Número 11 - Completo - Sociedade Hegel Brasileira

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REH
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
(Revista Semestral da Sociedade Hegel Brasileira - SHB)
Natureza em Hegel - I
Ano 6
nº 11 , Dezembro – 2009
ISSN 1980-8372
Expediente
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos - ISSN 1980-8372
Sociedade Hegel Brasileira – SHB
Sede da SHB: Av. Acad. Hélio Ramos, s/n - 15º andar - Cidade Universitária
CEP 50740-530 RECIFE - PE (Depto. Filosofia-UFPE)
Redação: Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal de
Goiás, sito Campus Samambaia, Cx. Postal 131, Goiânia-GO, CEP: 74001-970 - Tel: (62)
3521-1129 ( A/C Prof. Hans Christian Klotz)
Editor: Prof. Hans Christian Klotz (UFG-GO)
Conselho editorial
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Rosenfield (UFRGS), Draiton Gonzaga de Souza (PUCRS), Marcos Lutz Müller
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(UECE), Paulo Gaspar Meneses (UNICAP), Konrad Christoph Utz (UFC)
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(Universidade de Coimbra), Jean-Claude Bourdin (Université de Poitiers), Jean-Louis
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Secretário de edição/Diagramação: Danilo Vaz-Curado R.M. Costa (UFRGS - Grupo
NEHGL-RS)
Capa: Matheus Barreto Pazos de Oliveira
Editor de web: Danilo Vaz-Curado R.M. Costa (UFRGS - Grupo NEHGL-RS)
Revisão: Hans Christian Klotz (UFG-GO); Danilo Vaz-Curado R.M. Costa (UFRGS).
Indexação:
QUALIS, Capes, Brasil;
LATINDEX, México;
SUMÁRIOS, Funpec-RP, Brasil;
DIALNET, Espanha.
Materiais assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, assim como as
idéias e conceitos expressos nos mesmos ou as figuras e imagens aí utilizadas.
SUMÁRIO
Editorial
Christian Klotz..................................................................................................................5
Artigos
O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis
Alfredo de Oliveira Moraes.............................................................................................7
A Natureza: Promissão, Promessa e Promoção do Espírito
Bernard Bourgeois.........................................................................................................19
Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer...................................................................................................................32
Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch.....................................................................................................57
A Natureza como Objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse ............................................................................................................74
Comienzo, Concepto y Método como Antecendentes del Tránsito de la Idea a la
Naturaleza
Jorge Eduardo Fernandez.............................................................................................96
A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
Márcia Gonçalves..........................................................................................................113
A Divisão da Ciência da Natureza na Enciclopédia Filosófica para Classe Superior (1808
s.)
Marcos Fábio Alexandre Nicolau.................................................................................125
Normas de submissão (Versão resumida)...................................................................134
Editorial
O presente número da Revista Estudos Hegelianos reúne contribuições do V
Congresso Internacional da Sociedade Hegel Brasileira, que foi realizado nos dias 28 de
setembro até 2 de outubro de 2009 em Fortaleza, sob o título “A noiva do Espírito:
Natureza em Hegel”. Pesquisadores reconhecidos do Brasil e do exterior enfrentaram o
desafio de discutir uma parte do pensamento hegeliano que tem sido negligenciada por
muito tempo: sua filosofia da natureza. Pode-se dizer que só em pesquisas mais recentes
a significância sistemática do pensamento hegeliano sobre a natureza começou a ser
descoberta e sua importância destacada, justamente, por autores que levam em conta o
desenvolvimento recente da física e de outras ciências. A questão de em que medida a
filosofia hegeliana da natureza pode ser entendida no sentido de uma metafísica da
natureza que está implícita na física moderna esteve em foco na palavra de abertura do
então presidente da Sociedade Hegel, Alfredo Moraes, que abre também este número da
REH.
As contribuições escolhidas para este número discutem aspectos fundamentais
da filosofia hegeliana da natureza: sua fundamentação numa “Lógica”, o conteúdo
específico do conceito de natureza estabelecido nela, e a estrutura do seu
desdobramento interno. A questão da relação entre a Lógica e Filosofia da Natureza
envolve, por um lado, o problema do sentido da “passagem” da Lógica para a Filosofia
da Natureza e, por outro lado, como as estruturas desenvolvidas na Lógica estão
presentes na Filosofia da Natureza. As contribuições de Diogo Ferrer e Jorge Fernández
tratam dessas questões. A noção de que a ideia absoluta, ou seja, a totalidade que é o
resultado de todo o desdobramento da Lógica, é, ao mesmo tempo, um novo começo,
está em foco no trabalho de Fernandez. Conforme o autor argumenta, entender essa
concepção exige considerar a correspondência entre o movimento do começo da Lógica
– a negação do “ser” -, e a passagem da ideia para a natureza, na qual se revelaria a
estrutura circular do pensamento hegeliano. Diogo Ferrer aborda a presença das
estruturas da Lógica na Filosofia da Natureza ao analisar o conceito hegeliano de “vida”
no seu nível lógico e natural, destacando o papel do conceito de espécie, que nos dois
níveis não seria interpretado de modo essencialista, mas no sentido do universal
concreto.
O conceito de natureza e a estrutura interna da Filosofia da Natureza de Hegel
estão em foco nas contribuições de Gilles Marmasse, Anton Koch, Márcia Gonçalves e
Marcos Nicolau. A análise de Marmasse concentra-se na caracterização hegeliana da
natureza como exterioridade na qual a unidade do conceito está ausente, mesmo que ela
tenda a tal unidade, sendo assim “exterioridade contraditória”. Uma consequência
importante disto, enfatizada pelo autor, é que uma filosofia da natureza no sentido de
Hegel deve pensar a alteridade da natureza como tal, em vez de extingui-la numa
5
logificação completa. Anton Koch põe o conceito hegeliano de tempo e espaço no
contexto de uma problematização da Estética Transcendental de Kant. Segundo a
argumentação de Koch, a concepção kantiana do tempo e do espaço como intuições não
explica a mediação do tempo e do espaço com nosso pensamento discursivo, a solução
deste “enigma” sendo justamente o objetivo da dedução hegeliana de tempo e espaço
como conceito na sua exterioridade.
Márcia Gonçalves interpreta a Filosofia da Natureza de Hegel como resposta ao
projeto de uma física especulativa defendido por Schelling. Segundo a autora, Hegel
adota o projeto schellingiano de uma filosofia da natureza que critica o pensamento
mecanicista ao reconstruir uma passagem do pensamento mecanicista para a perspectiva
organicista, na qual o primeiro se evidencia como delimitado e inadequado. No entanto,
o modo como Hegel realiza tal projeto orientar-se-ia por um método diferente, na qual a
organicidade da natureza não opera mais como pressuposto imediato. O artigo de
Marcos Nicolau discute uma questão acerca do processo de formação da filosofia
hegeliana da natureza: na divisão do período em Nuremberg, a primeira seção da
filosofia da natureza é a “matemática”, e não a mecânica, como na Enciclopédia.
Conforme o autor, entender o porquê dessa mudança na divisão da Filosofia da
Natureza é decisivo para compreender o lugar da matemática no pensamento de Hegel.
Por fim, a relação intrínseca da natureza com o espírito, que é constitutiva para o
próprio conceito hegeliano de natureza, é elucidada na contribuição de Bernard
Bourgeois, retomando e aprofundando a metáfora da natureza como ”noiva” do espírito
que deu ao congresso seu título.
Agradeço ao organizador do V Congresso Internacional da Sociedade Hegel,
Konrad Utz, pela sua colaboração. Agradecimentos também aos tradutores: José
Pertille, Kleber Amora, Greice Barbieri e Matheus Pelegrino, e a Danilo Vaz-Curado,
que cuidou do layout.
Espera-se que este número da Revista Estudos Hegelianos contribua para a reatualização da Filosofia da Natureza de Hegel - bem como o próximo número da
revista, que vai continuar a publicação de contribuições do congresso dedicadas à
mesma temática.
Hans Christian Klotz (UFG),
Editor
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Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 07-18
O Fim da Matéria e a Re-significação
da Physis
Alfredo de Oliveira Moraes*
_________________________________________________________________
Resumo: O autor pretende retomar a Filosofia da Natureza de Hegel e à luz das
contribuições da ciência atual, notadamente da física, repropor a necessidade de uma
leitura do texto hegeliano desde a perspectiva de uma Metafísica de base nãomaterial, suas implicações e desdobramentos.
Palavras-chave: metafísica de base não-material, physis, logos.
Abstract: The author intends to resume Hegel’s philosophy of nature in the light of
the contributions of actual science, especially of physics, and to offer a new reading
of the hegelian text, its consequences and implications, from the perspective of a
metaphysics founded on a non-material basis.
Key-words: metaphysics on a non-material basis, physis, logos.
__________________________________________________________________
“La nature et l’histoire sont la manifestation de l’absolu dans l’espace et
dans le temps, mais cet Absolu se pense lui-même comme Logos; il se
sait lui-même; ce Logos n’est pas un entendement divin qui existerait
ailleurs dans un autre monde, il est dans la réalité humaine la lumière
de l’Être.”
