil, mas, de leitura imprescindível para quem quer filosofar na Modernidade, ou mais precisamente, na contemporaneidade. No movimento interno da obra vemos o Entendimento emergir da Percepção, mas assinalemos tão somente que “o ponto de vista da percepção é o da consciência comum e, mais ou menos, o das ciências empíricas que elevam o sensível ao universal e mesclam determinações sensíveis com determinações do pensamento sem tomar consciência das contradições que então se manifestam.” (Hegel, In Hyppolite, 1974, p.100). Por conseguinte, interessa-nos mais propriamente começar pela suprassunção da percepção no entendimento. Com efeito, para a percepção tudo é uma coisa, ou como já assinalado no cartesianismo tudo se reduz – a coisa extensa e a coisa pensante. Mas, na tentativa de ab-rogar as contradições e conservar a identidade da coisa, a percepção mais não faz do que lhe atribuir seguidamente determinações de pensamento, e com isso, o que alcança é um universal que terá em si a diferença em vez de ser condicionado por ela; a conseqüência é a necessidade da percepção ir além de si mesma ao adentrar-se na coisa e apreender seu objeto como a força, a lei, a necessidade da lei, o conceito, mas então a Percepção é já Entendimento. Ora, se para a Percepção tudo era uma coisa, o Entendimento se eleva da coisa à causa, ou da coisa à força, considera seu objeto como totalidade dialética da unidade e da multiplicidade, mas ao examinar melhor entende que se trata bem mais de um jogo de forças “de polaridades opostas que, aliás, constata não passar de um fenômeno, através do qual descortina o supra-sensível ou o Interior das coisas.” (Meneses, 1985, Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 10 Alfredo de Oliveira Moraes O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis p.44). Não obstante, a força é somente o conceito, o pensamento do mundo sensível que se manifesta na consciência como o mais além desse mundo, o supra-sensível, e que se transfigura no interior desse mundo num sistema de leis. Tais leis apreendidas na experiência, no entanto, estão para além do fenômeno e, contudo, constituem a sua íntima sustentação. Com efeito, “a consciência experimenta a contingência das leis da Natureza: buscando sua necessidade regressa desde o mundo a si mesma. Primeiramente sua explicação das leis é tautológica, não vê nelas mais que uma necessidade analítica, porém, quando a necessidade se mostra em seu objeto dita necessidade passa a ser sintética. Mundo sensível e mundo supra-sensível, fenômeno e lei, se identificam no conceito verdadeiro, o pensamento do infinito... O infinito ou o conceito absoluto é a relação que se fez viva, a vida universal do absoluto que permanece em seu outro, concilia a identidade analítica e a sintética, o uno e o múltiplo. Nesse momento a consciência do outro se converte em consciência-de-si no outro, no pensamento de uma diferença que já não é diferença. A consciência se alcança a si mesma em seu objeto, é certeza de si, consciência-de-si em sua verdade.” (Hyppolite, 1974, p.116). Destarte, não é outra a razão pela qual Hegel afirma na Fenomenologia, referindo-se ao processo de construção do conhecimento: por trás da assim chamada cortina, que deve cobrir o interior, nada há para ver; a não ser que nós entremos lá dentro – tanto para ver como para que haja algo ali atrás que possa ser visto. (Hegel, 1992, p.118). Esse o ponto, à medida que levemos a sério as contribuições da ciência atual seremos cada vez mais impelidos a admitir que quanto mais penetrarmos compreensivamente na realidade, e aí tanto faz se no domínio micro ou macro-cósmico, alcançaremos sempre um momento no qual a ‘matéria’ do nosso conhecimento é tão somente o conhecimento mesmo ou o conceito; afinal, o que é para nós um ‘buraco branco’? É ainda palpável uma unidade de matéria oriunda da divisão de um Quark? De que falamos nesses domínios, senão de elementos conceituais oriundos de um conhecimento que em todo caso é ainda e sempre construto nosso? Com efeito, desde essa perspectiva, pode-se dizer que a Filosofia da Natureza em Hegel transfigura-se em uma Metafísica da Natureza e constitui o momento da prova cosmológica da existência de Deus, não no sentido de prova como fundamento Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 11 O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis Alfredo de Oliveira Moraes objetivo de Deus, mas no sentido da elevação do espírito finito a Deus, pois na Filosofia da Natureza o Conceito enquanto logos (λογος) se traduz na espiritualização da ordem, daí porque a Natureza não é domínio do kháos (κηάος), mas do kósmos (κόσµος). Hegel se pergunta inicialmente: Que é a natureza? E expressa desde logo sua posição frente a esta questão: Encontramos a natureza como um enigma e problema diante de nós, ante o qual tanto nos sentimos impelidos a resolvê-lo, como dele repelidos; atraídos: o espírito se pressente lá dentro; repelidos: por um estranho no qual o espírito não se encontra. (Hegel, 1992, p.14). Na Filosofia da Natureza, portanto, o logos experimenta estranheza e simesmidade, nesse conhecimento do outro não descobrirá senão a si mesmo, melhor, somente esse percurso do conhecimento que lhe põe fora de si num outro cuja determinação é uma diferença em seu interior, permitirá ao Logos alcançar a verdade de si mesmo. Assegurando, em todo caso, que a sua Filosofia da Natureza não se dissocia das condições empíricas, Hegel, enfatiza: “Principiamos observando, reunimos conhecimento sobre as múltiplas e variadas configurações e leis da natureza; tal processo por si mesmo se prolonga em detalhes sem fim para fora, para cima, para baixo, para dentro; e, justamente, porque não se antevê um fim, tal processo não nos satisfaz.” Assim, Hegel, ressalta a importância e, simultaneamente, aponta a insuficiência das ciências empíricas em atender às exigências de um saber conceitual que se quer expressão do ser do objeto de conhecimento. Insiste Hegel: “Que é a natureza? Ela permanece um problema. Enquanto vemos seus processos e transformações, desejamos compreender sua essência simples, obrigar este Proteu a depor suas transformações e a mostrar-se-nos e a se declarar, de modo que ele não somente nos apresente múltiplas e sempre novas formas, mas de maneira mais simples, na expressão da linguagem, nos traga à consciência o que ele é.” (Hegel, 1995b, p. 14). Esse o ponto ao qual se deve estar atento: a natureza, nessa construção conceitual que é a Filosofia da Natureza hegeliana, não é um outro posto na exterioridade, tampouco numa diferença indiferente, mas enquanto outro de si mesmo do Logos é o próprio Logos no seu ser outro, numa determinação somente possível pela condição dele diferenciar-se em si mesmo, ou seja, apresentar uma diferença no interior de si mesmo. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 12 Alfredo de Oliveira Moraes O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis E, contudo, não se trata de um jogo tautológico do Logos consigo mesmo na elaboração da Idéia, “pois“, citamos Hegel, “devemos apreender a própria Idéia como concreta e assim conhecer e depois resumir suas diversas determinações; para daí obter a idéia, nós necessitamos percorrer uma série de determinações por meio das quais enfim a idéia se faz [vem-a-ser] para nós.” (Hegel, 1995b, p.15). Por conseguinte, à construção do conceito, na Filosofia da Natureza, há de concorrer não só a coisa mesma, mas também o saber produzido pelos outros modos de considerar a natureza. Com efeito, não se trata de que a razão expanda seus domínios sobre a natureza e o espírito finito, mas de que estes são, na realização da verdade que lhes é própria, a idéia mesma nas determinações de sua particularidade efetiva. Ora, esta compreensão conduz Hegel a dividir sua filosofia da natureza do seguinte modo: “A idéia, como natureza, é: I. na determinação do fora-um-do-outro, da infinita singularização, fora da qual está a unidade da forma, está aí como um ideal, só em si essente e portanto só procurada, a matéria e seu sistema ideal – [a] mecânica; II. na determinação da particularidade, de modo que é posta a realidade como determinidade imanente de forma e com a diferença nela existente, uma relação de reflexão, cujo ser-em-si é a individualidade natural – [a] física; III. na determinação da subjetividade, na qual as reais diferenças da forma são do mesmo modo reduzidas à unidade ideal, que a si mesma [tem] achado e para si é – [a] orgânica.” (Id, p.39). Com efeito, inicialmente a natureza apresenta a matéria em sua finitude como uma determinação ideal da Realidade Absoluta que assim se determina na imediatez das relações ideais da mecânica. Ora, a própria determinação da finitude implica sua manifestação como particularidade, cujo desenvolvimento conduz à relação de reflexão, na qual a diferença imanente devém na unidade da forma a individualidade natural que em sua suprassunção alcança a determinação da subjetividade e torna efetiva a unidade ideal – a nova figura do orgânico se revela como a verdade do ser-em-si ou o ponto em que culmina o processo da singularização da matéria. Compreendemos que, desse modo, embora na natureza prevaleça como diz o Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 13 O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis Alfredo de Oliveira Moraes próprio Hegel, a necessidade e a contingência, o que aqui se afirma é a liberdade do Conceito, à medida que todo o processo surge e se desenvolve a partir de uma necessidade interna do Conceito; a direnção ou a ‘irradiação’ na multiplicidade de direções que constitui o processo não configura uma dispersão aleatória e contingente, mas é, antes, expressão da multiplicidade de determinações a serem efetivadas nas figuras e degraus de realização do Conceito. Por isso, Hegel dirá que: “cada degrau é um reino da natureza próprio, e todos parecem subsistir para si, mas o último [degrau] é a unidade concreta de todos os antecedentes, assim como em geral cada degrau seguinte tem os inferiores em si, mas igualmente também os contrapõe a si como sua natureza inorgânica. Um degrau é o poder do outro, e isto é mútuo; aqui está o verdadeiro significado das potências.” (Ibid., p.41). Dissolvida assim a exterioridade da oposição, emerge a imanência no movimento dialético do conhecer que expressa a verdade e manifesta a efetividade do Ser, ou ainda, no que diz respeito às efetividades do Ser é necessário perceber que cada figura somente pode ser apreendida na perspectiva de que algo é agora momento, mas também lógica e ontologicamente o Todo. O Logos é a translucência perpassada pela luz do ser que ilumina a opacidade da natureza, faz com que esse Proteu que ama ocultar-se comunique o seu ser e revele-se como o Ser na sua alteridade. Na Natureza, o Logos encontra sua realidade efetiva, assume a coisidade e se torna objeto efetivo – o Logos é Natureza; o Logos nega-se ou determina-se a si mesmo na Natureza, enquanto outro de si mesmo, ao realizar-se na Natureza cobra dela o seu sentido, busca nela o conhecimento e desvenda o desdobrarse do conceito de si mesmo nesse seu outro – a Natureza é Logos. Se o Logos de que se fala é aqui o Absoluto, não se estaria, portanto, incorrendo em panteísmo? Poderíamos opor a essa indagação uma outra, a saber: Como poderia o absoluto ter algo fora de si? A questão efetiva é: Como compreender essa relação estabelecida por Hegel na qual a Natureza é Logos, o Logos é o Absoluto e o Absoluto é Deus sem tomar o seu sistema como um panteísmo? Com efeito, Hegel não advoga um panteísmo, seu sistema tem base no cristianismo e a Natureza não esgota o ser de Deus, tampouco a Natureza é Deus no sentido em que nós possamos dirigir-nos a ela imaginando estarmos dirigindo-nos a Deus, Deus é Espírito e somente enquanto Espírito Absoluto o espírito finito pode a Ele Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 14 Alfredo de Oliveira Moraes O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis ter a pretensão de dirigir-se. Em virtude do que se pode afirmar que a Natureza pela presença divina de seu Criador não é senão Deus mesmo enquanto uma expressão ou manifestação de Deus; no entanto, não se pode recorrer a Ele diretamente nessa sua criação, da mesma maneira que não ocorre a alguém se dirigir a Beethoven ao ouvir a sua bela Nona Sinfonia, como se ali estivesse ele mesmo a ouvi-lo e não uma criação dele para ser ouvida, na qual sem dúvida Beethoven se diz e está, de algum modo, presente. Temos reiteradamente recorrido a essa analogia, pois entendemos que é o modo mais simples e menos distorcido de apresentar no âmbito da representação a relação entre o Espírito Absoluto e o espírito finito, que também pode ser compreendida como a relação entre o Universal Abstrato (o Absoluto) e o seu Universal Concreto (o Singular). Essa é, para nós, a razão pela qual no Adendo ao § 239, Hegel havia assinalado que: “Na progressão da idéia o começo se mostra como o que é em si, a saber, como o posto e o mediado – e não como o essente e o imediato. Só para a consciência imediata mesma, a natureza é o inicial e o imediato, e o espírito é o mediado pela natureza. De fato, porém, a natureza é o [que é] posto pelo espírito, e o espírito mesmo é o que faz da natureza sua pressuposição.” (Hegel, 1995a, p.369). Ora, é preciso acautelar-se e não reduzir essa expressão a um idealismo ingênuo que, ao modo de um mágico que faz surgir coisas da cartola, faça surgir do espírito finito os elementos brutos da natureza; na verdade, assim como a Lógica tem como exigência a filosofia da natureza, pois se a Lógica reivindica para si a ruptura com a abstração vazia e não pretende ser apenas uma ficção da imaginação, tem de ser capaz de encarar o negativo de frente realizando-se nas coisas e confirmando-se como verdade do real no conhecimento, assim também o espírito precisa alienar-se na natureza, no seu outro, para só então voltando a si ser verdadeiramente si mesmo. O Ser determina-se a si mesmo e nisso nega-se a si mesmo como Logos (na Lógica) e, como Natureza, pode-se dizer desta oposição que é absoluta, no entanto, cada um é o todo que se opõe a si mesmo; de modo que cada um é em si mesmo o seu oposto e apresenta o outro em seu elemento, em sua determinidade própria, constituindo com seu oposto uma unidade, daí que a diferença já não tem o caráter de exterioridade, mas enquanto diferença no si mesmo é diferença interior, expressão autêntica da verdadeira infinitude. Por conseguinte, o Espírito não é simples síntese, mas reconciliação do Ser Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 15 Alfredo de Oliveira Moraes O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis ou Absoluto consigo mesmo. Com efeito, vale ressaltar que aqui não se trata de uma mera especulação teorética, pois o próprio Hegel afirma que: “A filosofia da natureza acolhe o material que a física lhe preparou da experiência; [acolhe-o] no ponto até onde a física o trouxe, trata-o de novo sem dar por fundamento a experiência como derradeira verificação; a física deve pois trabalhar de mãos dadas com a filosofia, de modo que esta traduza para o conceito o universal do entendimento a ela transmitido; nisto ela mostra de que modo esse universal brota do conceito como um todo em-simesmo necessário [notwendig].” (Hegel, 1995b, p.22). Sendo esse o ponto no qual concordamos com Bloch ao dizer que: “É importante assinalar, que para compreender a filosofia hegeliana da natureza há que se admitir a possibilidade teórica de outra física que a que vai desde Galileu e Newton até Einstein. A física que se vem construindo de uns 300 anos para cá não só abstrai de toda valoração, mas também de toda qualidade. Para ela todo ser é quantitativo e toda vida mecânica. Hegel, ao contrário, pensa como Aristóteles que a qualidade é, em cada caso, uma coisa nova que pressupõe as relações de quantidade, mas não se reduz a elas. (...) Além do mais, Hegel olha a natureza não tanto em seu ser estático, quanto em seu ser dinâmico.” (cit. in Colomer, 1986, p.346). Aqui, à guisa de conclusão, retomamos o ponto central de nossa tese de que a Filosofia da Natureza de Hegel exige essa outra física apontada por Bloch, e mais ainda que a partir das formulações de Einstein, Planck, Heisenberg e Bohm, para citar apenas alguns e não perder a referência à realidade efetiva, necessitamos repensar os fundamentos da própria física, adotando uma Metafísica de base não-material para a adequada apreensão da physis que a ciência do século XX descortinou, mas que inadvertidamente apoiada numa metafísica de base material cobriu esse fenômeno com o véu das concepções previamente adquiridas e não se permitiu dar o salto qualitativo que suas descobertas reclamam. Sabemos e não é de hoje que é mais fácil descobrir uma nova verdade do que encontrar os meios de realizá-la, basta lembrar que as revoluções científicas e filosóficas havidas no século XVII - a partir das quais o homem perdeu tanto o lugar no mundo que presunçosamente atribuía a si mesmo, como perdeu o próprio mundo em que acreditava - ainda permanecem não assimiladas pelo senso comum e até mesmo Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 16 O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis Alfredo de Oliveira Moraes muitos da comunidade científica atual estão presos a concepções que não estão compatíveis com a visão-de-mundo implicada num universo infinito e multidimensional, que por isso mesmo não tem um centro. As bombas que caíram sobre o Japão no final da 2ª guerra mundial deveriam ter sido suficientes para acordar, se não a humanidade, pelo menos os cientistas e filósofos para a necessidade de re-significar a physis, não há átomos e mesmo partículas ínfimas são apenas um jogo de relações de forças, tudo é relação e relação de relação e como já nos disse o próprio Hegel até mesmo o Eu é o conteúdo da relação, o relacionar-se a si mesmo. (Ich ist der Inhalt der Beziehung und das Beziehen selbst – Hegel, 1990, vol. 3, pp. 137, 138.) Referências Bibliográficas: BOURGEOIS, Bernanrd. Éternité et Historicité de l’Esprit selon Hegel. Paris. J. Vrin, 1991. COLOMER, E. El Pensamiento alemán de Kant a Heidegger. Vol. II - El Idealismo: Fichte, Schelling y Hegel. Barcelona. Editorial Herder, 1986. DESCARTES, R. Obra Escolhida. 3 ed., Trad. de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1994. ______________ Meditaciones Metafísicas y Otros Textos. Trad. de E. López y M. Graña. Madrid. Gredos, 1987. HARTMANN, Nicolai. A Filosofia do Idealismo Alemão. 2 ed., Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian. HEGEL, G. W. F. _________________ - Werke in 20 Bänden. Frankfurt am Main. Suhrkamp, 1990. Concept Préliminaire de L’Encyclopédie des Sciences Philosophiques – en Abrégé. Trad. Bernard Bourgeois. Paris. J. Vrin, 1994. _________________ Encyclopédie des Sciences Philosophiques I - La Science de la Logique, Trad. Bernard Bourgeois. 3 ed. Paris. J. Vrin, 1986. _________________ La Philosophie de l’Esprit de la Realphilosophie. Trad. Guy Planty-Bonjour. Paris. PUF, 1982. ________________ Philosophy of Nature, in 3 vols. Trad. M. J. Petry. London. Unwin Brothers Limited, 1970. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 17 Alfredo de Oliveira Moraes O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis ________________ Filosofia Real. Trad. J. M. Ripalda. Madrid. Fondo de Cultura Económica, 1984. ________________ Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). Vol. I e III (= a, c) em Trad. Paulo Meneses, e vol. II (= b) em Trad. De José N. Machado. São Paulo. Loyola, 1995. ________________ Fenomenologia do Espírito, in 2 vols. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis. Vozes, 1992. HEISENBERG, W. Diálogos sobre la Física Atómica. Trad. W. Strobel e L. Pelayo. México. Universidad Autónoma de Puebla, 1988. HYPPOLITE, J. Logique et Existence. 3 ed., Paris. PUF, 1991. _____________ Genèse et Structure de la Phénoménologie de l’Esprit Hegel. Paris. Aubier montaigne, 1974. MENESES, Paulo. Para Ler a Fenomenologia do Espírito. São Paulo. Edições Loyola, 1985. _______________ Hegel Como Mestre do Pensar. Texto inédito. 1996. MENEZES, Djacir. Hegel e a Filosofia Soviética. Rio de Janeiro. Zahar, 1959. MORAES, A. de O. A Metafísica do Conceito. Porto Alegre. EDPUCRS, 2003. _______________ A filosofia frente às exigências do mundo atual. In Revista Symposium Nova Fase. Ano 3, Número Especial. Recife. FASA, 1999. VAZ, H. C. L. Esquecimento e Memória do Ser: sobre o futuro da Metafísica. In Revista Síntese, v. 27, n. 88. São Paulo. Edições Loyola, 2000 Artigo recebido em maio de 2010 Artigo aceito para publicação em julho de 2010 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 18 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 19-31 A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito Bernard Bourgeois* _______________________________________________________________ Resumo: O presente trabalho visa explicitar a relação entre a natureza e o espírito no sistema enciclopédico de Hegel a partir da imagem da natureza como a “prometida”, a “noiva” do espírito. Argumente-se que a imagem exprime, ao estilo da representação, a concepção de uma relação intrínseca entre natureza e espírito, ultrapassando toda exterioridade sob a forma de um simples paralelismo ou instrumentação. Conforme os três momentos envolvidos na imagem – a natureza como prometida, promessa e promoção do espírito -, a natureza é pela sua própria essência incitada a se ultrapassar ao se fazer naturação do espírito, e reconhecida na sua alteridade pelo espírito que, no entanto, permanece soberano na sua comunidade com a natureza. Palavras Chaves: Natureza, Espírito, Filosofia, Sistema Abstract: The present paper aims to explicate the relation between nature and spirit in Hegel’s encyclopedic system by interpreting the metaphor of nature as the “bride” of spirit. It is argued that this picture expresses, in the manner of “representation”, the conception of an intrinsic relation between nature and spirit, going beyond any merely exterior relation between them, such as parallelism or instrumentalization. In accordance with the three moments implicit in the metaphor – nature as promised to spirit, as its promise and as promoting it -, nature is by its own essence impelled to go beyond itself and to become a moment of spirit’s realization, but is also recognized in its otherness by spirit, the latter, however, remaining sovereign in its unity with nature. Key Words: Nature, Spirit, Philosophy, System _______________________________________________________________ Em seus cursos sobre a Enciclopédia, Hegel não hesita em traduzir na linguagem da representação, na qual se movimentam mais à vontade os seus ouvintes, aquele conceito cuja árida condensação rege o propósito do Manual, do Compêndio por ele publicado e que lhe serve de fio condutor. É assim que ele recorre à representação completa, isto é, a representação religiosa, tomada no acabamento de sua forma bíblica, para exprimir, através do comentário de Adão se maravilhando ao descobrir na Eva formada a partir dele seu outro de si mesmo, a carne de sua carne, a relação do espírito * Professor emérito da Universidade Paris-1 Panthéon-Sorbonne. Email: [email protected]. Tradução de José Pinheiro Pertille (UFRGS) e Matheus Pelegrino da Silva (UFRGS). REH – Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Jul./Dez. de 2009 N. 11, v.01 pp.19-31 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito com a natureza. O próprio Hegel exprime essa relação ao estilo da representação dizendo que “a natureza é a noiva com a qual se desposa o espírito”.1 A imagem do destino conjugal da noiva já diz muito. Em si, virtualmente prometida ao espírito em uma finalidade que a submete a esse, a natureza é, pelo espírito que assume e realiza voluntariamente tal estatuto ao esposá-la, ligada a ele em uma comunidade que formalmente os equaliza. Ora, na medida em que Hegel na Enciclopédia eleva a seu conceito a relação entre esposo e esposa quando ele expõe a vida ética familiar, a representação da relação do espírito e da natureza como análoga à relação entre marido e mulher confirma pelo conceito mais determinado da segunda relação o conceito mais abstrato que é proposto na primeira, tal como essa aparece especialmente no começo da Filosofia da Natureza. O casal hegeliano nessas duas relações parece muito diferente daquele que elas também constituem nos predecessores de Hegel no seio do Idealismo Alemão. Na filosofia transcendental de Kant, e ainda na de Fichte, o espírito domestica a natureza fixada – em sua alteridade recebida ou mesmo posta, rebaixando sua comunidade à uma simples interação – em sua posição de instrumento. Na filosofia romantizante da natureza, que se coloca em paralelo com a filosofia transcendental do espírito, mas que tira proveito desta dualidade – essa diferença conservada entre a diferença ou diversidade natural e a identidade do Eu – Schelling vê na natureza a irmã primogênita do espírito. Hegel rompe com todo naturalismo, aceito ou reivindicado, em sua concepção plenamente espiritual da relação entre o espírito e a natureza, reconciliados na intimidade de sua verdadeira comunidade. Isso não significa sua pura neutralização um no outro. Em sua unidade espiritual concreta, Hegel atribui a primazia ao espírito, o qual conduz e funda a relação consigo mesmo de uma natureza que lhe é destinada como o seu fim, que é para ele, mas da qual ele reconhece liberalmente a especificidade para se deixar condicionar em sua existência pelo dinamismo próprio dela. Ela é assim para ele sua noiva, sua prometida. Mas, ela o convida por ela mesma a uma existência, ela é a promessa do espírito. E, em sua relação, tanto para ela quanto para ele, trata-se no fundo de uma promoção dele, que é o absoluto em sua verdade. Tais são os três momentos da relação complexa, concreta, da natureza e do espírito no sistema hegeliano. 1 Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas, II: Filosofia da Natureza, § 246, Ad. (Hegel, 1997, p. 25). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 21 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito O absoluto hegeliano, que se manifesta absolutamente, está como tal totalmente presente em cada uma de suas manifestações, mesmo que isso se faça a cada vez segundo uma forma original da totalização de seu conteúdo, de suas diversas determinações. É por isso que a natureza e o espírito não podem designar seres radicalmente diferentes, tais que o conteúdo de um não tivesse nenhuma presença, de algum modo qualquer, no conteúdo do outro. Eles designam mais propriamente os diversos regimes de reunião das determinações do ser, elas mesmas então modificadas, em sua qualidade e em sua potência, por sua totalização específica. Assim, há uma sensibilidade natural e uma sensibilidade espiritual, a primeira antecipando a segunda, e essa evocando aquela, não sendo ainda o espírito, naturalmente antecipado, propriamente espírito e não sendo mais a natureza, espiritualmente evocada, propriamente natureza. Por exemplo, a natureza presente dentro do espírito, aquilo que Hegel chama de “Natur-Geist”, o “espírito-natureza”, o “natural” do espírito inicialmente existindo como “alma”, não tem os mesmos aspectos e a mesma força – ele condiciona, mas não mais determina – que a natureza não integrada ao espírito. Entretanto, não é menos verdade que mesmo a natureza verdadeiramente natural, por sua íntima ligação originária com o espírito no seio do absoluto como manifestação total de si, não é ordenada de maneira somente exterior, e isso de algum modo apesar dela mesma, pela soberania absoluta do espírito. Mutatis mutandis, o aristotelismo de Hegel lhe faz determinar a natureza como desejando, por assim dizer, o espírito, essa finalidade interna que a consagra a ele constituindo-a em seu próprio ser. Ela é, por ela mesma, a noiva do espírito, de si mesma para ele. Ela é, em sua própria essência, o meio para o espírito existir espiritualmente, ou seja, ela é idêntica a si em sua existência, a qual, como toda existência, inscreve o ser, qualquer que ele seja, na exterioridade e o relaciona discriminando-o de outra coisa. A natureza, enquanto ela é o sentido plenamente sentido, totalizando-se em um Si que se afirma – a Idéia como “personalidade pura” da qual trata o final da Ciência da Lógica – sendo todo ato uma negação, ao se alienar sensivelmente ela é fundamentalmente a exterioridade, para si absoluta, do espaço. Ora, sendo assim ela é imediatamente outro que ela mesma: assim como o ser espacial do ponto é ao mesmo tempo o ser de todos os outros pontos do espaço, a natureza se oferece ao espírito como aquilo que, imediatamente negado em sua fixação, pode ser negado pelo espírito, cuja identidade Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 22 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito consigo não pode tolerar a diferença natural. Tal é a base originária do ardil pelo qual o espírito pode, em seu agir, voltar a natureza contra ela mesma e a fazer servir aos seus fins. Seguramente, enquanto alienação da Idéia ou do sentido completo na interioridade de um Si, a natureza não pode senão interiorizar, sob a injunção de seu princípio, sua exterioridade consigo, e isto em um escalonamento de estruturas sintetizantes que vão do tempo – cada instante integra todos os instantes – até a vida, cada ser vivo que começa a delimitar-se temporalmente a partir de sua espacialidade contida. Mas, em todo seu desenvolvimento, espacialmente presente, a natureza continua essencialmente espacial, exterior a si: os próprios seres vivos se justapõem e se sucedem em suas singularidades incapazes de reunirem-se em um grande ser vivo universal que se absolutizaria como rival do espírito. A natureza, propriamente dita, não existe. A espacialidade não ultrapassável da natureza assegura assim o poder do espírito. A contradição fixada por ela entre a universalidade não singularizada da vida e a singularidade não universal dos seres vivos mantém a natureza como ofertada ao espírito, do qual ela espera que a salve ao acolhê-la em sua unidade. Se, em sua espacialidade primeira e última, última porque primeira, a natureza não pode resistir à sua dominação pelo espírito, ela faz algo mais na medida em que ela segue antes dele sendo empurrada pela Idéia, da qual o espírito é a realização verdadeira, ao identificar a si e a universalizar em suas determinações estratificadas sua original e destinatória diferença consigo. Tal identificação universalizante da diversidade natural se opera através das leis e dos gêneros, os quais, certamente, a natureza não pode respeitar absolutamente, como testemunham suas contingências e suas monstruosidades; sua essencial diferença consigo mesma, com efeito, lhe afeta com uma ineliminável impotência para fixar plenamente a sua ordem, pois a potência é identificante. Mas ela permite em geral a regulação constitutiva do agir espiritual, universalizante enquanto pensante, ao encontrar um cúmplice responsável no seio dela mesma. Ou ainda melhor: o espírito não podendo agir eficientemente sobre a natureza senão de maneira imanente, logo, naturalmente, torna preciso que o ser espiritual comporte em si mesmo um momento natural. É preciso que a natureza que pode agir sobre todas as suas determinações, ou seja, a natureza orgânica, mais concreta e totalizante que a natureza mecânica e a natureza físico-química, e assim capaz de as limitar, esteja presente e seja ativa no ser espiritual. Mas é preciso também que essa Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 23 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito natureza seja assumida espiritualmente, que seu próprio limite e negatividade natural sejam vividos como tais no meio englobante do Si universal, pensante, e que seja então incitada a se ultrapassar não mais somente dentro dela mesma, pois ela está em seu ápice natural, mas a se ultrapassar como natural ao se fazer naturação ou encarnação do próprio espírito. É assim que o espírito se produz, enquanto nele a natureza se lhe consagra ao se reconhecer como sua prometida. Ela se reconhece tal como ele a reconhece. Um tal reconhecimento mútuo, pela natureza e pelo espírito reunidos no “espírito-natureza”, ou “alma”, momento inaugural do espírito e da destinação ou finalidade espiritual da natureza, completar-se-á quando o espírito inicialmente re-posto naturalmente em si, espontâneo, uma natureza espiritualizada, seja posto por ele, espiritualmente, livremente, como espírito, na posição de uma nova natureza pelo seu conteúdo. Essa será a segunda natureza, objetivando o próprio espírito em seu conteúdo específico no mundo das instituições jurídico-sócio-políticas, o espírito objetivo. Ter-seá feito então verdadeiramente de sua prometida seu outro de Si mesmo, seu esposo. E a naturação do espírito, comportando graus como o próprio espírito, se completará na objetivação do espírito em sua absolutidade trans-objetiva, assim como o Livro expondo o saber absoluto, expressão conceitual da Encarnação religiosa do Verbo divino afirmado pelo pressuposto cristão da especulação hegeliana. Porém, tal compreensão idealista-finalista da destinação ou vocação espiritual da natureza não esgota, unilateralmente, o sentido da relação estabelecida por Hegel entre o espírito e a natureza. Por conseguinte, se a natureza é, em sua verdade, a naturação do espírito, o acesso a essa é um processo no qual o espírito se faz proceder da natureza tomada por ela mesma, fora de toda dimensão finalista. A liberdade do espírito, também e, sobretudo, a respeito de si mesmo, seu liberalismo absoluto, lhe faz reconhecer a posição de si mesmo pela própria natureza, a partir dela mesma, e na abstração de toda perspectiva situando-se com relação a sua destinação ou a seu fim. O desenvolvimento da natureza, tomado e exposto como puramente natural, faz dela como tal a promessa de um espírito posto por ela mesma, tomado em sua negatividade mesma. ****** O espírito, que culmina no saber absoluto, o qual é a filosofia especulativa elaborada por Hegel, deixa-se bem colocar pela natureza em seu auto-movimento Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 24 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito próprio, cujo motor é a negatividade imanente ou a contradição dela mesma. Em outra ocasião sublinhei que, diferentemente da “dialética” fichteana e schellingeana, a dialética hegeliana não é nem um pouco teleológica, ou seja, ela não é movida por aquilo que o ser não é ainda, pela irrealidade ou idealidade de um fim que lhe falta, e que em sua alteridade em relação àquilo que é a cada instante, constituiria seu verdadeiro ser, não lido em si mesmo, e, por conseguinte, contingente em relação a esse ser. Hegel, que quer expor o ser enquanto ser a partir dele mesmo, em sua identidade consigo próprio geradora de necessidade, recusa tal contingência, recusa tal arbítrio, e se mantém em uma dialética rigorosamente como tal; dialética, pois estabelece o ser sem sair do próprio ser, só saindo de si na medida em que seu ser se transforma em seu não-ser, ou seja, quando é contraditório. Tal contradição, que abisma o ser no não-ser, não pode, na medida em que ela é, se contradizer ao pôr como ser a unidade do ser e do não-ser, unidade que é um novo ser, agora necessário, como o mostra o início da Enciclopédia. É então a presença do dialético – da inversão do si em seu Outro – no ser, em todo ser, que faz esse ser se desenvolver necessariamente e causar seu próprio fim, tão distante possa ser esse fim a causa do ser em seu desenvolvimento. A finalidade espiritual da natureza exprime deste modo o sentido de um processo de causação do espírito pela auto-negação da natureza. Essa auto-negação é a promessa da posição do negativo da natureza, isto é, do espírito. A liberdade do espírito bem se mostrará na assunção principial de sua natureza liberando-se dela mesma. Tanto em seu início quanto em seu começo, o espírito se apreenderá enquanto resultado da auto-negação da natureza em si mesma. Tal auto-negação da natureza em contradição consigo mesma é pensada pelo espírito como não tendo nada de espiritual em sua execução: ela não está presente nela mesma, ela não é por si mesma. Certamente, no ápice vivo da natureza, no qual o animal sente a si mesmo e experimenta carência e dor, ao interiorizar a diferença entre a singularidade limitada e a universalidade genérica da vida ou a universalidade geral do universo não-vivo, a contradição então experimentada o leva a fazer cessar essa contradição, mas isso em relação à contradição na natureza e não à contradição da natureza, esta última não podendo ser vivida como incitação ao agir a não ser ao nível do espírito. A natureza, como tal, é a contradição, ela não possui contradição. É por isso que a natureza suporta ou tolera perfeitamente a contradição, sem ela ser por essa Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 25 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito mobilizada: “Na natureza a contradição é somente em si para nós, enquanto o ser-outro aparece na idéia como forma tranqüila”.2 No todo do sentido – aquilo que Hegel chama de Idéia – realizada sensivelmente, alienada naturalmente, a contradição não age naturalmente. Se nada houvesse senão a natureza, e supondo que ela pudesse ser – o que não é, pois ela é nela mesma contraditória – ela não poderia mais ser, pois sua contradição não está presente e agindo naturalmente. O desenvolvimento da natureza em seus extratos universais cada vez mais sintetizantes, em direção ao espírito, não é assim propriamente natural, mesmo que exista, em alguns de seus extratos, tal como o da vida, um desenvolvimento real de suas singularizações, ou – dito de outro modo – a natureza realmente não se desenvolve. Ela é tudo aquilo que ela é, todas suas determinações, de uma só vez, de algum modo simultaneamente, e, no limite, se assim se pode dizer, ao mesmo tempo em que o espírito; é bem conhecida a recusa hegeliana de todo transformismo e evolucionismo. Como são diferentes, a esse respeito, o espírito e a natureza! O espírito, o real interior consigo mesmo que, como tal, não é inicialmente espaço, mas sim tempo, é um desenvolvimento real de si mesmo, pois, retomando em si a natureza e fazendo-a ser a despeito do não-ser que ela comporta, ele com isso assume a contradição que se torna então a sua, com isso então possuindo-a, pois, ao não suportá-la, ele então se contradiz consigo mesmo, nessa contradição que marca a sua finitude ou relatividade original. Quanto à natureza, ela está realmente de uma só vez em sua contradição geral, em todas suas contradições estratificadas, e ela é toda essa contradição sendo a contradição elevada enquanto princípio como a natureza do “espírito-natureza”, natureza somente real através do espírito. Ela somente é sua contradição sendo esta contradição resolvida na não-natureza que é a naturação do espírito. A série de tipo simultâneo, inicialmente total, das contradições que pontuam a interiorização da contradição que é a natureza, na contradição que possui o espírito se fazendo imediatamente essa natureza, torna deste modo finalmente íntimo para ela mesma como autocontradição sua contradição então ultrapassada pelo espírito, e assim demonstra a atribuição ao espírito do ser imediato da realização do sentido (lógico) em razão de sua insuficiência natural, único meio capaz de assegurar enquanto verdadeiro ser este ser que, como tal, exige sua realização verdadeira, espiritual. O espírito não está bem demonstrado como ser a não ser que o ser 2 Ibid. § 247, Adendo (Hegel, 1997, p. 27). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 26 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito se demonstre como tal, em sua naturalidade negativa, a não ser se mostrando como espírito. Existe também uma justificação natural do espírito – pela negatividade infinita da natureza se negando ela mesma. O ser do sentido, o real, estabelece por si mesmo, em sua naturalidade, que ele é espírito. Na medida em que há um real, que como ser é natural, ele promete este ser espiritual somente através do qual ele é, e que é assim realizado no mesmo momento que prometido; a promessa natural do espírito é a promessa absolutamente mantida. Ora, se a realidade do espírito está demonstrada pela dialética não real da natureza, é que essa é em verdade a dialética puramente conceitual, ou lógica do sentido total, ou ainda a lógica da Idéia do ser. Uma dialética cujo princípio elementar é que aquilo que é contraditório não o é. Tal é a necessidade férrea que consagra ao não-ser a natureza tomada nela mesma, assim como um destino que se serve do próprio repouso dessa natureza para tolerar perfeitamente a contradição que ela é; é o possuir dessa contradição se refletindo então nela mesma em um contradizer-se que abrirá o caminho de sua dominação, e essa será a destinação do espírito. A Lógica estabelece bem que o sentido não escapa à contradição, invertendo-lhe em não-sentido, a não ser totalizandose em um Si, cujo ser se completa justamente naquilo no qual ele se contradiz, ou no qual ele se sacrifica ao pôr seu outro sensível, o que se faz inicialmente como natureza, antes de se colocar como sentido neste Outro sensível tornando-o então a encarnação do espírito. É enquanto espírito que o sentido é realizado como sentido e, como realidade absoluta, torna real também o real condenado ao não-ser pelo sentido que ele não realiza como tal, isto é, o real natural. A soberania da Idéia lógica sobre a natureza posta e deposta por ela como o meio nativo de sua realidade é assim em verdade aquela própria do espírito, plenamente espírito, Idéia efetuada como Idéia. É este espírito que promove o próprio ser e todo o resto, e que promove inicialmente o seu Outro, a natureza. ***** A reciprocidade que foi analisada entre a natureza, que está para o espírito, e o espírito, que está para a natureza, mesmo enquanto ela exprime, em Hegel, diferentemente do que ocorre em Kant, Fichte e Schelling, uma aliança íntima entre eles ultrapassando toda exterioridade – sob a forma de um simples paralelismo ou instrumentação – mantida, não satura sua relação. Pois a natureza não é simplesmente o Outro do espírito, neste caso sendo o próprio espírito transformado em finito com Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 27 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito relação à natureza. Ela é feita assim pelo espírito na medida em que, como espírito infinito ou absoluto, ele é tanto o princípio da natureza como de si mesmo e, conseqüentemente, de sua relação. O espírito e a natureza, os noivos, se tornam casal em uma união onde o marido, por mais liberal que ele seja, em sua verdade, frente à sua esposa, permanece – na ética hegeliana – o senhor, devendo seu ser a um mesmo poder criador que é o próprio espírito. A natureza é apenas criada, enquanto o espírito é ao mesmo tempo criador e criatura. A especulação não limita, em Hegel, sua transcrição representativa religiosa da relação da natureza e do espírito à analogia de Adão reconhecendo em Eva a carne de sua carne, mas evoca igualmente a comum filiação da natureza e do espírito finito a partir de seu Pai divino, o espírito absoluto, que se faz carne. Filiação comum, mas de dois filhos desigualmente próximos de sua origem e também, já que em verdade os dois fazem um círculo, desigualmente próximos de seu fim espiritual. “A natureza – assim afirma Hegel – é o filho de Deus, mas não como filho e sim como persistir no ser-outro – a idéia divina como retida fora do amor por um momento”.3 Estando, como vimos, sem sofrer com essa contradição que a coloca fora de si, mas, pelo contrário, por ela excitada, a natureza se abandona à má infinitude de sua orgia algumas vezes catastrófica. Enquanto espírito finito, pois vinculado a um simples modo dessa natureza infinita, é sempre, como espírito, em alguma medida uma imagem do espírito absolutamente como tal, isto é, do espírito absoluto, e, unificando e regrando sua existência natural com a qual ele experiencia a contradição e que, no fundo, o faz rejeitá-la, [o espírito finito] relativamente escapa à ameaça da negatividade da potência para ele empiricamente incomensurável de uma tal natureza. Se não a vitória, ao menos uma saúde precária, enquanto o espírito permanece, e se sente permanecer vinculado a uma parte da natureza, mesmo que se trate da natureza da qual ele mesmo criou o conteúdo, da segunda natureza como naturação institucional do espírito, pois esta segunda natureza também conserva a forma limitada da naturalidade primeira. Certamente, a história, que é própria ao espírito, transfigura a natureza, mas o espírito objetivo persiste como um espírito finito. É, no entanto, esse mesmo espírito que, simultaneamente, é também capaz de se elevar, dos mais simples começos da religião até o corolário cristão de sua racionalização filosófica, à 3 Ibid. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 28 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito consciência de sua união com o espírito absolutamente espírito. Sendo um com esse, ele não é mais limitado naturalmente, mas compreende e domina em pensamento – e o pensamento é a potência absoluta – a infinitude natural, uma vez que ele se identifica com aquilo que criou ou se fez uma natureza, a natureza. Deste modo, segundo a linguagem cristã que a filosofia especulativa busca conceber, o Filho natural a si mesmo libertado pelo Pai criador faz então um retorno a este, pela mediação do Filho espiritual inicialmente destinado a tal retorno. O espírito religioso realizado no cristianismo vive assim a natureza como recondução providencial, através do espírito humano, ao espírito divino que a criou graciosamente. É aquilo que o filósofo especulativo expõe conceitualmente ao demonstrar o necessário retorno da natureza, através do espírito finito, ao espírito absoluto, cujo ato essencial consiste em liberar de si, conforme o sentido da Idéia personalizante que ele realiza ou faz existir, o momento antagônico do sensível. Em sua identidade consigo eternamente real, vivida religiosamente ou pensada filosoficamente, o espírito absoluto se faz juntar todo ao ser, aqui entendido tal como ele está temporal e historicamente determinado, pois o tempo e a história são entre outros os conteúdos do sentido eterno. Ele recolhe em si todos os seus momentos principais – sentido ou Idéia lógica, existência ou exterioridade para si natural deste sentido, espírito finito como restituição engajada dessa exterioridade em seu sentido – na unidade e unicidade eterna de seu ato. Estando assim totalmente presente a si mesmo em todo seu ser, ele também pode se apresentar a si mesmo através de sua culminação no saber enciclopédico de si mesmo, ao se construir a partir de sua determinação mais pobre e mais simples de si mesmo, o puro ser, e – no registro do real – o puro ser sensível, natural, aquele mais afastado de seu ser realizado, e confiar para sua afirmação somente na dinâmica deste Outro de si mesmo, estando completamente certo do resultado. Sua liberalidade mede a sua potência e a verdadeira certeza dessa: “A liberdade infinita dele [do espírito] deixa-a [a natureza] livre e apresenta o agir da idéia contra ela como uma necessidade interna nela, assim como um homem livre no mundo está seguro de que sua ação é a atividade do mundo”.4 O espírito absoluto, absolutamente certo de sua potência, não se põe imediatamente a si mesmo ao se valer abstrata e arbitrariamente de sua onipotência – o autoritarismo não desmente a verdadeira autoridade? –, pondo assim sem razão seu sentido (ele mesmo, 4 Ibid. § 376, Adendo (Hegel, 1997, p. 556). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 29 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito razão absoluta, estando já posto), as verdades eternas, a natureza e o espírito finito. Ele se faz, ele se deixa, muito mais se pôr pelo movimento próprio do sentido do ser enquanto ser, da Idéia lógico-ontológica, e, pela mediação primeira desta, que se realiza como o sentido refletido em um Si se opondo, enquanto tal, a uma natureza, e pela mediação segunda, real e não mais somente ideal, desta natureza em seu movimento igualmente próprio. Essas duas mediações, assim como seus agentes, obtêm então sua justificação, sua razão de ser, de serem postas como tais pelo espírito, pelo fato de que elas operam a posição do espírito finito se pondo a si mesmo negativamente como espírito absoluto. Desta maneira, pondo em particular a natureza como o posto, e assim pressupondo liberalmente esta natureza como aquilo que por si mesmo, enquanto seu Outro, se põe a si mesmo através do espírito finito, o espírito absoluto funda sua posição como tudo aquilo que tem sentido e realidade, uma posição que, em sua absolutidade ou imediatidade, é absolutamente livre. A auto-posição dialético-especulativa do espírito, no saber enciclopédico hegeliano, exprime e realiza a necessidade realmente natural – fundando e justificando toda a realização da Idéia, do sentido do ser – da livre naturação, incluindo a do espírito finito, na qual consiste o ato, único e total, que é o espírito absoluto, e que é exatamente a verdade essencialmente espiritual da natureza como natureza. ***** Eu gostaria de, como conclusão, insistir precisamente sobre esse ponto: é como natureza, ou seja, na negatividade mesma que é a sua, que a natureza é reconhecida pelo espírito, lhe confiando sua realização absoluta, pondo-a como o que o põe em sua própria absolutidade. Tal reconhecimento faz do ato criador que é o espírito absolutamente como tal, de sua livre decisão de deixar passar fora dele, como outro que ele, seu momento negativo, agora liberado enquanto natureza, um sacrifício que não é puramente formal. A totalização espiritual do ser, seu verdadeiro infinito, deixa subsistir a má infinitude continuamente exterior a si mesma que é essencial à natureza e se demonstra na contingência natural e em sua tradução, ao nível do espírito finito, pelo arbitrário e pelo mal. Esse, que tem seu livre jogo no interior do sentido universal, certamente não poderá ameaçar este último, mas afeta suas realizações particulares e singulares, e, como conseqüência, o próprio espírito absoluto, cuja essência é se manifestar ou realizar. O liberalismo do espírito absoluto criador da natureza e do Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 30 Bernard Bourgeois A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito espírito finito o faz, portanto, acolher em si um mal que não pode comprometer a realização do bem, mas que permanece um mal, implicação inevitável desta realização do bem. O espírito finito pode sucumbir, mediante a tentação natural, a este mal que não é superável no próprio espírito absoluto a não ser pelo seu tomar conta de tal mal. Hegel soube reconhecer bem a presença desse momento negativo ligado à existência natural em todos os níveis do espírito que, no entanto, permanece soberano. Referências bibliográficas HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), Volume II: A Filosofia da Natureza. Tradução de José Nogueira Machado. São Paulo: Edições Loyola 1997 Artigo recebido em outubro de 2009 Artigo aceito para publicação em abril de 2010 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 31 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 32-56 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer* __________________________________________________________________ Resumo: Este artigo estudo os conceitos de espécie, classificação e evolução segundo Hegel, tanto no seu uso natural quanto lógico. Hegel critica uma concepção essencialista da espécie e do universal, substituindo-a pelo denominado “conceito”. Este tem uma manifestação privilegiada na ideia de vida, tanto ao nível da lógica quanto da natureza. A vida exemplifica do modo mais claro o “universal concreto” hegeliano e permite, por isso, caracterizar também o sistema da filosofia de Hegel em geral. Observa-se também como o conceito hegeliano de espécie pode apresentar-se, em alguns aspectos importantes, como uma versão filosófica do denominado “conceito biológico de espécie” proposto principalmente por E. Mayr. Como resultado deste estudo, conclui-se que a recusa explícita por Hegel da evolução das espécies deve ser entendida não como expressão de uma incompatibilidade da filosofia da natureza hegeliana com a teoria da evolução por selecção natural de Darwin, mas como a recusa de concepções quer metafísicas quer filosoficamente reducionistas dos processos naturais e históricos de desenvolvimento. Palavras-chave: Hegel, espécie, classificação, evolução Abstract: This paper studies Hegel’s concepts of species, classification and evolution, both in its natural and logical use. Hegel criticizes an essentialist understanding of the species and the universal, and substitutes it by his so-called “concept” (“Begriff”). The “concept” expresses itself as the idea of life, both at the logical and at the natural level. Life exemplifies in nature most clearly Hegel’s “concrete universal”. As a “concrete universal”, the idea of life allows to understand Hegel’s system of philosophy as a whole. It is also shown how the hegelian concept of species can be seen, in some important respects, as a philosophical version of the “biological concept of species” proposed mainly by E. Mayr. As a result, it can be concluded that Hegel’s explicit refusal of the evolution of species should not be understood as an incompatibility between Hegel’s philosophy of nature and Darwin’s theory of evolution by natural selection, but as a dismissal of metaphysical and philosophically reductionist conceptions of natural and historical development processes. Keywords: Hegel, Species, Classification, Evolution __________________________________________________________________ * Professor Associado da Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail: [email protected] REH – Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Jul./Dez. de 2009 N. 11, v.01 pp.32-56 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer 1. O movimento do conceito e o desenvolvimento do real. O tema das espécies, classificação e evolução não é ocasional ou secundário no pensamento de Hegel mas é, pelo contrário, um conjunto de conceitos que permite reconstruir toda a sistematicidade própria do pensamento hegeliano. A ideia de vida, de que os três conceitos temáticos fazem parte do modo mais próprio, não é no sistema hegeliano um tema filosófico entre outros, mas um ponto privilegiado de reunião e exposição, numa totalidade real e concreta, de diferentes esferas do sistema. A análise de alguns dos conceitos relacionados com a vida permite desenvolver tópicos centrais para a compreensão do pensamento hegeliano como pensamento sistemático e concreto e da sua capacidade de mediação de dicotomias conceptuais aporéticas. Os três termos sob análise têm um significado dentro do sistema que faz com que sejam mais do que um mero problema da história dos conceitos ou das ciências da vida. Falar em espécie ou género, em seres vivos ou em vida, em classificação ou em evolução remete de imediato para um contexto filosófico e reflexivo a partir dos quais esses conceitos podem ser filosoficamente pensados. Os conceitos são utilizados na Filosofia da Natureza, mas não podem deixar de ser esclarecidos ao nível fundamental, ou seja, da Ciência da Lógica. Antes de esclarecer o modo como os conceitos de espécie, vida, classificação e evolução recebem sentido no contexto lógico e da filosofia da natureza, poderemos relembrar dois pontos centrais acerca do tema, já detectados e desenvolvidos pela investigação sobre a Física Orgânica de Hegel. É conhecido o facto de que Hegel recusa a evolução das espécies naturais, reservando a transformação dos viventes para o nível do indivíduo singular, e algo de semelhante à transformação das espécies somente para os níveis conceptual e lógico. Ou seja, a transformação dos viventes reais é exclusivamente um desenvolvimento individual, e algo de semelhante à transformação das espécies somente ocorre ao nível das espécies ou conceitos lógicos e de realidades históricas. Por outro lado, Hegel considera a classificação das espécies como tarefa em parte empírica, e filosoficamente desinteressante; mas considera-a também, em parte, como revelando aspectos da maior importância para o nível conceptual onde se pode pensar a filosofia da natureza. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 33 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer A rejeição da evolução das espécies ao nível real tem motivos que se podem considerar contingentes e outros que radicam essencialmente na concepção da natureza e da vida por Hegel. Como motivos contingentes podem referir-se a inexistência de uma teoria da evolução formulada com suporte empírico e conceptual válido, sobre princípios naturais empiricamente fundados. A função da filosofia da natureza segundo Hegel não é, de modo nenhum, a da descoberta e enunciado de factos ou leis naturais mas, poderá dizer-se, a de uma constituir algo como uma metafísica das ciências da natureza1 (embora também seja mais do que isto). A posição hegeliana – dados os conhecimentos científicos disponíveis, – não poderia, por isso, ser outra. Nesta medida, o erro de Hegel é historicamente partilhado pela ciência do seu tempo.2 Mas caberá então perguntar-se, e assim tem sido feito por mais do que uma vez, em que medida o hegelianismo é incompatível ou compatível com a teoria da evolução a partir de Darwin, e com os seus mecanismos conceptuais. Não pressupõe Hegel uma ideia anterior a todo o processo natural, que o orienta a partir de uma posição anterior e exterior, sendo por isso incompatível com a teoria da evolução por selecção natural? Qualquer proposta de solução para este problema requer, obviamente, uma interpretação do pensamento de Hegel em certa medida autónoma em relação à letra do texto, embora por ela legitimada, que busque determinar as principais linhas de força do pensamento hegeliano e que daí retire consequências e novas aplicações.3 Se se considerar o carácter “fluido” do conceito segundo Hegel, a ênfase posta no “movimento” conceptual e, mais especificamente, no que denomina “desenvolvimento” (“Entwicklung”), é claro que este pensamento, na sua matriz mais fundamental, não recusa a evolução. Pelo contrário, considera-a uma determinação central de toda a inteligibilidade filosófica. No entanto, conforme é geralmente reconhecido, o “desenvolvimento” parece estar reservado à esfera lógica, conceptual e, também, espiritual. Assim, por exemplo, que o conceito do espaço possa dialecticamente implicar e, assim, conduzir ao conceito do tempo, não significa que o espaço se transforme realmente em tempo, tomados como objectos reais. O exemplo mostra que é necessária uma concepção geral das relações entre a natureza, como 1 Cf. Falkenburg, 1987, 120-121. Cf. Hertler & Weingarten, 2002. 3 V. Wandschneider, 2002, com a distinção entre “Evolution” e “Entwicklung”. Tb. Harris, 1998. 2 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 34 Diogo Ferrer Espécies, Classificação e Evolução em Hegel objecto real e a filosofia da natureza, como objecto conceptual para que se possa compreender de que modo é legitimo falar-se, em termos hegelianos, de evolução, quer de conceitos quer de espécies vivas reais. Em contraste com a filosofia do espírito, a evolução, ou desenvolvimento está, na filosofia da natureza, reservado ao processo epistemológico, estando pelo contrário ausente do seu objecto, a própria natureza. O desenvolvimento real é próprio da realidade espiritual, mas não da realidade natural. Porque o espírito é a manifestação real adequada do conceito, a historicidade define o espírito a diversos níveis, mas está ausente da natureza.4 A natureza é apresentada por Hegel como essencialmente não-histórica. A transformação histórica contém um momento de singularidade, ou seja, daquilo que somente pode ser ou acontecer uma vez. A historicidade envolve singularidade e, por isso, a transformação de tipo histórico somente acontece na natureza ao nível do indivíduo vivente.5 Este desenvolve-se teleologicamente em direcção à forma da sua espécie, mas o telos do movimento é não mais do que a reprodução e morte do vivente, recaindo a natureza num círculo de má infinidade em que cada geração repete a anterior. Que a natureza seja também dotada de uma historicidade com características em larga medida semelhantes à historicidade do espírito é algo que não está no horizonte de Hegel.6 Esta não-historicidade da natureza prende-se com a sua condição não-conceptual, ou insuficientemente conceptual. As determinações lógicas do pensar conhecem, pelo contrário, diversas formas de movimento, que Hegel caracteriza em três grandes grupos, o movimento de devir, de aparecer no outro e de desenvolvimento. No devir, o ponto de partida do movimento perde-se no seu outro, no aparecer, mostra-se no seu outro, no desenvolvimento transforma-se sem perder a sua identidade. No espírito, por outro lado, encontra-se o desenvolvimento do em si em direcção ao para si, aparecendo explicitamente modos de auto-referência e de reflexão que a vida já anuncia ao nível da realidade natural. Pela sua concepção móvel do conceito, o pensamento hegeliano inverte o platonismo no sentido em que, ao contrário de uma tradição milenar, o 4 Para uma problematização deste ponto v. Marmasse, 2008, 265-270. Hoje justamente o entendimento da biologia evolucionista é que “it deals, to a large extent with unique phenomena, such as [e.g., …] the origin of evolutionary novelties” (E. Mayr, 2004, 32). Nestas condições, a biologia evoucionista é uma ciência histórica, uma “historical biology […] that involve[s] the dimension of historical time” (ib. 24). A ordem biológica é resultado de uma temporalidade histórica dotada de um qualidade própria e irredutível. Cf. J. Dupré, 2010, 44. A biologia faz por isso uma “ponte importante” entre as “Geisteswissenschaften” e as ciências da natureza (Mayr 2004, 33, 35). 6 V. no entanto as passagens citadas por Wandschneider, 2002, 227-8. 5 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 35 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer inteligível é entendido como aquilo que se move, e como o próprio movimento, e não como o imóvel. A imobilidade é propriedade das determinações do entendimento, ou de uma concepção unilateral e limitada das categorias lógicas. Esta imobilidade deve ser entendida como um momento necessário, mas de todo insuficiente, para a conceptualização e inteligibilidade sistemática do real e das suas categorias. Isto significa que o movimento da natureza apenas é inteligível na medida em que é expressão do movimento do conceito, e que unicamente este é compreensível em si mesmo. ‘Compreender’ é essencialmente o próprio movimento do conceito. 2. Espécie, contingência e a priori. O conceito é inteligível, em si mesmo e por si mesmo, no seu movimento objectivo, sendo toda a paralisação deste movimento uma perda da sua inteligibilidade. Poderá dizer-se que a inteligibilidade das espécies só seria possível, em termos hegelianos, a partir do momento em que se pudesse compreender o seu movimento e transformação. Por tal razão, a defesa de Hegel da imobilidade das espécies não se deve a um essencialismo ou a uma concepção estática do universal. A imobilidade das espécies naturais reflecte, pelo contrário, a sua contingência e o seu carácter nãoconceptual. Hegel não parece atribuir às espécies empíricas uma dignidade conceptual. “Os múltiplos géneros ou espécies da natureza não devem ser considerados como algo de mais elevado do que os acidentes arbitrários do espírito nas suas representações.”7 O estatuto conceptual da espécie, por outro lado, é entendido como um “processo do género”, com vários momentos da maior importância, que iremos ainda referir. Na espécie, enquanto existente determinado real, deverão distinguir-se, então, diferentes níveis de análise, cada um deles com o seu estatuto próprio. Em primeiro lugar, o número de espécies, conforme se viu, ou a determinação concreta das espécies parece estar entregue a uma variabilidade indefinida de um “tipo do animal”8 ou do ser vivo. Esta variabilidade é não-conceptual, remetida para o plano meramente empírico. Nenhuma lei conceptual determina o número e o modo preciso das espécies realmente existentes – e, neste ponto, Hegel partilha com o darwinismo uma concepção não7 “Die vielfachen Naturgattungen oder Arten müssen für nichts Höheres geachtet werden als die willkürlichen Einfälle des Geistes in seinen Vorstellungen.” (Hegel, 1816, 41) Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 36 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer essencialista das espécies. As espécies são, neste sentido, largamente contingentes,9 e somente porque a contingência é uma categoria lógica, esta determinação das espécies como contingente não escapa por inteiro à dimensão conceptual. Mas a contingência refere justamente a tomada de consciência lógica da limitação do conceito. Mas, em segundo lugar, a espécie, tomada não mais como a espécie empírica em concreto, mas na sua definição geral de espécie viva, possui também um momento plenamente conceptual. A espécie tem determinações gerais cujo significado e lugar no sistema da filosofia da natureza está, por assim dizer, previsto a priori. Em termos gerais, a existência é a particularização e, por conseguinte, o “tipo do animal” só pode existir de modo particular, ou seja, em espécies. A divisão da vida em diferentes espécies é, consequentemente, uma condição da sua determinação. Por outro lado, a existência da espécie é, do mesmo modo, uma determinação necessária do vivente individual, cuja singularidade remete para outros viventes semelhantes. Assim como uma concepção universal da vida não pode dispensar a sua particularização em espécies, tão-pouco a vida individual dispensa a espécie. O universal existe particularizando-se, o indivíduo, do mesmo modo, existe somente perante um outro indivíduo semelhante. A espécie ocorre, segundo Hegel como um a priori da vida, ou do vivente. Este a priori do vivente deriva do próprio cerne metodológico do pensamento hegeliano, cerne metodológico que pode ser expresso em termos abstractos, nas três grandes relações, consigo mesmo, com o seu outro e consigo mesmo como com o seu outro. Estes três modos mais gerais da relação são condições básicas do pensar e estão, simultaneamente, impressos na vida, tanto lógica quanto natural ou espiritual. Este carácter generalizado dos principais momentos metodológicos do pensar mostra que caracterizar o pensamento, e o próprio sistema lógico como vivo não é somente uma metáfora. Mas retomaremos ainda este tema. Esta ligação entre relação real e relação lógica, que a vida realiza, torna a vida eminentemente um processo gerador de valor significativo, subjectividade e, finalmente, de pensamento. A vida natural apresenta estas relações de fundo, metodológicas e lógicas, como os momentos naturais, conhecidos de todo o leitor da Filosofia da Natureza, da figura, assimilação e processo do género. A figura é a auto-relação, a organização auto-relativa das partes com o todo; 8 9 “Typus des Tiers” (Hegel, 1830, § 368.) 1830, § 368 Z, (p. 503). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 37 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer a assimilação reúne todo o tipo de trocas, reais e ideais, que o vivente estabelece com o meio; o processo do género é a relação que o vivente estabelece “com o seu outro como consigo mesmo”. Este processo assume duas formas gerais. Como é característico de tudo o que pertence à vida, este é um processo simultaneamente real e ideal. A especiação da vida gera tanto processos reais, nos quais as espécies se definem, quanto processos de tipo ideal, de reconhecimento e, finalmente, conhecimento. Ao nível dos processos reais da espécie Hegel pretende então englobar num momento conceptual único, noções como as de competição, agressão, reconhecimento, reprodução sexuada e classificação. Esta concepção unificada de todo um grupo de processos vitais, e uma concepção científica e gnoseológica daí resultante, parece antecipadora de concepções biológicas mais actuais, que poderemos aproximar de algum pensamento evolucionista. A concepção hegeliana apresenta o vivente como em relação negativa com o seu outro. A sua auto-afirmação e reprodução está então dependente das “suas armas”, “posto que estas são aquilo por que o próprio animal se põe e conserva, i.e., se diferencia perante os outros como um ente-para-si.”10 Agressão e competição são assim não só tomadas como dados de facto da vida natural, mas são também entendidos como realizando, na natureza, de maneira objectiva, o conhecido princípio metodológico segundo o qual “omnis determinatio negatio”. Muito embora a dialéctica hegeliana não valorize, na maior parte dos casos, a luta como o motivo da criação do novo, da diversidade e da complexidade, optando por outras expressões do que chama “contradição”, Hegel reconhecer-se-ia na afirmação de Ernst Mayr, acerca da descoberta de Darwin, de que no mundo biológico “a luta pela existência não é um estado estacionário sem esperança à la Malthus, mas os próprios meios pelos quais a harmonia do mundo é alcançada e mantida. A adaptação é o resultado da luta pela existência.”11 Do mesmo modo, para Hegel, a “harmonia”, o que quer dizer na verdade uma maior complexidade, pode resultar das oposições conceptuais e, embora somente ao nível do espírito, das oposições reais. Caso paradigmático disto é a conhecida “luta pelo reconhecimento” da consciência de si. A negatividade própria da dialéctica, assim como da evolução, não é jamais entendida como estática, trata-se de um “diferenciar-se” do conceito, e não de uma “diferença”. 10 “[…] denn sie sind es, wodurch das Tier selbst sich gegen die anderen als ein Fürsichseiendes setzt und erhält, d.i. sich selbst unterscheidet” (1830, § 368 (p. 501)). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 38 Diogo Ferrer Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Este movimento da negatividade em direcção à maior complexidade e “concretude” é próprio do processo dialéctico, embora não, para Hegel, da vida no seu estádio natural. 3. Processo do género, classificação e reconhecimento. No processo do género, a existência das espécies não é somente uma actuação negativa de diferenciação de cada indivíduo e de cada espécie perante as outras. O processo do género, enquanto relação ao outro como a si mesmo, engloba as formas positivas do reconhecimento e da reprodução sexuada, com todos os comportamentos inerentes, que trazem já em crisálida a marca do amor e da apreciação estética.12 A pertença à espécie é o primeiro momento da subjectividade e da universalidade, que se estenderá por todo o mundo espiritual como processo do reconhecimento. Este processo ocorre não somente na luta pelo reconhecimento, mas nas formas da sociabilidade e no conhecimento. Uma condição primeira do conhecimento, como processo real de um sujeito real, natural e histórico, passa pela noção de reconhecimento, cujo momento mais imediato se encontra na reprodução sexuada.13 Observa-se, assim, que com a vida e o processo do género que lhe é inerente, surge um princípio de sociabilidade e de reconhecimento da espécie, como um processo objectivo. A descoberta deste processo objectivo corresponde à definição por Hegel do “universal concreto”.14 Ou seja, a determinação da espécie não é feita por um observador ou classificador exterior, mas pelo próprio organismo vivo. O vivente classifica-se a si próprio e exibe o conhecimento da sua espécie como comportamento objectivo de pertença e reconhecimento. A classificação não é, por isso um procedimento exterior de um sujeito classificador, mas corresponde a uma realidade objectiva. Contra os denominados “sistemas artificiais”, Hegel compreende que a determinação da espécie não é uma simples comparação e pesagem de semelhanças e diferenças mas que depende de uma realidade objectiva do vivente. A espécie tem uma realidade objectiva e, por isso, a classificação não é um 11 Mayr, 1988, 228. Sobre este último ponto v. Hösle & Illies, 1999, 128. Com uma posição diferente v. tb. O’Hear, 2005. 13 Sobre a definição do conceito biológico da espécie a partir da noção de reconhecimento v. M. F. Claridge, 2010, 96. 14 V. 1816, 36. 12 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 39 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer procedimento pertencente ao sujeito ou ao sistema de classificação.15 O sistema classificativo e o conhecimento do universal que ele expressa são objectivos. A contingência das espécies empiricamente existentes está, por conseguinte, subordinada a um esquema racional de conceptualização onde indivíduo singular e espécie universal estão em ligação indissociável e real. Esta é a determinação própria da espécie viva, de ser ao mesmo tempo um universal que permite a classificação dos indivíduos singulares empíricos e, por outro lado, também uma determinação real da natureza. A espécie viva tem um duplo valor, ideal e real, é conhecimento e ser, e, por isso, é especialmente adequada na função de expressão da ideia. Numa classificação entendida de algum modo como a própria “autoclassificação” do vivente, o universal está concretizado e objectivado, e o sujeito não é um observador exterior, mas está já prefigurado na natureza, como vida e vivente. O sujeito emerge a partir da vida, pela mediação da pertença do sujeito ao mundo vital e comunitário. O sujeito integra, com um corpo, os seus processos e a sua comunidade, o seu mundo vital. O sujeito, na natureza, é subjectividade que apreende, na sua singularidade, a universalidade: apreende, primeiro, por reconhecimento, o universal como espécie concreta; depois, através de um processo de idealização, – que não poderemos abordar aqui mais longamente, mas que parte sem dúvida dos processos de assimilação sensorial e de reprodução que ocorrem nos organismos vivos, – torna-se no sujeito propriamente dito, i.e., o universal e o conceito em geral como consciente de si. Aqui, segundo Hegel, se poderão encontrar bases conceptuais para a definição do espírito e do eu como um domínio de determinação que tanto pressupõe a natureza quanto dela se autonomiza. A ideia da vida é, por conseguinte, adequada para a caracterização das relações mais gerais dos diferentes domínios categoriais no sistema de Hegel. A vida é apresentada na Lógica como a “ideia imediata”.16 Ela permite, em consequência, expor a relação entre ideal e real de modo generalizado, e do modo o mais geral possível. O sistema é um todo que se pode denominar de vivo porquanto no sistema, como totalidade, ideal e real estão em tão estreita correlação quanto na espécie viva. Assim 15 A espécie biológica, na sua ‘objectividade’ distingue-se de “definições morfológicas da espécie”, i.e., definições fundadas em formas ou essências, porquanto “so-called morphological species definitions are nothing but man-made operational instructions for the demarcation of species taxa” (Mayr, 2004, 177). 16 1816, 212; 1830, § 216. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 40 Diogo Ferrer Espécies, Classificação e Evolução em Hegel como na espécie viva, o universal é produto do comportamento objectivo do vivente que produz a sua classificação e o torna integrável num sistema, também no sistema em geral passa-se algo de similar: é o modo de ser objectivo de cada momento considerado que o faz integrar o sistema. Este não é, por conseguinte, jamais um produto de uma reflexão exterior, de um sujeito cognoscitivo que determinasse, a partir de fora classes, leis, experiências, conceitos ou princípios explicativos. Todo o procedimento científico segundo Hegel se tem de basear nesse mesmo “auto-movimento” objectivo dos conceitos. Estas classes, leis ou conceitos explicativos são, antes, o próprio movimento intrínseco e real dos momentos de cada vez considerados. O sistema, como universal mais geral é, por conseguinte, um todo vivo simultaneamente ideal e real, em que o ideal é determinado pelo próprio comportamento e relacionamento objectivo de cada momento real, do mesmo modo como cada momento real recebe um momento próprio dentro do sistema a partir do universal. Por isso, segundo Hegel, “uma divisão filosófica não é em geral uma classificação exterior de uma matéria disponível, feita segundo um qualquer ou diversos fundamentos de divisão, mas o diferenciar imanente do próprio conceito.”17 Mas esta observação acerca do significado da vida como exemplificativa do funcionamento da totalidade do sistema faz levantar a questão sobre o seu carácter metafórico. Ou seja, em que medida estamos a lidar com a vida como simples metáfora do sistema, ou com as espécies vivas como mera metáfora das categorias lógicas ou do “universal” em geral? Não seria aqui possível investigar mais a fundo a teoria hegeliana da metáfora, ou seja, definir os meios conceptuais pelos quais uma caracterização pode ser entendida como literal e científica em sentido pleno, ou somente metafórica e imagética. O sistema é um todo, dividido em três grandes círculos ou disciplinas principais, a lógica, a filosofia da natureza e a filosofia do espírito. Estes três momentos repetem-se e, por assim dizer, reflectem-se especulativamente entre si. Assim, cada categoria lógica recebe o seu significado com base em duas ordens de razões. Por um lado, tem um lugar dentro do sistema lógico de determinação, ou seja, existe uma categoria que a ela conduz e uma outra que resulta dela, e o seu lugar no seu sistema classificativo define-se por essa posição de resultado de uma anterior e de pressuposto 17 “Eine philosophische Einteilung ist überhaupt nicht eine äußerliche, nach irgendeinem oder meheren aufgenommenen Einteilungsgründen gemachte äußere Klassifizierung eines vorhandenen Stoffes, sondern das immanente Unterscheiden des Begriffes selbst” (1995, §33A,). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 41 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer para uma posterior. Mas, além disso, a categoria lógica está também inserida no sistema como um todo, isto é, que compreende a Lógica (ou antes, nos termos de Hegel, “o Lógico”), a Natureza e o Espírito. Por isso, a categoria lógica só recebe o seu sentido pleno na medida em que serve para categorizar adequadamente – dir-se-ia literal e não metaforicamente – uma dada secção do real. A vida como categoria lógica reflecte, por conseguinte, a vida como categoria natural e espiritual e permite conceber as relações vitais existentes na natureza e no espírito. Ela não é uma metáfora mas exposição conceptual adequada dos fenómenos e das relações referidas entre indivíduo singular e espécie universal e caracteriza por isso, de modo literal, a relação entre o existente singular e o universal, como espécie ideal em que de algum modo se subsume. 