Jean Hyppolite.
(1990, p.232)
A Filosofia da Natureza de Hegel foi a mais grata surpresa que tivemos nos anos
de pesquisa de tese doutoral, não porque houvesse em nós qualquer pretensão a
subestimar Hegel nesse âmbito particular de seu sistema, mas sim porque havia uma
certa unanimidade entre os doutos quanto à sua superação; era no dizer de muitos o
ponto obsoleto do pensamento de Hegel. Com efeito, após seu estudo atento pudemos
constatar que a compreensão efetiva desse texto e sua relevância somente podiam ser
apreendidas numa leitura que tivesse como base uma metafísica de fundamento nãomaterial. E, simultaneamente, veio-nos à mente Nelson Rodrigues que num de seus
rompantes disse: toda unanimidade é burra.
*
Doutor em Filosofia, Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de
Pernambuco. E-mail: [email protected].
REH – Revista Eletrônica
Estudos Hegelianos
Jul./Dez. de 2009
N. 11, v.01
pp.07-18
Alfredo de Oliveira Moraes
O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis
Durante um longo tempo a Filosofia da Natureza de G. W. F. Hegel pareceu
nada mais ter a contribuir para a reflexão filosófica sobre a Natureza até que a primeira
indicação de que ela tinha ainda muito a oferecer nos veio da Física, quando David
Bohm tomando para si a Ciência da Lógica de Hegel escreveu sob seu impacto
Causality and Chance in Modern Physics, pois, sabe-se que a Lógica encontra-se
suprassumida na Filosofia da Natureza, na qual as suas determinações ganham
efetividade e têm aí o seu desdobramento.
Na última década do século passado, novas utopias negativas construídas no
estofo das descobertas e avanços da ciência evidenciaram a necessidade de reconstrução da Metafísica e, paradoxalmente, nós filósofos e filósofas deixamos nas
mãos dos físicos essa tarefa tão grandiosa quanto urgente, mesmo sabendo que eles não
estavam preparados para tal desafio. Os físicos já estão fartos de afirmar que a matéria
do seu saber são conceitos, nem nos laboratórios nem nas dimensões macro-universais
eles dispõem de matéria no antigo sentido estrito do termo; E=mc² essa equação de
Einstein nos desafia a encontrar uma nova base de compreensão do “mundo material” atualmente mais adequadamente denominado de universo visível - e a idéia cibernética
de sistema aberto cria nos físicos a necessidade de apreensão dialética dos domínios da
física quântica.
Como responderemos, nós filósofos e filósofas, a esse desafio? Esse é o vórtice a
partir do qual gostaria de apresentar elementos, conceitos e categorias da Filosofia da
Natureza de Hegel, como chave de leitura possível para uma abordagem daquilo a que
denominamos atualmente por Natureza.
Da ingênua compreensão da Natureza a partir de seus elementos macros: terra,
ar, água, fogo à descoberta da inexistência do átomo, hoje não só divisível, mas
multidivisível, nós nos encontramos em meio a uma Natureza constituída de relações de
relações, jogo de forças, implicando na metamorfose do objeto enquanto ‘coisa’
compacta dada aos sentidos, numa compreensão que apresenta o objeto como uma
fronteira de padrão discernível e sua conseqüente dissolução das entidades hipostasiadas
do sujeito e do objeto. Não é sem razão que se preferiu falar no fim da Metafísica em
vez de assumir a árdua tarefa de reconstruí-la, mas se queremos ser sujeitos-partícipes
da labuta filosófica ou, o que é o mesmo, afirmamo-nos como homens e mulheres que
se ocupam das urgências do seu tempo não podemos deixar de atender a esse desafio,
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Alfredo de Oliveira Moraes
O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis
temos de encarar o negativo de frente, assumir o espírito em sua verdade e suprassumir
as determinações ou negações do presente.
Ora, mais precisamente diríamos que a Filosofia da Natureza de Hegel é parte
de sua Metafísica, posto que esta não pode ser reduzida à Lógica e muito menos pode
ser apreendida como se seus momentos – (Ciência da) Lógica, (Filosofia da) Natureza e
(Filosofia do) Espírito – fossem apenas opostos que se superam numa sucessão nãodialética, deixando cada um atrás de si o cadáver da figura precedente; na verdade, são
momentos do movimento imanente do ser na efetivação das determinações que o
conduzem à plenitude de Si mesmo no conhecimento Absoluto.
Apenas para recordar lembremos que o próprio Hegel na Ciência da Lógica da
Enciclopédia nos diz que: “A lógica coincide pois com a metafísica, a ciência das coisas
apreendidas no pensamento, que passavam por exprimir as essencialidades das coisas.
(...) Se considerarmos a Lógica, em conseqüência do que foi dito até agora, como o
sistema das puras determinações-de-pensamento, então aparecerão, ao contrário, as
outras ciências filosóficas – a filosofia da natureza e a filosofia do espírito – por assim
dizer como uma lógica aplicada, pois a lógica é sua alma vivificante.” (Hegel, 1995,
p.77,78).
Com efeito, não se pode começar de chofre pela Enciclopédia das Ciências
Filosóficas de Hegel, em qualquer de seus volumes, sem passar pelo “pórtico
majestoso” (expressão usada pelo saudoso Pe. Vaz para designar a Fenomenologia do
Espírito de Hegel), ainda que não se tenha a pretensão de suprassumir as determinações
ali presentes, mas ao menos para assumir suas categorias, conceitos e elementos num
esforço por alcançar o patamar das exigências do saber.
Em certa ocasião enfatizamos que se sobre a Enciclopédia das Ciências
Filosóficas de Hegel, Bernard Bourgeois pôde dizer com acerto que lê-la implica em
reescrevê-la, o que constitui um desafio e tanto, da Fenomenologia do Espírito se pode
dizer que lê-la implica em refazer internamente o seu percurso, assumindo para si a
vivência da experiência que nela faz a consciência, o que constitui um desafio ainda
maior. Mas, sem isso não se chega a estar pronto para a Ciência.
Na verdade, é imprescindível a presença da Fenomenologia do Espírito numa
reflexão sobre a Natureza, pois nela se encontra a chave de leitura da especulação
hegeliana que conduz à necessidade de uma nova compreensão da Physis.
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Alfredo de Oliveira Moraes
O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis
É de nosso conhecimento que, de um modo geral, mesmo o “conceito preliminar
da ‘Ciência da Lógica’ da Enciclopédia se faz ele mesmo preceder, em sua função de
introdução ao ponto de vista filosófico verdadeiro – o do Saber Absoluto -, pela
Fenomenologia do Espírito.” (Bourgeois, In Hegel, 1994, p.12). A tese aqui defendida,
portanto, nada teria de novo ou original, corresponderia mais adequadamente apenas a
uma tentativa de explicitação do ponto de partida da Filosofia da Natureza na
Fenomenologia do Espírito.
Por conseguinte, teremos de nos ocupar, mesmo que brevemente, do III Capítulo
da Fenomenologia para atender às nossas pretensões, ainda que isso implique encarar o
desafio de abordar aquele que é considerado por muitos como o mais difícil entre os
capítulos dessa obra nada fácil, mas, de leitura imprescindível para quem quer filosofar
na Modernidade, ou mais precisamente, na contemporaneidade.
No movimento interno da obra vemos o Entendimento emergir da Percepção,
mas assinalemos tão somente que “o ponto de vista da percepção é o da consciência
comum e, mais ou menos, o das ciências empíricas que elevam o sensível ao universal e
mesclam determinações sensíveis com determinações do pensamento sem tomar
consciência das contradições que então se manifestam.” (Hegel, In Hyppolite, 1974,
p.100). Por conseguinte, interessa-nos mais propriamente começar pela suprassunção da
percepção no entendimento.
Com efeito, para a percepção tudo é uma coisa, ou como já assinalado no
cartesianismo tudo se reduz – a coisa extensa e a coisa pensante. Mas, na tentativa de
ab-rogar as contradições e conservar a identidade da coisa, a percepção mais não faz do
que lhe atribuir seguidamente determinações de pensamento, e com isso, o que alcança
é um universal que terá em si a diferença em vez de ser condicionado por ela; a
conseqüência é a necessidade da percepção ir além de si mesma ao adentrar-se na coisa
e apreender seu objeto como a força, a lei, a necessidade da lei, o conceito, mas então a
Percepção é já Entendimento.
Ora, se para a Percepção tudo era uma coisa, o Entendimento se eleva da coisa à
causa, ou da coisa à força, considera seu objeto como totalidade dialética da unidade e
da multiplicidade, mas ao examinar melhor entende que se trata bem mais de um jogo
de forças “de polaridades opostas que, aliás, constata não passar de um fenômeno,
através do qual descortina o supra-sensível ou o Interior das coisas.” (Meneses, 1985,
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Alfredo de Oliveira Moraes
O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis
p.44).
Não obstante, a força é somente o conceito, o pensamento do mundo sensível
que se manifesta na consciência como o mais além desse mundo, o supra-sensível, e que
se transfigura no interior desse mundo num sistema de leis. Tais leis apreendidas na
experiência, no entanto, estão para além do fenômeno e, contudo, constituem a sua
íntima sustentação.
Com efeito, “a consciência experimenta a contingência das leis da Natureza:
buscando sua necessidade regressa desde o mundo a si mesma. Primeiramente sua
explicação das leis é tautológica, não vê nelas mais que uma necessidade analítica,
porém, quando a necessidade se mostra em seu objeto dita necessidade passa a ser
sintética. Mundo sensível e mundo supra-sensível, fenômeno e lei, se identificam no
conceito verdadeiro, o pensamento do infinito... O infinito ou o conceito absoluto é a
relação que se fez viva, a vida universal do absoluto que permanece em seu outro,
concilia a identidade analítica e a sintética, o uno e o múltiplo. Nesse momento a
consciência do outro se converte em consciência-de-si no outro, no pensamento de uma
diferença que já não é diferença. A consciência se alcança a si mesma em seu objeto, é
certeza de si, consciência-de-si em sua verdade.” (Hyppolite, 1974, p.116).
Destarte, não é outra a razão pela qual Hegel afirma na Fenomenologia,
referindo-se ao processo de construção do conhecimento: por trás da assim chamada
cortina, que deve cobrir o interior, nada há para ver; a não ser que nós entremos lá
dentro – tanto para ver como para que haja algo ali atrás que possa ser visto. (Hegel,
1992, p.118). Esse o ponto, à medida que levemos a sério as contribuições da ciência
atual seremos cada vez mais impelidos a admitir que quanto mais penetrarmos
compreensivamente na realidade, e aí tanto faz se no domínio micro ou macro-cósmico,
alcançaremos sempre um momento no qual a ‘matéria’ do nosso conhecimento é tão
somente o conhecimento mesmo ou o conceito; afinal, o que é para nós um ‘buraco
branco’? É ainda palpável uma unidade de matéria oriunda da divisão de um Quark? De
que falamos nesses domínios, senão de elementos conceituais oriundos de um
conhecimento que em todo caso é ainda e sempre construto nosso?
Com efeito, desde essa perspectiva, pode-se dizer que a Filosofia da Natureza
em Hegel transfigura-se em uma Metafísica da Natureza e constitui o momento da
prova cosmológica da existência de Deus, não no sentido de prova como fundamento
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O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis
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objetivo de Deus, mas no sentido da elevação do espírito finito a Deus, pois na Filosofia
da Natureza o Conceito enquanto logos (λογος) se traduz na espiritualização da ordem,
daí porque a Natureza não é domínio do kháos (κηάος), mas do kósmos (κόσµος).
Hegel se pergunta inicialmente: Que é a natureza? E expressa desde logo sua
posição frente a esta questão: Encontramos a natureza como um enigma e problema
diante de nós, ante o qual tanto nos sentimos impelidos a resolvê-lo, como dele
repelidos; atraídos: o espírito se pressente lá dentro; repelidos: por um estranho no
qual o espírito não se encontra. (Hegel, 1992, p.14).
Na Filosofia da Natureza, portanto, o logos experimenta estranheza e simesmidade, nesse conhecimento do outro não descobrirá senão a si mesmo, melhor,
somente esse percurso do conhecimento que lhe põe fora de si num outro cuja
determinação é uma diferença em seu interior, permitirá ao Logos alcançar a verdade de
si mesmo.
Assegurando, em todo caso, que a sua Filosofia da Natureza não se dissocia das
condições
empíricas,
Hegel,
enfatiza:
“Principiamos
observando,
reunimos
conhecimento sobre as múltiplas e variadas configurações e leis da natureza; tal
processo por si mesmo se prolonga em detalhes sem fim para fora, para cima, para
baixo, para dentro; e, justamente, porque não se antevê um fim, tal processo não nos
satisfaz.” Assim, Hegel, ressalta a importância e, simultaneamente, aponta a
insuficiência das ciências empíricas em atender às exigências de um saber conceitual
que se quer expressão do ser do objeto de conhecimento. Insiste Hegel: “Que é a
natureza? Ela permanece um problema. Enquanto vemos seus processos e
transformações, desejamos compreender sua essência simples, obrigar este Proteu a
depor suas transformações e a mostrar-se-nos e a se declarar, de modo que ele não
somente nos apresente múltiplas e sempre novas formas, mas de maneira mais simples,
na expressão da linguagem, nos traga à consciência o que ele é.” (Hegel, 1995b, p. 14).
Esse o ponto ao qual se deve estar atento: a natureza, nessa construção
conceitual que é a Filosofia da Natureza hegeliana, não é um outro posto na
exterioridade, tampouco numa diferença indiferente, mas enquanto outro de si mesmo
do Logos é o próprio Logos no seu ser outro, numa determinação somente possível pela
condição dele diferenciar-se em si mesmo, ou seja, apresentar uma diferença no interior
de si mesmo.
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E, contudo, não se trata de um jogo tautológico do Logos consigo mesmo na
elaboração da Idéia, “pois“, citamos Hegel, “devemos apreender a própria Idéia como
concreta e assim conhecer e depois resumir suas diversas determinações; para daí obter
a idéia, nós necessitamos percorrer uma série de determinações por meio das quais
enfim a idéia se faz [vem-a-ser] para nós.” (Hegel, 1995b, p.15). Por conseguinte, à
construção do conceito, na Filosofia da Natureza, há de concorrer não só a coisa
mesma, mas também o saber produzido pelos outros modos de considerar a natureza.
Com efeito, não se trata de que a razão expanda seus domínios sobre a natureza
e o espírito finito, mas de que estes são, na realização da verdade que lhes é própria, a
idéia mesma nas determinações de sua particularidade efetiva.
Ora, esta compreensão conduz Hegel a dividir sua filosofia da natureza do
seguinte modo:
“A idéia, como natureza, é:
I.
na determinação do fora-um-do-outro, da infinita singularização, fora da
qual está a unidade da forma, está aí como um ideal, só em si essente e
portanto só procurada, a matéria e seu sistema ideal – [a] mecânica;
II.
na determinação da particularidade, de modo que é posta a realidade
como determinidade imanente de forma e com a diferença nela existente,
uma relação de reflexão, cujo ser-em-si é a individualidade natural – [a]
física;
III.
na determinação da subjetividade, na qual as reais diferenças da forma
são do mesmo modo reduzidas à unidade ideal, que a si mesma [tem]
achado e para si é – [a] orgânica.” (Id, p.39).
Com efeito, inicialmente a natureza apresenta a matéria em sua finitude como
uma determinação ideal da Realidade Absoluta que assim se determina na imediatez das
relações ideais da mecânica. Ora, a própria determinação da finitude implica sua
manifestação como particularidade, cujo desenvolvimento conduz à relação de reflexão,
na qual a diferença imanente devém na unidade da forma a individualidade natural que
em sua suprassunção alcança a determinação da subjetividade e torna efetiva a unidade
ideal – a nova figura do orgânico se revela como a verdade do ser-em-si ou o ponto em
que culmina o processo da singularização da matéria.
Compreendemos que, desse modo, embora na natureza prevaleça como diz o
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O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis
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próprio Hegel, a necessidade e a contingência, o que aqui se afirma é a liberdade do
Conceito, à medida que todo o processo surge e se desenvolve a partir de uma
necessidade interna do Conceito; a direnção ou a ‘irradiação’ na multiplicidade de
direções que constitui o processo não configura uma dispersão aleatória e contingente,
mas é, antes, expressão da multiplicidade de determinações a serem efetivadas nas
figuras e degraus de realização do Conceito.
Por isso, Hegel dirá que:
“cada degrau é um reino da natureza próprio, e todos parecem
subsistir para si, mas o último [degrau] é a unidade concreta de
todos os antecedentes, assim como em geral cada degrau seguinte
tem os inferiores em si, mas igualmente também os contrapõe a si
como sua natureza inorgânica. Um degrau é o poder do outro, e
isto é mútuo; aqui está o verdadeiro significado das potências.”
(Ibid., p.41).
Dissolvida assim a exterioridade da oposição, emerge a imanência no
movimento dialético do conhecer que expressa a verdade e manifesta a efetividade do
Ser, ou ainda, no que diz respeito às efetividades do Ser é necessário perceber que cada
figura somente pode ser apreendida na perspectiva de que algo é agora momento, mas
também lógica e ontologicamente o Todo.
O Logos é a translucência perpassada pela luz do ser que ilumina a opacidade da
natureza, faz com que esse Proteu que ama ocultar-se comunique o seu ser e revele-se
como o Ser na sua alteridade. Na Natureza, o Logos encontra sua realidade efetiva,
assume a coisidade e se torna objeto efetivo – o Logos é Natureza; o Logos nega-se ou
determina-se a si mesmo na Natureza, enquanto outro de si mesmo, ao realizar-se na
Natureza cobra dela o seu sentido, busca nela o conhecimento e desvenda o desdobrarse do conceito de si mesmo nesse seu outro – a Natureza é Logos.
Se o Logos de que se fala é aqui o Absoluto, não se estaria, portanto, incorrendo
em panteísmo? Poderíamos opor a essa indagação uma outra, a saber: Como poderia o
absoluto ter algo fora de si? A questão efetiva é: Como compreender essa relação
estabelecida por Hegel na qual a Natureza é Logos, o Logos é o Absoluto e o Absoluto
é Deus sem tomar o seu sistema como um panteísmo?