4. A ideia da vida e a lógica do sistema. Mas a questão vai um pouco mais longe. Questionei em que medida as relações vitais e a categorização especificamente vital podem ser legitimamente utilizadas para compreender as relações dialécticas mais gerais entre universal e singular, ou entre real e ideal, entre universalidade lógica e concretude real. A questão só poderá ser respondida no âmbito de uma consideração do estatuto e significado das categorias de tipo lógico, como a ideia de vida, dentro do todo do sistema. Julgo que a Ciência da Lógica deve ser entendida como um domínio autónomo do puro pensamento, ou seja, de significações. Nos termos de Hegel, “a propósito do pensamento não se pode propriamente perguntar pelo significado: o próprio pensamento é o significado.”18 Ou seja, as categorias lógicas explicam-se a si mesmas dentro do seu próprio sistema. Por isso o sistema lógico é dito auto-constituído: cada categoria confere significado às outras e o seu sistema, como um todo, funda-se e esclarece-se a si mesmo. Mas a este sistema auto-constituído e aparentemente auto-suficiente acrescem uma filosofia da natureza e uma filosofia do espírito, ou seja, uma realidade, isto é, um domínio não-lógico de determinação. A vexata quaestio de como definir a relação entre a Ciência da Lógica e a denominada Filosofia real, ou seja, Filosofia da Natureza e do Espírito só pode ser respondida, em meu entender, a partir dos recursos postos à disposição do sistema pela própria lógica. Ela pretende ser um catálogo das puras 18 “Beim Gedanken kann eigentlich nicht nach der Bedeutung gefragt werden: der Gedanke ist selbst die Bedeutung” (1993, 222). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 42 Diogo Ferrer Espécies, Classificação e Evolução em Hegel significações e o sistema das determinações puras do pensar, cujo ser é a própria significação. Assim como o sentido pleno da lógica só se encontra na sua relação especulativa com o real, o sentido pleno de cada categoria19 só se pode compreender como um momento co-determinante da relação entre a lógica e a realidade. Assim, não será incorrecto dizer-se que a relação entre a lógica e a realidade só parece misteriosa ou objecto de especial dificuldade de interpretação porque não se recorre àquilo que está mais à mão e que está à mão a cada passo da leitura da Ciência da Lógica, a saber: toda e cada uma das categorias nela tematizadas. As categorias lógicas são não só adequadas para pensar a relação entre a própria lógica como um todo e a realidade, mas também, o seu significado mais pleno consiste justamente em pensar uma tal relação. A lógica, como um todo, é também e simultaneamente aquilo que se tem denominado a “lógica do sistema” e serve para pensar as relações mais gerais do sistema. Nesta linha de pensamento, tomando como exemplo algumas “determinações do pensar” retiradas da lógica, e dito o mais sumariamente possível: a lógica pode ser entendida como a essência do real; ou poderá dizer-se que a lógica é um universal que se particulariza no real; ou que cada parte do sistema é um ser-em-si que se torna ser-para-outro. Tomamos assim como exemplos da relação entre Lógica e realidade três categorias tipicamente lógicas: a essência (Wesen); o universal e o particular (Allgemeines, Besonderes); o serem-si e ser-para-outro (In-sich-sein, Sein-für-anderes) Diversos outros modos de pensar a relação entre lógica e realidade seriam possíveis com base nesta concepção. A vida, ou o denominado processo do género, em particular, não é pois uma metáfora ilustrativa, mas um modelo lógico legítimo para a concepção das relações entre universal e singular no seu significado mais vasto em Hegel. A espécie viva é similar ao “universal verdadeiro, infinito, que é em si imediatamente, do mesmo modo, particularidade como singularidade.”20 Este é um modelo privilegiado para compreender o modo como o indivíduo singular, dotado da sua particularidade, produz o universal, ou seja, produz a sua espécie, do mesmo modo como a espécie produz o indivíduo singular. A vida é a forma imediata da ideia porque esta é “a unidade do conceito e da realidade”,21 o que só é realizável como a relação concreta entre a espécie 19 A expressão é de Puntel (1973, 88). “[…] wahrhafte, unendliche Allgemeine, welches unmittelbar ebensosehr Besonderheit als Einzelheit in sich ist” (1816, 37). 21 “Die Einheit von Begriff und Realität” (1816, 208). 20 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 43 Diogo Ferrer Espécies, Classificação e Evolução em Hegel e o indivíduo. A pertença e a relação entre as espécies não é, como se viu, função do observador ou da reflexão exterior, mas do comportamento mútuo dos viventes. A pertença à espécie deriva do reconhecimento, da reprodução sexuada e da “reprodução dos géneros vivos”.22 O universal é reconhecimento, e o comportamento específico do reconhecimento é o que se pode encontrar na natureza como o comportamento reprodutivo, que opera normalmente no sentido de garantir o que hoje chamaríamos de ‘integridade do genoma’,23 que permite a coerência e a funcionalidade orgânica do ser vivo. Ao vivente, existente no seio da espécie, define-se, assim, para além da relação negativa de agressão e de defesa perante o meio, pela reprodução sexuada. Neste ponto, poderá observar-se que ontologia e filosofia da natureza hegelianas têm um parentesco conceptual com o conceito biológico da espécie e no “pensamento populacional” de Mayr. O problema mais geral da classificação levantado por Mayr deriva de que “de longe a mais séria deficiência na abordagem da maior parte dos filósofos foi a assunção de que a classificação dos animais e das plantas [...] é essencialmente semelhante em princípio à classificação dos objectos inanimados [...]. É impossível chegar a classificações com significado, de itens que são produto de uma história de um desenvolvimento, a menos que sejam devidamente tomados em consideração os processos históricos responsáveis pela sua origem.”24 Todo o pensamento hegeliano, tanto ao nível da lógica, da filosofia da natureza ou do espírito, funda-se nesta ideia de uma classificação a partir do desenvolvimento, e de considerar cada momento do sistema como produto da história de um desenvolvimento, ao passo que o nervo da dificuldade dos sistemas de classificação estava, segundo Mayr, em não se entender a biologia como uma ciência histórica, e procurar proceder à classificação zoológica ou botânica com base na noção lógica de classe e de semelhanças. Não dispondo de uma teoria da evolução válida, Hegel não compreendeu que a historicidade caracteriza também a natureza empírica. No que se refere à classificação em concreto, Hegel considera, conforme já citado acima, que “para a determinação específica [da espécie], um instinto correcto levou a tomar as determinações de diferenciação dos dentes, das garras e similares – das armas, porque estas são aquilo por que o próprio animal se põe 22 23 “Fortpflanzung der lebenden Geschlechter” (1816, 227). Cf. M. Claridge, 2010, 98-99; Mayr 2004, 178-179. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 44 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer e conserva, i.e., de diferencia perante os outros.”25 Assim, o mesmo princípio da negatividade que comanda o desenvolvimento lógico-conceptual deve também ser utilizado como princípio classificativo, o que não significa, naturalmente, que Hegel chegasse a compreender que a competição e luta real pela sobrevivência, a par da variabilidade, fossem os princípios determinantes para a evolução das espécies. 5. A essência e a crítica ao essencialismo. Uma vez recusado um sistema “artificial” de classificação pelo observador exterior, e a classificação entendida, a todos os níveis do real e do pensar, como assunto objectivo, Hegel procura justamente aquilo que Mayr refere como uma alternativa quer ao essencialismo de tipo platónico, quer ao nominalismo. A espécie é sem dúvida uma realidade objectiva,26 com características de realidade espácio-temporalmente determinada que a fazem assemelhar-se a um indivíduo, embora com outro tipo de coesão. O essencialismo, que atribui à espécie uma realidade não espácio-temporal e a entende como um princípio de semelhança entre os seus membros, é totalmente inadequado tanto para o pensamento dialéctico quanto para a biologia evolucionista. A noção platónica de essência permite elaborar classes segundo um “conceito tipológico” ou “morfológico” de espécie, segundo o qual “não há relação especial entre os membros de uma espécie além da sua semelhança. A espécie era apenas uma classe de nível inferior ao género.”27 O problema da essência, entendida como o eidos platónico, é que “visto que a essência é constante e nitidamente delimitada perante as outras essências, ela não pode, absolutamente, evoluir.”28 E este é um problema que se põe tanto para o 24 Mayr 1982, 238-239. “Für die spezielle Bestimmung [der Art] ist ein richtiger Instinkt darauf gefallen, die Unterscheidungsbestimmungen auch aus den Zähnen, Klauen und dergleichen, - aus den Waffen zu nehmen, denn sie sind es, wodurch das Tier selbst sich gegen die anderen als ein Fürsichseinendes setzt und erhält, d.i. sich selbst unterscheidet” (1830, § 368A). 26 “I have always thought that there is no more devastating refutation of the nominalistic claims than the fact that primitive natives in New Guinea, with a Stone Age culture, recognize as species exactly the same entities of nature as western taxonomists” (Mayr, 1988, 317; cf. tb. 315). De acordo com a sua realidade, embora por razões diferentes estão também Claridge 2010 e Mishler 2010. 27 Mayr, 1988. 337. V. tb. 172, 186, 336. Sobre este tópico e os seguintes, retomo, com algumas repetições, o meu estudo Ferrer 2009. 28 Mayr, 1988, 176. 25 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 45 Diogo Ferrer Espécies, Classificação e Evolução em Hegel pensamento evolucionista quanto para Hegel. Em termos hegelianos, a negatividade que distingue as essências, cada uma delas vincadamente diferente de qualquer outra e incapaz de alteração, constitui-se a partir da negação da alteridade. A essência é uma identidade fixa, que recebe o seu sentido pela negação do outro, da alteridade e da alteração. Mas é justamente esta definição da essência pela negatividade que provoca, segundo Hegel, a necessidade de a criticar e superar por categorias mais concretas. O conflito teórico entre essência e evolução, ou desenvolvimento corresponde à relação, em Hegel, entre a Doutrina da Essência e a Doutrina do Conceito na Ciência da Lógica. Embora não pudesse, em 1830, admitir a evolução das espécies naturais e a historicidade da vida na natureza, Hegel defendeu não só que os universais estão sujeitos a movimento e desenvolvimento, como considerou que o movimento é condição da sua inteligibilidade. Assim, procurou definir a essência, na Ciência da Lógica, de tal forma que pudesse ser criticada radicalmente e substituída pelo “conceito”, dotado de uma estrutura universal concreta e de um movimento de desenvolvimento. Não havendo razões para admitir a evolução das espécies naturais como facto real, admitiu, como se disse, a evolução ou, mais exactamente, o “desenvolvimento” como princípio de relação lógica entre as categorias – recusando, também aqui, ao nível ontológico fundamental, qualquer forma de essencialismo. A ideia da Lógica de Hegel integra num sistema dialéctico noções, na sua maior parte já conhecidas da história da filosofia, como por exemplo a de essência, e concede-lhe o seu lugar próprio. Uma essência, entendida como imóvel, eterna, separada do real existente, asperamente diferente e incomunicável com outras, pode ser útil para determinados fins categoriais. Não pode, porém, ser entendida como verdadeira em qualquer sentido absoluto. Assim, Hegel integra na Lógica uma tal essência imóvel, própria do essencialismo, mas define-a de tal modo que a imobilidade não é mais do que um aspecto limitado da sua definição, embora legítimo dentro dos seus limites. A essência aparece então definida como um modo de ser ideal, como plenamente idêntica a si própria, eterna porque incapaz de alteração ou devir de qualquer tipo, para além de manifestar-se no seu outro. Nesta definição encontramos facilmente as principais propriedades do eidos em sentido platónico, a saber, imutabilidade, idealidade, identidade e separação e capacidade de produzir aparência no mundo sensível. Alguns aspectos centrais da inteligibilidade do real, como o princípio da identidade, da não- Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 46 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer contradição ou as leis da natureza em geral, entre outros, são por Hegel derivadas e classificadas sob a sua definição de essência que prova assim a sua utilidade para certos fins de inteligibilidade. As espécies vivas que, salvas as devidas excepções, estão separadas estritamente entre si por barreiras fenéticas, reprodutivas, comportamentais e outras, parecem distinguir-se por ostentarem diferentes essências, não havendo por isso transição entre elas. Nestas circunstâncias, levanta-se para qualquer pensamento evolucionista – e também para Hegel – a dificuldade de encontrar uma terceira alternativa entre uma recusa nominalista da realidade e objectividade da espécie, por um lado e, por outro, o essencialismo, que admite a espécie como conjunto de seres que obedecem a uma mesma essência ideal imóvel, e que ostentam por isso uma similaridade entre si. Como solução para a dificuldade, o conceito de população, localizada espácio-temporalmente e susceptível de alteração substitui hoje a essência, classicamente entendida como eidos imóvel e fora do espaço e do tempo.29 Levanta-se então a questão a respeito do princípio de unidade da espécie, posto que não mais se trata de uma unidade ideal que se manifesta em diferentes exemplos singulares. Como unidade ideal, a espécie como essência não levantava o problema da unidade, posto que era uma unidade ideal fora do espaço e do tempo, e por isso insusceptível de perda da sua unidade pela disseminação. Ela limitava-se a mostrar-se nos seus exemplos, e consequentemente neles somente aparecia. Daí a considerar os exemplos como simples aparência sem realidade foi um passo. Ao deixar de tomar o singular como aparência, a espécie como conceito biológico e populacional levanta a questão da sua própria unidade, posto que é uma realidade física e empírica, disseminada e dividida então pelos seus diferentes membros. Não se limita a aparecer nestes, mas é de facto constituída por eles. Tendo a população existência objectiva e exclusivamente física e real, a questão pelo estatuto de uma tal entidade se torna urgente. Um princípio de resposta é já antigo: “em finais do século XVII, John Ray propôs uma solução inteiramente nova. Independentemente dos graus de variação, deveriam ser considerados da mesma espécie todas aquelas variantes que se tivessem originado 'da semente de uma e da mesma planta' ou, para o caso dos animais, que tivessem sido gerados pelos mesmos pais. A reprodução era aqui, pela primeira vez, 29 Cf. Mayr, 1988, 204, 351. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 47 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer introduzida na definição da espécie.”30 Em termos mais modernos, a espécie biológica – embora não exclusiva e invariavelmente – é definida por uma comunidade reprodutiva. Como vimos, a concepção hegeliana da espécie como universal que se produz como singular e inversamente, apresenta um fundamento lógico-dialéctico para uma tal concepção. O elo de ligação da espécie deixa de ser uma propriedade inteligível de uma essência intemporal idêntica, capaz de estar presente, sem interrupção, em muitos tempos e espaços separados. Este elo de ligação reside então na própria capacidade de reconhecimento, na pulsão auto-reprodutiva e na sexualidade. O conceito biológico da espécie e o pensamento populacional a ele ligado permitem entender a classificação como facto objectivo, histórico e comportamental, à maneira hegeliana. Por um lado, ao nível das categorias mais elevadas, a classificação é feita, desde Darwin, a partir da comunidade de ascendência, eliminando a necessidade de uma observação e pesagem de caracteres que permitisse definir, de modo sempre mais ou menos arbitrário e artificial, uma maior ou menor similaridade entre dois seres vivos. Por outro lado, se se considerar o indivíduo, a classificação é feita objectivamente pelo comportamento reprodutivo do próprio vivente, conforme se referiu. Conceptualmente, passa-se assim de uma versão intelectualista da essência para uma versão intersubjectiva, com base no reconhecimento. O conceito biológico da espécie como ascendência comum e comunidade reprodutiva traz a reprodução sexuada para o centro da questão biológica e filosófica, do reconhecimento, subjectivo e objectivo, da espécie. E esta admissão da sexualidade tem como consequência a alteração do estatuto não só da espécie, que se torna um processo objectivo, e do indivíduo, porquanto “organismos que pertencem a uma espécie são partes da espécie, não membros.”31 Ou seja, o indivíduo não é subsumido a um conceito abstracto, como exemplar, mas participante concreto numa comunidade reprodutiva real. O universal é, por isso, concreto. Na medida em que a reprodução sexuada só tem sentido dada a unicidade singular de cada indivíduo,32 a biologia vem ajudar a esclarecer a singularidade como categoria filosófica inseparável da espécie universal. O universal concreto verifica-se 30 31 Ib. 340. Sobre Darwin, v. ib. 318. V. tb. Mayr 2004, 177ss. Mayr, 1988, 344. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 48 Diogo Ferrer Espécies, Classificação e Evolução em Hegel precisamente como espécie biológica, em que o universal não é nem uma essência ideal abstracta, nem uma mera classe produzida por um nome, nem uma categoria classificativa pertencente ao classificador, mas um comportamento concreto de reconhecimento e pertença, o que se manifesta, e.g., no comportamento matrimonial de muitas espécies animais. Algumas expressões hegelianas, sobre a transição e produção mútua entre singular e universal podem receber sentido mais claro justamente por meio desta consideração de conceitos só muito posteriormente elaborados pela biologia. Exemplo disto, como se disse, é a noção de que singular e universal como que transitam entre si, um remetendo ao outro: “o progredir consiste antes em que o universal se determina e é para si o universal, i.e., do mesmo modo singular e sujeito.”33 O modelo biológico do conceito torna certamente mais compreensível a referência de Hegel, a propósito do conceito, ao amor e ao reconhecimento: “o universal poderia ser também chamado o livre amor e bem-aventurança sem limites, posto que é um relacionar-se com o diferente somente como consigo mesmo; nesse, ele retornou a si mesmo.”34 O como um modo de continuação do indivíduo singular no seu outro, como pulsão viva e espécie real. Hegel submete a uma crítica radical a concepção essencialista da essência – passe a expressão, – mostrando que a essência pressupõe a caconceito hegeliano não é um universal abstracto, mas poderá compreender-se tegoria do “conceito” e deve ser substituída por esta categoria. O conceito é mais “verdadeiro”, mais concreto, mais inteligível e capaz de apreender realidades mais complexas do que a essência. As principais características do “conceito” – que é a categoria que sucede à essência na ordem lógica – são a capacidade de se desenvolver e de constituir uma relação organizativa e sistémica entre singulares e particulares diversos. Enquanto a essência se exprime como necessidade, o conceito exprime-se como liberdade, no sentido de pleno reconhecimento do indivíduo num todo, a par do desenvolvimento autónomo do singular. É o conceito hegeliano em sentido pleno, onde o singular se reconhece e desenvolve no universal, e não a essência, como identidade necessária do fenómeno, 32 Mayr, 2004, 76. “[D]as Fortgehen besteht vielmehr darin, daß das Allgemeine sich selbst bestimmt und für sich das Allgemeine, d.i. ebensosehr Einzelnes und Subjekt ist” (1816, 290). 34 Das Allgemeine [...] könnte [...] auch die freie Liebe und schrankenlose Seligkeit gennannt werden, denn es ist ein Verhalten seiner zu dem Unterscheidenen nur als zu sich selbst; in demselben ist es zu sich 33 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 49 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer que permite acomodar os aspectos referidos do pensamento biológico. Na lógica hegeliana, a essência e o conceito, no significado técnico dos termos em Hegel, repartem entre si as funções tradicionalmente atribuídas ao universal. Uma das inovações conceptuais mais surpreendentes e originais do pensamento de Hegel resulta da compreensão de que o universal não é a essência mas o conceito, dotado de desenvolvimento. O ser em geral, uma vez compreendido como implicando também a sua negação, é entendido como submetido a um devir ou alteração sem reflexão ou retorno. A essência, por sua vez, distingue-se do ser ao receber as características seguintes: é pura identidade e reflexão em si mesma; e é negação do outro, ou posição do outro como nulo, i.e., degrada-o a simples aparência. O essencialismo corresponde, nestes termos, à recusa do devir e à degradação do singular real a simples aparência, entregue à total contingência. O seu significado próprio está no universal ideal, fora dele mesmo. O conceito, por fim, distingue-se da essência porque reúne a imutabilidade desta com o simples devir do ser num “movimento do pensar” cuja designação técnica é “desenvolvimento” (“Entwicklung”). No desenvolvimento, a alteração é limitada pela reflexão, e a reflexão não se limita a reconduzir o outro a si. A identidade não se perde então na simples alteração. O conceito, como esta simultânea posição do outro e da própria reflexão serve, assim, tanto para pensar fenómenos de tipo histórico, em que um mesmo sujeito recebe formas diferentes, quanto organizações e organismos complexos, onde cada parte se reencontra reflectida nas outras, participando todas de uma mesma totalidade. 6. Os princípios evolucionistas e o pensamento de Hegel. Em qualquer caso, Hegel não aceita a ideia de um desenvolvimento gradual de umas espécies naturais nas outras, embora aceite a noção de um desenvolvimento, que não é gradual ou quantitativo, mas que envolve verdadeira diferença, entre conceitos ou determinações do pensar ao nível do pensamento filosófico. Este desenvolvimento abrange tanto os conceitos lógicos quanto o desenvolvimento histórico. Admite, além disso, o desenvolvimento ao nível do espírito. A natureza não expõe correctamente o conceito, mas desempenha antes o papel de limite do conceito e, por isso, é também a selbst zurückgekehrt” (1816, 36). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 50 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer ideia exposta sob uma forma não-conceptual, ou seja, intuível. Contudo, a própria natureza, embora seja pura diferença em relação ao conceito, o “ser-outro” do espírito em sentido absoluto, é marcada pela inteligibilidade que só o conceito lhe pode conferir. Ela exibe os traços do conceito, desde o seu primeiro momento, onde é a mais pura aconceptualidade, i.e., a pura intuição. Mesmo a pura exterioridade do espaço, grau zero do conceito, e relação puramente não conceptual, é já uma forma análoga ao conceito. O espaço é, a saber, aquilo que é capaz de abraçar uma multiplicidade, composta de vários pontos ou lugares numa unidade totalmente exterior e não-refectida. Trata-se de uma diferença totalmente indeterminada, mas análoga à relação de subsunção conceptual. Porque mesmo quando o nega, nunca abandona inteiramente o conceito, a natureza vai exibir ou antes, reconstituir, as formas do conceito na exterioridade espacial. E, na medida em que alcança o nível do organismo vivo, a natureza é capaz de expor a ideia, ou seja, o conceito em união com realidade. Em face dos dados conceptuais estudados, não há, aparentemente, nenhum argumento decisivo contra a aceitação do desenvolvimento conceptual ao nível da orgânica. E tão-pouco, por conseguinte, contra a integração da evolução das espécies na filosofia da natureza hegeliana. Na verdade, os principais componentes teóricos mais gerais da teoria da evolução não entram em conflito com as concepções hegelianas. Em primeiro lugar, Hegel dispõe da noção fundamental de que a vida é um processo essencialmente reprodutivo. Ou, melhor ainda, o vivente é ontologicamente determinado pela reprodução. Segundo Hegel, “só como reproducente, e não como ente, é que o vivente é e se mantém.”35 “O organismo animal é reprodutivo; é-o essencialmente, esta é a sua efectividade.”36 Em segundo lugar, reconhece que cada indivíduo é único, no sentido de singular e irrepetível. A espécie, conforme procurei mostrar, não é uma essência, mas um universal real e concreto, que não pode ser pensado fazendo abstracção do singular, que se reflecte do seu outros nas suas particularidades. Verificámos por isso uma aproximação possível entre o pensamento populacional e o universal hegeliano. A singularidade é admitida por Hegel, que não retira, no entanto, as conclusões que dela 35 “[N]ur als dieses sich Reproduzierende, nicht als Seiendes, ist und erhält sich das Lebendige” (1830, § 352). 36 “Der animalische Organismus ist reproduktiv; dies ist er wesentlich, oder dies ist seine Wirklichkeit” (1830, § 353Z). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 51 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer parecem decorrer, ou seja, tanto a importância fulcral da variabilidade quanto a historicidade da natureza, conforme requeridas pela evolução. Em terceiro lugar, Hegel conhece que é ontologicamente determinante para o vivente a sua relação com o seu outro e com o seu meio. Na verdade, a figura do vivente, segundo Hegel, não é senão uma forma intuível da relação consigo próprio do organismo e com o seu meio. Aquilo que materialmente se intui na figura do vivente é a pura relação a si e ao seu meio, na verdade, um conceito relacional. Esta relação determina-se como assimilação teorética e prática, passiva e activa, mas é também relação de competição. A relação do vivente com o meio parte da carência essencial ao vivente. “Só um vivente sente carência.”37 O vivente não é pensável sem a relação ao meio, orgânico e inorgânico, para onde se dirige e de onde se separa para constituir a sua própria auto-reflexão com sujeito. Em quarto lugar, concebe a relação com o meio como sujeita ao acaso e à negação. “O ambiente da contingência exterior só contém quase o estranho; ele exerce uma permanente violência e ameaça de perigos […].”38 A relação com o meio e os competidores é de breve satisfação, carência e morte, embora evidentemente Hegel jamais se tenha aproximado do mecanismo mais importante da evolução e da descoberta maior de Darwin, a selecção natural. No entanto, o acaso, necessário à variabilidade e à abertura de novas possibilidades evolutivas, não é de todo estranho ao pensamento hegeliano. “As formas da natureza não se deixam inserir num sistema absoluto e as espécies dos animais estão, assim, expostas à contingência.”39 Ou seja, Hegel está muito longe de qualquer concepção das espécies vivas como formas necessárias criadas por desígnio, mas entende-as como entregues à contingência. Não há nenhum sistema coerente pré-determinado em que se enquadrem as espécies vivas, mas o seu sistema é, por assim dizer, um sistema negativo, um equilíbrio produzido pela pura contingência. Isto acontece também na medida em que o acaso é uma categoria da maior importância na Ciência da Lógica, e deve por isso determinar a priori largos domínios do real. O acaso intervém na natureza viva de modo essencial, tal como requerido pela evolução darwiniana. 37 “Nur ein Lebendiges fühlt Mangel” (1830, § 359). “Die Umgebung der äußerlichen Zufälligkeit enthält fast nur Fremdartiges; sie übt eine fortdauernde Gewaltsamkeit und Drohung von Gefahren […]” (1830, § 368). 39 “Die Formen der Natur sind also nicht in ein absolutes System zu bringen und die Arten der Tiere 38 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 52 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer Em quinto lugar, não admite a presença na natureza de nenhuma força vital específica dos viventes, nenhuma vis formativa que conduzisse os seres vivos em qualquer sentido finalístico, ou que pudesse orientar alguma evolução. Hegel entende o procedimento científico, em todos os domínios, como imanente. Nada intervém, por assim dizer, de fora. O desenvolvimento é, a todos os níveis, seja na lógica ou na natureza, um desenvolvimento puramente imanente. Isto torna o procedimento dialéctico compatível com qualquer explicação da vida que apenas conte com a química, ou da evolução da vida e das espécies que conte com a reprodução, a variabilidade, a morte, o acaso e pouco mais. Não há nenhum interveniente estranho aos meros mecanismos, que se podem dizer cegos, da natureza. Deverá observar-se que o modo como o conceito lógico intervém na natureza e aparentemente condu-la em direcção à complexificação – ou, na terminologia do autor, o modo como a ideia retorna a si mesma, – é sempre um auto-movimento das próprias formas naturais, que se constituem como formas exclusivamente a partir da natureza.40 Aliás, esta imanência da explicação natural é parte integrante daquilo que é demonstrado pela Filosofia da Natureza de Hegel. Isto bastará para indicar que, embora não tenha de modo nenhum antecipado Darwin, o pensamento hegeliano não só não se opõe ao pensamento evolucionista, como fornece algumas das bases ontológicas para a sua compreensão, nomeadamente, nas suas concepções de desenvolvimento, de universal concreto e da vida natural. E, por outro lado, que a sua noção de movimento do conceito é uma recusa fundamental do esssencialismo. 7. Conclusão. Sobre a recusa da evolução por Hegel. Como conclusão, gostaria de retomar a conhecida rejeição explícita por Hegel de qualquer transformação das espécies: “tais representações nebulosas, – que no fundo são representações sensíveis, tal como é uma representação nebulosa, e no fundo sensível, o chamado emergir, por exemplo, das plantas e animais a partir da água e, damit der Zufälligkeit ausgesetzt” (1830, § 368 Z). 40 Isto é, naturalmente, ponto assente em qualquer concepção científica actual da vida, independentemente de se subscrever um programa de tipo reducionista ou não. Cf. E. F. Keler, “It Is Possible to Reduce Biological Explanations to Explanatyions in Chemistry and/or Physics” in Ayala & Arp (eds), op.cit., 19- Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 53 Diogo Ferrer Espécies, Classificação e Evolução em Hegel então, o emergir das organizações animais mais desenvolvidas a partir das inferiores, e etc., – tais representações nebulosas têm de ser recusadas pela consideração pensante.”41 Esta rejeição significa principalmente duas coisas: por um lado, a rejeição de uma concepção metafísica; por outro, a recusa de qualque concepção gradualista e somente quantitativa do desenvolvimento, que entende como reducionista. Quanto ao primeiro ponto, Hegel considera a evolução como semelhante à emanação, ou seja, modos metafísicos de esbater o significado do processo evolutivo em si mesmo. Tanto o reducionismo gradualista quanto a metafísica espiritualista de tipo emanatista, reconduzem o processo ora ao seu terminus a quo ora ao ad quem, impedindo a compreensão da realidade efectiva do processo, que é o que sobretudo interessa a Hegel. O processo seria, na verdade, inútil e insignificante, se fosse dado um fundamento positivo, como o seu sentido último, no seu começo ou no seu termo. Quanto ao gradualismo, ou seja, conceber a evolução como gradualmente, “paulatinamente evoluindo no tempo”,42 seria, julga Hegel, no máximo um problema empírico sem interesse filosófico. Hegel subestima sem dúvida o interesse filosófico da teoria da evolução pouco a pouco das espécies ao longo do tempo, sobretudo pelo que a sua realidade e os seus resultados têm de surpreendente. No entanto, a sua preocupação em evitar um gradualismo corresponde à necessidade de conceber o processo como produtor de real novidade. Hegel recusa o gradualismo porque está interessado no estatuto ontológico, nas propriedades estruturais e na realidade a atribuir às formas complexas que emergem onde antes não estavam. O gradualismo faz esquecer o facto de que as formas complexas possuem e ganham, por direito próprio, uma realidade irredutível a qualquer explicação que as entenda como “nada mais que” uma determinada disposição física ou química de compostos mais elementares.43 Como vimos, Hegel somente considera inteligível o próprio processo, e não essências imóveis – sejam estas dadas como começo ou como telos do processo. A descrição empírica do processo de evolução das espécies como um acontecimento gradual – obviamente indisponível em 1830 – permite compreender como se formam as realidades mais 31 e J. Dupré, 2010, esp. 33. V. Mayr, 2004, 22-23. 41 “Solcher nebuloser, im Grunde sinnlicher Vorstellungen, wie insbesondere das sogenannte Hervorgehen z.B. der Pflanzen und Tieren aus dem Wasser und dann das Hervorgehen der entwickelteren Tierorganosationen aus den niedrigeren usw. ist, muß sich die denkenden Betrachtung entschlagen” (1830, § 249). 42 “[…] nach und nach in der Zeit evolvierend” (1830, § 249Z). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 54 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer complexas a partir das mais simples. Deixa na sombra, no entanto, o facto de que a realidade das mais complexas não é idêntica à realidade das mais simples, embora, estranhamente, nada mais contenha de real do que estas. O seu estatuto facilmente se torna então duvidoso e leva a uma dualidade entre reducionismo e emergentismo. Por isso, segundo Hegel, é importante compreender que a causa da realidade não é a matéria de que toda a realidade é de facto, em última análise constituída, mas aquilo que denomina o conceito.44 O conceito é o que confere inteligibilidade. A subjectividade própria ao conceito, por sua vez, quando não é entendida explicitamente, à maneira de Hegel, como função organísmica presente na natureza viva ou inteligente, costuma permanecer somente implícita nas teorias.45 Hegel pretende naturalizá-la, e realizá-la. Mas no que se refere ao conceito e às suas condições de sentido, o conhecimento empírico não pode fornecer mais do que as bases de trabalho. Referências bibliográficas CLARIDGE, M. F. “Species Are Real Biological Entities”, in Ayala & Arp (eds), Contemporary Debates in Philosophy of Biology, Chichester 2010, 91-109 DUPRÉ, J. “It Is not Possible to Reduce Biological Explanations in Chemistry and/or Physics”, in Ayala & Arp (eds.), op cit., 32-47 [= 2010] CUMMINGS & ROTH, “Traits Have Not Evolved to Function the Way they Do Because of a Past Advantage”, in Ayala & Arp (eds.), op. cit., 72-85 [= 2010] 43 Cf. J. Dupré, 2010, 34. Também segundo Mayr, uma especificidade da biologia é que “most theories in biology are based not on laws, but on concepts” (Mayr, 2004, 28, 30). Entende o conceito que, no seu entender, evolui, como a palavra correcta para designar o chamado “meme” (ib.153-154). 45 Conforme pretendem Cummings & Roth (2010) uma vez que “it is dangerous to start thinking that natural objects, processes, structures or traits are for something […because] it inevitably suggests intelligent design” (81). Para evitar tal perigo de recurso a instâncias de tipo sobrenatural e não-científico, como a teleologia, negam a existência objectiva de funções na natureza. Assim, chegam à posição muito improvável, de que o coração, por exemplo, embora bombeie o sangue, entre outras coisas que também faz, não existe para bombear o sangue (75) ou que os olhos, embora possam ver, não são para ver (81). As funções, como relações organísmicas “para” alguma coisa não são objectivas, mas dependem das finalidades teóricas arbitrariamente adoptadas pelo observador (82-83). Esta é, segundo Hegel, a posição típica da denominada “reflexão exterior”. O sujeito, humano ou animal, como conjunto de funções centralizadas pela meta-função do “eu” está então ausente da natureza objectiva. Mas, não podendo o sujeito, como condição básica de sentido para qualquer empreendimento cognoscitivo, simplesmente desaparecer, tem a sua função entregue exclusivamente ao observador exterior. Para Hegel, pelo contrário, o sujeito é real e está presente já desde a natureza viva. 44 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 55 Espécies, Classificação e Evolução em Hegel Diogo Ferrer FALKENBURG, Die Form der Materie. Zur Metaphysik der Natur bei Kant und Hegel, Frankfurt a. M., 1987, 120-121 FERRER, D. “Acerca da Ontologia do Singular e do Vivente em Hegel”, in M. L. Couto Soares, N. Venturinha & G. Santos (dir.), O Estatuto do Singular: Estratégias e Perspectivas, Lisboa, 2009, pp. 235-261 HARRIS, E. “How Final Is Hegel’s Rejection of Evolution?” In S. Houlgate (ed.), Hegel and the Philosophy of Nature, Albany, 1998, 189-208 HEGEL, G.W.F. Wissenschaft der Logik. Die Lehre vom Begriff (1816), Hamburg,, 1994 [=1816] ____________, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften II, in Werke 9, Frankfurt a.M. 1993 [=1830] ____________, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Hamburg, 1995 ____________, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie. Einleitung, ed. Jaeschke, Hamburg, 1993 HERTLER & WEINGARTEN, “Evolutionskonzepte vor Darwin”. In O. Breidbach & D. v. Engelhardt (Hg), Hegel und die Lebenswissenschaften, Berlin, 2002, 195-224 Hösle & Illies, Darwin, Freiburg, 1999 MARMASSE, G. Penser le réel, Hegel, la nature et l’esprit, Paris, 2008 MAYR, E. The Growth of Biological Thought. Diversity, Evolution and Inheritance (Cambridge / London, 1982 [=Mayr 1982] _________, Toward a new Philosophy of Biology. Observations of an Evolutionist, Cambridge/London, 1988 [= Mayr, 1988] _________, What Makes Biology Unique? Considerations on the Autonomy of a Scientific Discipline, Cambridge, 2004 MISHLER, B. “Species are not uniquely real biological entities”, in Ayala e Arp (eds.), op. cit, 110-122 [= 2010] O’HEAR, A. “Evolution and Aesthetics”, in A. O’Hear (ed.), Philosophy, Biology and Life, Cambridge, 2005, 155-176 PUNTEL, L.B. Darstellung, Methode und Struktur, Bonn, 1973 WANDSCHNEIDER, D. “Hegel und die Evolution”, in O. Breidbach & D. v. Engelhardt (Hg), op. cit, 225-240. Artigo recebido em maio de 2010 Artigo aceito para publicação em julho de 2010 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 56 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 57-73 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch* ____________________________________________________________________ Resumo: O presente trabalho visa entender a concepção hegeliana do tempo e do espaço como realização de um desiderato que a estética transcendental de Kant deixa em aberto. Argumenta-se que a teoria kantiana do tempo e do espaço exige uma modificação conservadora para evitar uma contradição que, de contrário, surgiria na distinção entre a idealidade transcendental e a relidade empírica do espaço e do tempo. No entanto, mesmo na sua forma revisada a concepção kantiana não explica a mediação do tempo e do espaço com o nosso pensamento discursivo. Defende-se que a dedução hegeliana do tempo e do espaço busca conciliar o tempo e o espaço discursivamente e, com isso, empenha-se em dissolver este enigma. Palavras-chave: Tempo, Espaço, Idealismo Transcendental, Kant, Hegel Abstract: The present paper aims to understand the hegelian conception of space and time as realizing a desideratum which remained unfulfilled in Kant’s transcendental esthetics. It is argued that a conservative modification of the kantian theory of space and time is required to avoid a contradiction which otherwise would arise within the distinction between transcendental ideality and empirical reality of space and time. However, even in the revised version the kantian conception does not explain the mediation of space and time with our discursive thinking. As will be argued, the hegelian deduction of space and time aims to reconcile space and time in a discursive way, thus trying to dissolve this enigma. Keywords: Time, Space, Transcendental Idealism, Kant, Hegel ____________________________________________________________________ No que se segue será primeiramente traçado o conceito de espaço em Hegel (1). Daí a análise se voltará para Kant e, na verdade, primeiramente para o seu conceito de fenômeno (2) e, em seguida, tanto para a diferença entre o transcendental e o empírico, quanto para uma contradição que se dá em conexão com a idealidade transcendental e a realidade empírica do espaço e do tempo (3). O passo seguinte consistirá em propor uma modificação conservadora da estética transcendental a fim de superar esta contradição, modificação que, além disto, compatibiliza-se com a teoria da relatividade geral (4) e, então, indicar um desiderato que a doutrina kantiana, apesar desta * Doutor em Filosofia pela Universidade de Heidelberg; professor do Departamento de Filosofia da mesma universidade. E-mail: [email protected]. Tradução: Kleber Carneiro Amora (UFC). REH – Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Jul./Dez. de 2009 N. 11, v.01 pp.57-73 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch modificação, ainda deixa em aberto, a saber, o da mediação da natureza do espaço e do tempo com a natureza de nosso pensar discursivo (5). Por fim, será discutida a forma como Hegel pensa realizar este desiderato e em que medida ele se sai bem em tal empreitada. 