Com efeito, Hegel não advoga um panteísmo, seu sistema tem base no
cristianismo e a Natureza não esgota o ser de Deus, tampouco a Natureza é Deus no
sentido em que nós possamos dirigir-nos a ela imaginando estarmos dirigindo-nos a
Deus, Deus é Espírito e somente enquanto Espírito Absoluto o espírito finito pode a Ele
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O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis
ter a pretensão de dirigir-se.
Em virtude do que se pode afirmar que a Natureza pela presença divina de seu
Criador não é senão Deus mesmo enquanto uma expressão ou manifestação de Deus; no
entanto, não se pode recorrer a Ele diretamente nessa sua criação, da mesma maneira
que não ocorre a alguém se dirigir a Beethoven ao ouvir a sua bela Nona Sinfonia, como
se ali estivesse ele mesmo a ouvi-lo e não uma criação dele para ser ouvida, na qual sem
dúvida Beethoven se diz e está, de algum modo, presente. Temos reiteradamente
recorrido a essa analogia, pois entendemos que é o modo mais simples e menos
distorcido de apresentar no âmbito da representação a relação entre o Espírito Absoluto
e o espírito finito, que também pode ser compreendida como a relação entre o Universal
Abstrato (o Absoluto) e o seu Universal Concreto (o Singular).
Essa é, para nós, a razão pela qual no Adendo ao § 239, Hegel havia assinalado
que: “Na progressão da idéia o começo se mostra como o que é em si, a saber, como o
posto e o mediado – e não como o essente e o imediato. Só para a consciência imediata
mesma, a natureza é o inicial e o imediato, e o espírito é o mediado pela natureza. De
fato, porém, a natureza é o [que é] posto pelo espírito, e o espírito mesmo é o que faz da
natureza sua pressuposição.” (Hegel, 1995a, p.369).
Ora, é preciso acautelar-se e não reduzir essa expressão a um idealismo ingênuo
que, ao modo de um mágico que faz surgir coisas da cartola, faça surgir do espírito
finito os elementos brutos da natureza; na verdade, assim como a Lógica tem como
exigência a filosofia da natureza, pois se a Lógica reivindica para si a ruptura com a
abstração vazia e não pretende ser apenas uma ficção da imaginação, tem de ser capaz
de encarar o negativo de frente realizando-se nas coisas e confirmando-se como
verdade do real no conhecimento, assim também o espírito precisa alienar-se na
natureza, no seu outro, para só então voltando a si ser verdadeiramente si mesmo.
O Ser determina-se a si mesmo e nisso nega-se a si mesmo como Logos (na
Lógica) e, como Natureza, pode-se dizer desta oposição que é absoluta, no entanto, cada
um é o todo que se opõe a si mesmo; de modo que cada um é em si mesmo o seu oposto
e apresenta o outro em seu elemento, em sua determinidade própria, constituindo com
seu oposto uma unidade, daí que a diferença já não tem o caráter de exterioridade, mas
enquanto diferença no si mesmo é diferença interior, expressão autêntica da verdadeira
infinitude. Por conseguinte, o Espírito não é simples síntese, mas reconciliação do Ser
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Alfredo de Oliveira Moraes
O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis
ou Absoluto consigo mesmo.
Com efeito, vale ressaltar que aqui não se trata de uma mera especulação
teorética, pois o próprio Hegel afirma que:
“A filosofia da natureza acolhe o material que a física lhe
preparou da experiência; [acolhe-o] no ponto até onde a física o
trouxe, trata-o de novo sem dar por fundamento a experiência
como derradeira verificação; a física deve pois trabalhar de mãos
dadas com a filosofia, de modo que esta traduza para o conceito o
universal do entendimento a ela transmitido; nisto ela mostra de
que modo esse universal brota do conceito como um todo em-simesmo necessário [notwendig].” (Hegel, 1995b, p.22).
Sendo esse o ponto no qual concordamos com Bloch ao dizer que: “É importante
assinalar, que para compreender a filosofia hegeliana da natureza há que se admitir a
possibilidade teórica de outra física que a que vai desde Galileu e Newton até Einstein.
A física que se vem construindo de uns 300 anos para cá não só abstrai de toda
valoração, mas também de toda qualidade. Para ela todo ser é quantitativo e toda vida
mecânica. Hegel, ao contrário, pensa como Aristóteles que a qualidade é, em cada caso,
uma coisa nova que pressupõe as relações de quantidade, mas não se reduz a elas. (...)
Além do mais, Hegel olha a natureza não tanto em seu ser estático, quanto em seu ser
dinâmico.” (cit. in Colomer, 1986, p.346).
Aqui, à guisa de conclusão, retomamos o ponto central de nossa tese de que a
Filosofia da Natureza de Hegel exige essa outra física apontada por Bloch, e mais ainda
que a partir das formulações de Einstein, Planck, Heisenberg e Bohm, para citar apenas
alguns e não perder a referência à realidade efetiva, necessitamos repensar os
fundamentos da própria física, adotando uma Metafísica de base não-material para a
adequada apreensão da physis que a ciência do século XX descortinou, mas que
inadvertidamente apoiada numa metafísica de base material cobriu esse fenômeno com
o véu das concepções previamente adquiridas e não se permitiu dar o salto qualitativo
que suas descobertas reclamam.
Sabemos e não é de hoje que é mais fácil descobrir uma nova verdade do que
encontrar os meios de realizá-la, basta lembrar que as revoluções científicas e
filosóficas havidas no século XVII - a partir das quais o homem perdeu tanto o lugar no
mundo que presunçosamente atribuía a si mesmo, como perdeu o próprio mundo em
que acreditava - ainda permanecem não assimiladas pelo senso comum e até mesmo
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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O Fim da Matéria e a Re-significação da Physis
Alfredo de Oliveira Moraes
muitos da comunidade científica atual estão presos a concepções que não estão
compatíveis
com
a
visão-de-mundo
implicada
num
universo
infinito
e
multidimensional, que por isso mesmo não tem um centro.
As bombas que caíram sobre o Japão no final da 2ª guerra mundial deveriam ter
sido suficientes para acordar, se não a humanidade, pelo menos os cientistas e filósofos
para a necessidade de re-significar a physis, não há átomos e mesmo partículas ínfimas
são apenas um jogo de relações de forças, tudo é relação e relação de relação e como já
nos disse o próprio Hegel até mesmo o Eu é o conteúdo da relação, o relacionar-se a si
mesmo. (Ich ist der Inhalt der Beziehung und das Beziehen selbst – Hegel, 1990, vol. 3,
pp. 137, 138.)
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Alfredo de Oliveira Moraes
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Artigo recebido em maio de 2010
Artigo aceito para publicação em julho de 2010
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Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 19-31
A natureza: promissão, promessa e
promoção do espírito
Bernard Bourgeois*
_______________________________________________________________
Resumo: O presente trabalho visa explicitar a relação entre a natureza e o espírito
no sistema enciclopédico de Hegel a partir da imagem da natureza como a
“prometida”, a “noiva” do espírito. Argumente-se que a imagem exprime, ao
estilo da representação, a concepção de uma relação intrínseca entre natureza e
espírito, ultrapassando toda exterioridade sob a forma de um simples paralelismo
ou instrumentação. Conforme os três momentos envolvidos na imagem – a
natureza como prometida, promessa e promoção do espírito -, a natureza é pela
sua própria essência incitada a se ultrapassar ao se fazer naturação do espírito, e
reconhecida na sua alteridade pelo espírito que, no entanto, permanece soberano
na sua comunidade com a natureza.
Palavras Chaves: Natureza, Espírito, Filosofia, Sistema
Abstract: The present paper aims to explicate the relation between nature and
spirit in Hegel’s encyclopedic system by interpreting the metaphor of nature as
the “bride” of spirit. It is argued that this picture expresses, in the manner of
“representation”, the conception of an intrinsic relation between nature and spirit,
going beyond any merely exterior relation between them, such as parallelism or
instrumentalization. In accordance with the three moments implicit in the
metaphor – nature as promised to spirit, as its promise and as promoting it -,
nature is by its own essence impelled to go beyond itself and to become a moment
of spirit’s realization, but is also recognized in its otherness by spirit, the latter,
however, remaining sovereign in its unity with nature.
Key Words: Nature, Spirit, Philosophy, System
_______________________________________________________________
Em seus cursos sobre a Enciclopédia, Hegel não hesita em traduzir na linguagem
da representação, na qual se movimentam mais à vontade os seus ouvintes, aquele
conceito cuja árida condensação rege o propósito do Manual, do Compêndio por ele
publicado e que lhe serve de fio condutor. É assim que ele recorre à representação
completa, isto é, a representação religiosa, tomada no acabamento de sua forma bíblica,
para exprimir, através do comentário de Adão se maravilhando ao descobrir na Eva
formada a partir dele seu outro de si mesmo, a carne de sua carne, a relação do espírito
*
Professor emérito da Universidade Paris-1 Panthéon-Sorbonne. Email: [email protected].
Tradução de José Pinheiro Pertille (UFRGS) e Matheus Pelegrino da Silva (UFRGS).
REH – Revista Eletrônica
Estudos Hegelianos
Jul./Dez. de 2009
N. 11, v.01
pp.19-31
Bernard Bourgeois
A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
com a natureza. O próprio Hegel exprime essa relação ao estilo da representação
dizendo que “a natureza é a noiva com a qual se desposa o espírito”.1 A imagem do
destino conjugal da noiva já diz muito. Em si, virtualmente prometida ao espírito em
uma finalidade que a submete a esse, a natureza é, pelo espírito que assume e realiza
voluntariamente tal estatuto ao esposá-la, ligada a ele em uma comunidade que
formalmente os equaliza. Ora, na medida em que Hegel na Enciclopédia eleva a seu
conceito a relação entre esposo e esposa quando ele expõe a vida ética familiar, a
representação da relação do espírito e da natureza como análoga à relação entre marido
e mulher confirma pelo conceito mais determinado da segunda relação o conceito mais
abstrato que é proposto na primeira, tal como essa aparece especialmente no começo da
Filosofia da Natureza.
O casal hegeliano nessas duas relações parece muito diferente daquele que elas
também constituem nos predecessores de Hegel no seio do Idealismo Alemão. Na
filosofia transcendental de Kant, e ainda na de Fichte, o espírito domestica a natureza
fixada – em sua alteridade recebida ou mesmo posta, rebaixando sua comunidade à uma
simples interação – em sua posição de instrumento. Na filosofia romantizante da
natureza, que se coloca em paralelo com a filosofia transcendental do espírito, mas que
tira proveito desta dualidade – essa diferença conservada entre a diferença ou
diversidade natural e a identidade do Eu – Schelling vê na natureza a irmã primogênita
do espírito. Hegel rompe com todo naturalismo, aceito ou reivindicado, em sua
concepção plenamente espiritual da relação entre o espírito e a natureza, reconciliados
na intimidade de sua verdadeira comunidade. Isso não significa sua pura neutralização
um no outro. Em sua unidade espiritual concreta, Hegel atribui a primazia ao espírito, o
qual conduz e funda a relação consigo mesmo de uma natureza que lhe é destinada
como o seu fim, que é para ele, mas da qual ele reconhece liberalmente a especificidade
para se deixar condicionar em sua existência pelo dinamismo próprio dela. Ela é assim
para ele sua noiva, sua prometida. Mas, ela o convida por ela mesma a uma existência,
ela é a promessa do espírito. E, em sua relação, tanto para ela quanto para ele, trata-se
no fundo de uma promoção dele, que é o absoluto em sua verdade. Tais são os três
momentos da relação complexa, concreta, da natureza e do espírito no sistema
hegeliano.
1
Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas, II: Filosofia da Natureza, § 246, Ad. (Hegel, 1997, p. 25).
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Bernard Bourgeois
A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
O absoluto hegeliano, que se manifesta absolutamente, está como tal totalmente
presente em cada uma de suas manifestações, mesmo que isso se faça a cada vez
segundo uma forma original da totalização de seu conteúdo, de suas diversas
determinações. É por isso que a natureza e o espírito não podem designar seres
radicalmente diferentes, tais que o conteúdo de um não tivesse nenhuma presença, de
algum modo qualquer, no conteúdo do outro. Eles designam mais propriamente os
diversos regimes de reunião das determinações do ser, elas mesmas então modificadas,
em sua qualidade e em sua potência, por sua totalização específica. Assim, há uma
sensibilidade natural e uma sensibilidade espiritual, a primeira antecipando a segunda, e
essa evocando aquela, não sendo ainda o espírito, naturalmente antecipado,
propriamente espírito e não sendo mais a natureza, espiritualmente evocada,
propriamente natureza. Por exemplo, a natureza presente dentro do espírito, aquilo que
Hegel chama de “Natur-Geist”, o “espírito-natureza”, o “natural” do espírito
inicialmente existindo como “alma”, não tem os mesmos aspectos e a mesma força – ele
condiciona, mas não mais determina – que a natureza não integrada ao espírito.
Entretanto, não é menos verdade que mesmo a natureza verdadeiramente natural, por
sua íntima ligação originária com o espírito no seio do absoluto como manifestação total
de si, não é ordenada de maneira somente exterior, e isso de algum modo apesar dela
mesma, pela soberania absoluta do espírito. Mutatis mutandis, o aristotelismo de Hegel
lhe faz determinar a natureza como desejando, por assim dizer, o espírito, essa
finalidade interna que a consagra a ele constituindo-a em seu próprio ser. Ela é, por ela
mesma, a noiva do espírito, de si mesma para ele.
Ela é, em sua própria essência, o meio para o espírito existir espiritualmente, ou
seja, ela é idêntica a si em sua existência, a qual, como toda existência, inscreve o ser,
qualquer que ele seja, na exterioridade e o relaciona discriminando-o de outra coisa. A
natureza, enquanto ela é o sentido plenamente sentido, totalizando-se em um Si que se
afirma – a Idéia como “personalidade pura” da qual trata o final da Ciência da Lógica –
sendo todo ato uma negação, ao se alienar sensivelmente ela é fundamentalmente a
exterioridade, para si absoluta, do espaço. Ora, sendo assim ela é imediatamente outro
que ela mesma: assim como o ser espacial do ponto é ao mesmo tempo o ser de todos os
outros pontos do espaço, a natureza se oferece ao espírito como aquilo que,
imediatamente negado em sua fixação, pode ser negado pelo espírito, cuja identidade
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Bernard Bourgeois
A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
consigo não pode tolerar a diferença natural. Tal é a base originária do ardil pelo qual o
espírito pode, em seu agir, voltar a natureza contra ela mesma e a fazer servir aos seus
fins. Seguramente, enquanto alienação da Idéia ou do sentido completo na interioridade
de um Si, a natureza não pode senão interiorizar, sob a injunção de seu princípio, sua
exterioridade consigo, e isto em um escalonamento de estruturas sintetizantes que vão
do tempo – cada instante integra todos os instantes – até a vida, cada ser vivo que
começa a delimitar-se temporalmente a partir de sua espacialidade contida. Mas, em
todo seu desenvolvimento, espacialmente presente, a natureza continua essencialmente
espacial, exterior a si: os próprios seres vivos se justapõem e se sucedem em suas
singularidades incapazes de reunirem-se em um grande ser vivo universal que se
absolutizaria como rival do espírito. A natureza, propriamente dita, não existe. A
espacialidade não ultrapassável da natureza assegura assim o poder do espírito. A
contradição fixada por ela entre a universalidade não singularizada da vida e a
singularidade não universal dos seres vivos mantém a natureza como ofertada ao
espírito, do qual ela espera que a salve ao acolhê-la em sua unidade.
Se, em sua espacialidade primeira e última, última porque primeira, a natureza
não pode resistir à sua dominação pelo espírito, ela faz algo mais na medida em que ela
segue antes dele sendo empurrada pela Idéia, da qual o espírito é a realização
verdadeira, ao identificar a si e a universalizar em suas determinações estratificadas sua
original e destinatória diferença consigo. Tal identificação universalizante da
diversidade natural se opera através das leis e dos gêneros, os quais, certamente, a
natureza não pode respeitar absolutamente, como testemunham suas contingências e
suas monstruosidades; sua essencial diferença consigo mesma, com efeito, lhe afeta
com uma ineliminável impotência para fixar plenamente a sua ordem, pois a potência é
identificante. Mas ela permite em geral a regulação constitutiva do agir espiritual,
universalizante enquanto pensante, ao encontrar um cúmplice responsável no seio dela
mesma. Ou ainda melhor: o espírito não podendo agir eficientemente sobre a natureza
senão de maneira imanente, logo, naturalmente, torna preciso que o ser espiritual
comporte em si mesmo um momento natural. É preciso que a natureza que pode agir
sobre todas as suas determinações, ou seja, a natureza orgânica, mais concreta e
totalizante que a natureza mecânica e a natureza físico-química, e assim capaz de as
limitar, esteja presente e seja ativa no ser espiritual. Mas é preciso também que essa
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Bernard Bourgeois
A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
natureza seja assumida espiritualmente, que seu próprio limite e negatividade natural
sejam vividos como tais no meio englobante do Si universal, pensante, e que seja então
incitada a se ultrapassar não mais somente dentro dela mesma, pois ela está em seu
ápice natural, mas a se ultrapassar como natural ao se fazer naturação ou encarnação do
próprio espírito. É assim que o espírito se produz, enquanto nele a natureza se lhe
consagra ao se reconhecer como sua prometida. Ela se reconhece tal como ele a
reconhece.