1. O conceito de espaço em Hegel Hegel trata do espaço e do tempo muito concisamente em três parágrafos no início do texto principal da Filosofia da Natureza, na Enciclopédia de 1830. Antes, na Introdução, ele afirma, de modo breve, sobre o conceito de natureza: “A natureza mostrou-se como a idéia na forma do ser-outro. Visto que a idéia é assim como o negativo dela mesma ou exterior a si, assim a natureza não é exterior apenas relativamente ante esta idéia (e ante a existência subjetiva da mesma, o espírito), mas a exterioridade constitui a determinação, na qual ela está como natureza.” (Hegel, 1997, p. 26 (§ 247)) O fundamento elementar das relações da natureza consigo mesma e com a Ideia são as relações logicamente existentes do outro de si consigo e com algo idêntico a si mesmo. O outro de si é, por um lado, o seu outro, porém, exatamente aí idêntico a si; assim, ele se funde consigo mesmo em seu outro e é algo idêntico a si. A alteridade permanece, por outro lado, em sua auto-relação o que ela é: alteridade, ou seja, negatividade logicamente existente e não livre, um constante sair-de-si em ou ao lado de algo idêntico a si. Na Lógica, este sair-de-si é suprassumido na transição do algo finito para o infinito e, ulteriormente, para o ser-para-si. Na natureza, ainda que não lógico, ele é temporal, se põe de modo duradouro e não é apenas um sair-de-si inquieto, mas também um sair-de-si sereno e impassível. Neste ponto, Hegel inicia o primeiro parágrafo relativo ao espaço (Enz. § 254): “A determinação primeira ou imediata da natureza é a abstrata universalidade de seu ser-fora-de-si, a equivalência dele sem mediação, o espaço. Ele é totalmente ideal ao lado-um-do-outro, porque é o ser-fora-de-si e simplesmente contínuo, porque este fora-um-do-outro ainda é totalmente abstrato e não tem em si nenhuma diferença determinada.” (Hegel 1997, p. 47 (§ 245)) No ser-fora-de-si da natureza em sua “universalidade abstrata”, aprendemos Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 58 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch agora, não há nenhuma diferença concreta. Em seu “caráter indiferente e destituído de mediação” há algo de diverso, cujos elementos, sem exceção, estão constituídos e não detém ainda nenhuma relação qualitativa ou essencial. Isto seria caracterizado por Kant como um múltiplo puro ou como um múltiplo da intuição sensível. Certamente, desta forma, na condição de um diverso indiferente (ou puro) destituído de mediação e, ao mesmo tempo, universal e abstrato, a natureza não se revela e não pode efetivamente se revelar. O que nela corresponde a esta descrição é justamente o puro espaço, mas o espaço enquanto algo abstrato, sem aquilo que o preenche como algo ideal, ou seja, como algo que existe apenas como suprassumido, não ainda também como algo independente, por exemplo (como veremos mais detalhadamente com Kant), apenas como um conteúdo da representação, não ainda, da mesma forma, como um objeto externo à representação. Em seu caráter abstrato, ele é, além disto, um continuum, porque ele “não tem” ainda “nenhuma diferença em si” que pudesse levar a alguma ruptura de sua conexão. Na “Ciência da Lógica”, Hegel apresentou o caráter do diverso indiferente, contínuo, ideal e abstrato do espaço como um exemplo da quantidade pura. Entretanto, o espaço é quantidade pura não mais como “determinação lógica, mas como existindo de modo exterior e imediato” (Hegel 1997, p. 48 (§ 254 Anm.)), e, assim em seu ser externo e imediato, o que faz dele, na verdade, um algo logicamente transitório, porém, temporalmente permanente. A natureza, prossegue Hegel no mesmo parágrafo, diferentemente como no pensar puro, ”... por isso não começa com o qualitativo, mas com o quantitativo, pois sua determinação não é, como é o ser lógico, o abstratamente primeiro e imediato, mas essencialmente é o já em si mediato, ser-exterior e ser-outro.” (Hegel 1997, p. 48) Mas se a natureza não começa, da mesma forma, com o qualitativo, algo de qualitativo já brota nela imediatamente, pois ela não é simplesmente o espaço abstrato e contínuo, ou seja, o espaço geométrico, mas (ainda abstraindo completamente do tempo) o espaço físico e preenchido. Ela dispõe de um conteúdo rico, porque ela é a Idéia ou o Espírito, embora estas últimas na forma do ser-outro ou do ser-fora-de-si. O espaço geométrico abstrato é apenas esta forma para-si. É até onde vai o primeiro parágrafo que trata do espaço em Hegel. Nos dois Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 59 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch parágrafos seguintes ele almeja deduzir as dimensões do espaço da natureza da Idéia, ou seja, do conceito e, ao mesmo tempo, realizar uma transição ordenada e lógica para o tempo como tema subseqüente. Voltaremos a falar sobre isto mais tarde. Dirijamos, agora, a nossa atenção para a teoria do espaço que Kant desenvolveu na Estética Transcendental. Para isto se faz necessário algumas observações preliminares sobre o conceito kantiano de fenômeno. 2. Fenômeno e ser-em-si Um fenômeno ou aparência é um objeto real que se manifesta, e na medida em que se manifesta. Em virtude do manifestar-se, ele está essencialmente relacionado com a subjetividade cognoscente, a qual, por sua vez, é manifestação, uma pluralidade de pessoas no espaço e no tempo. Enquanto fenômeno, o real não está, portanto, fechado em si, mas acessível do ponto de vista epistêmico e pode se tornar conteúdo de representações sem prejuízo de sua objetividade, ou seja, de sua independência frente às representações subjetivas. O que, porém, existe apenas como conteúdo de representações é algo ideal, não algo real objetivo, independente e autônomo. A objetividade do real exige, por conseguinte, que ele retenha um resíduo de si que não pode se tornar conteúdo de representações. Todavia, a objetividade do real tem também de poder se manifestar; caso isto não seja possível na representação enquanto um conteúdo particular, então – assim pensa Kant – junto à representação, enquanto um modo de sua validade, ou seja, enquanto necessidade (Ver KrV A 109 seq.). O compreender conceitual preciso do manifestar-se da objetividade e o determinar da relação da retenção com a renúncia epistemológica, da objetividade com a fenomenalidade, do ser-em-si com o ser-para-outro, etc., é uma das mais difíceis tarefas da filosofia. Em relação a esta tarefa, Kant e Hegel seguem caminhos diferentes. Hegel apresenta em pertinentes seções da Lógica da Essência aquele movimento através do qual o retido e o renunciado das coisas, seu interno e seu externo, devem ser abrigados nos fatos lógicos da realidade, a qual é a manifestação residual de si mesma. Isto se realiza na assim chamada relação absoluta: enquanto substancialidade, causalidade e, por fim, enquanto ação recíproca. Na ação recíproca, a fenomenalidade e o ser-em-si se Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 60 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch penetram completamente e, no momento seguinte, no conceito, na transparência conceitual, são, pois, a mesma coisa reflexão-em-si e reflexão-no-outro, ser-em-si-epara-si e ser-posto. Caso isto, de fato, leve a um resultado positivo! – murmura, duvidosa, uma pessoa prudente. Mas claro que sim, promete Hegel; isto funcionará se recorrendo, na verdade, às relações lógicas da essência e do ser anterior, porém, com usos adequados e úteis, porque, em seu tratamento, surge, primeiramente, a lógica do conceito e, em seguida, a filosofia do real, não tendo ele condições de mudar mais nada na tendência básica graças à qual o real se manifesta sem resíduo, não sendo ele mais que sua própria manifestação: um manifestar-se que manifesta a si mesmo. (Felizmente isto não pode levar a um resultado positivo – festejam Nietsche e Adorno, os espíritos críticos e livres que vieram depois. Seria o pesadelo. Não haveria nenhuma surpresa a mais ou apenas o trivial. Seria o domínio totalitário que não se reconhece como amor livre). Em Kant é diferente, não apenas na formação positiva da teoria, como também lá onde esta última se depara com seus limites e permanece no limiar, como se assim Kant não tivesse, por fim, compreendido o problema do manifestar-se ou o abandonado de modo voluntário, já que, para ele, era claro que uma luz nesta mata densa não seria mais possível. Kant amarra a fenomenalidade das coisas, seu manifestar-se, à estrutura espaço-temporal: tudo aquilo que é espaço-temporal é fenômeno e todo fenômeno é espaço-temporal. O aprisionamento das coisas em seu ser-em-si reside, conseqüentemente, fora do espaço e do tempo. Na medida em que as coisas se destacam no espaço e o tempo elas entram ipso facto na existência, ou seja, ganham acessibilidade epistêmica. Difícil, quase sem perspectiva, é querer aqui estabilizar uma capacidade conceitual operativa; diria que até mesmo absolutamente impossível, caso sigamos a doutrina principal e simpática da Lógica de Hegel que afirma que a capacidade conceitual filosófica enquanto tal é essencialmente fluída e, por princípio, não é estabilizável sem contradição. Como se comporta, por exemplo, o ser-em-si das coisas em relação a sua objetividade? Aquele é o ser-em-si em-si, fora do espaço e do tempo e esta última o ser-em-si para-nós, no espaço e no tempo? Talvez. Deixemos isto em aberto factual e exegeticamente e detenhamo-nos em algo menos controvertido. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 61 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch 3. O transcendental e o empírico Em relação a Kant é necessário diferenciar de modo mais exato a fenomenalidade transcendental da fenomenalidade empírica. A primeira é a temporalidade espacial, a segunda aquilo que atualmente é discutido sob o nome de “qualia”. Entretanto, uma qualia é concebida, por sua vez, espaço-temporalmente; uma qualia da cor, por exemplo, terá uma figura e uma duração determinada. A fenomenalidade empírica não permite ser apartada, portanto, de sua fenomenalidade transcendental. Disto se pode e se deve concluir que as qualia (sob as condições-padrão da percepção) não existem na cabeça do observador, mas fora, nas coisas espaço temporais, embora Kant não tenha tirado esta conclusão, mas apenas dito que as qualia se referem a objetos e que a ação que promove esta referência objetivante é o pensar (KrV A 247/B 304). Agora, enfim, à estética transcendental. Aqui encontramos a doutrina da idealidade transcendental e da realidade empírica do espaço e do tempo. O que se pode compreender com tal afirmação? Que espaço e tempo são empiricamente reais significa que eles, no mesmo sentido e na mesma medida, são reais como aquilo que lhe é dado empiricamente. A realidade empírica das coisas e acontecimentos em minha volta são transmitidos para o espaço e o tempo. Espaço e tempo são empiricamente reais porque as coisas e acontecimentos são neles empiricamente reais. Empiricamente reais ou pura e simplesmente reais? Este é um ponto interessante, pois, espaço e tempo devem ser ideais do ponto de vista transcendental e, por isto, põe-se a pergunta se sua idealidade transcendental é transmitida para as coisas e acontecimentos da mesma forma como, inversamente, sua realidade empírica é transmitida para o espaço e o tempo. As coisas seriam, neste caso (assim como o próprio espaço e o próprio tempo), empiricamente reais, porém, ideais do ponto de vista transcendental, portanto, não pura e simplesmente reais. De fato, Kant afirma isto, como veremos de modo breve. Porém, o termo “transcendental” não combina com objetos (coisas e acontecimentos) empiricamente dados. Pois, transcendental Kant denomina os conteúdos da representação através dos quais nos relacionamos não com objetos, mas com nosso conhecimento a priori de Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 62 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch objetos (KrV A 12/B 25). Um conteúdo transcendental está livre de componentes empíricos e, neste sentido, é puro; os conteúdos, porém, através dos quais nós nos (e os) relacionamos com objetos, são todos igualmente empíricos. Os objetos são, por isto, dados empiricamente e, além disto, são reais. Na medida em que eles são empiricamente reais, são reais pura e simplesmente. É possível, portanto, admitir, para eles, um ser-em-si fechado em si, graças ao qual eles são independentes das representações que temos deles. O próprio Kant afirma dos conteúdos empíricos de nossas representações (KrV B 44) que falando mais precisamente, não compete a eles nenhuma idealidade, mesmo se eles entram, neste aspecto, em acordo com a representação do espaço e pertençam simplesmente à constituição subjetiva dos sentidos, como visão, audição e sentimento. As qualia não são, portanto, ideais; nós podemos seguir consolados Kant neste aspecto e a pergunta é tão somente sob qual categorização. Kant opta, com Locke, pelo seguinte: que elas (diferentemente do espaço e do tempo) são reais no sujeito enquanto episódios sensoriais; eu as deixaria preferencialmente fora, nas coisas. A idealidade transcendental é transmitida, portanto, não do espaço e do tempo para os objetos e não pode de forma nenhuma fazê-lo, porque nossas representações dos objetos não são puras no sentido transcendental. Os objetos dados empiricamente são, portanto, reais no sentido transcendental? Não, a alternativa inteira não se coaduna com o empírico. Real do ponto de vista transcendental poderia ser no máximo algo acessível de modo transcendental, portanto, numa primeira aproximação, algo do qual dispuséssemos, do mesmo modo, uma representação pura, tal como do espaço vazio e do tempo vazio e que, porém, existisse independentemente de nossa representação. Tais objetos não existem efetivamente, nós podemos no máximo imaginá-los como coisas mentais puras e negligenciar chamando-os de “noumena”. Os noumena seriam dados ou pensados de modo transcendental (ou seja, seriam puros, não empíricos) e, além do mais, reais. Na medida em que eles fossem reais do ponto de vista transcendental seriam reais pura e simplesmente. Em sua pureza, porém, seriam transparentes ao conhecimento. Não seria possível atribuir-lhes nenhum ser-emsi fechado em si, graças ao qual eles seriam independentes das representações que lhe dizem respeito, por exemplo, (per impossibile) das representações que temos deles. Seu ser-em-si seria acessível do ponto de vista epistemológico, portanto, seria, ipso facto, Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 63 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch ser-para-nós e sua realidade ipso facto idealidade – como o ser-para-si de Hegel. Assim, seriam, em relação a sua intuição intelectual criativa, primos subjetivos e objetivos primeiros do conceito hegeliano. Charlatanismo - afirma Kant – cometido em relação às nossas possibilidades de conhecer! Espaço e tempo são, de qualquer modo, ideais e, na verdade, idéias pura e simplesmente, mesmo que, em virtude da pureza das representações que temos deles, pareçam ser candidatas ao status de realidade transcendental. Em virtude disto, surge, então, um problema; pois espaço e tempo devem herdar dos objetos realidade empírica que havia se revelado como realidade pura e simplesmente. Espaço e tempo seriam, portanto, reais pura e simplesmente, não ideais e, por outro lado, ideais pura e simplesmente, não reais – uma contradição aberta. Uma forma insatisfatória de resolvê-la seria aceitar uma tese do sujeito duplo do conteúdo, a saber, de que os homens são, na verdade, sujeitos empíricos no espaço e no tempo, e que, porém, dormita (ou vela) em cada homem um segundo sujeito que seria transcendental e que espaço e tempo, relativos ao sujeito empírico, são reais e, relativos ao sujeito transcendental, ideais. De fato, é definidor para a subjetividade que ela é o que ela compreende e o que ela compreende o que ela é (para ela vale, efetivamente, enfim, a transparência do conceito hegeliano). Quem (certamente não apenas eu) compreende a si como sujeito não pode, por isto, ser dois sujeitos. É necessário admitir que Kant (eu já fiz referencia a isto) dá impulso à tendência exegética em submeter-se à tese do sujeito duplo, na medida em que ele não limita o idealismo transcendental ao espaço e ao tempo abstratos, mas o estende explicitamente para os objetos que, enquanto fenômenos, “tal como as representamos enquanto seres extensos ou séries de mudanças, não têm fora dos nossos pensamentos existência fundamentada em si” (KrV A 491/B 519; Kant, 2001, p. 437). A idealidade é transmitida, portanto, do espaço e do tempo para os objetos, assim como a realidade é transmitida dos objetos para o espaço e o tempo. Conseqüentemente, fazem-se necessárias duas formas de idealidade e duas formas de realidade e, por conseguinte, dois tipos de sujeito, um transcendental e um empírico, os quais não se comportam simplesmente como se o primeiro fosse uma simples abstração frente ao último. Neste sentido, não se está mais distante do quadro curioso em que uma coisa-em-si incognoscível afeta um sujeito transcendental incognoscível, o qual constitui, por Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 64 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch conseguinte, um sistema espaço temporal com objetos concretos e sujeitos empíricos. Pois um sujeito transcendental enquanto tal não seria, em sua pureza, por princípio, passível de ser afetado. Afecção nega a pureza. Passíveis de serem afetados são, por puras razões conceituais, apenas sujeitos empíricos. – Nós nos enredamos em uma grande confusão e que, para sairmos dela, Kant certamente não nos aponta nenhuma saída. 4. Uma modificação conservadora da Estética Transcendental Como uma forma fática e exegética atrativa para solucionar a contradição entre idealidade e realidade e escapar à confusão mencionada, são propostas as seguintes ampliações conservadoras ou modificações da Estética Transcendental de Kant. É necessário fazer uma diferença entre um sistema espaço-temporal real e físico e um sistema espaço temporal ideal e geométrico. Em virtude da simplicidade, consideremos, na seqüência, apenas a parte espacial do sistema, portanto, o espaço. (A transposição para o tempo pode ser feita, portanto, sem problemas). O espaço real é acessível do ponto de vista epistêmico na intuição empírica, ou seja, do ponto de vista interno a si; esta intuição espacial parcial é completada pela faculdade da imaginação e, ao mesmo tempo, modificada para a intuição do espaço contínuo, plano, infinito e tridimensional. Removido pela imaginação do espaço real, este conteúdo da intuição pura é, como também lemos em Hegel, o espaço ideal e abstrato. Suas propriedades são reconhecidas de modo a priori na intuição pura e, na verdade – de acordo com a posição transcendental de Kant em relação ao espaço – na geometria euclidiana, cujos teoremas são, conseqüentemente, juízos sintéticos a priori; eles têm, portanto, valor necessário, entretanto, contra as expectativas de Kant, não se referem ao espaço real, mas apenas a sua posição originária abstrata e ideal. Valor necessário é valor em todos os mundos possíveis. A geometria euclidiana vale – assim temos de afirmar em nossa modificação conservadora da Estética Transcendental – em todos os mundos possíveis, todavia, de modo irreal apenas para a posição originária imaginada, pura e ideal. O espaço real de um mundo possível é um desvio da posição originária de Euclides, induzido através dos objetos que preenchem o espaço e que, justamente por isto, abandonam a posição originária para encurvá-lo, Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 65 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch apresentá-lo quanticamente ou enriquecê-lo com dimensões suplementares. Nenhum mundo possível tem um espaço vazio e, conseqüentemente, um espaço euclidiano; porém, o espaço euclidiano forma, para cada mundo, a posição originária imaginada e ideal. Portanto, pode-se dizer que o espaço euclidiano é, na verdade, metafisicamente impossível, porém, necessário do ponto de vista transcendental. Vejamos, pois, como no caso do espaço e dos objetos, realidade e idealidade pertencem um ao outro. Os objetos compactos são reais e transmitem sua realidade para o espaço, na medida em que eles o fazem perder a posição originária euclidiana. Conseqüentemente, os objetos e o espaço são igualmente empiricamente reais. O espaço puro da geometria euclidiana, por outro lado, é abstrato e ideal. Ele é apenas o caso limite irreal e a condição originária imaginada, condição que o espaço físico perdeu através dos corpos massivos que o preenchem. O espaço puro não pode, pois, reproduzir sua idealidade, por assim dizer, sua natureza etérea e metafísica, nos objetos compactos; estes últimos são para ele metafisicamente muito pesados e muito densos e o penetram apenas na medida em que o deformam. Assim se separam notadamente faculdade de imaginação e percepção ou intuição pura e intuição empírica. Nós percebemos o espaço encurvado na medida em que percebemos os objetos nele, suas condições de deformação. O que nós percebemos aí, de fato, são objetos curvados espacialmente, os quais nós não podemos imaginar. Pois, na imaginação, os conteúdos empíricos e compactos, que poderiam induzir um encurvamento do espaço, não estão eles próprios presentes. O espaço da imaginação é, por isto, necessariamente plano; e, por isto, podemos ainda na escola provar com boa vontade que a soma dos ângulos internos do triangulo é igual a dois retos, embora saibamos há muito que isto não vale de modo algum para o espaço físico e real. Nós intuímos justamente aquilo que não podemos imaginar: os encurvamentos do espaço; e imaginamos aquilo que não podemos intuir de modo a priori: o espaço plano. Assim, Kant teria podido antecipar de modo a priori o pensamento básico da relatividade geral, sem prejudicar substancialmente sua própria teoria. Porém, é possível falar disto posteriormente. À época de Kant, a autoridade de Newton era inquestionável e o que valia como real era a concepção do espaço contínuo, plano, infinito e tridimensional da geometria euclidiana. Caso um filósofo tivesse querido se contrapor à tal concepção, teria enfrentado uma situação extremamente difícil e sofrido muita Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 66 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch pressão. A teoria newtoniana da Física teria de ser primeiramente abalada, antes que os filósofos, a partir de razões filosóficas genuínas, permitissem a si mesmos ousar, imaginar e exigir algo melhor. A proposta de modificação da Estética Transcendental é, portanto, não apenas uma saída para a contradição instalada entre idealidade e realidade, mas faz adequar também, sem forçar, a doutrina kantiana às descobertas da Física moderna, a qual parecia já tê-la refutado empiricamente (e que, de fato, o fez literalmente), pois é difícil que a geometria euclidiana tenha validade necessária e a priori se o espaço não é de forma alguma concebido euclidianamente, mas encurvado. Não se pode esperar que a dificuldade kantiana seja eliminada tomando nossa representação espacial como representação genérica que conserve neutralidade nas perguntas relativas ao “se”, ao “como” e ao “quanto” da curvatura do espaço. Pois é essencial na doutrina kantiana que nossa representação espacial seja uma intuição e, com isto, uma representação singular, especifica e determinada universalmente e que nada possa permanecer indeterminado no que toca à evidente curvatura do espaço. O que, por outro lado, efetivamente dissipa a aparência de uma refutação da Estética Transcendental pela teoria da relatividade geral é a tese esquemática de que a geometria euclidiana é falsa do ponto de vista metafísico-necessário e verdadeira do ponto de vista transcendental-necessário e que ela, além disto, vale, em cada mundo possível, para o caso-limite fundamental, porém, não verificável, em que o espaço seria vazio. 5. O a priori sensível e o discurso: um desiderato O espaço e o tempo são, de acordo com Kant, as formas universais das intuições e, ao mesmo tempo, as formas através das quais nós, seres humanos, intuímos de modo sensível (Ver KrV A 42/B 59 seq.). Tudo aquilo que sai de seu ser-em-si fechado em si e entra nas intuições tem de se adequar ao filtro do sistema espaço-temporal ancorado nas dimensões 3 + 1 (filtro que este sistema, todavia, também influencia como reação ao kantismo literal); e tudo o que os homens imaginam e intuem sensivelmente, intuem, quer dizer, imaginam como extensos no espaço e como perseverando no tempo. A tese do espaço e do tempo como formas da intuição humana não deve ser entendida como se houvesse mundos possíveis nos quais existissem tanto homens Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 67 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch quanto outros seres com outras formas de intuição. Em um único mundo não há lugar para formas de intuição divergentes do ponto de vista transcendental. Pois, graças às nossas formas de intuição, encontramo-nos em uma relação de dependência recíproca e essencial com o nosso mundo cujo sistema espaço-temporal está assentado em uma posição originária ideal e neutra na forma como nós seres humanos imaginamos, tal sistema em uma intuição a priori e em que os desvios da posição originária resultam da repartição correspondente da matéria no espaço e no tempo. Kant, de fato, parece querer admitir de qualquer forma que talvez haja mundos possíveis nos quais nenhum ser humano, mas, outros seres com outra capacidade cognoscente existam e que intuam diferentemente de nós no sentido transcendental. Em tais mundos haveria, no lugar de um sistema espaço-temporal conhecido por nós, uma forma alternativa de diversidade abstrata e pura (ou, fazendo uso de um conceito de Hegel, uma forma alternativa de ser-outro da natureza), para a qual não se poderia exigir, de forma alguma, a validade da geometria de Euclides, até mesmo para seu casolimite ideal e imaginado. Por isto, a necessidade da geometria euclidiana não seria mais uma necessidade transcendental ilimitada, mas antes a ser comparada com uma necessidade nomológica, que é aquela necessidade relativa a verdades que vale em uma sub-classe da classe de todos os mundos, ou seja, nos mundos acessíveis nomologicamente, portanto, naqueles mundos em que dominam as mesmas leis naturais do nosso. Análogo aos mundos acessíveis nomologicamente, se faz necessário aceitar, então, os mundos acessíveis sob o ponto de vista estético transcendental enquanto aquelas sub-classes reais de todos os mundos nos quais existem as mesmas formas da intuição de nosso mundo. Porém, os axiomas da geometria euclidiana são demonstrados e aqueles da Física teórica, por outro lado, comprovados pela experiência. Isto aponta para uma profunda impossibilidade de analogia entre a necessidade física nomológica e a necessidade estética transcendental, aspecto que não permaneceu oculto também em Kant. Muito pelo contrário, Kant acentuou fortemente esta impossibilidade analógica, em virtude de sua concepção básica, sem, porém, poder levá-la em conta de modo adequado nos quadros desta concepção. Para isto seria necessário um entrelaçamento interno da Estética com a Lógica Transcendentais, ou seja, uma interligação entre as formas da intuição sensível e os princípios sintéticos do discurso (das categorias). Mas aqui Kant desiste. É verdade que “há dois troncos do conhecimento humano, Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 68 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch porventura oriundos de uma raiz comum”; mas esta fonte nos é efetivamente desconhecida (KrV A 15/B 29; Kant, 2001, p. 56). Por isto, a natureza da necessidade dos teoremas geométricos nos é também desconhecida, tratando-se pois de um enigma não resolvido; pois não se trata aqui de uma necessidade nomológica simplesmente fática e não devemos acoplá-la, segundo Kant, a uma necessidade categorial, lógica e conceitual, de cujo tipo aquela parece ser. 6. Dedução da natureza do espaço e do tempo em Hegel Hegel se empenha em dissolver este enigma e conciliar o espaço e tempo discursivamente. O espaço é infinito porque a Idéia é infinita, cuja forma do ser-outro ele apresenta como exterioridade recíproca abstrata. Ele é plano e contínuo porque, como nós lemos, “esta exterioridade recíproca ainda é completamente abstrata e não contém nenhuma diferença determinada” (Hegel, 1997, p. 47 (§ 254)). Permanece a tridimensionalidade, cuja necessidade, afirma Hegel “... repousa sobre a natureza do conceito, cujas determinações, aliás, nesta primeira forma do fora-um-do-outro, [isto é] na quantidade abstrata, são de todo apenas superficiais e uma diferença plenamente vazia. Não se pode dizer de que modo altura, comprimento e largura se distinguem entre si, porquanto elas apenas devem ser diferentes, mas não são nenhuma diferença; é plenamente indeterminada a classificação de uma direção como altura, comprimento ou largura.” (Hegel 1997, p. 50 (§ 255 obs.)) Hegel passa então (no último dos três parágrafos dedicados ao espaço) a tratar da diferença das dimensões também em seu aspecto qualitativo, mas o faz de modo muito breve. Ele mostra como surge a tridimensionalidade do espaço: 1º) do ponto enquanto da negação (ela própria espacial) do espaço, 2º) da linha enquanto do primeiro ser-outro do ponto e 3º) da superfície enquanto a negação desta negação, a qual, na verdade, em sentido negativo, é uma ulterior “determinidade frente à linha e ao ponto” e, em sentido afirmativo, porém, “superfície encerrante” e, “com isto o restabelecimento da totalidade espacial” (Hegel, 1997, p. 50/51 (§ 256)). O fato de que uma determinação conceitual necessita essencialmente de condições de aplicação, portanto, de uma esquema kantiano, não é aí satisfeito. Nós necessitamos de uma compreensão orientada para Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 69 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch aplicação a priori da altura, da largura e da profundidade antes de podermos relacionar estas direções a realidades empíricas como no caso da ação da gravidade e das assimetrias do corpo. Disto, nada encontramos em Hegel. Também no que toca ao tempo ele é espantosamente breve. Kant a diferençou como a forma do sentido interno do espaço como forma do sentido externo. O sentido interno é afetado por nós mesmos na atividade discursiva e, na verdade, com o resultado de que nós nos atribuímos os conteúdos espaciais e externos, bem como também, os conteúdos de nossas próprias representações. Um mesmo verde fenomênico é, assim, por um lado, a cor da relva e, por outro, o conteúdo de minha intuição da relva, aquela no sentido externo e esta última no interno. Dado, pois, que a atividade discursiva afeta o sentido interno como síntese espontânea, suas formas de execução se encontram em uma relação imediata com o tempo como forma do sentido interno. Assim, o tempo e aquelas formas de execução podem se determinar reciprocamente. As formas de execução da síntese adquirem, através do tempo, condições a priori de aplicação, as quais foram caracterizadas por Kant como esquemas transcendentais e graças às quais elas, na qualidade de conceitos, ou seja, conceitos puros do entendimento ou categorias, podem atuar. Inversamente, o tempo é determinado através das categorias, por exemplo, através da categoria da substância como ultrapassando o instante atual e através da categoria da causalidade como um eixo de determinação nomologicamente rigorosa. Porém, Kant tem como evidente em relação ao tempo apenas aquilo que Mctaggart chama de série B, ou seja, uma exterioridade recíproca linear de pontos temporais que devem ser ordenados pela relação entre o ser-anterior e o ser-posterior. McTaggart insistiu, com razão, no fato de que o tempo é também essencialmente série A, na qual os acontecimentos são diferençados enquanto futuros, presentes e passados. A série B, aquela que nos vem primeiramente à mente quando pensamos no tempo, é uma sobreposição de duas concepções originárias do tempo. Uma das duas é a concepção básica do desaparecimento do tempo como exterioridade ou justaposição recíprocas dos pontos no tempo sem diferença qualitativa em relação à direção, ou seja, sem a seta do tempo. Assim o tempo é compreendido pela ciência da natureza fundamental, a teoria quântica. A concepção oposta fundamental do tempo é aquela que se poderia chamar de tempo A não serial e que Heidegger denomina de temporalidade originária: o perpassar recíproco dos três tipos de “êxtases” da temporalidade: futuro, Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 70 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch presente e passado, fazendo-se abstração da exterioridade recíproca dos pontos do tempo e, com isto, da sucessão temporal. Nem Kant, nem Hegel tiveram a intenção de compreender o tempo a partir da temporalidade originária (do tempo A). Antes ambos avaliam a série B do tempo como essencial, a qual, efetivamente, tanto frente ao tempo A, quanto frente à série do tempo e sem direção da teoria fundamental da natureza - a série C, é uma séria derivada. Isto é o comum mesmo nos procedimentos inconseqüentes que conservam a direção do tempo nos quadros da ciência teórica e não gostariam de adotar a série C sem direção. A rigor, seria necessário tomar a série A como base quando se estabelece a direção. Isto significaria, porém, em última instância, partir do ponto de vista do presente e, conseqüentemente, afirmar que tal ponto de vista influencia no conteúdo do discurso. Para a ciência teórica – Matemática, Física e Metafísica – a representação é a diretriz; o tempus verbi e, enfim, o próprio ponto de vista seria, enquanto algo exterior aos conteúdos, a serem deixados para trás. Dado que Kant e Hegel se movem em conformidade um com o outro em sua autocompreensão na ciência teórica, seguem esta representação diretora. Somente Heidegger assumiu a ingrata tarefa de, no interior da filosofia acadêmica, elaborar um pensamento que fosse além da ciência teórica, no qual a temporalidade originária pudesse também ter o seu lugar de direito. Kant determina, como já mencionado, a estrutura do tempo a partir de seu papel em sistematizar as categorias. Assim, ele espera da causalidade a fundação da seta do tempo – neste caso uma esperança inútil, posto que a causalidade, enquanto simples legalidade natural, não distingue nenhuma das duas direções do tempo. Também Hegel recorre às categorias, ou seja, às determinações lógicas para apreender a estrutura do tempo e, portanto, aquilo que toca à seta do tempo com grandes esperanças de sucesso, dado que ele pode remeter ao desenvolvimento lógico assimétrico como ao modelo de um desenvolvimento temporal assimétrico. Todavia, uma coisa é pensar uma série assimétrica com direção e outra é implementar efetivamente uma assimetria pensada como série C sem direção do tempo. Trata-se novamente aqui do problema das condições de aplicação e, em minha opinião, ele só pode ser solucionado caso se assuma que um sujeito constituído temporalmente determine a série temporal através de ações reais a partir da vontade livre e em consonância com a assimetria lógica. Isto permanece em Hegel um desiderato; em todo caso, ele chega, de fato, a uma dedução da Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 71 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch seta do tempo com mais precisão que Kant quando ele, como já dito, pode apontar, in abstracto, para o desenvolvimento lógico assimétrico como para o modelo do desenvolvimento temporal assimétrico. Ele determina, in concreto, o tempo como a mesma “negatividade, que se refere como ponto ao espaço”, apenas agora como existindo “para-si [...] na esfera do serfora-de-si” (Hegel, 1997, p. 53 (§ 257). De um modo teórico fértil ele supera, neste caso, representações kantanas habituais, afirmando que ele determina o tempo como “o ser que, enquanto é, não é, e, enquanto não é, é”, como “vir-a-ser intuído” (Hegel, 1997, pp. 54/55 (§ 258). De acordo com as representações habituais, o discurso do transcurso do tempo é uma metáfora infundada e fática. O tempo, assim afirma Kant, “em que toda a mudança dos fenômenos deverá ser pensada, permanece e não muda ...” (KrV B 224 seq.; Kant, 2001, p. 212; ver A 144/ B 183). Hegel, por sua vez, possibilita aprofundar teoricamente o fenômeno do transcurso do tempo e se distanciar das representações habituais: “No tempo, diz-se, tudo surge e [tudo passa] perece; se se abstrai de tudo, a saber, do recheio do tempo e igualmente do recheio do espaço, fica de resto o tempo vazio como o espaço vazio - isto é, são então postas e representadas estas abstrações de exterioridade, como se elas fossem por si. Mas não é que no tempo surja e pereça tudo, porém o próprio tempo é este vir-a-ser, surgir e perecer, o abstrair essente, o Kronos que tudo pare, e que seus partos destrói [devora]. - O real é bem diverso do tempo, mas também essencialmente idêntico a ele.” (Hegel, 1997, p. 55 (§ 258 Obs.)). Como, porém, o tempo pode ser limite permanente, ou seja, medida do transcurso e, ao mesmo tempo, fluxo, Hegel deixa em aberto. Um déficit estrutural de sua concepção é que o espaço e o tempo conservam seu lugar fixo no sistema justamente no começo da Filosofia da Natureza, na seção da “Mecânica”. O conceito integral tanto do espaço quanto do tempo não pode ser desenvolvido independentemente dos temas da Filosofia do Espírito. Para isto, a referencia ao sujeito de ambos os conceitos que Kant traz à tona quando fala das formas da intuição sensível, é de suma importância. Em cada momento, eu, enquanto sujeito empírico, corporal e livre, oriento-me de modo a priori no espaço e no tempo e estabeleço, com isto, diferenças qualitativas entre as quatro dimensões espaço-temporais em sua totalidade e suas respectivas direções. Assim, altura, largura e profundidade são definidas e orientadas originariamente por meu corpo em um sistema Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 72 Espaço e Tempo em Kant e Hegel Anton Friedrich Koch de coordenadas egocêntricas e informais e o futuro é objetivamente diferençado do passado de modo originário através de minhas ações livres. De fato, como já mencionado, trata-se de transcender este estado de coisas e a ciência teórica através de sua indexialidade. Kant e Hegel vêem naturalmente estas estruturas marcadas abundantemente por este caráter indicador e tentam levá-las em conta contra a arquitetura de seus respectivos sistemas. Kant acredita, assim, poder encontrar