Um tal reconhecimento mútuo, pela natureza e pelo espírito reunidos no
“espírito-natureza”, ou “alma”, momento inaugural do espírito e da destinação ou
finalidade espiritual da natureza, completar-se-á quando o espírito inicialmente re-posto
naturalmente em si, espontâneo, uma natureza espiritualizada, seja posto por ele,
espiritualmente, livremente, como espírito, na posição de uma nova natureza pelo seu
conteúdo. Essa será a segunda natureza, objetivando o próprio espírito em seu conteúdo
específico no mundo das instituições jurídico-sócio-políticas, o espírito objetivo. Ter-seá feito então verdadeiramente de sua prometida seu outro de Si mesmo, seu esposo. E a
naturação do espírito, comportando graus como o próprio espírito, se completará na
objetivação do espírito em sua absolutidade trans-objetiva, assim como o Livro expondo
o saber absoluto, expressão conceitual da Encarnação religiosa do Verbo divino
afirmado pelo pressuposto cristão da especulação hegeliana. Porém, tal compreensão
idealista-finalista da destinação ou vocação espiritual da natureza não esgota,
unilateralmente, o sentido da relação estabelecida por Hegel entre o espírito e a
natureza. Por conseguinte, se a natureza é, em sua verdade, a naturação do espírito, o
acesso a essa é um processo no qual o espírito se faz proceder da natureza tomada por
ela mesma, fora de toda dimensão finalista. A liberdade do espírito, também e,
sobretudo, a respeito de si mesmo, seu liberalismo absoluto, lhe faz reconhecer a
posição de si mesmo pela própria natureza, a partir dela mesma, e na abstração de toda
perspectiva situando-se com relação a sua destinação ou a seu fim. O desenvolvimento
da natureza, tomado e exposto como puramente natural, faz dela como tal a promessa
de um espírito posto por ela mesma, tomado em sua negatividade mesma.
******
O espírito, que culmina no saber absoluto, o qual é a filosofia especulativa
elaborada por Hegel, deixa-se bem colocar pela natureza em seu auto-movimento
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Bernard Bourgeois
A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
próprio, cujo motor é a negatividade imanente ou a contradição dela mesma. Em outra
ocasião sublinhei que, diferentemente da “dialética” fichteana e schellingeana, a
dialética hegeliana não é nem um pouco teleológica, ou seja, ela não é movida por
aquilo que o ser não é ainda, pela irrealidade ou idealidade de um fim que lhe falta, e
que em sua alteridade em relação àquilo que é a cada instante, constituiria seu
verdadeiro ser, não lido em si mesmo, e, por conseguinte, contingente em relação a esse
ser. Hegel, que quer expor o ser enquanto ser a partir dele mesmo, em sua identidade
consigo próprio geradora de necessidade, recusa tal contingência, recusa tal arbítrio, e
se mantém em uma dialética rigorosamente como tal; dialética, pois estabelece o ser
sem sair do próprio ser, só saindo de si na medida em que seu ser se transforma em seu
não-ser, ou seja, quando é contraditório. Tal contradição, que abisma o ser no não-ser,
não pode, na medida em que ela é, se contradizer ao pôr como ser a unidade do ser e do
não-ser, unidade que é um novo ser, agora necessário, como o mostra o início da
Enciclopédia. É então a presença do dialético – da inversão do si em seu Outro – no ser,
em todo ser, que faz esse ser se desenvolver necessariamente e causar seu próprio fim,
tão distante possa ser esse fim a causa do ser em seu desenvolvimento. A finalidade
espiritual da natureza exprime deste modo o sentido de um processo de causação do
espírito pela auto-negação da natureza. Essa auto-negação é a promessa da posição do
negativo da natureza, isto é, do espírito. A liberdade do espírito bem se mostrará na
assunção principial de sua natureza liberando-se dela mesma. Tanto em seu início
quanto em seu começo, o espírito se apreenderá enquanto resultado da auto-negação da
natureza em si mesma.
Tal auto-negação da natureza em contradição consigo mesma é pensada pelo
espírito como não tendo nada de espiritual em sua execução: ela não está presente nela
mesma, ela não é por si mesma. Certamente, no ápice vivo da natureza, no qual o
animal sente a si mesmo e experimenta carência e dor, ao interiorizar a diferença entre a
singularidade limitada e a universalidade genérica da vida ou a universalidade geral do
universo não-vivo, a contradição então experimentada o leva a fazer cessar essa
contradição, mas isso em relação à contradição na natureza e não à contradição da
natureza, esta última não podendo ser vivida como incitação ao agir a não ser ao nível
do espírito. A natureza, como tal, é a contradição, ela não possui contradição. É por isso
que a natureza suporta ou tolera perfeitamente a contradição, sem ela ser por essa
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Bernard Bourgeois
A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
mobilizada: “Na natureza a contradição é somente em si para nós, enquanto o ser-outro
aparece na idéia como forma tranqüila”.2 No todo do sentido – aquilo que Hegel chama
de Idéia – realizada sensivelmente, alienada naturalmente, a contradição não age
naturalmente. Se nada houvesse senão a natureza, e supondo que ela pudesse ser – o que
não é, pois ela é nela mesma contraditória – ela não poderia mais ser, pois sua
contradição não está presente e agindo naturalmente. O desenvolvimento da natureza
em seus extratos universais cada vez mais sintetizantes, em direção ao espírito, não é
assim propriamente natural, mesmo que exista, em alguns de seus extratos, tal como o
da vida, um desenvolvimento real de suas singularizações, ou – dito de outro modo – a
natureza realmente não se desenvolve. Ela é tudo aquilo que ela é, todas suas
determinações, de uma só vez, de algum modo simultaneamente, e, no limite, se assim
se pode dizer, ao mesmo tempo em que o espírito; é bem conhecida a recusa hegeliana
de todo transformismo e evolucionismo.
Como são diferentes, a esse respeito, o espírito e a natureza! O espírito, o real
interior consigo mesmo que, como tal, não é inicialmente espaço, mas sim tempo, é um
desenvolvimento real de si mesmo, pois, retomando em si a natureza e fazendo-a ser a
despeito do não-ser que ela comporta, ele com isso assume a contradição que se torna
então a sua, com isso então possuindo-a, pois, ao não suportá-la, ele então se contradiz
consigo mesmo, nessa contradição que marca a sua finitude ou relatividade original.
Quanto à natureza, ela está realmente de uma só vez em sua contradição geral, em todas
suas contradições estratificadas, e ela é toda essa contradição sendo a contradição
elevada enquanto princípio como a natureza do “espírito-natureza”, natureza somente
real através do espírito. Ela somente é sua contradição sendo esta contradição resolvida
na não-natureza que é a naturação do espírito. A série de tipo simultâneo, inicialmente
total, das contradições que pontuam a interiorização da contradição que é a natureza, na
contradição que possui o espírito se fazendo imediatamente essa natureza, torna deste
modo finalmente íntimo para ela mesma como autocontradição sua contradição então
ultrapassada pelo espírito, e assim demonstra a atribuição ao espírito do ser imediato da
realização do sentido (lógico) em razão de sua insuficiência natural, único meio capaz
de assegurar enquanto verdadeiro ser este ser que, como tal, exige sua realização
verdadeira, espiritual. O espírito não está bem demonstrado como ser a não ser que o ser
2
Ibid. § 247, Adendo (Hegel, 1997, p. 27).
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A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
se demonstre como tal, em sua naturalidade negativa, a não ser se mostrando como
espírito. Existe também uma justificação natural do espírito – pela negatividade infinita
da natureza se negando ela mesma. O ser do sentido, o real, estabelece por si mesmo,
em sua naturalidade, que ele é espírito. Na medida em que há um real, que como ser é
natural, ele promete este ser espiritual somente através do qual ele é, e que é assim
realizado no mesmo momento que prometido; a promessa natural do espírito é a
promessa absolutamente mantida.
Ora, se a realidade do espírito está demonstrada pela dialética não real da
natureza, é que essa é em verdade a dialética puramente conceitual, ou lógica do sentido
total, ou ainda a lógica da Idéia do ser. Uma dialética cujo princípio elementar é que
aquilo que é contraditório não o é. Tal é a necessidade férrea que consagra ao não-ser a
natureza tomada nela mesma, assim como um destino que se serve do próprio repouso
dessa natureza para tolerar perfeitamente a contradição que ela é; é o possuir dessa
contradição se refletindo então nela mesma em um contradizer-se que abrirá o caminho
de sua dominação, e essa será a destinação do espírito. A Lógica estabelece bem que o
sentido não escapa à contradição, invertendo-lhe em não-sentido, a não ser totalizandose em um Si, cujo ser se completa justamente naquilo no qual ele se contradiz, ou no
qual ele se sacrifica ao pôr seu outro sensível, o que se faz inicialmente como natureza,
antes de se colocar como sentido neste Outro sensível tornando-o então a encarnação do
espírito. É enquanto espírito que o sentido é realizado como sentido e, como realidade
absoluta, torna real também o real condenado ao não-ser pelo sentido que ele não realiza
como tal, isto é, o real natural. A soberania da Idéia lógica sobre a natureza posta e
deposta por ela como o meio nativo de sua realidade é assim em verdade aquela própria
do espírito, plenamente espírito, Idéia efetuada como Idéia. É este espírito que promove
o próprio ser e todo o resto, e que promove inicialmente o seu Outro, a natureza.
*****
A reciprocidade que foi analisada entre a natureza, que está para o
espírito, e o espírito, que está para a natureza, mesmo enquanto ela exprime, em Hegel,
diferentemente do que ocorre em Kant, Fichte e Schelling, uma aliança íntima entre eles
ultrapassando toda exterioridade – sob a forma de um simples paralelismo ou
instrumentação – mantida, não satura sua relação. Pois a natureza não é simplesmente o
Outro do espírito, neste caso sendo o próprio espírito transformado em finito com
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Bernard Bourgeois
A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
relação à natureza. Ela é feita assim pelo espírito na medida em que, como espírito
infinito ou absoluto, ele é tanto o princípio da natureza como de si mesmo e,
conseqüentemente, de sua relação. O espírito e a natureza, os noivos, se tornam casal
em uma união onde o marido, por mais liberal que ele seja, em sua verdade, frente à sua
esposa, permanece – na ética hegeliana – o senhor, devendo seu ser a um mesmo poder
criador que é o próprio espírito. A natureza é apenas criada, enquanto o espírito é ao
mesmo tempo criador e criatura. A especulação não limita, em Hegel, sua transcrição
representativa religiosa da relação da natureza e do espírito à analogia de Adão
reconhecendo em Eva a carne de sua carne, mas evoca igualmente a comum filiação da
natureza e do espírito finito a partir de seu Pai divino, o espírito absoluto, que se faz
carne.
Filiação comum, mas de dois filhos desigualmente próximos de sua
origem e também, já que em verdade os dois fazem um círculo, desigualmente próximos
de seu fim espiritual. “A natureza – assim afirma Hegel – é o filho de Deus, mas não
como filho e sim como persistir no ser-outro – a idéia divina como retida fora do amor
por um momento”.3 Estando, como vimos, sem sofrer com essa contradição que a
coloca fora de si, mas, pelo contrário, por ela excitada, a natureza se abandona à má
infinitude de sua orgia algumas vezes catastrófica. Enquanto espírito finito, pois
vinculado a um simples modo dessa natureza infinita, é sempre, como espírito, em
alguma medida uma imagem do espírito absolutamente como tal, isto é, do espírito
absoluto, e, unificando e regrando sua existência natural com a qual ele experiencia a
contradição e que, no fundo, o faz rejeitá-la, [o espírito finito] relativamente escapa à
ameaça da negatividade da potência para ele empiricamente incomensurável de uma tal
natureza. Se não a vitória, ao menos uma saúde precária, enquanto o espírito permanece,
e se sente permanecer vinculado a uma parte da natureza, mesmo que se trate da
natureza da qual ele mesmo criou o conteúdo, da segunda natureza como naturação
institucional do espírito, pois esta segunda natureza também conserva a forma limitada
da naturalidade primeira. Certamente, a história, que é própria ao espírito, transfigura a
natureza, mas o espírito objetivo persiste como um espírito finito. É, no entanto, esse
mesmo espírito que, simultaneamente, é também capaz de se elevar, dos mais simples
começos da religião até o corolário cristão de sua racionalização filosófica, à
3
Ibid.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
28
Bernard Bourgeois
A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
consciência de sua união com o espírito absolutamente espírito. Sendo um com esse, ele
não é mais limitado naturalmente, mas compreende e domina em pensamento – e o
pensamento é a potência absoluta – a infinitude natural, uma vez que ele se identifica
com aquilo que criou ou se fez uma natureza, a natureza.
Deste modo, segundo a linguagem cristã que a filosofia especulativa
busca conceber, o Filho natural a si mesmo libertado pelo Pai criador faz então um
retorno a este, pela mediação do Filho espiritual inicialmente destinado a tal retorno. O
espírito religioso realizado no cristianismo vive assim a natureza como recondução
providencial, através do espírito humano, ao espírito divino que a criou graciosamente.
É aquilo que o filósofo especulativo expõe conceitualmente ao demonstrar o necessário
retorno da natureza, através do espírito finito, ao espírito absoluto, cujo ato essencial
consiste em liberar de si, conforme o sentido da Idéia personalizante que ele realiza ou
faz existir, o momento antagônico do sensível. Em sua identidade consigo eternamente
real, vivida religiosamente ou pensada filosoficamente, o espírito absoluto se faz juntar
todo ao ser, aqui entendido tal como ele está temporal e historicamente determinado,
pois o tempo e a história são entre outros os conteúdos do sentido eterno. Ele recolhe
em si todos os seus momentos principais – sentido ou Idéia lógica, existência ou
exterioridade para si natural deste sentido, espírito finito como restituição engajada
dessa exterioridade em seu sentido – na unidade e unicidade eterna de seu ato. Estando
assim totalmente presente a si mesmo em todo seu ser, ele também pode se apresentar a
si mesmo através de sua culminação no saber enciclopédico de si mesmo, ao se
construir a partir de sua determinação mais pobre e mais simples de si mesmo, o puro
ser, e – no registro do real – o puro ser sensível, natural, aquele mais afastado de seu ser
realizado, e confiar para sua afirmação somente na dinâmica deste Outro de si mesmo,
estando completamente certo do resultado. Sua liberalidade mede a sua potência e a
verdadeira certeza dessa: “A liberdade infinita dele [do espírito] deixa-a [a natureza]
livre e apresenta o agir da idéia contra ela como uma necessidade interna nela, assim
como um homem livre no mundo está seguro de que sua ação é a atividade do mundo”.4
O espírito absoluto, absolutamente certo de sua potência, não se põe imediatamente a si
mesmo ao se valer abstrata e arbitrariamente de sua onipotência – o autoritarismo não
desmente a verdadeira autoridade? –, pondo assim sem razão seu sentido (ele mesmo,
4
Ibid. § 376, Adendo (Hegel, 1997, p. 556).
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Bernard Bourgeois
A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
razão absoluta, estando já posto), as verdades eternas, a natureza e o espírito finito. Ele
se faz, ele se deixa, muito mais se pôr pelo movimento próprio do sentido do ser
enquanto ser, da Idéia lógico-ontológica, e, pela mediação primeira desta, que se realiza
como o sentido refletido em um Si se opondo, enquanto tal, a uma natureza, e pela
mediação segunda, real e não mais somente ideal, desta natureza em seu movimento
igualmente próprio. Essas duas mediações, assim como seus agentes, obtêm então sua
justificação, sua razão de ser, de serem postas como tais pelo espírito, pelo fato de que
elas operam a posição do espírito finito se pondo a si mesmo negativamente como
espírito absoluto. Desta maneira, pondo em particular a natureza como o posto, e assim
pressupondo liberalmente esta natureza como aquilo que por si mesmo, enquanto seu
Outro, se põe a si mesmo através do espírito finito, o espírito absoluto funda sua posição
como tudo aquilo que tem sentido e realidade, uma posição que, em sua absolutidade ou
imediatidade, é absolutamente livre. A auto-posição dialético-especulativa do espírito,
no saber enciclopédico hegeliano, exprime e realiza a necessidade realmente natural –
fundando e justificando toda a realização da Idéia, do sentido do ser – da livre
naturação, incluindo a do espírito finito, na qual consiste o ato, único e total, que é o
espírito absoluto, e que é exatamente a verdade essencialmente espiritual da natureza
como natureza.
*****
Eu gostaria de, como conclusão, insistir precisamente sobre esse ponto: é como
natureza, ou seja, na negatividade mesma que é a sua, que a natureza é reconhecida pelo
espírito, lhe confiando sua realização absoluta, pondo-a como o que o põe em sua
própria absolutidade. Tal reconhecimento faz do ato criador que é o espírito
absolutamente como tal, de sua livre decisão de deixar passar fora dele, como outro que
ele, seu momento negativo, agora liberado enquanto natureza, um sacrifício que não é
puramente formal. A totalização espiritual do ser, seu verdadeiro infinito, deixa subsistir
a má infinitude continuamente exterior a si mesma que é essencial à natureza e se
demonstra na contingência natural e em sua tradução, ao nível do espírito finito, pelo
arbitrário e pelo mal. Esse, que tem seu livre jogo no interior do sentido universal,
certamente não poderá ameaçar este último, mas afeta suas realizações particulares e
singulares, e, como conseqüência, o próprio espírito absoluto, cuja essência é se
manifestar ou realizar. O liberalismo do espírito absoluto criador da natureza e do
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
30
Bernard Bourgeois
A natureza: promissão, promessa e promoção do espírito
espírito finito o faz, portanto, acolher em si um mal que não pode comprometer a
realização do bem, mas que permanece um mal, implicação inevitável desta realização
do bem. O espírito finito pode sucumbir, mediante a tentação natural, a este mal que não
é superável no próprio espírito absoluto a não ser pelo seu tomar conta de tal mal. Hegel
soube reconhecer bem a presença desse momento negativo ligado à existência natural
em todos os níveis do espírito que, no entanto, permanece soberano.
Referências bibliográficas
HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), Volume
II: A Filosofia da Natureza. Tradução de José Nogueira Machado. São Paulo: Edições
Loyola 1997
Artigo recebido em outubro de 2009
Artigo aceito para publicação em abril de 2010
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 32-56
Espécies, Classificação e Evolução em
Hegel
Diogo Ferrer*
__________________________________________________________________
Resumo: Este artigo estudo os conceitos de espécie, classificação e evolução segundo
Hegel, tanto no seu uso natural quanto lógico. Hegel critica uma concepção
essencialista da espécie e do universal, substituindo-a pelo denominado “conceito”.