a seta do tempo na causalidade natural e Hegel também fala, na sua “Mecânica”, de fatos relativos ao tempo que não dizem respeito ao pensamento de que o tempo tem três modos – Hegel fala de “dimensões’ – presente, futuro e passado (Hegel, 1997, p. 39 (§ 252)). O parâmetro t da Física teórica é, porém, a série C do tempo que conceitualmente é de todo reduzida e para a qual os modos do tempo não desempenham nenhum papel. Portanto, por mais que seja compreensível que Hegel se ancore em um conceito mais rico de tempo, tanto menos é aceitável que o local para este conceito seja, efetivamente, o começo da Filosofia da Natureza. Porém, nós temos de diferençar a crítica imanente da crítica do principio. Talvez tenha a sistemática hegeliana permitido desenvolver, primeiramente, os conceitos pobres do espaço e do tempo no começo da Filosofia da natureza, e permitir que se enriquecessem passo a passo através de momentos compatíveis. O que, com isto, ainda não se teria alcançado seria uma auto-compreensão perspectivista, insofismável e com caráter indicador em relação a mim enquanto sujeito corporal e finito em minha relação recíproca com o espaço e o tempo, relação que é essencial para ambos os lados e não apenas para mim mesmo. Referências bibliográficas HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), Volume II: Filosofia da Natureza. Tradução de José Nogueira Machado. São Paulo: Edições Loyola, 1997 KANT, I. Crítica da Razão Pura, Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001 Artigo recebido em junho de 2010 Artigo aceito para publicação em setembro de 2010 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 73 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 74-95 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse* _________________________________________________________________ Resumo: O presente trabalho visa elucidar a concepção hegeliana da natureza como exterioridade contraditória, que é caracterizada pela ausência da unidade do conceito e, ao mesmo tempo, tende a tal unidade. Defende-se que essa concepção implica que uma filosofia da natureza no sentido hegeliano tem por objetivo pensar a alteridade da natureza como tal, e não extingui-la. Com base nisso, discute-se finalmente a questão de em que sentido Hegel aceita a ideia de um desenvolvimento da natureza, negando-lhe o tipo de desenvolvimento que é característico do espírito e rejeitando a tese comum de um transformismo natural. Palavras-chave: Hegel, Natureza, Alteridade Abstract: The present paper aims at elucidating the hegelian conception of nature as contradictory externality, which is caracterized through the absence of the unity of the concept and, at the same time, the tendency to develop such unity. As will be argued, this conception implies that a philosophy of nature in the hegelian sense intends to conceive nature’s otherness as such, and not to eliminate it. Based on this result, we finally discuss the question in what sense Hegel accepts the idea of a development of nature, in spite of his denial of the idea that nature is capable ot the kind of development which is a caraceristic of spirit, and of his rejection of the common thesis of natural transformism. Keywords: Hegel, Nature, Otherness _________________________________________________________________ A filosofia da natureza aparece frequentemente como a parte mais envelhecida do sistema hegeliano. Sua dependência em relação às ciências empíricas de seu tempo, as quais estão hoje em dia amplamente esquecidas, contribuiu para lhe dar uma aparência de algo obsoleto. Por outro lado, as numerosas críticas que ela contém a respeito de concepções que ao final lhe superaram – tais como a teoria newtoniana da força da gravitação, a ideia da decomposição química do ar ou da água, ou o transformismo – * Doutor em Filosofia pela Universidade Paris-1 Panthéon-Sorbonne; Maître de conférences em filosofia da Universidade Paris-4 Sorbonne. Email: [email protected]. Tradução de José Pinheiro Pertille (UFRGS) e Greice Ane Barbiere (UFRGS). REH – Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Jul./Dez. de 2009 N. 11, v.01 pp.74-95 Gilles Marmasse A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório colaboraram para seu descrédito. Seria preciso concluir que é algo vão se interessar por esses textos? Não, se admitirmos que eles não sejam lidos para compreender o que é a natureza, mas para compreender porque, em um determinado momento, foi possível, e até mesmo necessário, pensá-la como Hegel a pensou. De certo modo, não temos que procurar no texto uma caução ou um apadrinhamento para tal ou qual concepção contemporânea da natureza, mas, sobretudo, compreender em que seu autor é o testemunho de uma certa época do pensamento – um testemunho ao mesmo tempo perfeitamente representativo e criador. Da mesma maneira que não se pode mais ser, hoje em dia, um discípulo ingênuo de Hegel, não se pode tampouco ser um denunciador ingênuo, precisamente porque a problemática hegeliana tornou-se estranha ao nosso horizonte intelectual. Todavia, é paradoxalmente aí que reside seu interesse para nós: aquele de nos fazer ascender a um estilo de pensar inabitual e exigente, do qual é preciso procurar a coerência interna e a propósito do qual é preciso se perguntar por que ele foi, um dia, perfeitamente plausível. A presente exposição repousará antes de tudo sobre uma leitura da Introdução da Filosofia da Natureza da Enciclopédia. Como é sabido, esta Introdução é guiada por duas grandes problemáticas: de um lado, o que é conhecer filosoficamente a natureza? De outro, o que é a natureza? É em relação à segunda problemática que iremos nos interessar – entendendo-se que, para Hegel, a natureza, assim como a lógica ou o espírito, não é uma coisa que estaria dada de uma vez por todas, mas, antes, um ser que se produz a si mesmo em um contexto de processus. Mais precisamente, se tentará responder às seguintes questões: em que sentido se pode dizer que a natureza é caracterizada por uma contradição não resolvida? Qual é a forma própria deste processo? Pode-se considerar a natureza como um organismo vivo animado por um télos geral? A hipótese fundamentalmente defendida será, então, a seguinte: para Hegel, a natureza é analisada como um objeto não somente múltiplo, mas também contraditório, na medida em que os seres naturais estão ao mesmo tempo separados uns dos outros e mutuamente relacionados. Os seres naturais tendem à independência, mas jamais chegam a atingi-la. Por outro lado, a natureza é desprovida de uma razão de ser interior, de tal modo que ela pode ser referida como irracional. É por isso que a filosofia da natureza, pensada como contingência radical, nos convida a reformular a interpretação tradicional do hegelianismo como puro e simples racionalismo. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 75 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse A contradição não resolvida A característica essencial da natureza é, segundo Hegel, a exterioridade. A natureza é não somente exterior ao espírito, mas é igualmente exterior a si mesma.1 O que se entende por isso? a) Eu diria que, em primeiro lugar, a noção de exterioridade designa aquilo que se manifesta de maneira sensível, como mostra esta afirmação da Enciclopédia: “O sensível é [...] sinônimo do exterior-a-si-mesmo”.2 Que a natureza seja algo exterior significa que tudo nela se manifesta na experiência imediata, ou seja, na experiência possibilitada pelos sentidos. Não existem nem qualidades ocultas, nem pneuma no sentido estóico do termo, nem natura naturans distinta de natura naturata, mas a natureza se reduz à série indefinida dos seres singulares sensíveis. b) Mais fundamentalmente, entretanto, reconhece-se na noção de exterioridade o tema da multiplicidade. A natureza é exterior a si mesma no sentido em que ela é radicalmente plural, ainda que, em contrário, uma verdadeira unidade não possa lhe ser atribuída a não ser que ela tenha uma projeção, sobre si, de um princípio espiritual: “Mostra-nos a natureza uma infinita multidão (unendliche Menge) de figuras e fenômenos singulares. Precisamos [como espírito] de levar a unidade a essa multiplicidade vária (Mannigfaltigkeit)”.3 Certamente, esta dispersão dos seres naturais não implica sua independência mútua. Por exemplo, a relação de gravitação liga o sol aos planetas, enquanto ácidos e bases se definem uns em relação aos outros. O desmembramento da natureza não deve ser concebido como significando o desdobrar-se sobre si de seus componentes ou sua indiferença mútua; pelo contrário, há entre eles relações incessantes. Em compensação, estas relações não implicam sua unificação a partir de um princípio interior. Em outras palavras, os seres naturais não são realizações particulares de um princípio universal imanente, mas somente as partes de uma série que se define, precisamente, pela soma de seus componentes. Na natureza, o universal não é “em si e para si”, mas somente “para nós”, espíritos 1 Enciclopédia das Ciências Filosóficas II, § 247 (Hegel 1997, p. 26; 1970, vol. 9, p. 24). Enciclopédia III, § 401, Adendo (Hegel, 1995, p. 106; 1970, vol. 10, p. 103. Cf. igualmente Enciclopédia I, § 38, Adendo (Hegel, 1995, p. 106; 1970, vol. 8, p. 111). 3 Enciclopédia I, § 21, Adendo (Hegel 1995, p. 74; 1970, vol. 8, p. 77). 2 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 76 Gilles Marmasse A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório que idealizam a natureza, por exemplo, no conhecimento científico ou filosófico: “estes momentos caem uns fora dos outros, são conservados como subsistentes-para-si uns face aos outros. Tal é por assim dizer a maldição da natureza”.4 Enquanto que cada homem particular, ser espiritual, encarna em si mesmo o espírito em geral, o universal, na natureza não é constitutivo dos seres existentes. É nesse sentido que Hegel pode escrever que a natureza é desprovida de conceito (entbehrt des Begriffs),5 ou, ainda, que o ser natural é infinitamente divisível: “aquilo que é material é divisível, quer dizer, exterior a si mesmo. Se consideramos um ser material ou espacial, sabemos [...] que podemos dividi-lo. [...] Justamente, estes pontos materiais não subsistem senão por si mesmos, eles excluem os outros deles mesmos. A natureza é uma multiplicidade infinita, uma exterioridade infinita”.6 Definitivamente, a natureza não se realiza nem interiormente (diferentemente da lógica), nem por sua unificação com a alteridade exterior (diferentemente do espírito), mas pela passagem interminável de um indivíduo particular ou de uma determinação particular à outra: mudanças de posição no espaço, de clima, de propriedades químicas, de engendramento de novos animais, etc. Mas essas mudanças, em verdade, não são verdadeiras mudanças, e a natureza não existe senão de um modo fundamentalmente quantitativo. Tudo nela se multiplica e se divide, cresce e decresce alternadamente. De certa maneira, Hegel vai ao encontro da moderna apreensão da natureza, uma apreensão caracterizada pelo reinado da quantidade: “na natureza, enquanto ela é a idéia na forma do ser-outro e ao mesmo tempo do ser-fora-de-si, a quantidade também tem justamente por essa razão uma importância maior que no mundo do espírito, este mundo da interioridade livre”.7 Entretanto, a quantidade não é aqui uma determinação epistemológica, quanto ao modo que tem o pensamento de se apoderar de seu objeto, mas é mais propriamente uma determinação ontológica, quanto ao modo de ser do objeto. 4 Hegel, 1983-1995, vol. 2, p. 219-220. Schleiermacher, em seu livro Der christliche Glaube (18211822), define a natureza como “o conjunto do corpóreo [...] em suas manifestações diversas e fragmentadas que se condicionam mutuamente”. Ao contrário, “Deus é um ser incondicionado e absolutamente simples” (§ 91,1). 5 Enciclopédia II, § 248, Observação (Hegel, 1997, p. 31; 1970, vol. 9, p. 28). Cf. Ciência da Lógica, Hegel, 1970, vol. 6, pp. 282-283. 6 Hegel, 2002, p. 17. 7 Enciclopédia I, § 99, Adendo (Hegel, 1995, p. 201; 1970, vol. 8, p. 211). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 77 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse A dependência recíproca dos fenômenos exteriores Todavia, a própria natureza é puramente e simplesmente plural? A noção de alteridade, trazida, por exemplo, pelo § 247 da Enciclopédia, estreita a contradição entre dois pólos, o do “mesmo” e o do “outro”: “A natureza mostrou-se como Idéia na forma do ser-outro” [p. 26]. A natureza não é assim somente uma multiplicidade, mas também um sistema de dependência recíproca. Ela é o reino da relatividade: “A [...] determinabilidade de fora tem na esfera da natureza seu direito”.8 O ser natural, segundo Hegel, assim me parece, não é somente para si, mas é também para um outro, e é por isso que suas propriedades não possuem necessidade intrínseca. O próprio de um ser natural é finalmente a sua incapacidade de se dar suas propriedades de maneira autônoma, uma vez que ele é inevitavelmente relativo aos outros seres naturais. E é por isso que suas propriedades são contingentes, no sentido de serem elas dependentes de condições exteriores.9 Por exemplo, o planeta é caracterizado por um movimento espontâneo, mas sua trajetória é definida a partir do sol. Igualmente, a causa do devir de tal reativo químico se encontra, ao mesmo tempo, em suas propriedades e no reativo que lhe é associado em tal ou qual experiência. Ou ainda, a modificação de um órgão qualquer do corpo vivo seguramente corresponde à sua configuração e dinâmica própria, mas também à ação exercida pelos outros órgãos. O ser natural é assim ao mesmo tempo parcialmente independente e parcialmente relativo. Ele representa bem, nesse sentido, esta ligação imperfeita da imediateidade e da mediação que é pensada pela Doutrina da Essência em seu modo puro. Essa contradição não é tal que o ser natural não possa ser, mas ela implica o caráter inevitavelmente frustrante dos processos da natureza. Por um lado, o ser natural é determinado pelo outro, mas não ao ponto de ser confundido com esse. Por outro lado, ele é individualizado, mas não ao ponto de ser autônomo. Os seres naturais não são nem mutuamente indiferentes, nem unificados em uma totalidade, mas relativos uns aos outros. Por exemplo, “a luz e sua negação estão uma ao lado da outra, mas a luz 8 Enciclopédia II, § 250 (Hegel, 1997, p. 36; 1970, vol. 9, p. 34). Não se pode deixar de pensar aqui na caracterização da sociedade civil dos §§ 182 e 183 da Filosofia do Direito. No entanto, a sociedade civil é bem menos exterior e contingente que a natureza, na medida em que os “burgueses” que a compõem pertencem à mesma sociedade e mantêm entre si uma relação não natural, e por isso não violenta, mas cultural, isto é, de cooperação fundada sobre representações (cf., por exemplo, o § 187 e sua Observação). 9 Cf. Hegel, 1996, p. 40: “A contingência é a necessidade externa, que certamente resulta de causas, mas Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 78 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse é a potência que persegue as trevas”.10 Encontramos aqui uma estrutura fundamentalmente reflexiva, e isso não é nenhuma surpresa, pois a natureza é o segundo grande momento do sistema. De certa maneira, Hegel inverte a análise da natureza proposta por Aristóteles no começo do livro II da Física, quando esse define os seres naturais como dispondo de um princípio interno de movimento.11 Para Hegel, nada na natureza é para si estritamente falando, mas tudo é sempre para um outro.12 O que consegue dar conta de um animal determinado? – Seu genitor e sua genitora, ou seja, indivíduos que são outros que ele mesmo. Pelo contrário, como pensa o espírito? – Por ele mesmo. Hegel insiste regularmente sobre o caráter enigmático da natureza, por oposição à clareza do espírito.13 Compreende-se agora o porquê. É que o espírito se explica a partir dele mesmo e é deste modo concebível. Inversamente, a identidade do ser natural é obscura, porque ele remete, ao mesmo tempo e contraditoriamente, a uma tendência interior e a uma causa exterior. Parece, assim, que o estatuto epistemologicamente problemático da natureza não é senão o correlativo de sua indignidade ontológica. Certamente somos tentados a opor à nossa interpretação a figura do animal, uma vez que esse poderia aparecer como uma unidade fechada e autodeterminante. De fato, os diferentes órgãos do corpo estão em uma relação de mútua alteridade. Por outro lado, o organismo natural está cindido entre a alma e o corpo. Com efeito, Hegel insiste regularmente sobre esse caráter “separável” entre os dois termos.14 A alma natural não se conhece nem se dá a conhecer em seu corpo, ela não mantém consigo uma relação de identificação. Ao contrário, ela se opõe a ele tendendo a lhe impor uma regra que ela se esforça, quanto a si, a transgredir: “O corpo vivo está sempre em prontidão de passar de causas tais que elas mesmas não são senão circunstâncias exteriores”. 10 Hegel, 1983-1995, vol. II, p. 510. 11 Cf. Aristóteles, Física II, 1, 192 b 8-32. 12 Deste ponto de vista, Hegel, contra o aristotelismo, está alinhado ao pensamento moderno que coloca em paralelo as duplas: natureza – espírito e necessidade exterior – liberdade interior; cf. a Introdução da Fenomenologia do Espírito (Hegel, 1970, vol. 3, p. 74): “O que está restrito a uma vida natural não pode por si mesmo ir além de seu ser-aí imediato, mas é expulso-para-fora dali por um Outro; [...] Mas a consciência é para si mesma seu conceito; por isso é imediatamente o ir-além [...] de si mesma” [Hegel, 2005, p. 76). 13 Cf., por exemplo, Hegel, 1996, p. 288-289: “É na vida que o inconcebível tem o direito mais elevado de nos confrontar, esse é o lado do [ser] natural no reino da natureza, [enquanto] o espírito se dá a compreender. [...] O espírito é claro, ele se manifesta para si mesmo. [...] Inversamente, a natureza é apenas a ocultação (das Verbergen)”. 14 Enciclopédia I, § 216 (Hegel, 1970, vol. 8, p. 374): “Assim a vida é essencialmente [um ser] vivo, e, segundo sua imediatez, é este ser-vivo singular. A finitude tem nessa esfera a determinação de que corpo Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 79 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse para o processo químico: oxigênio, hidrogênio, sal, [tudo isso] sempre quer emergir, mas é de novo suprassumido”.15 Correlativamente, a alma não age sobre o corpo de maneira soberana, mas de maneira indireta, no sentido em que ela defende com os órgãos seus objetivos próprios: “Os intestinos [as vísceras], os membros em geral são sempre [...] ativos uns em relação aos outros; e como cada um se apresenta como ponto central à custa de todos os outros, por isso cada um existe somente por meio do processo; isto é, aquilo que é, como suprassumido, rebaixado e posto como meio é isto mesmo o fim [alvo], o produto”.16 No corpo orgânico existe, portanto, ao mesmo tempo, cisão e relatividade. Observa-se, no espírito, múltiplos efeitos de dependência, como por exemplo, na relação de dominação e escravidão. Contudo, essa última relação consiste em um reconhecimento recíproco. A despeito da incontestável rudeza da escravidão, ela não faz o escravo recair ao nível de um animal. Ela não é “inumana”, na medida em que um e outro são protagonistas, em sua dependência mútua, da constituição de consciências de si. Da mesma maneira, a história, aos olhos de Hegel, é fundamentalmente infeliz – as páginas de felicidade são aqui folhas brancas: entretanto, ela é uma elevação em direção à liberdade. Ou ainda, quando o espírito se mostra irrefletido, absorvido pelos afetos ou pelas intuições imediatas, ou quando ele opera por escolhas arbitrárias, essas determinidades, ainda que não fundamentadas, não são contrárias àquilo que é, mas elas o exprimem. O homem pode ser louco, mas, contudo, ele nunca é um simples “animal”. Pelo contrário, “o mais alto para onde a natureza impulsiona em seu ser-aí é a vida; mas esta está entregue somente como idéia natural à sem-razão [ao irracional] da exterioridade”.17 A natureza é assim irracional,18 porém não no sentido em que ela seria um caos que não oferecesse nenhuma inteligibilidade, mas no sentido propriamente hegeliano, daquilo que é desprovido de unidade e incapaz de se constituir em uma totalidade viva. A natureza é caracterizada pela única inteligibilidade do entendimento, isto é, pelas ligações locais e provisórias, e não por uma organização geral e imanente que atribuiria e alma são separáveis, em virtude da imediatez da idéia” (Hegel, 1995, p. 353). 15 Enciclopédia II, § 337, Adendo (Hegel, 1997, p. 352; 1970, vol. 9, p. 338). 16 Ibid. § 352, Adendo (Hegel, 1997, p. 455; 1970, vol. 9, p. 436). 17 Enciclopédia II, § 248, Observação (Hegel, 1997, p. 30; 1970, vol. 9, p. 28). 18 Cf., entre outros textos, a Recensão das Obras de Jacobi (Hegel, 1970, vol. 4, p. 448): “O que aqui é encontrado como irracional (Unvernünftiges), como natureza, o é tanto como natureza exterior, corporal, Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 80 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse a cada fenômeno sua razão de ser e sua determinação própria. Como a natureza busca, então, esta razão da qual ela é privada? A partir de um modo negativo, alterando sua fenomenalidade, ou seja, suprimindo tendenciosamente a cisão que a constitui. A natureza é o processo sem fim pelo qual os seres naturais tendem, por sua interação, a abolir sua multiplicidade. Todavia, ao fazer isso ela só chega a se destruir e não a se unificar. Com efeito, aos olhos de Hegel, é impossível se constituir como unidade a partir de uma alteridade exterior. Na medida em que, por definição, um ser natural não se determina senão por meio de um outro fora de si mesmo, sua busca de unidade é necessariamente vã. Isso assim se mostra como desprovido de razão interior e, por isso mesmo, como enigmático. Encontramos na Razão na História uma análise sintética, ainda que um pouco sinuosa, da oposição entre natureza e espírito: “O sujeito, a efetividade real, é somente aquilo que fez retorno a si. O espírito não é senão o seu próprio resultado. A representação da semente pode explicar isso. A planta começa com a semente, mas essa é ao mesmo tempo o resultado de toda a vida da planta: a planta se desenvolve para produzi-la. Mas a impotência da vida aparece no fato de que a semente é ao mesmo tempo começo e resultado do indivíduo – o qual, enquanto ponto de partida e enquanto resultado, é diferente e, no entanto, idêntico, produto de um indivíduo e começo de um outro”.19 Enquanto o espírito dá-se conta de si no sentido em que ele se estabelece como a instância que tem saber e querer de si mesmo, o ser natural apenas mediatiza um outro. O ser natural não é uma relação de totalização do sujeito universal com um objeto seu, mas uma relação contraditória de dependência e independência entre objetos irredutivelmente diversos. A contingência natural consiste na relação recíproca entre seres finitos. Uma vez que eles são finitos, de um lado, eles não são capazes de se identificar e não podem senão concorrer entre si, de outro lado, nenhum deles é autossuficiente e dependem inelutavelmente uns dos outros: “Ora, se bem que a contingência, em virtude do que foi discutido até agora, seja apenas um momento unilateral da efetividade, e por conseguinte não possa confundir-se com ela mesma, contudo lhe compete seu direito também no mundo objetivo, como a uma forma da idéia em geral. Isso vale antes de tudo para a natureza, em cuja superfície, por assim dizer, a contingência tem seu livre quanto como natureza interior, sentimento, tendência, hábito e costumes”. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 81 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse curso, que também como tal tem de reconhecer-se, sem a pretensão (às vezes atribuída erroneamente à filosofia) de querer encontrar nisso um poder-ser somente assim, e não de outro modo”.20 O princípio da razão, tal como ele é, por exemplo, enunciado por Leibniz, postula que a série dos seres condicionados seja suspendida por um ser incondicionado.21 Em se tratando da natureza, Hegel claramente toma a posição contrária: “Na natureza, não somente o jogo das formas tem sua ilimitada, desenfreada contingência, mas cada figura por si carece do conceito dela mesma”.22 Por exemplo, os pontos do espaço são relativos aos outros pontos do espaço segundo um encadeamento indefinido, mas o próprio espaço, como momento, não é determinado por um elemento infra ou supranatural. Da mesma maneira, o encadeamento dos seres vivos constitui um círculo indefinido que não é de modo algum apresentado por Hegel como dependente de um ser exterior à natureza. De um modo mais geral, o surgimento incessante do ser natural não é incondicionado, na medida em que ele se explica por um outro: mas, este outro é ele mesmo condicionado, e assim por diante. A natureza não remete a nada que não seja natural e finito. Para ilustrar este ponto de maneira trivial, como Hegel resolve a questão sobre o ovo e a galinha? Estabelecendo, justamente, que não há solução para esse problema. As galinhas são dadas e se reproduzem. Não há razão em ser, e é aí que a natureza é contraditória. O ser natural existe pura e simplesmente, entretanto, como um ser relativo, relativo a uma alteridade que, enquanto tal, é natural. A deficiência da natureza está no fato de que ela não é incondicionada. O autor da Enciclopédia estabelece assim que a ausência de racionalidade não concerne aqui, simplesmente, ao nosso saber, mas mais exatamente à própria coisa. É isso que distingue, por exemplo, a tematização hegeliana da natureza como exterioridade radical da afirmação kantiana segundo a qual, no quadro do conhecimento fenomenal da natureza, não se pode chegar ao incondicionado. Em se tratando da natureza, a finitude é um atributo não do saber, mas 19 Hegel, 1955, p. 58. Cf. Enciclopédia III, § 379, Adendo (Hegel, 1995b, p. 12; 1970, vol. 10, pp. 14-15). Enciclopédia I, § 145, Adendo (Hegel 1995a , p. 272; 1970, vol. 8, p. 286). 21 Cf., por exemplo, o § 8 dos Princípios da Natureza e da Graça, G. VI, 602, ou ainda a Monadologia, Art. 37: “É preciso que a razão suficiente ou última esteja fora da sequência ou série deste detalhe das contingências, tão infinita quanto ela possa ser”. Leibniz, A Monadologia, 1979, art. 37, p. 109. 22 Enciclopédia II, § 248, Observação (Hegel, 1997, p. 30; 1970, vol. 9, p. 28). Inversamente, o espírito se caracteriza pela contingência suprassumida: “Também o contingente se faz valer no mundo espiritual, como já se notou antes a propósito da vontade, que contém em si o contingente na forma do [livre]arbítrio, embora seja somente como [um] momento suprassumido” (Enciclopédia I, § 145, Adendo (Hegel, 1995a, p. 272; 1970, vol. 8, p. 286). 20 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 82 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse da própria coisa. Pensar logicamente a exterioridade da natureza Entretanto, caso se considere que a natureza designa o momento da renúncia de si da Ideia, como então admitir a possibilidade de uma filosofia da natureza como discurso inteligível? Estamos aparentemente diante do seguinte dilema: ou o fato de que a natureza seja filosoficamente pensável contradiz sua definição de Entäusserung da lógica, ou, então, a lógica não se exterioriza radicalmente na ascensão da natureza, o que lança uma dúvida sobre a seriedade do “negativo” na filosofia hegeliana. Em verdade, podemos escapar do dilema ao observar que a natureza em si mesma se distingue da natureza enquanto ela é pensada. Logo, no discurso filosófico, a natureza não é mantida tal como ela é originariamente na medida em que ela é idealizada. O discurso filosófico é possível na medida em que ele consiste em operar a Aufhebung de seu objeto. Ele não restitui a natureza tal como ela é – com seus odores e seus ruídos – mas a transfigura em um objeto do pensamento. Natureza e pensamento da natureza não se confundem, e o segundo não pretende substituir a primeira. Se a natureza é pura e simplesmente uma exterioridade radical, contudo, o objeto da filosofia não é essa natureza mesma, mas a natureza enquanto ela é aufgehoben. Em outras palavras, que a natureza seja o outro da lógica não impede que ela adquira, por idealização, uma unidade racional – aquela do conjunto sistematicamente organizado da filosofia da natureza. Surge então a objeção contrária. Se a filosofia pode tomar a seu encargo seu outro, ela assim não o transforma a ponto de perder completamente aquilo que ele era inicialmente? O próprio discurso filosófico sobre a natureza não está, de uma vez por todas, desvinculado da natureza originária? Ele simplesmente não a transforma em algo de abstratamente lógico ou em algo de muito concretamente espiritual? Na verdade, se a filosofia opera a espiritualização de seu objeto, ela não o substitui por outra coisa, mas se contenta em transfigurá-lo. O uso das categorias lógicas, no discurso filosófico, não significa a substituição de um ser lógico ou espiritual por um ser natural, mas a logicização do ser natural, seu uso como material de aplicação da lógica. Se, graças à filosofia, a natureza é manifestada discursivamente como possuindo um sentido, ela é, Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 83 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse entretanto, reconhecida como diferente da lógica e do espírito. A filosofia não extingue a alteridade de seu objeto, mas o pensa. Em outros termos, mesmo se o espírito filosófico transpõe seu objeto no elemento do pensamento e o organiza de maneira sistemática, ele o conserva como material, um material nele mesmo perfeitamente acessível. Pode-se distinguir, por um lado, a natureza como exterioridade radical e, de outro lado, sua interpretação filosófica como pensamento unificando essa exterioridade. A filosofia não absorve seu objeto, mas se contenta em idealizá-lo. Ela não o abole, mas o subordina. De certo modo, se vê aqui como o conceito da Aufhebung permite evitar as aporias da coisa em si kantiana. A filosofia da natureza não consiste, assim, em conceber a natureza como um ser lógico, mas em pensar a aplicação da lógica à natureza. Ela não é cega ao caráter originariamente não lógico de seu objeto, uma vez que, precisamente, ela mostra o sentido dessa não logicidade. Um processo sem fim de supressão da exterioridade Por outro lado, numerosos são os textos que opõem o “conceito” e o “ser” da natureza. Haveria assim, nessa, uma contradição entre o seu princípio e a sua efetuação: “A natureza é divina em si, na idéia; mas, como é, não corresponde seu ser a seu conceito”.23 Pode-se dizer, aqui, que a natureza é objetivamente cindida em dois pólos opostos: de uma parte sua forma essencial, de outra seu conteúdo a cada vez dado na experiência: “a idéia eterna imanente à natureza [...] efetua ela mesma a idealização, a suprassunção do ‘fora-um-do-outro’, porque essa forma de seu ser-aí está em contradição com a interioridade de sua essência”.24 Segundo essa afirmação, a natureza não se reduz a um pacífico encadeamento de fenômenos, pois sua essência está em conflito com sua existência. Ora, se disse mais acima que a natureza é caracterizada, ao mesmo tempo, pela dependência recíproca e pela multiplicidade. É então razoável admitir que a primeira constitua o pólo essencial e a segunda o pólo existencial do ser natural. Assim, a natureza é caracterizada pelo antagonismo entre a ligação ideal e a multiplicidade real: “As diferenças em que se desdobra o conceito da natureza são 23 24 Enciclopédia II, § 248, Observação (Hegel, 1997, p. 30; 1970, vol. 9, pp. 27-28). Enciclopédia III, § 381, Adendo (Hegel, 1995b, p. 21; 1970, vol. 10, p. 24). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 84 Gilles Marmasse A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório existências mais ou menos autônomas umas diante das outras; mediante sua unidade originária estão, sem dúvida, em relação umas com as outras”.25 A contradição, da qual havíamos falado mais acima, pode ser interpretada dinamicamente, no sentido em que a ligação luta continuamente contra a dissociação. É precisamente esse conflito que assegura o surgimento de momentos naturais cada vez mais concretos. A passagem acima citada permite, de outro ponto de vista, eliminar uma interpretação possível da essência interior da natureza, segundo a qual essa essência estaria na origem, no sentido de instância produtora dos fenômenos naturais. Na realidade, a essência não é a instância de engendramento dos seres existentes, mas a de sua organização: ela dá conta, diz o texto, da unidade das coisas naturais – uma unidade que resta, entretanto, inevitavelmente incompleta. Os seres naturais estão pressupostos em sua existência – pois sua produção não é senão uma reprodução –, e a essência interior não intervêm senão para trabalhar em sua colocação em forma [mise en forme]. Consideremos, por exemplo, esse caso exemplar de relação entre o ideal e o real que é a relação entre alma e corpo no animal. Como dissemos mais acima, a função da alma natural é simplesmente lutar contra a tendência do corpo a adotar uma processualidade físico-química. Pois uma processualidade, com efeito, está constantemente a ponto de se fazer valer no corpo, e a tarefa da alma é, então, orientar a atividade dos órgãos ao lhes fazer servir à conservação do todo: “Quando a alma escapa do corpo, as potências elementares da objetividade entram em jogo. Essas potências estão, por assim dizer, permanentemente armando o bote para dar início ao seu processo no corpo orgânico; e a vida é o combate constante contra isso”.26 Se vê aqui que o corpo é capaz de ser, e de ser ativo, independentemente da alma: contudo, sua atividade não é então orgânica, mas físico-química, o que lhe destina à decomposição. A função da alma do ser vivo não é produtora, mas organizadora. Ela tende para unificar os processos do corpo ao lhes fazer servir aos interesses do conjunto. O corpo natural é duplo enquanto tensionado entre dois pólos, um como princípio de organização, o outro como dado existente múltiplo. O fato é que nunca a natureza é uma calma multiplicidade, mas ela tende continuamente em direção à unidade. Um texto da Razão na História mostra isso de maneira particularmente clara a propósito do peso da matéria: “A matéria tem peso na 25 26 Ibid. (Hegel, 1995b, p. 16; 1970, vol. 10, p. 19). Enciclopédia I, § 219, Adendo (Hegel, 1995a, p. 355; 1970, vol. 8, p. 376). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 85 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse medida em que existe nela uma impulsão em direção ao centro. Ela é essencialmente composta e constituída de partes puramente singulares as quais todas tendem em direção ao centro; não existe assim unidade na matéria. Ela subsiste como uma exterioridade recíproca e procura sua unidade; ela procura seu contrário e se esforça para suprimir-se a si mesma. Se ela chega a isso, ela não será mais matéria; ela terá desaparecido como tal”.27 De um modo mais geral, a natureza deve ser compreendida como uma tendência em direção a sua própria abolição, na medida em que ela se esforça para suprimir a sua multiplicidade. Tal é a fonte de seu dinamismo. O corpo em queda livre tende a anular a distância que o separa do centro, os planetas giram em torno do sol porque eles procuram um lugar que não estaria nem aqui nem ali, o ácido e a base se esforçam para um neutralizar o outro, etc. Entretanto, a ligação natural fica parcial e, assim, inevitavelmente destinada à caducidade, pois ela associa os seres particulares do exterior e não do interior. Ela não produz uma unidade, mas sempre um agregado. Por exemplo, instantes sucedem instantes, mas não se alinham [recourbent] em uma memória. Da mesma maneira, os membros do corpo se destroem e se substituem continuamente, mas eles não se produzem eles mesmos, como uma forma plasticamente expressiva de um sentido unitário – diferentemente do corpo representado na escultura ou na pintura. O mal infinito da natureza, como um eterno retorno do mesmo, traduz sua incapacidade de se transformar em uma verdadeira totalidade: “A mudança é, por conseguinte, aqui, um percurso circular, uma repetição incessante do mesmo. Em todas as mudanças da natureza, nada surge de novo. É nisso que a natureza é entediante”.28 Na medida, com efeito, em que ela é originariamente desprovida de universalidade, ela não pode senão reproduzir indefinidamente sua finitude. A natureza é um organismo vivo? Como, então, pensar a articulação dos momentos da natureza? Comecemos por evocar duas interpretações opostas, as quais devem ser consideradas seriamente, mas que, entretanto, se expõem a objeções complementares. De acordo com a primeira 27 28 Hegel, 1955, p. 55. Hegel, 1996, p. 38. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 86 Gilles Marmasse A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório hipótese, os momentos da natureza constituiriam regiões ontológicas sem relação mútua objetiva, no sentido de que eles não se determinariam uns por meio dos outros. O filósofo disporia, como num quadro, os diferentes níveis da natureza, mas uns não teriam influência sobre os outros. A natureza surgiria “em bloco”, sem que a interação dos diversos momentos lhes fosse constitutiva. A oposição de Hegel ao transformismo indubitavelmente fornece armas a este tipo de leitura, mas é preciso interrogar-se até que ponto. De acordo com a segunda hipótese, a organização em momentos corresponderia à metamorfose de uma natureza que, nesta transformação, conservaria, no entanto, a sua identidade. Em uma palavra, a natureza seria um organismo vivo. O sucesso da interpretação organicista da natureza, no meio germânico do primeiro terço do século XIX, torna plausível tal hipótese de leitura. Para Schelling, por exemplo, a natureza é, de fato, uma totalidade viva que se desenvolve de maneira finalizada: “A natureza, como unidade na infinitude, é para si um todo e traz em si todas as “potências” das coisas, sem, contudo, ser particularmente nenhuma dentre elas. Nela se encontra o prius absoluto de cada uma, nela está a unidade, a infinitude e a identidade das duas, cada uma sem mistura na mesma clareza e, todavia, em uma unidade eterna. […] A natureza que se esforça com toda a sua aplicação e toda a sua arte para criar plantas de espécie divina, aspira, através de todas as formas, à unificar, tanto quanto possível, a unidade essencial com a unidade contingente”.29 Ora, os textos de Hegel parecem, por sua vez, multiplicar as menções a um objetivo e a um fim da natureza considerada como um organismo. Segundo o § 251 da Enciclopédia, “a natureza é em si um todo vivo”.30 A Lição de 1821/22 precisa: “O sistema dos níveis […] deve ter um objetivo determinado e um fim último”.31 O problema da articulação dos momentos da filosofia da natureza parece, assim, resolvido: a natureza seria viva, o seu desenvolvimento responderia a um télos imanente, ela seria, nesse sentido, racional e teria por objetivo produzir-se como espírito.32 Imediatamente, contudo, objeções se apresentam. Se a natureza constituísse uma 29 Schelling, Aforismos para introduzir à Filosofia da Natureza, SW. 7, 181-183. Enciclopédia II, § 251 (Hegel, 1997, p. 38; 1970, vol. 9, p. 36). 31 Hegel, 2002, p. 20. Cf. ibid., p. 4: “poderíamos evocar no homem o sentido do inesperado da natureza para expor a insuficiência desta maneira [reflexiva] de considerar a natureza. Todo sentido não esperado apreende a natureza como um todo vivo, pressentindo que ela é uma unidade”. 32 Cf. Filion, 2007, p. 139-143. 30 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 87 Gilles Marmasse A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório totalidade que visa um objetivo unitário, a alienação da lógica como natureza não seria uma simples aparência? A natureza não conservaria, então, uma plena logicidade ou – ponto de vista oposto, mas, igualmente incômodo – não revelaria já, mais ou menos sub-repticiamente, a esfera espiritual? De resto, como admitir que a natureza seja viva, no seu conjunto, enquanto que a vida é apenas o seu momento último? Na própria física orgânica, constata-se que não há vida em geral, mas somente uma multiplicidade de vivos. Aliás, o conceito de alma do mundo, posto anteriormente por Schelling, brilha pela sua ausência na filosofia hegeliana da natureza. Significativamente, a alma do mundo apresenta-se apenas na filosofia do espírito, e com um sentido muito desvalorizado, uma vez que ali designa a receptividade indeterminada da alma humana em relação à natureza exterior.33 Contudo, há mais: se lermos rigorosamente os textos evocados acima, constatamos que eles determinam a natureza como viva em si ou de tal maneira que o seu fim último é um dever-ser. Estes textos, longe de resolverem o problema, apenas o tornam mais agudo. Uma metamorfose apenas interna Com novos recursos, tentemos compreender o princípio de desenvolvimento da natureza lendo o § 249 da Enciclopédia. Este texto, que retoma afirmações já formuladas no § 97 da Enciclopédia de Nuremberg,34 concentra, com efeito, as explicações e as dificuldades do pensamento da passagem ao seio da natureza: A natureza é para considerar-se como um sistema de [estágios ou] degraus dos quais necessariamente um procede do outro e é a verdade mais próxima daquele [degrau] do qual resulta; não porém de modo que um seja naturalmente gerado pelo outro, mas na idéia interna constitutiva do fundamento da natureza. A metamorfose acontece só ao conceito como tal, pois só a alteração deste é desenvolvimento. Mas o conceito é na natureza parte só algo interior, parte existindo apenas como indivíduo vivo; a este, somente, fica limitada a metamorfose existente.35 Na verdade, este texto parece afirmar coisas contrárias. Por um lado, os momentos 33 34 35 Cf. Enciclopédia III, § 389, Adendo (Hegel, 1995b, p. 45; 1970, vol. 10, p. 46). Cf. Propedêutica Filosófica (Hegel, 1970, vol. 4, p. 33). Enciclopédia II, § 249 (Hegel, 1997, p. 33; 1970, vol. 9, p. 31). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 88 Gilles Marmasse A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório ocorreriam uns a partir dos outros. Por outro lado, contudo, a metamorfose dos momentos teria validade apenas “conceitual”. Como conciliar estes dois conjuntos de afirmações? A hipótese que gostaria de defender é a seguinte. Haveria uma relação genética objetiva dos diferentes momentos da natureza, entretanto, estes não resultariam de um fim comum e não concerniriam de modo algum a um só e mesmo ser. Em outras palavras, os seres naturais seriam uns para os outros, mas a natureza não poderia ser pensada como um organismo que apresenta um fim universal. Os momentos ocorreriam uns através dos outros, mas sem ligação unitária: eles não teriam uma base substancial comum e não corresponderiam à atualização de um télos geral imanente. A força da teoria hegeliana seria, então, a de asseverar que a alteridade constitui, nela mesma, o princípio do advento dos momentos da natureza. Haveria condicionamento recíproco dos seres múltiplos, mas não metamorfose de uma só e mesma Ideia. Em primeiro lugar, é necessário esclarecer estas afirmações enigmáticas segundo as quais a passagem não é natural, mas revela apenas o conceito interior da natureza. Podese concluir destas considerações a ideia de que os momentos da natureza seriam objetivamente indiferentes uns dos outros e que haveria relatividade mútua apenas de acordo com o ponto de vista do filósofo? Com efeito, a sequência do texto, e os desenvolvimentos correspondentes das Lições, mostram que se trata aqui de uma crítica do transformismo: “Tem havido uma inepta representação dentro da filosofia da natureza, tanto na mais antiga como na mais moderna: ver o progredir e a passagem de uma forma ou esfera da natureza para [outra] mais elevada como produção exteriormente-efetivada, que, entretanto, as pessoas relegam para a escuridão do passado, com a intenção de tornar essa produção mais clara [e compreensível]”. 36 O transformismo, tal como é criticado por Hegel, significa que um momento qualquer da natureza resultaria da transformação de outro momento. Por exemplo, ao longo das gerações, os peixes tornar-se-iam animais anfíbios, que se tornariam pássaros, etc. “Esta idéia há muito tempo tem assombrado a filosofia da natureza e ainda reina”.37 O transformismo é inaceitável para Hegel, especialmente porque a temporalidade natural é aquela da repetição e não do progresso. Portanto, as coisas naturais são sempre já isto 36 37 Ibid., § 249, Observação (Hegel, 1997, p. 33; 1970, vol. 9, p. 31). Hegel, 2000, p. 93. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 89 Gilles Marmasse A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório que elas são, e não sua obra própria.38 Uma coisa pode progredir apenas na medida em que é capaz de transcender as suas determinações dadas, resumidamente, onde ela é idealizante. Ora, tal é o caso do espírito, mas não da natureza. Objetar-se-á, contudo: na natureza muitos seres, especialmente os organismos vivos, são caracterizados por uma autotransformação. Isso é certo, mas o desenvolvimento dos organismos naturais permanece, com efeito, apenas formal. Como se disse acima, a gênese do ser vivo, com efeito, consiste num crescimento ou numa multiplicação, isto é, num vir-a-ser simplesmente quantitativo. Os seres naturais são fundamentalmente imediatos, no sentido de que são como são dados e não tais como se produzem a si mesmos. Para retornar a um exemplo evocado previamente, os leões são todos conformes a um tipo, dado que, como tal, ele é incapaz de evoluir qualitativamente. De um modo mais geral, a representação transformista vai contra a concepção hegeliana da natureza, na medida em que postula uma unidade fundamental dos seres naturais. Com efeito, se há transformação de um gênero no outro, certa identidade é conservada de um gênero ao outro, o que é contraditório com o tema da natureza como multiplicidade radical, e o que vem a apagar a diferença entre a natureza e o espírito. Finalmente, o balanço é o seguinte: a recusa do “engendramento natural”, no § 249, não serve para desqualificar toda ideia de advento dos momentos em virtude do seu condicionamento recíproco, mas simplesmente a tese segundo a qual a gênese da natureza deveria ser compreendida de um modo transformista. Como compreender, então, a ideia da metamorfose “apenas interior”? Importa, de fato, distinguir o interior e o somente interior. A interioridade é apenas interior, unilateral, quando não chega a exteriorizar-se numa existência que lhe corresponderia. Isto tem duas consequências correlatas: por um lado, “como algo de interior, [o princípio existe apenas] como disposição, vocação, etc.”.39 Por outro lado, a existência exterior não sendo atualmente determinada pelo princípio interior, o é por um ser que é ele mesmo exterior. Em uma palavra, ela é heterônoma. Este ponto é afirmado na Doutrina da Essência da Ciência da lógica: “O germe da planta, a criança, não são inicialmente senão planta interior, homem interior. Mas, por esta razão, a planta ou o 38 Cf. Bonsiepen, 1986, p. 157. Enciclopédia I, § 140, Adendo (Hegel, 1995a, p. 263; 1970, vol. 8, p. 276) [“Assim, por exemplo, a criança, enquanto homem em geral, na verdade é um ser racional; só que a razão da criança como tal é inicialmente só como um interior, isto é, como disposição, vocação etc.”; p. 263]. 39 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 90 Gilles Marmasse A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório homem são, como germe, algo de imediato, algo de exterior que ainda não se deu a relação negativa consigo mesmo, algo de passivo, de entregue ao ser-outro”.40 O desenvolvimento do germe é condicionado pela terra que lhe serve de matriz e a criança vê a sua vontade sujeita à autoridade dos seus pais ou de seus mestres.41 Assim, quando Hegel afirma que, na natureza, o conceito é apenas interno ou que a metamorfose ocorre apenas no conceito, ele entende que os seres naturais são fundamentalmente passivos e a cada vez mediatizados, não por uma essência interior, mas por um dado exterior, ou seja, por um outro ser natural. De modo mais geral, o desenvolvimento da natureza pode ser explicado somente a partir do conflito recíproco de seus componentes. No entanto, como este desenvolvimento passivo provém do mau infinito, ela é ao mesmo tempo a procura de uma processualidade autônoma. A autodeterminação está presente “em si”, como termo de um progresso nunca realizado. A relatividade dos momentos, princípio do progresso sistemático Finalmente, o desafio argumentativo do § 249 é duplo: refutar a tese comum do transformismo natural e mostrar a especificidade da natureza negando-lhe um tipo de desenvolvimento que é verificado, na esfera real, apenas pelo espírito, a saber, o desenvolvimento autônomo de um sujeito. Como compreender, então, a dinâmica sistemática da natureza? Os momentos não se produzem uns pelos outros, mas pressupõem-se reciprocamente. Eles já estão todos desde sempre lá, mas a sua vida consiste em se reproduzirem ao negarem-se mutuamente. O vir-a-ser da natureza não é a autotransformação de uma entidade que continuaria a ser fundamentalmente idêntica a si mesma, como no espírito, mas o conflito repetitivo de uma multiplicidade de entidades dadas, e que se contentam, no seu conflito, em proliferar de maneira monótona. Por exemplo, qual é a relação entre o tempo e o espaço? Um e outro, como sequência indefinida de seus componentes próprios, já estão sempre lá: são fundamentalmente dados. Contudo, existem a título de opostos recíprocos. O tempo é 40 Ciência da Lógica II, Hegel, 1970, vol. 6, p. 184. Já foi corretamente apontado o caráter autoritário da pedagogia hegeliana, expresso, por exemplo, na seguinte sentença: “Assim como a vontade, também o pensamento deve começar pela obediência” (Textos Pedagógicos, Hegel, 1970, vol. 4, p. 332). Esta concepção está associada a uma precisa análise metafísica: o que é incoativo é incapaz de se desenvolver por si e requer uma mediação exterior. 41 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 91 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse dado, mas é dado a título de negação do espaço e vive-versa. Mesmo quando os dois momentos não se produzem um ao outro, se um não fosse, o outro não seria. O mesmo ocorre, para tomar outro exemplo, na relação das espécies animais: estas não se geram mutuamente, mas desenvolvem-se umas contra as outras, em relações de concorrência e predação. A concepção hegeliana da gênese da natureza associa assim a imediatidade, a relatividade e a repetição. Pode-se, no entanto, falar da “Idéia interior da natureza” no singular, na medida em que cada ser natural é habitado por uma mesma tendência. Trata-se do se fazer valer em detrimento dos outros e, assim, de unificar a alteridade sob sua lei particular. Há, por conseguinte, “em si” uma identidade fundamental dos seres naturais: “A vida eterna da natureza é [...] que a idéia se apresente em cada esfera da maneira como pode apresentar-se em tal finitude, assim como cada gota de água dá uma imagem do sol”.42 A proliferação dos seres naturais não permite, então, que alguns dentre eles realizem de forma adequada esta tendência. Por exemplo, por que existe uma extensão interminável do espaço? Porque nenhum ponto do espaço é total. Por que há uma sequência sempiterna de gerações animais sempre novas? Porque nenhum animal chega a ser por si. O paradoxo da natureza é que ela procura o seu remédio na sua doença, a saber, a multiplicidade. A especificidade da filosofia da natureza de Hegel consiste em dar conta da origem dos momentos sem pressupor a sua unidade genérica. Os momentos não são “autistas”, pois estão em relação recíproca. Contudo, não há princípio positivo de identificação. Eles são realmente relativos, mas é pelos seus conflitos multiformes que se explica a sua atividade. A originalidade da natureza, no ciclo lógica-natureza-espírito, concerne ao fato de que nela os seres não remontam de um princípio comum, mas, no entanto, se determinam mutuamente. Em razão disso, a natureza constitui um encadeamento de fenômenos que permanece desprovido de razão. A natureza é uma gênese perpétua (o sentido antigo do physis: “nascimento”, é retomado), entretanto não é a gênese de um ser, mas a de uma multidão de seres mutuamente hostis. Porque não há télos geral da natureza, esta não é um sujeito. Certamente, há subjetividade na natureza, por exemplo, nos organismos vivos, mas a natureza, como tal, não é subjetiva. A natureza é sem finalidade, tanto em relação à outra coisa quanto a seu próprio respeito. Ela é habitada 42 Enciclopédia II, § 252, Adendo (Hegel, 1997, p. 42; 1970, vol. 9, pp. 39-40). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 92 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse por uma tendência, mas esta é cega: a natureza visa simplesmente sua reprodução ao idêntico. Nesse sentido, não se poderia identificá-la com a natureza schopenhaueriana? Não, porque a natureza, de acordo com Schopenhauer, reporta à vontade una, imutável, e incondicionada. Pelo contrário, a natureza hegeliana não se reporta a nenhuma entidade supranatural, ela é estritamente múltipla e variável, e tudo nela é condicionado. Para Schopenhauer, a vontade como coisa em si é a substância oculta da natureza fenomenal; para Hegel, em contrapartida, a natureza não é outra coisa senão a multiplicidade dos seus fenômenos. Há, por conseguinte uma gênese da natureza, no sentido de que os momentos se produzem uns contra os outros. No entanto, a vida destes momentos não é nunca inovadora, mas constitui a simples repetição daquilo que já teve lugar. A natureza, para Hegel, não evolui de nenhuma maneira. Sabe-se que a noção de Ideia designa uma totalidade. Ora, há totalidade verdadeira apenas se ela possui um princípio universal que dá conta da série das suas determinações particulares. Tal não é, seguramente, o caso da natureza. No entanto, esta tende a se desfazer de sua exterioridade, ainda que esta luta seja vã, dado que se opera apenas sobre um modo exterior. Por exemplo, um animal qualquer é, certamente, gerado por seus congêneres e depende do seu ambiente: no entanto, a violência que ele desenvolve em relação aos seus semelhantes e ao seu meio constitui, sob a forma do mau infinito, uma atividade de autonomização. De um modo mais geral, a dependência recíproca dos fenômenos da natureza significa que esta última é caracterizada por uma infinidade de ligações finitas: se não é uma totalidade efetiva, em si e para si, é, no entanto, uma totalidade em si, como adição dos seres naturais justapostos, e é precisamente isto que Hegel exprime, ao dizer que a natureza é a Ideia fora de si ou a Ideia na forma do ser-outro. Desse ponto de vista, o autor da Enciclopédia está do lado dos Antigos ou dos Modernos? Não se pode responder de maneira simples. (a) A natureza é, de fato, no entender de Hegel, como dos Antigos, uma ordem hierarquizada e dinâmica. Contra os Modernos, ele se recusa a fazer da natureza o meio inerte dos movimentos que se produzem nela, e considera que o ser natural é caracterizado por uma tendência imanente à supressão de sua exterioridade. Além disso, se considerarmos que a ciência moderna caracteriza-se não pela sua fidelidade aos dados da observação ingênua, mas, ao contrário, pelas abstrações que opera (abandono do estudo da causa, estudo de casos limites, geometrização dos Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 93 A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório Gilles Marmasse fenômenos, produção de um espaço experimental sui generis…), Hegel está mais próximo dos Antigos do que dos Modernos. (b) Em contrapartida, como estes últimos, o autor da Enciclopédia coloca em primeiro plano as determinações quantitativas dos seres naturais, bem como sua exterioridade e sua relatividade recíproca. Além disso, contra os Antigos, ele distingue estritamente a ordem natural e a ordem humana e nega à natureza qualquer normatividade em relação ao espírito, considerando, pelo contrário, que aquela está destinada a ser instrumentalizada por este. (c) De certa maneira, o autor da Enciclopédia tende, então, a operar a síntese das duas épocas. Pode-se fazer aqui uma analogia com o seu pensamento político. Hegel permanece próximo dos Antigos ao definir o Estado como uma unidade integrativa que triunfa sobre os indivíduos. Em contrapartida, ele é moderno nisto que faz da liberdade o desafio da atividade política. De maneira análoga, a propósito da natureza, continua a ser próximo dos Antigos pela sua denúncia do sensível múltiplo. Em contrapartida, é moderno negando à natureza qualquer razão de ser interna, e fazendo do encadeamento exterior dos fenômenos a sua característica própria. Referências bibliográficas HEGEL, G.W.F. Werke in zwanzig Bänden, org. por E. Moldenhauer e K.M. Michel, Fankfurt am Main: Suhrkamp 1970 ______________. Die Vernunft in der Geschichte, org. por J. Hoffmeister, Hamburg: Meiner 1955 ______________. Enciclopédia das Ciências Filosóficas I: A Ciência da Lógica, tradução de Paulo Meneses, São Paulo: Loyola 1995 (= 1995a) ______________. Enciclopédia das Ciências Filosóficas III: Filosofia do Espírito, tradução de Paulo Meneses, São Paulo: Loyola 1995 (=1995b) ______________. Enciclopédia das Ciências Filosóficas II: Filosofia da Natureza, tradução de José Nogueira Machado, São Paulo: Loyola 1997 ______________. Vorlesungen über die Philosophie der Religion, org. por W. Jaeschke, Hamburg: Meiner 1983-1995 ______________. Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, org. por K.H. Ilting, K. Brehmer e H.N. Seelmann, Hamburg: Meiner 1996 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 94 Gilles Marmasse A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório ______________. Vorlesungen über Naturphilosophie, Berlin 1823/24, org. por G. Marmasse, Frankfurt am Main: Peter Lang 2000 ______________. Vorlesungen über Naturphilosophie, Berlin 1821/22, org. por G. Marmasse e Th. Posch, Frankfurt am Main: Peter Lang 2002 ______________. Fenomenologia do Espírito, tradução de Paulo Meneses, Petrópolis: Vozes 2005 SCHLEIERMACHER, Fr. Der christliche Glaube, Berlin 1821/1822 LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. A Monadologia, São Paulo: Abril Cultural 1979 FILION, Jean-François. Dialectique e matière. La conceptualité inconsciente des processus inorganiques dans la Philosophie de la nature de Hegel, Laval: PUF 2007 BONSIEPEN, W. “Hegels kritische Auseinandersetzung mit der zeitgenössischen Evolutionstheorie”, in: Hegels Philosophie der Natur, org. por M.J. Petry e R.P. Horstmann, Stuttgart: Klett-Cotta 1986 Artigo recebido em setembro de 2009 Artigo aceito para publicação em abril de 2010 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 95 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 96-112 Comienzo, concepto y método, como antecedentes del tránsito de la idea a la naturaleza Jorge Eduardo Fernández* _______________________________________________________________________________ Resumen: La corroboración más nítida de la relación entre comienzo y concepto la encontramos en la consideración del método que Hegel desarrolla al final de la Ciencia de la lógica. Con la consideración del método Hegel retoma la exposición del comienzo que finalizará con el libre desprenderse (freis entlassen) de la idea en la naturaleza. Dicho pasaje se encuentra en el último capítulo de la Lógica que Hegel dedica a “La idea absoluta”. En él el comienzo, tal como ha ido efectuándose en el curso de la obra, es considerado una anticipación “defectuosa” del método, y el método es expuesto como la cumbre más elevada del comienzo. El método es el resultado o el comienzo recuperado en su verdad y libertad, lo positivo (das Positive) pero comprendido éste no en la inmediatez empírica de la certeza sensible, ni en la inmediatez e indeterminación del ser, sino en la unidad especulativa del concepto. Dice Hegel que el método es: “la simple determinidad, que puede ser de nuevo un comienzo”. Esta similitud entre el movimiento del comienzo y el libre desprenderse de la idea, nos permite sostener una visión de la circulación del sistema cuyo movimiento interno conlleva una permanente negación de la totalidad, la misma es efectuada mediante la adecuación del concepto al libre desprenderse de la idea en pos de un nuevo comenzar. Palabras claves: Comienzo, concepto, método, naturaleza Resumo:A confirmação mais clara da relação entre começo e conceito encontra-se na consideração do método que Hegel desenvolve ao término da Ciência da Lógica. Com a consideração do método Hegel retoma a exposição do começo que concluirá com o “freies Entlassen” da idéia na natureza. Esta passagem está no último capítulo da Lógica que Hegel dedica a "A idéia absoluta." O começo, da mesma maneira que no curso da Ciência da lógica, é considerado uma antecipação "defeituosa" do método, e o método está exposto como o ápice do começo. O método é o resultado ou o começo que recuperou sua verdade e liberdade, o positivo (das Positive) não mais compreendido na imediação empírica da certeza sensível, nem na imediação e indeterminação do ser, mas na unidade especulativa do conceito. Hegel diz que o método é "a determinação (Bestimmtheit) simples que pode ser novamente um começo." Esta semelhança entre o movimento do começo e o “freies Entlassen” da ideia nos permite sustentar uma visão do caráter circular do sistema cujo movimento interno sustenta uma permanente negação totalidade. O mesmo é feito por meio da adaptação do conceito para o livre liberar-se idéia à procura de um novo começar. Palavras-chave: Começo, conceito, método, natureza _______________________________________________________________________________ * Professor doutor da UNSAM (Buenos Aires). Email: [email protected] REH – Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Jul./Dez. de 2009 N. 11, v.01 pp.96-112 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández Introducción: Este escrito, que pretende ser programático, puede servir en lo inmediato para localizar y determinar la finalidad de la lógica del concepto, en tanto lógica subjetiva, en la obra de Hegel y de manera particular en la Ciencia de la lógica, como una cuestión en sí misma y como antecedente del tránsito a la naturaleza. Sabemos que Hegel le asigna al “concepto” una significación propia y característica. Por un lado, “concepto” abarca y al mismo tiempo se diferencia de las acepciones anteriores, por otro, ocupa un lugar definitorio en la exposición del sistema hegeliano que será sobrepasado en su alcance solamente por la idea. Todo el material filosófico desplegado por Hegel encuentra en el desarrollo del concepto un tópico clave de convergencia. El problema, o mejor dicho la contradicción, radica en que el concepto está supuesto en la inmediatez de todo tipo de conocimiento, y sin embargo, se comprueba al mismo tiempo la imposibilidad de poder comenzar por él. Esta contradicción e imposibilidad la encontramos en el comienzo de la Fenomenología del espíritu y podemos decir que determina la necesidad de su desarrollo y la función de introducción al sistema que cumple esta obra. Ello hace que el comienzo en sentido estricto opere como un supuesto del desarrollo fenomenológico del concepto. El mismo se desplaza a través de la exposición negativa – dialéctica, desplegada mediante figuras, hasta el inicio de la Ciencia de la lógica: “Womit muss der Anfang der Wissenschaft gemacht werden?”1 y ss. donde el comienzo es “hecho” en vías de la superación del concepto en tanto supuesto. No obstante este “hecho”, que el comienzo se haga efectivo al iniciar la Ciencia de la lógica, su desarrollo reaparece hacia el final de esta obra en la Lógica del concepto en las páginas que Hegel le dedica al método. De este modo sucinto queda presentada la relación entre comienzo, concepto y método. En vistas de poder desarrollar la relación entre estos tres términos, expondré en este escrito los siguientes puntos: 1. El inicio de la Fenomenología del espíritu y el comienzo de la Ciencia de la 1 Hegel, 1990, pág. 55. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 97 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández lógica. 2. Comienzo, concepto y método en la lógica subjetiva. 3. El tránsito a la naturaleza. 1. El inicio de la Fenomenología del espíritu y el comienzo de la Ciencia de la lógica. La Fenomenología del Espíritu empieza, como sabemos, a partir de lo que Hegel denomina “la certeza sensible” (Die sinnliche Gewissheit). En ella, la instancia más inmediata del conocimiento, la contradicción del concepto y por ello también la imposibilidad del comienzo, se encuentra en que, por un lado ella aparece a la “suposición” como la más verdadera y cercana a la experiencia de la cosa, y por otro, nos ofrece la verdad en su forma más abstracta y pobre.2 El inicio de la Fenomenología del espíritu concede desde sus primeras líneas la imposibilidad de comenzar por el concepto. Lleva hacia adelante su derrotero postergando la tarea de hacerse cargo de aquello que ya está desde el comienzo. Podríamos decir, para explicitar mejor esta cuestión, que Hegel está pensando aquí en aquella frase que Kant formula en la Introducción a la Crítica de la razón: “…si es verdad que todos nuestros conocimientos comienzan con la experiencia, todos, sin embargo no proceden de ella,…” “Wenn aber gleich alle unsere Erkenntnis mit der Erfahrung anhebt, so entspringt sie darum doch nicht eben alle aus der Erfahrung”.3 A partir de allí queda introducido el problema de la doble significación del comienzo, que luego en Hegel se desdoblará en el tratamiento fenomenológico y en el lógico. Por este motivo es que Hegel insiste en indicar que la Ciencia de la lógica supone la tarea realizada por la Fenomenología, es decir, que para empezar por la Lógica es necesaria la previa superación de las determinaciones fenomenológicas de la conciencia. En un sentido general y lineal, podemos afirmar que el tránsito de la Fenomenología a la Ciencia de la lógica se opera en el Saber absoluto. El contenido del Saber absoluto que no se encuentra expuesto mediante figuras, como sí ha ocurrido con el desarrollo anterior de la Fenomenología, tampoco alcanza a iniciar el despliegue del 2 3 Hegel, 1988 (en adelante: PhG), pág. 69. B 1 (Kant, 1998, pág. 43). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 98 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández concepto que será objeto de la Lógica. El traspaso que opera el Saber absoluto cumple, entre otras tareas, la de posibilitar el tránsito del lenguaje fenomenológico al lógico, de un lenguaje concentrado en la configuración de la experiencia a otro que tiene por meta desplegar su significancia despojada de toda representación figurativa. En el saber absoluto las figuras, a través de las cuales la conciencia se ha ido reconociendo a sí misma, son disueltas mediante un proceso de interiorización (Erinnerung) y convertidas en momentos del desarrollo del saber. En este proceso de interiorización la conciencia niega toda referencia externa, figurativa, y comienza a reconocerse a sí misma en las figuras que antes se le oponían como objeto exterior a sí. En este sentido el saber absoluto recupera, a modo de una maceración concentrada en su propia interioridad, el material (Stoff) decantado a través de toda la Fenomenlogía del espíritu. Lo que en el saber absoluto se ha agregado es, dice Hegel: “…en parte, la reunión de los momentos singulares cada uno de los cuales presenta en su principio la vida del espíritu todo y, en parte, la fijación del concepto en la forma del concepto, cuyo contenido se había dado ya en aquellos momentos e incluso bajo la forma de una figura de la conciencia”.4 A partir de aquí la cuestión comienza a desplazarse hacia la exposición pura del concepto. Ella tendrá en la Lógica objetiva -la lógica del ser y la de la esencia-, el desarrollo de su “génesis”, para acceder finalmente, en la Lógica subjetiva, al despliegue de la naturaleza subjetiva del concepto. En la Introducción a la Lógica Hegel dice con claridad:"En la Fenomenología del espíritu he expuesto a la conciencia en su movimiento progresivo, desde su primera oposición inmediata respecto al objeto, hasta el saber absoluto. Este camino pasa a través de todas las formas de las relaciones de la conciencia con el objeto, y tiene como su resultado el concepto de la ciencia".5 La Lógica, que deberá “hacer” efectivo el comienzo absoluto de la ciencia, supone la tarea de la Fenomenología, la cual ha partido desde su propia incapacidad 4 Hegel, 1988, pág. 522. “In der Phänomenologie des Geistes habe ich das Bewußtsein in seiner Vortbewegung von dem ersten unmittelbaren Gegensatz seiner und des Gegenstandes bis zum absoluten Wissen dargestellt. Dieser Weg geht durch alle Formen des Verhältnisses des Bewußtseins zum Objekt durch und hat den Begriff der 5 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 99 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández para hacer el comienzo. En este sentido, en la Ciencia de la lógica Hegel se refiere al saber absoluto de esta manera: "El saber absoluto es la verdad de todas las formas de la conciencia, porque, como resultó de aquel desarrollo suyo, sólo en el saber absoluto se ha disuelto totalmente la separación entre el objeto y la certeza de sí misma, y la verdad se igualó con esta certeza, como ésta se igualó con la verdad".6 En la medida en que la Fenomenología cumple con su propósito de superar la oposición entre el objeto y la certeza de sí que la conciencia obtiene de él, libera al concepto de su dependencia sensorial y lo eleva como unidad del contenido del saber. De esto se trata cuando hablamos del comienzo de la ciencia a partir de la unidad inmediata de “lo lógico”, del ser depurado y concebido como objeto puro del pensamiento. “¿Con qué tiene que ser hecho el comienzo de la ciencia?”. Con esta pregunta inicia Hegel el primer pasaje de la Ciencia de la lógica. Este pasaje ocupa un curioso lugar en la obra, pues no pertenece a la Introducción y tampoco está contenido en la organización de sus secciones y capítulos. Ya que no es habitual en la obra de Hegel encontrar preguntas que titulen escritos, capítulos o pasajes, podemos nosotros preguntarnos con cierta insidiosa curiosidad: ¿por qué en el comienzo de la Lógica nos encontramos con una pregunta? ¿Hay alguna relación entre la naturaleza del principio y el preguntar? Podemos además corroborar, observando simplemente el índice temático, que el comienzo precede al ser y que al comienzo se accede mediante una pregunta. Comprobaremos que todo esto es cierto, pero debemos observar también que la pregunta no se cuestiona directamente por el comienzo, sino que, suponiéndolo de algún modo, se pregunta ¿con qué? “¿Con qué tiene que ser hecho el comienzo de la ciencia?”. Hegel indica que esta pregunta surge en torno al debate, contemporáneo suyo7, acerca de si es posible hallar un comienzo de la filosofía, y si éste debe ser mediato o Wissenschaft zu seinem Resultat” (Hegel, 1990, pág. 32). 6 “Das absolute Wissen ist die Wahrheit aller Weisen des Bewußtseins, weil, wie jener Gang desselben es hervorbrachte, nur in dem absoluten Wissen die Trennung des Gegenstandes von der Gewißheit seiner selbst vollkommen sich aufgelöst hat und die Wahrheit dieser Gewißheit sowie diese Gewißheit der Wahrheit gleich geworden ist” (Hegel, 1990, pág.33). 7 La referencia es al debate entre Jacobi y Schelling generado en torno a la obra de Jacobi: Von den Göttlichen Dingen. Tenemos que considerar aquí que el planteo acerca de la inmediatez del comienzo tuvo una significativa repercusión en el pensamiento de Hegel. Al respecto se puede leer: Gawoll, 2000. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 100 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández inmediato. Él empieza este pasaje de manera muy parecida a como inicia el Prólogo y la Introducción a la Fenomenología del espíritu. En los tres casos se refiere Hegel a supuestos de la filosofía de su tiempo. En el primero habla del sentido que debe tener un prólogo en filosofía y en el segundo de la suposición de que en filosofía antes de comenzar por la cosa misma hay que ponerse de acuerdo acerca de si el conocimiento es un medio o un instrumento. En los tres casos su modo de responder es también en gran medida parecido. En efecto, podemos suponer que esto indica mucho más que una coincidente similitud de estilo, y que el problema del comienzo de la Ciencia de la lógica, el de la Fenomenología, y naturalmente también el del prólogo al sistema, se encuentran implicados. En la mencionada Introducción Hegel señala que el conocimiento no es ni una cosa ni la otra, ni medio ni instrumento, ni siquiera “la refracción del rayo”, sino “el rayo mismo”. El conocimiento y el absoluto no son cosas distintas sino una y la misma cosa. Podríamos suponer y señalar que sobre este supuesto, y en vías de su superación, se desarrolla la Fenomenología del espíritu. La respuesta en la Lógica no posee un estilo muy diferente. Frente al debate en torno a si “El comienzo de la filosofía debe ser mediato o inmediato,...” señala Hegel: “...es fácil demostrar que no puede ser ni lo uno ni lo otro”8, pues: “Nada hay en el cielo, en la naturaleza, en el espíritu o dónde sea, que no contenga al mismo tiempo la inmediatez y la mediación”.9 Desde esta simple consideración de los diferentes inicios, podemos ver como tanto el contenido de la Fenomenología, como la necesidad de comenzar a partir de la mediación y de la inmediatez, confluyen en esta cuestión del comienzo. En tanto que la primera remite a la tarea dispensada a la Fenomenología, vista ahora como tarea previa, necesaria para la Lógica, la segunda refiere al comienzo efectivo de la Lógica. Por ello: “El comienzo es lógico en cuanto debe efectuarse en el elemento del pensamiento libre que está siendo para sí, es decir en el saber puro”.10 Nuevamente en esta frase vemos que la Ciencia de la lógica supone haber 8 “…es ist leicht zu zeigen, daβ es weder das eine noch das andere sein könne” (Hegel, 1990, pág. 53). “…nichts im Himmel oder in der Natur oder im Geiste oder wo es sei, was nicht ebenso die Unmittelbarkeit enthält als die Vermittlung,…” (Hegel, 1990, pág. 54). 10 “Logisch ist der Anfang, in dem er im Element des frei für sich seienden Denkens, im reinen Wissen 9 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 101 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández alcanzado el saber puro como elemento en el cual se desarrolla el pensamiento libre, el comienzo de la ciencia presupone el camino de depuración del saber de la conciencia y su objeto. De este modo, para Hegel ya la Fenomenología se despliega dentro de la esfera de la ciencia y forma parte de su desarrollo. “Ella misma es ya ciencia”, pero sólo en un sentido inmanente, es decir, aún no desarrollado. En el sentido que Hegel le adjudica en la Lógica, “hacer el comienzo” significa establecer el cruce del principio con la decisión de hacerlo. De este modo se determina la doble significación inherente al comienzo. Mediante ella se “hace” y se desarrolla el movimiento especulativo del comienzo; podríamos decirlo como un movimiento de permanente purificación del principio mediante la también permanente opción por la verdad. “Sólo la decisión (Entschluß) de tomar al pensamiento en cuanto tal está presente, la cual también puede ser considerada una arbitrariedad (Willkür)”.11 El comienzo “se hace” con “decisión” (Entschluß) y “arbitrariedad” (Willkür). Lo que quiere decir decidirse a concebir al pensamiento en la libertad de toda presuposición. 2. Comienzo, concepto y método en la lógica subjetiva La finalidad de la Lógica del concepto se encuentra expresada en los primeros renglones de la sección dedicada a la idea, allí Hegel dice: “La idea es el concepto adecuado, lo verdadero objetivo o sea lo verdadero en cuanto tal”.12 Haciendo caso omiso a la necesidad de una interpretación exhaustiva de esta cita y de la génesis madurativa del significado de: “objektive Wahre”, en función del propósito de este escrito destaco la expresión “concepto adecuado”. El objetivo de la obra de Hegel, y según él el de la filosofía y su historia, se define en torno a la tarea de preparación para que el concepto pueda ser concebido de manera adecuada, esto es, para que el desarrollo del concepto coincida con la exposición objetiva de la verdad de la idea. Este desarrollo, aquí solamente mencionado, introduce una cantidad de gemacht werden soll” (Hegel, 1990, pág. 55). 11 “Nur der Entschluβ, den man auch für eine Willkür ansehen kann, nämhlich daβ man das Denken als solches betrachten wolle, ist vorhanden” (Hegel, 1990, pág. 56). 12 “Die Idee ist der adäquate Begriff, das objektive Wahre oder das Wahre als solches” (Hegel, 1994, pág. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 102 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández cuestiones significativas para comprender el pensamiento de Hegel. Las mismas quedan reunidas en el título de esta ponencia: “Comienzo, concepto y método”, que lo podemos desgranar de la siguiente manera: 1. Lo que Hegel se plantea en torno al problema del comienzo ahonda y supera una filosofía que pretende comenzar a partir de la determinación de principios y/o axiomas que sean considerados de antemano puntos de partida de su exposición. 2. Debido en gran medida a la contradicción antes mencionada, el concepto está desde el comienzo, pero no es posible establecer una adecuación inmediata con el comienzo como punto de partida. En el comienzo el concepto es contradicción consigo mismo. 3. Este desplazamiento del comienzo transforma la noción de método y lo desplaza hacia el final de la exposición en la que el método se conforma en torno a un nuevo comenzar que consiste en la libre exteriorización de la idea en la naturaleza. Siguiendo este planteo dividiré mi exposición de este segundo punto en tres cuestiones: 2.1. Lógica y concepto, 2.2. Concepto y comienzo, 2.3. Concepto y método. 2.1. Lógica y concepto: En el pasaje de la Ciencia de la lógica titulado “Del concepto en general”, Hegel se plantea la cuestión en sus propios términos: “Es tan imposible manifestar de modo inmediato la naturaleza del concepto, como explicar directamente el concepto de cualquier otro objeto” (Hegel, 1994, pág. 5). El concepto esta a la base de todo objeto, pero es imposible comenzar por él. Buscar explicar esta afirmación de Hegel nos conduce en principio hacia atrás, a tener que considerar la relación entre introducción y comienzo que se remonta al inicio y tarea de la Fenomenología del espíritu, a los Posicionamientos del pensamiento ante la objetividad y al desarrollo de la Lógica objetiva en la Ciencia de la lógica. Todos estos pasajes cumplen de alguna manera una función introductoria, de introducción al sistema como es el caso de la Fenomenlogía, a la exposición enciclopédica del mismo en el caso de los posicionamientos, y de génesis del concepto en el caso de la lógica objetiva. Como sabemos el énfasis puesto en el problema de la introducción a la Ciencia de la lógica, se lo debemos particularmente a Hans Friedrich Fulda. Fulda define al 205). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 103 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández movimiento de la ciencia (Wissenschaft) como “El retorno de la ciencia en su comienzo”13, lo cual puede ser comprendido además como una descripción formal del método. Comienzo y método se encuentran operando en cada momento del despliegue de la ciencia, y en este sentido cada uno de ellos señala y responde respectivamente al retorno de la inmediatez y a la necesidad de mediación. Por eso es que el método sólo podrá tratarse al final del proceso como resultado, mientras que el permanente retorno de la ciencia a su comienzo mantendrá su carácter introductorio. Este último se trata de un saberse ya en la ciencia, pero aún no de la manera lo suficientemente adecuada para comenzar. Así resulta que el comienzo de la Lógica “hace” el comienzo que en la “certeza sensible” había quedado en cierne, como así también podría sostenerse que la Lógica del concepto desarrolla un nuevo posicionamiento del pensamiento ante la objetividad el cual consiste en el desarrollo del sistema de la subjetividad. Comentario aparte, este es un buen punto para señalar la diferencia entre la lógica grande y la chica. La lógica chica, o enciclopédica, presupone al concepto en el comienzo sin tener que dar cuenta esta presuposición, por ello puede empezar afirmando: “El ser es el concepto solo en sí”14. En cambio la lógica grande se encuentra con el problema de hacer el comienzo, de disolver este supuesto y partir de la inseparabilidad (Untrenbarkeit) de ser y nada. Hegel empieza el primer capítulo de la Doctrina del ser diciendo: “Ser, puro ser, -sin ninguna otra determinación”.15 El ser inmediato indeterminado es el ser puro, donde “puro” significa vacío de determinación. El ser indeterminado y puro, es el puro intuir, pensar vacío, nada. Pirmin Steckeler-Weithofer desde su teoría crítica de la significación señala: “Concepto “en sí” es la aparente inmediata referencia de palabras, proposiciones o algunas representaciones semióticas, las cuales llegan a ser puestas en principio como puras referencias formales, es decir, como momentos abstractos de significación. El análisis del ser, de la lógica del ser, se ocupa esencialmente de la crítica de cada hipóstasis madura de la significación formal, la cual es constitutiva interna en cuanto tal de un sistema usual de un lenguaje general, o 13 14 “Die Rückkehr der Wissenschaft in ihren Anfang” (Fulda, 1965, pág. 275). “Das Sein ist der Begriff nur an sich” (Hegel, 1991, § 84). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 104 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández demanda de signos”.16 Lo que me interesa destacar de esta cita, es la significatividad del ser puro. Ser en tanto concepto en sí es signo puro, carente de significación, y en esta carencia radica la “demanda de signos”. El signo puro opera como clave del comienzo en tanto “demanda de signos”. Ser, es el concepto vaciado de significación. Carencia y significación, considerados como negación y posición del ser del comienzo, se consuman ambos simultánea y conjuntamente. Con lo cual, en esta naturaleza especulativa del ser del comienzo se consuman tanto el escepticismo como el nominalismo. Todas las palabras o representaciones pueden ser vaciadas de significado y puestas en función de la pura significación. Pero con el ser puro ocurre algo inverso, puesto como concepto vacío, “nur an sich”, sigue significando. En este sentido podemos comprender al comienzo como la prueba de resistencia semiótica cuyo resultado es que “ser” es el único signo que significa aún vacío de significados, es el único signo significante “nur an sich”.17 A partir de aquí se inicia la Lógica objetiva, que contiene la lógica del ser y la de la esencia, como desarrollo de la “génesis del concepto”. En la Lógica subjetiva el problema del comienzo es planteado a partir de la naturaleza subjetiva del concepto. La inmediatez del ser y la reflexión exterior de la esencia han sido traspasadas, con la cual la inmediatez del comienzo en el concepto no es ni indeterminada ni externa, sino concebida. Es el comienzo del concepto a partir de su naturaleza genéticamente concebida mediante la lógica objetiva. De este modo la Lógica objetiva contiene la “Exposición genética del concepto” y como resultado el concepto es la unidad activa del ser y de la esencia. “Génesis” y “sistema”, ambas del concepto, son los temas de cuya articulación depende la unidad entre las dos partes que conforman la Ciencia de la lógica. La Lógica objetiva en tanto ha desarrollado la génesis del concepto opera el traspaso hacia la Lógica subjetiva, la cual tiene por tarea fluidificar y dar nueva vida a la osamenta muerta de la lógica. 15 “Sein, reines Sein, - ohne alle weitere Bestimmung” (Hegel, 1990, pág 69). “Begriff ‘an sich’ ist die scheinbar unmittelbare Referenz von Vörtern, Sätzen oder irgenwelchen semiotischen Repräsentationen, die sich aber in der Analyse zunächst als rein formaler Bezug und d.h. als abstraktes Bedeutungsmoment herausstellen wird. Die Analyse des Seins, die ‘Seinslogik’, beschäftigt sich also wesentlich mit der Kritik jeder reifizierenden Hypostasierung der formaler Bedeutung, die als solche kontituiert ist innerhal eines üblichen Systems eines allgemeinen Sprach- oder Zeichengebraucht” (Steckeler-Weithofer, 1992, pág. 95). 17 Fernandez, 2003. 16 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 105 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández En ella el comienzo es hecho a partir del concepto como resultado que, tras la génesis objetiva, es concebido como verdad de la substancia. El concepto como resultado reconoce como pertenecientes a su actividad a todas las determinaciones objetivas. En palabras de Hegel: “Así el concepto es la verdad de la substancia, y como la manera determinada de la relación de la substancia es la necesidad, la libertad se muestra como verdad de la necesidad, y como la manera de relación del concepto”.18 El punto de unión y traspaso en torno al cual se define el cuño del idealismo, y en el cual se encuentran substancia y sujeto, naturaleza y espíritu, necesidad y libertad, está ubicado al comienzo de la Doctrina del concepto. Recién en ella es asumido como acto de libertad, la arbitrariedad (Willkür) de la Des-cisión (Entschluß) hecha con el comienzo la “de tomar al pensamiento en cuanto tal”.19 2.2. Concepto y comienzo: En el concepto el comienzo alcanza la libertad del acto de comenzar. La verdad del comienzo radica pues en la libertad del concepto y en el ulterior desarrollo de sus determinaciones, es decir, adecuado al despliegue de la idea. Con esto podemos pensar que toda introducción, cualquiera de las tres mencionadas, es de por sí doblemente insuficiente: 1. porque toda introducción incluye la negación de un comienzo ya operante y en este sentido ella misma está internamente determinada por tal suposición, y 2. porque toda introducción conduce hasta la libertad como forma inmediata e indeterminada del comienzo. De este modo el comienzo es hecho a partir de la necesidad e insuficiencia de la introducción. La introducción se desarrolla en el saberse tiempo comenzado, lo que significa suponerse acogida en el concepto sin poder aún dar aún razón de ello. La introducción opera como mediadora evanescente que conduce, al modo de una retrorremisión, hacia la necesidad de hacer el comienzo. Por ello el comienzo supone la mediación y el evanescimiento de la introducción. El comienzo es en su máxima expresión la necesidad que ha alcanzado la libertad de hacer. 18 “So ist der Begriff die Wahrheit der Substanz, und die indem die bestimmte Verhältnisweise der Substanz die Notwendigkeit ist, zeigt sich die Freiheit als die Wahrheit der Notwendigkeit und als die Verhältnisweise des Begriffs” (Hegel, 1994, pág. 6). 19 “Nur der Entschluβ, den man auch für eine Willkür ansehen kann, nämhlich daβ man das Denken als Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 106 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández En este “hacer” el comienzo, en esta des-cisión, se invierte la relación entre libertad y necesidad, espíritu y naturaleza, objetividad y subjetividad. Por ello dicho “hacer” señala, como lo ha expresado Edgardo Albizu un “kairos”, que es a la vez, tanto “teórico, -como- práctico y poiético”.20 Del cual Ryosuke Ohashi dice: “Este instante del comienzo es el “des” de la decisión”.21 La tesis de Ohashi tiende a mostrar como el movimiento especulativo opera una “des-trucción” del comienzo y una “re-ducción” de las categorías a la temporalidad liberando un lugar de éxtasis. Lugar que deja espacio para “el libre desprenderse de sí de la idea”. En cierto sentido podemos marcar que en esta primacía de la libertad consiste el rasgo determinante del idealismo, el cual en Hegel se efectúa en torno a la adecuación del concepto al despliegue de la idea. Algo por el estilo ocurre con las obras de Schelling cercanas a la primera década del 1800 y de manera especial con diferentes versiones de las Edades del mundo y Las investigaciones sobre la esencia de la libertad humana… . De manera semejante a Hegel, la preocupación de Schelling por el comienzo tiene que ver con la transformación que se produce en el núcleo de su filosofía. Tal transformación es expresada por Schelling mediante el traspaso de la necesidad inherente a la filosofía de la naturaleza a la libertad del espíritu. El diseño del sistema a partir de la libertad se corresponde con el desarrollo de la parte ideal de la filosofía. 2.3. Concepto y método Ya en el Prefacio a la Fenomenología del espíritu Hegel presenta al método especulativo como "el ritmo inmanente del concepto". Este ritmo es expuesto en el breve desarrollo de la “proposición especulativa”, la cual, del mismo modo que el “comienzo absoluto” no parte de ningún principio, sino de un movimiento de despojamiento de los principios posibles para permitir que la “cosa misma” se despliegue sin previas determinaciones. solches betrachten wolle, ist vorhanden” (Hegel, 1990, pág. 56). 20 Albizu, 2000, pág. 149 ss.. En la tercera parte de este trabajo señala el triple carácter: teórico, práctico y poiético del comienzo. 21 “Dieser Augenblick des Anfangs ist das “Ent” des Ent- Schlusses,....” (Ohashi, 1984, pág. 45). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 107 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández Por ello la “des-cisión” del comienzo en tanto desencadenante del despliegue de la verdad, alcanzará la verdad de su libertad en el libre desprenderse de la idea. La corroboración más nítida de la relación entre comienzo y concepto la encontramos en la consideración del método que Hegel desarrolla al final de la Ciencia de la lógica. El método, como el concepto, no puede ser explicitado al comienzo, más bien ocurre de manera inversa, con el método se inicia la exposición del comienzo. Dicho pasaje se encuentra en el último capítulo que Hegel dedica a “La idea absoluta”, la cual “es la identidad de la idea teórica y de la idea práctica” y “el único objeto y contenido de la filosofía”. En ella el concepto es el “libre concepto subjetivo” con lo cual, el método no es comprendido como algo exterior a él, sino como su desarrollo en “el libre desprenderse de sí de la idea”. El método es en este sentido la cumbre más elevada del comienzo. Y el comienzo, tal como ha ido efectuándose, es una anticipación “defectuosa”22 del método. Lo “defectuoso” consiste en la arbitrariedad (Willkür) del impulso (Trieb) necesario para comenzar. El método es el resultado o el comienzo recuperado en su verdad y libertad. Es lo positivo (Das Positive) pero comprendido éste no en la inmediatez empírica de la certeza sensible, sino en la unidad especulativa del concepto. El cual es, apelando a la precisión de Wolfgang Marx: “mediación de inmediatez y mediación en la forma del ser”.23 De este modo el método es “la simple determinidad, que puede ser de nuevo un comienzo”.24 Esta similitud entre el movimiento del comienzo y el libre desprenderse de la idea alcanzada al final de la Lógica, nos permite sostener una visión de la circulación del sistema cuyo movimiento interno conlleva una permanente negación de la totalidad, es la adecuación del concepto al libre desprenderse de la idea, es decir, en pos de un nuevo comienzo. La Ciencia de la lógica no contiene un planteo en donde el conocimiento del 22 “Da sie (Die Methode) aber die objektive, inmanente Form ist, so muß das Unmittelbare des Anfangs an ihm selbst das Mangelhafte und mit dem Triebe begabt sein, sich weiterzuführen” (Hegel, 1994, pág. 289). 23 “Vermittlung von Unmittelbarkeit und Vermittlung in der ‘Form des Seins’ zu sein” (Marx, 1972, pág. 115). 24 “…in die einfache Bestimmheit zusammengegangen, welche wieder ein Anfang sein kann” (Hegel, 1994, pág. 299). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 108 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández resultado pueda ser solamente entendido como la verdad del comienzo, y mucho menos a la inversa. Es decir, que la verdad del absoluto no se encuentra sólo en el principio o en el fin, sino por el contrario, cada momento del desarrollo contiene una arqueología y una teleología de la mediación. 3. El tránsito a la naturaleza Si planteásemos el tránsito de la idea a la naturaleza en términos caros a Schelling, diríamos que, ganado el espacio propio de la libertad, se trata ahora de pensar el pasaje de la libertad a la necesidad. En cierto sentido este planteo sirve también para Hegel. La gran diferencia radica en la autonomía que Hegel le adjudica a la naturaleza. En palabras tomadas de la Enciclopedia la naturaleza es: “la contradicción irresuelta” e irresoluble, es la “caída”, el deshecho de la idea.25 En este punto radica el carácter ambivalente de la naturaleza en el sistema hegeliano, ella es por un lado el medio para llegar al espíritu, y por otro, es un medio que se rebela y persiste en sí misma. La naturaleza es un resto irreducible, un medio que contiene un resto de mediación no evanescente. Por ello cabe considerar estos dos aspectos: 1. La naturaleza como medio, es decir, como exteriorización de la idea, y 2. La naturaleza como esfera autónoma no deducible de la lógica y del espíritu. Recordemos que en el §244 con el que finaliza la lógica Hegel alcanza a afirmar la libertad absoluta de la idea para dejarse ser en la naturaleza. “La libertad absoluta de la idea… …se decide a desprenderse de sí como naturaleza”. Este desprenderse de sí implica el traspaso a la naturaleza como: momento de la particularidad (Besonderheit), primer determinado o ser-otro (Andersseins), idea inmediata o “contra-aparencia” (Widerschein). En el §245, el primero de la Introducción a la Filosofía de la naturaleza, Hegel distingue el punto de vista teleológico finito de la naturaleza como algo exterior y diferente del ser humano. “La naturaleza no contiene en sí misma el fin último”, sino solamente en tanto el “concepto… …es inmanente a la naturaleza en cuanto tal”. En el §246 queda definida la mirada de la naturaleza que le compete a la 25 Hegel, 1991, § 248, Obs. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 109 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández filosofía de la naturaleza. A diferencia de la física “…la filosofía de la naturaleza es contemplación concipiente (begreiffende Betrachtung)… …contempla en su propia e inmanente necesidad con arreglo a la autodeterminación del concepto”. El concepto de naturaleza se encuentra definido a partir de la exterioridad, el serotro (Andersseins) de la idea. En tanto ser-otro de la idea, la naturaleza es lo otro de la libertad absoluta, ella aparece en su inmediata “necesidad y contingencia” (Notwendigkeit und Zufälligkeit). “La naturaleza es en sí, en la idea divina” (Die Natur ist an sich, in der Idee göttlich…), pero tal como ella es en su “existencia determinada” fuera de la idea, ella es “la contradicción no resuelta” (der unaufgelöste Widerspruch). De este modo queda planteada con toda claridad la ambivalencia de la naturaleza en tanto ella es exterior a la idea y contiene la inmanencia del concepto. Esta ambivalencia queda expresada en que a la naturaleza “…le es propio el ser-puesto (Gesetztsein), lo negativo, tal como los antiguos captaron la materia en cuanto tal, como non-ens”. En esta misma dirección, la que sostiene que en la misma imposibilidad de una decisión natural de la naturaleza radica la necesidad de concebirla a partir de la idea o desde el espíritu, Hegel afirma que la naturaleza ha sido enunciada como “la caída de la idea en sí misma” (“…der Abfall der Idee von sich selbst…”), y luego agrega que, solamente en la inmediatez de la conciencia sensible, la cual no se sostiene en sí misma, la naturaleza aparece como lo primero. Como queda expresado en las primeras páginas de la Fenomenología del espíritu de 1807, la conciencia sensible no puede detenerse en la inmediatez de su certeza sin tener que signarla en un aquí y un ahora. En la naturaleza no sólo el “juego de formas” (“Spiel des Formen”), sino cada ente en particular es puesto en su irresoluble contradicción. De este modo podemos agregar a la preconcepción del concepto antes indicada, el tiempo y el espacio, como preconcebidos o a prioris que operan en la filosofía de la naturaleza. Quizás sea este el punto donde la cuestión se abre en su dimensión filosófica más honda. La interpretación inmediata, ceñida a los renglones del texto, es la que nos lleva a comprender a la naturaleza como ser-puesto y éste como negación, lo que se corresponde con la afirmación anterior que dice que la naturaleza es “contradicción no resuelta”. Este carácter signa, por así decirlo, la naturaleza de la naturaleza, la decisión Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 110 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández de la naturaleza no se alcanza en la naturaleza, ella es irresuelta en sí misma, y en ese sentido, es irresoluble. El segundo aspecto a considerar es la referencia al concepto de materia comprendida ésta como no-ente. Esto remite en principio a Platón (Timeo 27 d – 28 a), pero además podemos remitirnos, por cierto de un modo más libre, a la obra de Schelling, sobretodo a los escritos posteriores a 1802 en los cuales él se esfuerza en realizar el traspaso de una filosofía de la naturaleza a una filosofía del espíritu, en particular la consideración y resignificación del no-ente de raíz neoplatónica a partir de su formulación del “nicht Seyende zu seyn” en el cual la naturaleza pulsa en el absoluto: Weltalter 1815.26 Esto nos permitiría, por un lado, resaltar el camino que une a ambos pensadores, Hegel y Schelling, con los aportes del neoplatonismo, pero además, por otro lado, el tema deriva en la imposibilidad de ambos de seguir concibiendo la materia pura y exclusivamente desde sus determinaciones exteriores. En Schelling esta cuestión deriva en tener que pensar la relación interna entre materia y vida, y en el caso de Hegel en el desarrollo lógico de la llamada (re) flexión interior o referencialidad inherente al Dasein a través de la cual puede ser concebido el traspaso del ser inmediato e indeterminado al finito “estar siendo” (Dasein). De este modo podemos agregar a la preconcepción del concepto antes indicada, el tiempo y el espacio, como preconcebidos o a prioris que operan en la filosofía de la naturaleza. De ahí en más cabe retomar el derrotero de Hegel, concebir la filosofía del espíritu, sin olvidar que, lo más elevado a lo que aspira la naturaleza es la vida, pero la vida comprendida pura y exclusivamente desde el horizonte dominado por la misma naturaleza, es decir, en su estar “…abandonada a la sin razón de la exterioridad”. Referências Bibliográficas HEGEL, G. W. F. Phänomenologie des Geistes. Hg. Hans-Friedrich Wessels y Henrich Clairmont. Hamburg: Meiner 1988. ______________.Wissenschaft der Logik. Die Lehre vom Sein (1832). Hg. Hans-Jürgen 26 Fernández, 2009. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 111 Comienzo, concepto y método Jorge Eduardo Fernández Gawoll. Hamburg: Meiner 1990. ______________.Wissenschaft der Logik. Die Lehre vom Wesen (1813). Hg. HansJürgen Gawoll. Hamburg: Meiner 1992. ______________.Wissenschaft der Logik. Die Lehre vom Begriff (1816). Hg. HansJürgen Gawoll. Hamburg:Meiner 1994. _____________, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830), Erster Teil: Die Wissenschaft der Logik. Hg. Wolfgang Bonsiepen y Hans- Christian Lucas. Hamburg: Meiner 1991 ALBIZU, Edgardo. Hegel, filósofo del presente. Buenos Aires: Editorial Almagesto 2000 FERNANDEZ, Jorge Eduardo. Finitud y mediación. La cualidad en la Lógica de Hegel. Buenos Aires: Ediciones del Signo 2003. _____________. “Libertad y tiempo en Schelling. Materiales para una interpretación de “Las edades del mundo” (Die Weltalter)”, en: Comunio, 2009, nº 1, págs. 75-95. FULDA, Hans F. Das Problem einer Einleitung in Hegels Wissenschaft der Logik. Frankfurt: Klostermann 1965. GAWOLL, H.J. “Der logische Ort des Wahren. Jacobi und Hegels Wissenschaft vom Sein“. In: Andreas Arndt y Christian Iber, Hegels Seinslogik. Interpretationen und Perspektiven. Berlin: Akademie Verlag 2000, págs. 90-108. KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft, Hg. Jens Timmermann, Hamburg: Meiner 1998. MARX, Wolfgang. Hegels Theorie logischer Vermittlung. Kritik der dialektischen Begriffskonstruktion in der “Wissenschaft der Logik”. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog 1972. STEKELER-WEITHOFER, Pirmin. Hegels Analytische Philosophie. Die Wissenschaft der Logik als kritische Theorie der Bedeutung. Schöningh: Paderborn 1992 OHASHI, R. Zeitlichkeitsanalyse der Hegelschen Logik. Zu einer Phänomenologie des Ortes. München: Alber 1984. Artigo recebido em junho de 2010 Artigo aceito para publicação em agosto de 2010 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 112 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 113-124 A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel Márcia C. F. Gonçalves* _____________________________________________________________________ Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar que: 1º. a Filosofia da Natureza de Hegel é uma resposta sistemática ao projeto schellinguiano de uma física especulativa; 2ª. a crítica de Hegel ao mecanicismo moderno fundamenta-se no diagnóstico sobre seu modo abstrato de pensar a natureza; 3ª. o resultado da crítica hegeliana contra o mecanicismo moderno consiste em uma concepção do organismo como superior à mecânica infinita do universo. Palavras-Chave: Hegel, Natureza, Schelling, Mecanicismo, Organismo Abstract: The aim of this paper is to demonstrate that: 1. Hegel's Philosophy of Nature is a systematic response to Schelling’s project of a speculative physics, 2. Hegel's criticism of modern mechanicism is based on the diagnosis of his abstract way of thinking about nature, 3. the result of Hegel’s criticism of modern mechanicism consists in a conception of the organism as superior to the mechanics of the universe. Keywords: Hegel, Nature, Schelling, Mechanicism, Organism _____________________________________________________________________ O objetivo deste trabalho é explicitar a crítica de Hegel contra o mecanicismo das ciências da natureza modernas fundado no entendimento abstrato. Esta crítica é diretamente influenciada pelo projeto de uma física especulativa desenvolvido pela Filosofia da Natureza de Schelling. Mas esta influência não é apenas positiva. O processo que vai da perspectiva mecanicista, predominante na física moderna, para a perspectiva organicista, defendida pelo jovem Schelling, é descrito por Hegel apenas como um desdobramento processual da manifestação da “Idéia”. Neste sentido, a organicidade da natureza, ao contrário de constituir a totalidade mesma do universo, que poderia ser intuída intelectualmente ou apresentada imediatamente como um pressuposto, é meticulosamente deduzida na Filosofia da Natureza de Hegel a partir de * Doutora em Filosofia pela Universidade Livre de Berlin (FUBerlin); professora adjunta do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), e-mail: [email protected]. REH – Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Jul./Dez. de 2009 N. 11, v.01 pp.113-124 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel sua concepção sobre a sistematicidade necessária que possibilita e fundamenta o raro fenômeno da vida, cuja idealidade somente o conceito é capaz de alcançar. Para melhor desenvolver minha tarefa, dividirei este trabalho em três partes correspondentes a três diferentes teses. Na primeira parte mostrarei de modo muito conciso que a filosofia da natureza de Hegel é uma resposta sistemática ao projeto schellinguiano de uma física especulativa. Na segunda parte, pretendo descrever a crítica do velho Hegel ao mecanicismo da ciência moderna como modo mais abstrato de conceber a natureza. Na terceira e última parte pretendo apontar as especificidades da compreensão hegeliana de organismo em sua diferença e proximidade com a concepção organicista de natureza de Schelling. Parte 1 – A relação de Hegel com a Filosofia da Natureza de Schelling A Filosofia da Natureza de Hegel foi claramente influenciada pelo projeto de uma “física especulativa” desenvolvido pelo jovem Schelling. Contudo, ao contrário de Schelling, que em 1797, com 22 anos, publica sua primeira obra de filosofia da natureza, Hegel aguarda até os 47 anos de idade para publicar um sistema completo de filosofia que inclui uma complexa e extensa obra de filosofia da natureza. Este adiamento consciente para tratar do tema específico da natureza decorre provavelmente da necessidade de marcar sua diferença e independência filosóficas em relação ao amigo Schelling. Neste sentido, a filosofia da Natureza de Hegel é uma resposta sistemática ao projeto schellinguiano de uma física especulativa. Logo no início da introdução do segundo volume de sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas, reeditada pela última vez um ano antes de sua morte, Hegel dispara uma pesada munição de críticas irônicas contra o ex-amigo fundador da chamada física especulativa. Ele culpa Schelling e seus “amigos” românticos pelo descrédito alcançado pela filosofia da natureza, transformada em “um instrumento sem conceito” (begriffloses Instrument) utilizado por uma “imaginação fantástica” (phantastische Einbildungskraft). (Hegel, 1997, pp.11-12)1 E os adjetivos pejorativos não param por aí: “complexidade barroca e presunçosa” (ebenso barocken als anmaßenden Getue), “mistura caótica entre empirismo e formas de pensamento 1 Hegel 1997, pp. 11-12. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 114 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel incompreensíveis”, “beberagem”, “ausência de método e cientificidade”, “tonteria” ou “vigarice” (Schwindeleien)... Enfim não poderia ser pior a imagem traçada aqui por Hegel sobre o jovem filósofo da natureza, cujo sistema ele mesmo defendera em sua primeira publicação de 1801, conhecida como Differenzschrift2, e com quem dividira entre 1802 e 1803 a edição do Kritische Journal der Philosophie. E para marcar de vez a diferença entre seu próprio sistema de filosofia da natureza e o aparentemente incompleto sistema do jovem Schelling, Hegel adverte: “o que aqui vamos desenvolver não é força da imaginação, nem fantasia: é coisa do conceito, da razão.”3 Apesar desta posição crítica, a concepção de natureza de Hegel, assim como a Filosofia da Natureza de Schelling, se funda no projeto comum da construção de uma física especulativa. A influência de Schelling sobre a filosofia da natureza de Hegel é mais nítida nos chamados esboços de sistema (Systementwurfen) produzidos pelo jovem Hegel entre 1803 e 1806. No primeiro destes esboços4, datado de 1803/04, Hegel apresenta pela primeira vez a tese central de sua Filosofia da Natureza apresentada na Enciclopédia das Ciências Filosóficas: a de que a natureza é “o outro do espírito”5. Com esta tese, o jovem Hegel já expressa uma primeira recusa da tese schellinguiana sobre a unidade imediata e originária entre espírito e natureza. Por outro lado, entretanto, ele apresenta neste mesmo fragmento o conceito de espírito como a essência da natureza: “Im Geist existirt die Natur, als das was ihr Wesen ist” (Dentro do espírito existe a natureza, como aquilo que é a essência da natureza)6. No segundo esboço de sistema, produzido em 1804/5, Hegel expõe com clareza ainda maior a tese fundamental da alienação imediata do espírito na natureza que servirá de base para seu sistema definitivo: a natureza, afirma o jovem Hegel, é “o primeiro momento do espírito que se realiza” (das erste Moment des sich realisirenden Geistes), mas como “o espírito absoluto enquanto o outro de si mesmo”7. 2 Título completo: Differenz des Fichte’schen und Schelling’schen Systems der Philosophie. É certo que já nesse primeiro trabalho Hegel critica o dualismo de Schelling presente em seu Sistema do idealismo transcendental, como uma estrutura polar formada por dois sistemas paralelos: um da inteligência e um da natureza. 3 Hegel 1997, p. 12. No original: “Was wir hier treiben, ist nicht Sache der Einbildungskraft, nicht der Phantasie; es ist Sache des Begriffs, der Vernunft” (Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften. In: Hegel 1986 a, p. 10. 4 Ver Hegel 1975. 5 Cf. Jaeschke 2003, p. 160. 6 Citado em Jaeschke 2003, p. 161. 7 Hegel 1971, p. 177f. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 115 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel Na ocasião da terceira edição da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, a chamada querela acerca da relação entre uma “filosofia da natureza” considerada “metafísica” e a ciência da natureza, protagonizada por Cuvier e Saint-Hilaire, certamente era do conhecimento de Hegel. Como explica Dietrich von Engelhardt, em seu estudo de 1976 intitulado Hegel und die Chemie, a polêmica pode ser resumida na oposição entre duas teses: a de que a idéia de unidade é constitutiva da natureza, tal como defendia a física especulativa do jovem Schelling, e a de que esta mesma idéia é apenas regulativa, tal como afirmava a filosofia da natureza “transcendental”. A vitória desta última perspectiva, adotada por Cuvier e seguida por grande parte das ciências da natureza, é, segundo Engelhardt, a grande responsável pela depreciação da imagem da filosofia da natureza especulativa, considerada como uma espécie de irracionalismo romântico8. Curiosamente o grande esforço de Hegel por afirmar-se como um filósofo da natureza racional, não foi capaz de impedir que sua própria filosofia da natureza tenha sido alvo das mesmas críticas por parte dos cientistas, para os quais a mais grave falta do filósofo da natureza metafísico ou especulativo seria seu desconhecimento matemático. Obviamente, a crítica sobre o pouco predomínio da linguagem matemática na filosofia da natureza, não deve ser ingenuamente aceita, sem que se considere sua verdadeira intencionalidade. No que se refere especificamente a Hegel, não se pode falar de um desconhecimento, mas sim de uma opção sistemática. Para compreender melhor este contexto, é interessante considerar que - como mostra Walter Jaeschke em seu Hegel-Handbuch - uma das primeiras diferenças entre a concepção de uma filosofia da natureza esboçada por Hegel em Nürnberg entre 1808 e 1811 e aquela manuscrita em Heidelberg em 1817, consiste em que inicialmente sua primeira sessão não se intitulava “mecânica”, mas sim “matemática”, de modo que os conceitos de espaço e tempo conduziam a discussões sobre aritmética, geometria e cálculos integral e diferencial. A substituição, na parte mais imediata e abstrata da filosofia da natureza, da perspectiva matemática pela consideração mecânica da natureza indica, segundo Jaeschke, a decisão de Hegel por apresentar os conceitos de espaço e tempo não mais como formas matemáticas abstratas, mas em sua “realidade”, a qual se concretiza por meio dos 8 Engelhardt 1976, p. 24. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 116 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel conceitos de “movimento” e “matéria”9. Ainda assim é possível interpretar esta nova organização do sistema de filosofia da natureza como indicação que a concepção mecânica da natureza - expressa por meio da física mecanicista dominante na idade moderna - precisa ser e é necessariamente superada por uma concepção de natureza que a considere como totalidade infinita. Parte 2 - A crítica de Hegel ao mecanicismo moderno O que aqui me interessa é menos a luta da ciência por sua emancipação em relação à filosofia da natureza e sua recusa em aceitar o pensamento especulativo como modo de se atingir a verdade, e muito mais o aspecto crítico, implícito na filosofia da natureza de Hegel, contra a visão mecanicista da ciência moderna, que considera a natureza como uma espécie de máquina desprovida de inteligência ou de um sentido interno necessário. Esta visão mecanicista da natureza, ainda que inserida como etapa inicial e portanto também necessária da filosofia da natureza de Hegel é de fato o grande alvo da crítica hegeliana que serve de base para a construção de seu próprio sistema filosófico. A crítica de Hegel ao mecanicismo moderno se expressa não através da negação pura do mesmo, mas de sua localização como o modo mais abstrato de conceber a natureza. No último capítulo de suas Preleções sobre a História da Filosofia, dedicado à exposição da chamada Filosofia da Natureza, Hegel faz uma irônica provocação aos físicos de sua época, ao afirmar que eles pensam, mas “não sabem que pensam”10. Essa ironia fundamenta-se sobre a tese hegeliana de que o pensamento humano se desenvolve em determinados níveis, que vão do modo mais abstrato - e, consequentemente, menos verdadeiro - ao modo mais concreto - capaz de compreender a realidade em toda a sua complexidade. A falta de autoconsciência sobre o próprio poder de conceber pensamentos já de nível racional por parte do cientista moderno, acusada por Hegel, pode ser compreendida a partir da pretensão de manter-se nos limites seguros do entendimento, ao qual, como pregara a “doutrina exotérica de Kant”, não é permitido “saltar a experiência” 11 - início fundamental de todo o conhecimento 9 Cf. Jaeschke 2003, p. 208. No original: “Die Physiker wissen nicht, daß sie denken, wie jener Engländer Freude empfand, daß er Prosa sprechen konnte”. (Hegel 1986, vol 20, p. 426). 11 Cf. Hegel 1999, p. 5. 10 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 117 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel científico. Esta precaução, misturada com a recusa de qualquer conteúdo metafísico, ao contrário de elevar a ciência moderna ao patamar da verdadeira cientificidade, a reduziu à fixação em conceitos puramente abstratos, chamados por Hegel de “representações” (Vorstellungen). O uso privilegiado da representação por parte da ciência da natureza moderna a aproxima da maneira abstrata com que a religião apresenta seus conteúdos. Somente por esse inicial nivelamento, seria possível deduzir que a crítica de Hegel ao pensamento científico e filosófico modernos diz respeito ao seu diagnóstico de uma tendência à fixação de determinadas verdades, a ponto destas se parecerem com dogmas religiosos. A crítica de Hegel, contudo, não é tão simples, nem tão reducionista assim. Quando Hegel critica a física na passagem de sua História da Filosofia anteriormente citada, ele deixa mais ou menos claro que sua referência ao pensamento abstrato se volta ora contra um modo unilateralmente empirista adotado pelos cientistas modernos, ora contra um modo unilateralmente matematizante de descrever os fenômenos naturais. Segundo ele, o pensamento concreto sobre a natureza deve obviamente considerar a experiência, mas esta deve superar o modo puramente exterior, fundado apenas nos sentidos, para mostrar-se como um aspecto do pensamento concreto, capaz de nortear o verdadeiro conceito: Os pensamentos na física são apenas formais pensamentos do entendimento. O conteúdo mais próximo, a matéria não pode ser determinada por meio dos próprios pensamentos, ela precisa, ao contrário, ser considerada a partir da experiência. Apenas o pensamento concreto contém a sua determinação e o seu conteúdo dentro 12 de si, apenas o modo exterior do aparecer pertence aos sentidos . O próprio conceito mecânico de “corpo” é considerado como representação, assim como as fórmulas matemáticas e suas relações aplicadas na mecânica para explicar o seu movimento. Apenas com a compreensão do movimento dos planetas, especialmente a partir das descobertas de Kepler, Hegel reconhece uma mudança fundamental na física e consequentemente no próprio conceito de corpo, que, agora tomado como um “corpo universal”, aproxima-se de forma inegável dos conceitos próprios da filosofia ou da metafísica. Se essa aproximação permite, por um lado, que Hegel denomine a cosmologia de Newton e Kepler de mecânica absoluta, por outro 12 No original: “Die Gedanken in der Physik sind nur formelle Verstandesgedanken; der nähere Inhalt, Stoff kann nicht durch den Gedanken selbst bestimmt werden, sondern muß aus der Erfahrung genommen werden. Nur der konkrete Gedanke enthält seine Bestimmung, Inhalt in sich; nur die äußerliche Weise des Erscheinens gehört den Sinnen an” (Hegel 1986, vol. 20, p. 426). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 118 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel lado, ele ainda se pergunta, em sua expectativa crítica de um filósofo que desejaria ver na ciência a superação definitiva da abstração da representação: Quando será [enfim, que] a ciência chegará a conseguir uma consciência sobre as categorias metafísicas de que necessita e a colocar no fundamento em lugar delas o 13 [próprio] conceito da coisa! O grande mérito da teoria da física sobre as leis universais do movimento, em especial aquelas que tratam da força de atração e do magnetismo, está, segundo Hegel, na superação da chamada mecânica finita, cujas representações, embora já apresentadas em relações recíprocas, como no caso das forças de atração e repulsão, permaneciam ainda em um sistema insuficientemente dinâmico. Quando finalmente Hegel apresenta o que ele denomina não mais de mecânica, mas de física, e começa a descrever os fenômenos que nitidamente contém relações mais dinâmicas, como os fenômenos da luz, do calor e do som, curiosamente, ele incorpora em suas descrições alguns processos que foram desenvolvidos e concebido no âmbito da ciência da química, em uma nítida tendência para compreender a ciência em sua forma menos abstrata como um modo de saber que conecta diferentes dimensões da concepção da natureza. Enquanto Schelling constrói sua física especulativa com base em sua teoria sobre as dimensões da matéria, estabelecendo um desenvolvimento dinâmico e progressivo das formas da natureza, e baseada em uma dinâmica dialética de caráter dicotômica e opositiva, Hegel descreve esses e outros processos da natureza através de uma relação dialética de caráter contraditória. Um bom exemplo dessa diferença está na descrição de ambos os filósofos sobre a relação entre os fenômenos da luz e da gravidade. Para Schelling, essa relação se dá fundamentalmente no nível do dinamismo orgânico, na medida em que a luz incide na matéria, alimentando seu jogo primordial de forças opostas, responsável pela geração, não só da vida em sua especificidade, mas da organização que abrange também a matéria dita inorgânica. Para Hegel, em sua relação dinâmica com a gravidade, a luz (emitida pelo sol, que é fonte de toda a vida de nosso planeta), se revela necessariamente e contraditoriamente como obscuridade, pois que a gravidade se caracteriza não apenas como uma relação entre o sol e os demais corpos celestes (especialmente o nosso planeta), mas se constitui como força primordial presente no fundo obscuro de toda matéria. 13 Hegel 1997, p. 95. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 119 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel As formas com que Schelling e Hegel transitam através de análises de fenômenos como o magnetismo, a eletricidade, o quimismo e o desenvolvimento da vida têm a intenção comum de afirmar uma inexorável conexão destes vários processos, a partir da ideia de uma ordem fundamental da natureza. Esta ordem ou organização pode ser compreendida desde sempre através do conceito de ideia. Obviamente, o filósofo da natureza compreenderá esta organização da natureza de modo muito mais radical do que o filósofo do espírito, para quem a razão será sempre efetivada no nível superior de uma autoconsciência espiritual. Em um momento mais avançado de sua exposição de uma filosofia da natureza, Hegel quer colocar em prática o projeto schellinguiano de unificação do magnetismo, da eletricidade e do quimismo, como modo unicamente adequado para pensar o que realmente importa: o fenômeno da vida. A seção final da filosofia da natureza de Hegel trata do que ele denomina de “física orgânica”, talvez por falta de uma melhor designação. Neste capítulo, Hegel percorrerá os três clássicos reinos dos modos de existência na face da terra: o mineral, o vegetal e o animal. Como se pode prever, estas suas descrições estão longe de cair em lugares comuns, pois esse último momento da concepção filosófica da natureza é exatamente destinado à ousadia de criar conexões como raramente as ciências tradicionais da natureza ousavam tentar. Parte 3 – A organicidade da vida segundo Hegel Assim como Schelling, Hegel considera o universo como uma totalidade organizada segundo princípios essencialmente racional, em especial, segundo o duplo princípio do jogo de forças dialeticamente opostas. Contudo, ao contrário de Schelling, Hegel não adota a concepção vitalista de uma alma do mundo, de modo a denominar esta ordem universal, que rege, por exemplo, o movimento dos corpos celestes, de “organismo”. Ao contrário, Hegel considera esta ordem cósmica ainda como um mecanismo, ou, mas especificamente, como a “mecânica infinita”. O conceito hegeliano de organismo é então reservado para o fenômeno da vida. Em cada um dos diferentes níveis de manifestação da ideia de vida apresentados por Hegel na última parte de sua filosofia da natureza nota-se, de forma explícita, como o modo da ciência de trabalhar preferencialmente com representações vai dando lugar à manifestação do próprio conceito. No capítulo sobre a natureza vegetal, Hegel faz Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 120 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel referência direta ao ensaio de Goethe de 1790 intitulado A Metamorfose das Plantas, justificando inclusive a indiferença dos botânicos contemporâneos em relação a esta obra, pelo fato de constituir uma teoria “sobre o todo” e não um tratado sobre diferentes partes da natureza vegetal, como era a praxe científica adotada na época, fundada no método da análise, na forma de pensar do entendimento e no modo de expressão da representação: Mas o interesse em Goethe vai na linha de mostrar como todas estas diferentes partes da planta são uma vida fundamental permanecendo em si fechada, e todas as formas permanecem apenas transformações exteriores de uma [só] e mesma essência fundamental, não só na ideia mas também na existência – cada membro por isso pode muito facilmente transformar-se no outro; um fugidio sopro espiritual das formas que não chega à diferença qualitativa fundamental, mas é apenas uma metamorfose ideal no material da planta.14 Goethe, assim como Schelling, permanecem sendo para Hegel os parâmetros iniciais para a apresentação de uma física especulativa, uma ciência da natureza cujo modo de articulação entre as varias compreensões dos fenômenos da natureza resulte em uma concepção total da natureza. Mas é na descrição dos sistemas presentes no organismo animal, tais como o nervoso, o sanguíneo e o digestivo, que Hegel elabora de modo ainda mais explícito sua concepção de natureza como uma totalidade de sistemas. Esses sistemas orgânicos, descobertos em seus detalhes pela medicina e fisiologia modernas, possibilitam ao filósofo da natureza realizar as últimas conexões conceituais possíveis neste âmbito do saber. A descoberta científica desses sistemas possibilitou o surgimento de uma física verdadeiramente especulativa, fundada no pensamento conceitual essencialmente dinâmico. A partir desta concepção, os processos que o organismo realiza para a manutenção de sua vida, são concebidos como estando intimamente conectados aos processos químicos existentes no nível das sínteses inorgânicas, aos ciclos que envolvem os mecanismos absolutos da gravidade e da luz, aos processos da eletricidade e do magnetismo, aos fenômenos do calor e do som. Todos essas conexões pensadas e concebidas por uma filosofia da natureza de cunho essencialmente especulativa parte do pressuposto de que a natureza é em si uma totalidade sistemática movida por um princípio imanente, um princípio racional, ainda que inconsciente. Apenas a filosofia, em seu gesto ao mesmo tempo idealista e materialista, típico da física especulativa fundada por Schelling e adotada também por 14 G.W.F. Hegel 1997, p. 403-404. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 121 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel Hegel, poderia ser capaz de apresentar essa ideia da natureza, uma ideia que se mostra ao mesmo tempo real e concreta, dinâmica e viva. pois: A vida só pode (...) ser apreendida especulativamente, (...) na vida exatamente existe o especulativo. O agir continuado da vida é assim o idealismo absoluto.15 A intenção de Hegel no fim de sua Filosofia da Natureza, assim como no início de sua Filosofia do Espírito, expostas ambas no sistema da Enciclopédia das Ciências Filosóficas é mostrar como o fenômeno natural do organismo é fundamental para a existência do espírito, não só por que este se manifesta originariamente na existência humana, que por sua vez ocorre como último momento do desenvolvimento da vida animal, mas também porque a racionalidade que começa a se expressar como idealidade da vida tende necessariamente também a desenvolver-se de modo a tornar necessário o surgimento de um ser consciente. A diferença entre a tese “evolucionária” de Schelling sobre a necessidade da passagem da inteligência inconsciente para a inteligência consciente, se difere apenas em parte da tese hegeliana da superação da alienação do espírito na natureza através do surgimento do ser espiritual no interior mesmo da natureza. Esta diferença se constata através do modo essencialmente distinto com que Hegel concebe o processo de desenvolvimento da própria natureza, segundo o qual o surgimento do espírito ocorre como um importante salto qualitativo em relação aos ciclos de desenvolvimentos naturais marcados ainda por círculos infinitamente repetitivos, tais como o ciclo da planta, que começa com a semente, se desenvolve em árvore, que gera a flor, o fruto e retorna à semente. Por ser essencialmente histórico, o desenvolvimento do espírito rompe com a circularidade repetitiva da natureza, tornando-se assim capaz de criar modos inovadores de cultura. Se compararmos mais uma vez a filosofia da natureza de Hegel com a do jovem Schelling, podemos constatar que a diferença fundamental é que Schelling admite em um determinado momento - como modo de resolver um importante paradoxo na ideia de evolução - a presença da história na natureza, ou - em outras palavras - de uma racionalidade que, embora inconsciente, adormecida ou “petrificada” (como gostava de citar Hegel16) é movida não por um mecanismo sem vida, mas por uma idealidade 15 G.W.F. Hegel 1997, p. 353. Hegel 1995, p. 78. No original: “Wir müßten demnach von der Natur als dem Systeme des bewußtlosen Gedankens reden, als von einer Intelligenz, die, wie Schelling sagt, eine versteinerte sei” (In: Hegel 1986, 16 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 122 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel divina, por um fluxo produtivo infinito, que se estende desde os seres aparentemente sem vida até os processos mais complexos do espírito. Natureza e espírito são na filosofia do jovem Schelling unificados e indiferentes. Enquanto Hegel entende a superioridade do espírito como modo de garantir a exclusividade do conceito de liberdade à esfera espiritual humana, Schelling, em seu projeto naturalista faz questão de afirmar a liberdade no interior da própria natureza a partir do reconhecimento de que seu processo de desenvolvimento constitui uma autoorganização. Para Hegel apenas o organismo vivo busca auto-organizar-se e autosustentar-se por meio de seus processos específicos de inter-relação com o outro, que se desdobra nos processos de nutrição e reprodução. Para Hegel, a organicidade da vida que prepara para a existência do espírito é superior à ordem infinita do universo. Mas os processos orgânicos ainda se limitam à circularidade má-infinita da natureza, às carências próprias dos seres finitos naturais. Apenas na existência espiritual, alcançada pelo ser autoconsciente, esse tipo de limitação pode ser finalmente suspensa, não por uma espécie de mágica transformação do ser humano em ser infinito, tampouco porque Hegel acreditava na presença no ser humano de uma “alma imortal”, como Platão. A infinitude do espírito se funda apenas e acima de tudo em sua capacidade de suspender os limites do espaço e do tempo e principalmente os limites da particularidade subjetiva, para afirmar-se como a universalidade concreta do próprio gênero humano. Não em função de sua mera generalidade biológica ou natural, capaz de sobreviver e transpassar a finitude das múltiplas singularidades, mas sim porque o ser humano em geral produz história, cultura, ciência e pensamento vivo. Neste mesmo sentido a filosofia da natureza de Hegel busca menos explicar os processos da natureza em seu desenvolvimento natural - como se o conceito de natureza pudesse desenvolver-se por si mesmo ao longo da história da própria natureza, automovendo-se e auto-organizando-se, como pensava Schelling - e mais descrever como o espírito humano concebe a natureza. Neste sentido, como sempre ocorre em seu sistema, a concepção de natureza é descrita a partir de seu modo mais abstrato até atingir seu nível mais concreto ou de maior complexidade. A concepção filosófica ou científica sobre a vida é de fato o modo mais desenvolvido de se compreender a totalidade mesma da natureza, não apenas porque o organismo constitui um salto vol. 8, p. 81). Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 123 Márcia C.F. Gonçalves A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel inegável em relação aos demais processos da natureza que envolvem apenas os seres inorgânicos, com seu movimento aparentemente exterior, mas acima de tudo porque compreender e desvendar os mistérios da vida prepara o espírito humano para compreender o mistério de sua própria existência. Referências Bibliográficas: HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio: 1830. Vol. I: A Ciência da Lógica. São Paulo: Loyola, 1995. ______________. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio: 1830. Vol. II: A Filosofia da Natureza. Trad. José Machado. São Paulo: Loyola, 1997. ______________. Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, I: Wissenschaft der Logik. In: Werke [in 20 Bänden], Band 8. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. ______________.Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, II: Naturphilosophie. In: Werke [in 20 Bänden], Band 9. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. _____________. Jenaer Systementwürfe I (Das System der spekulativen Philosophie – Fragmente aus Vorlesungensmanuskripten zur Philosophie der Natur und des Geistes). In: Gesammelte Werke, Band 6. Hamburg: Felix Meiner, 1986. ____________. Jenaer Systementwürfe II (Logik, Metaphysik, Naturphilosophie). In: Gesammelte Werke, Band 7. Hamburg: Felix Meiner, 1982. ____________. Jenaer Systementwürfe III (Naturphilosophie und Philosophie des Geistes). In: Gesammelte Werke, Band 8. Hamburg: Felix Meiner, 1986. ____________. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, III. In: In: Hegels Werke [in 20 Bänden], vol. 20. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993. ____________. Wissenschaft der Logik, I. In: Hauptwerke in sechs Bänden. Band 3. Hamburg: Felix Meiner, 1999. ENGELHARDT, Dietrich von. Hegel und die Chemie. Studien zur Philosophe und Wissenschaft der Natur um 1800, Guido Pressler Verlag: Wiesbaden, 1976. JAESCHKE, Walter. Hegel-Handbuch. Leben-Werk- Schule. Stuttgart, Weimar: Verlag J.B. Metzler, 2003. Artigo recebido em junho de 2010 Artigo aceito para publicação em agosto de 2010 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 124 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 125-133 A divisão da Ciência da Natureza na Enciclopédia Filosófica para Classe Superior (1808 s.) Marcos Fábio Alexandre Nicolau* _______________________________________________________________________________ RESUMO:Visa-se compreender a proposta de sistema que Hegel possuía em seu período em Nuremberg, tempo em que era reitor e professor do Ginásio de Nüremberg (18081816), do qual dispomos da Propedêutica Filosófica, que se trata dos cadernos originais, utilizados pelo filósofo em seu ensino de filosofia durante o período de 1808 à 1811, textos que não constituem um escrito orgânico mas um conjunto de textos de circunstância, nos quais Hegel se entrega à difícil tarefa de abrir à filosofia as mentes juvenis, acabando por nos dar uma verdadeira síntese de seu sistema, em uma pedagogia tentativamente simples e direta. Nessa compilação encontramos sua Enciclopédia Filosófica para Classe Superior, que nos fornece uma Ciência da Natureza, segundo momento do sistema, que traz a Matemática, e não a Mecânica como encontramos na Enciclopédia berlinense, como primeira seção. Nessa divisão, que também será a da versão heidelberguiana, a Mecânica faz parte da segunda seção, a Física Inorgânica. Cabe-nos saber: por que Hegel deixa essa divisão? Juntamente com intérpretes como Hösle, buscaremos compreender esta questão determinando qual o lugar da matemática no sistema de Hegel. PALAVRAS-CHAVE: Sistema, Filosofia da Natureza, Matemática. ABSTRACT: This article aims at comprehending Hegel´s systematic purpose during his time in Nuremberg, when he was headmaster and school teacher (1806–1816). From this time, whe have the Philosophical Propaedeutics, whose original notes were used by the philosopher during his teaching years in the period of 1808 to 1811 - texts which do not constitute an organic writing, but a group of casual texts in which Hegel devoted himself to the hard work of teaching philosophy to young people, finally giving us a true synthesis of his system in a simple and pedagogical way. In this collection of notes, we find the Philosophical Encyclopaedia of the Superior Class, yielding a “Natural Science“ as the second moment of the system, which contains Mathematics instead of Mechanics as its first section, differently from the Berlin Encyclopaedia . In this division, which also will be that of the Heidelberg version, Mechanics is a part of the second section, the Inorganic Physics. This raises the question: Why does Hegel abandon this division? Along with interpreters like Hösle, we will try to understand this question, determining the place of mathematics in Hegel’s system. KEY WORDS: System, Philosophy of Nature, Mathematics. _______________________________________________________________________________ * Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da ICA/UFC. Atualmente é Doutorando em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira FACED/UFC, com bolsa Funcap. Endereço para correspondência: Rua L, nº 97, Bairro Luciano Cavalcante, Fortaleza-CE, CEP: 60810-560. E-mail: [email protected]. REH – Revista Eletrônica Estudos Hegelianos Jul./Dez. de 2009 N. 11, v.01 pp.125-133 A divisão da Ciência da Natureza Marcos Fábio Alexandre Nicolau 1. Introdução: Da Lógica à Natureza Hegel diz, no fim da Ciência da Lógica da Enciclopédia, que a idéia na absoluta verdade de si mesma, decide-se a deixar sair livremente de si o momento de sua particularidade, ou do primeiro determinar-se e ser outro – a idéia imediata como seu reflexo, como natureza. (Hegel, 1995, p. 370-371) Nesse parágrafo se origina a passagem que há da idéia absoluta, resultada da Ciência da Lógica, para a natureza, objeto da Filosofia da Natureza. Hegel, remontando à tradição, toma em sua filosofia do real – a saber, os momentos da natureza e espírito – duas formas distintas de realidade, pois, como se sabe, o sistema hegeliano descrito na Enciclopédia é formado por três estágios distintos: o da Lógica e os das acima mencionadas Filosofia da Natureza e Filosofia do Espírito. Porém, a forma como essa exposição se deu não fora a ideal nem para o próprio Hegel, o que é fácil perceber pela complexidade das passagens de uma categoria para a outra e, conseqüentemente, de um estágio ao outro no sistema. O momento por nós estudado nesse congresso, a filosofia da natureza, é por muitas vezes negligenciado justamente por sua quase que intransponível compreensão, pois, poucos são aqueles que se mostraram capazes, como requer Luft (1995, p. 13-16), de realizar uma crítica interna à sua filosofia da natureza. Falta-nos o necessário saber em matemática e ciência natural, que comprovadamente Hegel possuía, como bem nos informa Hösle (2007, p. 313): foi provado de modo inconteste por trabalhos orientados historicamente, que consideraram também o contexto histórico-científico da filosofia hegeliana da natureza, que Hegel, em quase todas as ciências naturais, estava à altura de seu tempo. Assim sendo, o próprio Hegel, em seu programa original, buscaria erigir para cada uma das três partes do sistema uma obra específica e aprofundada, como nos explica Bourgeois (1995, p. 402): A publicação da Enciclopédia ocorreu antes do esperado, pois o caráter manual, de resumo, só pode ser positivo quando – como é o caso da Lógica, primeira parte da obra – já foi publicada uma obra detalhada sobre o mesmo assunto. Hegel sublinha, lamentando, o caráter prematuro da publicação da Enciclopédia no que se refere às duas outras partes: Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito, ainda não desenvolvidas em uma obra correspondente. Os leitores de Hegel que, não sendo ouvintes, não têm as explicações orais em que o filósofo desenvolvia os temas da Enciclopédia, queixam-se da sucessiva brevidade da Filosofia da Natureza, e sobretudo da Filosofia do Espírito. Notemos que a natureza está, ainda, na idéia e é, ainda, a idéia, porém, em outro Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 126 A divisão da Ciência da Natureza Marcos Fábio Alexandre Nicolau momento de seu desenvolvimento dialético. A natureza é, assim, a idéia exteriorizada, objetivada, na sua alteridade, é a idéia alienada. Logo, o processo dialético realizado na filosofia da natureza ocupa no sistema hegeliano um lugar central, convicção que levou V. Hösle a sentenciar que, no ponto de vista histórico filosófico: “quem descuida a filosofia hegeliana da natureza está desprezando aquilo que foi a mais própria realização filosófica de Hegel e Schelling” (Hösle, 2007, p. 311), a saber, a transposição do idealismo subjetivo ao idealismo objetivo a partir de uma filosofia a priori da natureza; e, do ponto de vista teórico-sistemático: “quem deixa de ler a Filosofia da natureza de Hegel não pode nem ao menos pretender ter penetrado na estrutura da Enciclopédia de Hegel” (Hösle, 2007, p. 311), pois ela é o momento da mediação entre lógica e espírito, entre a idéia absoluta e o espírito absoluto. Embora Hegel tenha ocorrido aí em inúmeros equívocos, fato no qual diversos críticos embasam sua desconsideração da filosofia da natureza ao se propor ao estudo do sistema, tendo-o como um momento “morto” do sistema, não se justifica sistematicamente tal coisa. Assim como na Lógica, a Natureza tem sua subdivisão em uma tríade: Mecânica, Física e Orgânica. Nossa questão está situada justamente nessa subdivisão, pois em sua Enciclopédia Filosófica para Classe Superior1, encontrada em suas anotações de aula no período em que era professor no Ginásio de Nüremberg, Hegel opta por uma subdivisão na qual a Matemática, e não a Mecânica, ocupa o primeiro momento da tríade. Tal questão nos remete a outra problematização: qual será o lugar específico da matemática em Hegel? Seria a subdivisão em questão uma tentativa de Hegel em estabelecer na filosofia da natureza o lugar de uma filosofia da matemática? Analisemos isso buscando primeiramente compreender o porquê Hegel propôs essa subdivisão em 1808. 2. A questão: a divisão proposta na Enciclopédia Filosófica para Classe Superior de 1808 O interesse de Hegel pela natureza, segundo Hoffheimer (1985, p. 237), já pode 1 Disposta na Propedêutica Filosófica, compilação realizada por K. Rosenkranz de “uma confusão de papéis”, que o mesmo descobrira em 1838, esse primeiro esboço da versão enciclopédica de um sistema da ciência situa-se no período em que Hegel ainda busca uma estrutura ou forma de seu sistema filosófico (1807-1817), o que já fora iniciado no prefácio à Fenomenologia. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 127 A divisão da Ciência da Natureza Marcos Fábio Alexandre Nicolau ser antevisto entre seus períodos em Berna (1793-1796) e Frankfurt (1797-1799), por influência do pensamento de Schiller, que, principalmente, em sua Educação Estética do Homem analisa a dicotomia sujeito-objeto como uma separação natural ou objetiva que acarreta uma dicotomia entre razão e natureza. Curiosamente Hegel já esteve às voltas com esse problema, sem encontrar solução. Assim, a proposta schilleriana de superar esse cisma através de uma síntese estética, conciliadora de sujeito e objeto, influencia diretamente o desenvolvimento, nesse período, do pensamento hegeliano, pois, assim como Schiller, Hegel tomará a natureza a partir de uma dupla função: como parte e como modelo para uma reconciliação entre sujeito e objeto, ou seja, como uma categoria concreta de mediação. Assim, torna-se a natureza um dos objetos centrais na formação do sistema hegeliano, a ela dedica não somente a segunda parte da Enciclopédia em suas três edições, mas também os mencionados escritos de Frankfurt, conhecidos como Escritos Teológicos, em grande parte ocupados com a questão da natureza, os três esboços de um Projeto de Sistema (I, II, III), frutos de uma série de conferências dadas pelo filósofo em Iena, e o escrito, por nós analisado, presente na Propedêutica Filosófica. Como se vê, a questão da natureza em Hegel tem um extenso histórico, o que toma compreensível as mudanças em sua exposição estrutural ao longo da formação do sistema, pois se trata de uma busca de construir a priori a experiência, isto é, é a experiência da natureza transformada em pensamento. Isso nos capacita a compreender o projeto de uma filosofia da natureza em Hegel: tematizar a “racionalidade do real”, ou, como bem disse Oliveira (2006, p. 51), mostrar no real a identidade originária entre ser e pensar, a conciliação entre a razão subjetiva e a razão objetiva, portanto, a conciliação entre subjetividade e objetividade, ideal e real. Nesse projeto de racionalização do real, Hegel buscará realizar na esfera da natureza o mesmo intento da Lógica: uma autofundamentação. Para tal deve haver uma preocupação com o começo, e qual deve ser o começo da filosofia da natureza? Para Hegel, assim como para Kant2, o real se dá pelas determinações de espaço e tempo, “abstrações existentes determinadamente, ou pura forma, pura intuição da natureza” (Hegel, 1989, p. 45). E continua, Mas, diferentemente da Lógica, a natureza por isso não começa com o qualitativo, 2 Embora não tomasse tempo e espaço como formas da sensibilidade, como os pensava Kant distintas dos conceitos do entendimento, mas como as manifestações fundamentais do conceito de natureza. Cf. Inwoods, 1997, p. 306. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 128 A divisão da Ciência da Natureza Marcos Fábio Alexandre Nicolau mas com o quantitativo, pois sua determinação não é, como é o ser lógico, o abstratamente primeiro e imediato, mas essencialmente é o já em si mediado, ser exterior e ser-outro. (Hegel, 1997, p. 48) Espaço e tempo, assim como ser e nada, estão imbricados mutuamente, sendo o tempo a negatividade do espaço posta para si (Cf. Hegel, 1997, p. 53-54), ou seja, o tempo é a verdade do espaço, pois estão em comunicação intrínseca um com o outro. Como bem afirma Arantes (2000, p. 29), dizer que o tempo é a verdade do espaço significa que o espaço, em virtude da reflexão própria a seu conceito, se toma tempo, ou, como lemos no adendo ao §257: “A verdade do espaço é tempo, assim o espaço vem-a-ser tempo; nós não passamos tão subjetivamente para o tempo, mas o próprio tempo passa” (Hegel, 1997, p. 54). A partir da suprassunção imediata entre espaço e tempo deriva-se lugar e movimento, ou seja, matéria. Note-se que espaço e tempo são aqui tratados como meros em si, idealidades somente afirmadas juntas, ou especulativamente, proporcionando uma “passagem da idealidade à realidade, da abstração ao ser concreto” (Hegel, 1997, p. 62). Feita essa simples exposição do começo da Filosofia da natureza, tomemos a exposição que Hegel nos dá na Enciclopédia Filosófica para Classe Superior, de 1808. Sucintamente afirma que o devir da natureza nada mais é que o devir em direção ao espírito (Hegel, 1989, p. 44), e, o que reafirma no §249 da Enciclopédia, considera-a um sistema de graus, promanados necessariamente um do outro a partir da ação da idéia absoluta, subjacente a natureza. Em seu desenvolvimento dialético, a Idéia da natureza, em seu movimento interno, ingressa em si a partir de sua imediaticidade, suprassume-se e torna-se espírito. Esse processo tomará primeiramente o ser determinado ideal da natureza, espaço e tempo ideais, tal momento se chamará aqui no texto da Propedêutica “Matemática”, mas por quê? Talvez porque o espaço seja objeto de uma ciência sintética, a geometria, já que o espaço pode esquematizar-se, representar-se intuitivamente em uma figura real; e pelo fato de que o tempo, ao tornar-se quantidade, passe a determinação do um, princípio da ciência analítica do quanto: a aritmética (Cf. Hegel, 1989, p. 46-47). Talvez porque: “A matemática aplicada aplica a matemática pura as relações de grandeza da natureza, que ela assume a partir da experiência” (Hegel, 1989, p. 47). Mas o tempo não é uma categoria matemática, e o espaço tratado na filosofia da natureza é o espaço da física e não um construto matemático. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 129 A divisão da Ciência da Natureza Marcos Fábio Alexandre Nicolau Interessante é o fato desse esquema ser reproduzido ainda na versão heidelberguiana da Enciclopédia. Porém, em um adendo ao §259, ainda se lê na edição berlinense de 1830: o nome matemática poderia de resto ser utilizado também para a consideração filosófica do espaço e do tempo. Mas, se se quisesse tratar filosoficamente as figurações do espaço e da unidade [do um], então elas perderiam sua significação e figura própria; uma filosofia das mesmas [figurações] viria-a-ser algo lógico ou também algo de uma outra ciência filosófica concreta. Enquanto a matemática considera meramente a determinação de grandezas nestes objetos e destes também, como [foi lembrado, não o tempo mesmo, mas só a unidade em suas figurações e ligações, [diversamente] na teoria do movimento o tempo também vem-a-ser um objeto desta ciência, porém a matemática aplicada não é em geral nenhuma ciência imanente, justamente porque ela é a aplicação da matemática pura a um material dado e as determinações desse material tiradas da experiência. (Hegel, 1997, p. 6061) Embora tenhamos nessa passagem uma justificativa dada pelo próprio Hegel de tal estrutura, já que os adendos tratam-se do testemunho daqueles que ouviram as explicações do próprio Hegel de suas obras e pensamentos, essa não fora efetivada nas versões posteriores, indicando uma mudança de perspectiva do filósofo em relação a essa ordem e nomenclatura, o que é ratificado por Hösle em nota: “Hegel parece tê-la rejeitado logo após o aparecimento da Enciclopédia heidelberguiana; na preleção de 1819-1820, editada por Gies, lemos no capítulo sobre a divisão referente a primeira parte: “Mecânica, não apenas matemática” (NPh, p. 11s.)”. (Hösle, 2007, p. 325) Porém, essa questão da subdivisão empregada por Hegel no processo de formação da estrutura da filosofia da natureza acaba por suscitar outra: qual seria o lugar específico da filosofia da matemática no sistema de Hegel? 3. A Matemática no sistema hegeliano Para Hösle, esse é, talvez, o problema mais difícil do sistema hegeliano, pois Dentro da Enciclopédia berlinense, a matemática é a única ciência particular cujos fundamentos não são fundamentados por uma disciplina filosófica regional, e que, em última instância, não tem nenhum lugar neste sistema. Física, química, biologia, psicologia, ciência da sociedade e do espírito – todas essas ciências têm na “Enciclopédia” seu claro lugar sistemático. Mas onde cabe a matemática? (Hösle, 2007, p. 326) Convencionou-se alocar a filosofia da matemática hegeliana na Ciência da Lógica, precisamente na esfera da quantidade, na Doutrina do ser, pois aí se trabalha diretamente com os conceitos de número e operações matemáticas, além de conter uma Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 130 A divisão da Ciência da Natureza Marcos Fábio Alexandre Nicolau série de notas sobre o infinito matemático, notas que chegam a quase cem páginas na edição espanhola de Mondolfo. Tal momento é chave para compreensão da terceira e última parte da doutrina do ser: a medida, que só pode ser vislumbrada por quem compreendeu a infinitude do quanto, o que implica a apreensão da questão do infinito matemático, exposto em uma seqüência de três notas. Quiçá seja por isso a sincera advertência de Hegel para com esta parte do sistema: o desenvolvimento da medida, que se busca no que segue, e uma das matérias mais difíceis. Iniciaria a partir da medida imediata e exterior, e deveria proceder, por um lado, a uma determinação progressiva abstrata do quantitativo (a uma matemática da natureza), por outro 1ado, deveria indicar a conexão desta determinação de medida com as qualidades das coisas naturais, pelo menos em geral. (Hegel, 1993, p. 424) Muitos são os intérpretes que não “vacilam” em afirmar ser este o lugar de uma filosofia da matemática em Hegel, mas existe outra corrente de intérpretes que vê na filosofia da natureza tal lugar. Porém, somados as críticas levantadas acima sobre uma esfera matemática na filosofia da natureza, temos uma passagem da Enciclopédia de 1830 que parece ratificar, embora com ressalvas, a primeira proposta: A ciência verdadeiramente filosófica da matemática como teoria das grandezas seria a ciência das medidas, mas esta já pressupõe a real particularidade das coisas, a qual só é obtida na natureza concreta. Mas ela bem que seria – por causa da natureza exterior da grandeza – a mais difícil de todas as ciências. (Hegel, 1997, p. 60) Mesmo assim, a questão permanece, pois ambas as posições – a das matemáticas pertencerem à lógica ou a filosofia da natureza – são soluções pouco interessantes. Primeiramente porque a matemática, em seu método, não pode ser englobada em um processo dialético, como Hegel (2001, p. 42-46) bem expôs no prefácio à Fenomenologia do Espírito, o que inviabiliza a consideração de uma fundamentação filosófica da matemática na estrutura da lógica, além de que, como pensa HösIe (2007, p. 326-327), resultaria um absurdo que uma única seção da lógica fosse o fundamento de uma ciência própria particular; por sua vez, como já fora exposto, dificilmente poderse-á considerar a matemática no âmbito da filosofia da natureza, pois, por mais que tenhamos uma fundamentação da geometria na filosofia do espaço, não podemos considerar os entes matemáticos como algo natural, pois são ideais. Apesar de contarmos com trabalhos como os de T. Pinkard (1981), de I. Lakatos (1976), e do matemático A. L. T. Paterson (1997), que mais claramente falaram sobre a questão da matemática em Hegel, a questão encontra-se em aberto, e apresenta-se como um desafio aos estudiosos hegelianos. E óbvio que podemos realizar tais delimitações e Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 131 A divisão da Ciência da Natureza Marcos Fábio Alexandre Nicolau conjecturações sobre a questão, mas como diversos temas em Hegel, o lugar de uma filosofia da matemática em seu sistema não pode ser vislumbrado a não ser através de uma visão totalizante do sistema, sistema esse que o próprio Hegel reconheceu possuir ainda lacunas a serem preenchidas. Assim, finalizamos com o testemunho, realizado também sobre a questão pedagógica, de Hegel quanto a necessidade de uma obra especifica para esclarecer tal questão, pensou ele, quando estava em Nüremberg, em Compor um compêndio para o ensino teórico da geometria e da aritmética, tal qual deve ser no ginásio, [...] já que em Iena e aqui eu, em minhas preleções, achei que esta ciência, sem a intromissão da filosofia, que não cabe aqui, pode ser abordada de modo mais compreensível e mais sistemático do que usualmente, quando não se vê de onde tudo isto vem ou para onde vai, pois não é indicado aí nenhum fio condutor teórico. (Briefe VI, p. 398 apud Hösle, 2007, p. 329) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HEGEL, G. W. F. Enciclopédia Filosófica para Classe Superior (1808 s.). In: _______, Propedêutica Filosófica, (Tradução de Artur Morão), Lisboa: Edições 70, 1989, p. 1584. ____________. Ciencia de la Logica – Vol. 1, (Tradução de Augusta e Rodolfo Modolfo), Buenos Aires: Librarie Hachette, 1993. ____________. Enciclopédia das Ciências Filosóficas – Vol. I: A Ciência da Lógica, (Tradução Paulo Menezes, com a colaboração de José Machado), São Paulo: Edições Loyola, 1995. ____________. Enciclopédia das Ciências Filosóficas – Vol. II: A Filosofia da Natureza, (Tradução de José Machado, com a colaboração de Paulo Menezes), São Paulo: Loyola, 1997. ____________. Fenomenologia do Espírito, (Tradução de Paulo Meneses), Petrópolis: Vozes, 2001. ARANTES, P. E., Hegel e a Ordem do Tempo, (Tradução de Rubens Rodrigues Torres), São Paulo: Hucitec/Polis, 2000. BOURGEOIS, B., A Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel. In: HEGEL, G. W. F., Enciclopédia das Ciências Filosóficas – Vol. I: a Ciência da Lógica. São Paulo: Loyola, 1995. HOFFHEIMER, M. H., The Influence of Schiller's Theory of Nature on Hegel's Philosophical Development. In: Journal of the History of Ideas, Philadelphia, vol. 46, n. 2 (Abril-Junho 1985), p. 231-244. HÖSLE, V. O sistema de Hegel: o idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade. (Tradução de Antonio Celiomar Pinto de Lima), São Paulo: Edições Loyola, 2007. INWOODS, M., Dicionário Hegel, (Tradução de Álvaro Cabral), Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. LAKATOS, I., Proofs and Refutations, Cambridge: C.U.P., 1976. LUFT, E., Para uma crítica interna ao sistema de Hegel, Porto Alegre: Edpucrs, 1995. OLIVEIRA, M. A., Filosofia da Natureza e Idealismo Objetivo. In: Filosofia Unisinos, Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 132 A divisão da Ciência da Natureza Marcos Fábio Alexandre Nicolau São Leopoldo, v. 7 (2006), p. 40-61. PATERSON, A. L. T., Towards a Hegelian Philosophy of Mathematics, In: Idealistic Studies, Worcester, v. 27, n. 1/2 (1997), p. 1-10. PINKARD, T., Hegel’s Philosophy of Mathematics, In: Philosophy and Phenomenological Research, Rhode Island, v. 41, n. 4 (1981), p. 452-464. Artigo recebido em junho de 2010 Artigo aceito para publicação em agosto de 2010 Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1 133 REH: NORMAS DE SUBMISSÃO (Versão resumida) 1. A REH publica artigos, traduções, etc., em torno de Hegel e a filosofia especulativa em geral e o Sistema de Hegel e seu desenvolvimento em particular; 2. Exceto resumos, resenhas e notas bibliográficas, todos os materiais submetidos ao Conselho Editorial deverão – obrigatoriamente – conter resumo e palavras-chave na língua em que forem escritos e em Inglês ou Alemão (para os textos em línguas de origem latina) ou numa das línguas latinas (para os textos em Inglês ou Alemão); 3. Todo material submetido à avaliação deverá ser acompanhado – no corpo da mensagem eletrônica (ou do e-mail) em que o mesmo segue anexo – de um Termo de Responsabilidade, no qual o autor [e cada um de seus colaboradores, caso existam] assume a autoria do trabalho submetido e a responsabilidade para com o mesmo, bem como concorda com a cessão de prioridade e direitos autorais concernentes à sua publicação pela Revista; 4. O material submetido para avaliação deverá ser enviado exclusivamente ao email: <[email protected]>, em arquivo eletrônico, formato WINWORD ou RTF, em espaço 1,5, papel A4 (210mm x 297mm), fonte New Times Roman, corpo 12, folhas numeradas e sem formatação, exceto as de praxe; a saber: (1) indicação de caracteres (negrito e itálico); (2) margens de 3cm; (3) uso de aspas simples para indicar menção; (4)•uso de aspas duplas para indicar destaque; (5) uso de itálico para termos estrangeiros e títulos de livro e periódicos; 5. Materiais submetidos em Língua portuguesa deverão seguir as normas da ABNT, adaptadas para textos filosóficos; materiais submetidos em outras línguas deverão seguir o padrão internacional estabelecido pela ISO, igualmente adaptadas para textos filosóficos; 6. Quando de sua primeira citação, o texto citado deverá ser referenciado – em nota – de modo completo; a partir da segunda citação: caso seja em nota, a referência deverá trazer: INICIAIS DO NOME DO AUTOR, SOBRENOME, título do texto citado, op. cit., páginas referenciadas; caso seja no corpo do texto (ou citação dentro de nota explicativa), deverá restringir-se ao exemplo a seguir: (MENESES, 2006, p. 85), sem comentários adicionais; 7. Citações de obras de Hegel (numeradas por parágrafos e já vertidas para a Língua portuguesa), no corpo do texto, deverão ser referenciadas [de acordo com suas características próprias] – sem acréscimos adicionais – conforme o exemplo: (FE, § 394), onde: (a) “FE” é a abreviatura para a Fenomenologia do Espírito; (b) “§ 394” refere-se ao parágrafo; quando for o caso, sugere-se o acréscimo da página, de onde, em “FE, § 394, p. 276”, (c) “p. 276” dizer respeito à página à qual a citação ou 134 referência está vinculada 138 REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN2009 (no caso, a segunda edição da versão de Paulo Meneses); 8. No caso de obras como as Linhas fundamentais da Filosofia do Direito (FD) e a Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio de 1830 (E.), sugere-se ainda o uso de ‘A’ para as anotações de Hegel e ‘Ad’ para os adendos de seus discípulos; 9. No caso das obras de Hegel (em alemão) ainda não vertidas ao Português (sejam paragrafadas ou não), mesmo quando também se faça uso das versões portuguesas ou em outras línguas, sugere-se a manutenção das iniciais do título no original [por exemplo, ‘WdL’ para a Wissenschaft der Logik], seguidas das páginas da edição (ou das edições) utilizada(s); 10. Citações de obras clássicas sem tradução brasileira ou citadas preferencialmente conforme o original ou tradução em língua diversa do português do Brasil, deverão estar de acordo com as convenções internacionais de praxe na área [exemplo: ‘PhdE’ para Phénoménologie de l’Esprit) ou indicadas em nota; 11. Citações no corpo do texto deverão ser indicadas apenas com (SOBRENOME DO AUTOR, data e página) ou (SIGLA DA OBRA, parágrafo – se paragrafada – e página); qualquer acréscimo deverá ser feito em nota, conforme as respectivas normas. [Para Versão completa, clique, http://www.hegelbrasil.org/normas.pdf] 135