Este tem uma manifestação privilegiada na ideia de vida, tanto ao nível da lógica
quanto da natureza. A vida exemplifica do modo mais claro o “universal concreto”
hegeliano e permite, por isso, caracterizar também o sistema da filosofia de Hegel em
geral. Observa-se também como o conceito hegeliano de espécie pode apresentar-se,
em alguns aspectos importantes, como uma versão filosófica do denominado
“conceito biológico de espécie” proposto principalmente por E. Mayr. Como
resultado deste estudo, conclui-se que a recusa explícita por Hegel da evolução das
espécies deve ser entendida não como expressão de uma incompatibilidade da
filosofia da natureza hegeliana com a teoria da evolução por selecção natural de
Darwin, mas como a recusa de concepções quer metafísicas quer filosoficamente
reducionistas dos processos naturais e históricos de desenvolvimento.
Palavras-chave: Hegel, espécie, classificação, evolução
Abstract: This paper studies Hegel’s concepts of species, classification and
evolution, both in its natural and logical use. Hegel criticizes an essentialist
understanding of the species and the universal, and substitutes it by his so-called
“concept” (“Begriff”). The “concept” expresses itself as the idea of life, both at the
logical and at the natural level. Life exemplifies in nature most clearly Hegel’s
“concrete universal”. As a “concrete universal”, the idea of life allows to understand
Hegel’s system of philosophy as a whole. It is also shown how the hegelian concept
of species can be seen, in some important respects, as a philosophical version of the
“biological concept of species” proposed mainly by E. Mayr. As a result, it can be
concluded that Hegel’s explicit refusal of the evolution of species should not be
understood as an incompatibility between Hegel’s philosophy of nature and Darwin’s
theory of evolution by natural selection, but as a dismissal of metaphysical and
philosophically reductionist conceptions of natural and historical development
processes.
Keywords: Hegel, Species, Classification, Evolution
__________________________________________________________________
*
Professor Associado da Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail: [email protected]
REH – Revista Eletrônica
Estudos Hegelianos
Jul./Dez. de 2009
N. 11, v.01
pp.32-56
Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
1. O movimento do conceito e o desenvolvimento do real.
O tema das espécies, classificação e evolução não é ocasional ou secundário no
pensamento de Hegel mas é, pelo contrário, um conjunto de conceitos que permite
reconstruir toda a sistematicidade própria do pensamento hegeliano. A ideia de vida, de
que os três conceitos temáticos fazem parte do modo mais próprio, não é no sistema
hegeliano um tema filosófico entre outros, mas um ponto privilegiado de reunião e
exposição, numa totalidade real e concreta, de diferentes esferas do sistema. A análise
de alguns dos conceitos relacionados com a vida permite desenvolver tópicos centrais
para a compreensão do pensamento hegeliano como pensamento sistemático e concreto
e da sua capacidade de mediação de dicotomias conceptuais aporéticas. Os três termos
sob análise têm um significado dentro do sistema que faz com que sejam mais do que
um mero problema da história dos conceitos ou das ciências da vida. Falar em espécie
ou género, em seres vivos ou em vida, em classificação ou em evolução remete de
imediato para um contexto filosófico e reflexivo a partir dos quais esses conceitos
podem ser filosoficamente pensados. Os conceitos são utilizados na Filosofia da
Natureza, mas não podem deixar de ser esclarecidos ao nível fundamental, ou seja, da
Ciência da Lógica.
Antes de esclarecer o modo como os conceitos de espécie, vida, classificação e
evolução recebem sentido no contexto lógico e da filosofia da natureza, poderemos
relembrar dois pontos centrais acerca do tema, já detectados e desenvolvidos pela
investigação sobre a Física Orgânica de Hegel. É conhecido o facto de que Hegel recusa
a evolução das espécies naturais, reservando a transformação dos viventes para o nível
do indivíduo singular, e algo de semelhante à transformação das espécies somente para
os níveis conceptual e lógico. Ou seja, a transformação dos viventes reais é
exclusivamente um desenvolvimento individual, e algo de semelhante à transformação
das espécies somente ocorre ao nível das espécies ou conceitos lógicos e de realidades
históricas. Por outro lado, Hegel considera a classificação das espécies como tarefa em
parte empírica, e filosoficamente desinteressante; mas considera-a também, em parte,
como revelando aspectos da maior importância para o nível conceptual onde se pode
pensar a filosofia da natureza.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
A rejeição da evolução das espécies ao nível real tem motivos que se podem
considerar contingentes e outros que radicam essencialmente na concepção da natureza
e da vida por Hegel. Como motivos contingentes podem referir-se a inexistência de uma
teoria da evolução formulada com suporte empírico e conceptual válido, sobre
princípios naturais empiricamente fundados. A função da filosofia da natureza segundo
Hegel não é, de modo nenhum, a da descoberta e enunciado de factos ou leis naturais
mas, poderá dizer-se, a de uma constituir algo como uma metafísica das ciências da
natureza1 (embora também seja mais do que isto). A posição hegeliana – dados os
conhecimentos científicos disponíveis, – não poderia, por isso, ser outra. Nesta medida,
o erro de Hegel é historicamente partilhado pela ciência do seu tempo.2 Mas caberá
então perguntar-se, e assim tem sido feito por mais do que uma vez, em que medida o
hegelianismo é incompatível ou compatível com a teoria da evolução a partir de
Darwin, e com os seus mecanismos conceptuais. Não pressupõe Hegel uma ideia
anterior a todo o processo natural, que o orienta a partir de uma posição anterior e
exterior, sendo por isso incompatível com a teoria da evolução por selecção natural?
Qualquer proposta de solução para este problema requer, obviamente, uma interpretação
do pensamento de Hegel em certa medida autónoma em relação à letra do texto, embora
por ela legitimada, que busque determinar as principais linhas de força do pensamento
hegeliano e que daí retire consequências e novas aplicações.3
Se se considerar o carácter “fluido” do conceito segundo Hegel, a ênfase posta
no
“movimento”
conceptual
e,
mais
especificamente,
no
que
denomina
“desenvolvimento” (“Entwicklung”), é claro que este pensamento, na sua matriz mais
fundamental, não recusa a evolução. Pelo contrário, considera-a uma determinação
central de toda a inteligibilidade filosófica. No entanto, conforme é geralmente
reconhecido, o “desenvolvimento” parece estar reservado à esfera lógica, conceptual e,
também, espiritual. Assim, por exemplo, que o conceito do espaço possa
dialecticamente implicar e, assim, conduzir ao conceito do tempo, não significa que o
espaço se transforme realmente em tempo, tomados como objectos reais. O exemplo
mostra que é necessária uma concepção geral das relações entre a natureza, como
1
Cf. Falkenburg, 1987, 120-121.
Cf. Hertler & Weingarten, 2002.
3
V. Wandschneider, 2002, com a distinção entre “Evolution” e “Entwicklung”. Tb. Harris, 1998.
2
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Diogo Ferrer
Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
objecto real e a filosofia da natureza, como objecto conceptual para que se possa
compreender de que modo é legitimo falar-se, em termos hegelianos, de evolução, quer
de conceitos quer de espécies vivas reais. Em contraste com a filosofia do espírito, a
evolução, ou desenvolvimento está, na filosofia da natureza, reservado ao processo
epistemológico, estando pelo contrário ausente do seu objecto, a própria natureza.
O desenvolvimento real é próprio da realidade espiritual, mas não da realidade
natural. Porque o espírito é a manifestação real adequada do conceito, a historicidade
define o espírito a diversos níveis, mas está ausente da natureza.4 A natureza é
apresentada por Hegel como essencialmente não-histórica. A transformação histórica
contém um momento de singularidade, ou seja, daquilo que somente pode ser ou
acontecer uma vez. A historicidade envolve singularidade e, por isso, a transformação
de tipo histórico somente acontece na natureza ao nível do indivíduo vivente.5 Este
desenvolve-se teleologicamente em direcção à forma da sua espécie, mas o telos do
movimento é não mais do que a reprodução e morte do vivente, recaindo a natureza
num círculo de má infinidade em que cada geração repete a anterior. Que a natureza
seja também dotada de uma historicidade com características em larga medida
semelhantes à historicidade do espírito é algo que não está no horizonte de Hegel.6 Esta
não-historicidade da natureza prende-se com a sua condição não-conceptual, ou
insuficientemente conceptual. As determinações lógicas do pensar conhecem, pelo
contrário, diversas formas de movimento, que Hegel caracteriza em três grandes grupos,
o movimento de devir, de aparecer no outro e de desenvolvimento. No devir, o ponto de
partida do movimento perde-se no seu outro, no aparecer, mostra-se no seu outro, no
desenvolvimento transforma-se sem perder a sua identidade. No espírito, por outro lado,
encontra-se o desenvolvimento do em si em direcção ao para si, aparecendo
explicitamente modos de auto-referência e de reflexão que a vida já anuncia ao nível da
realidade natural. Pela sua concepção móvel do conceito, o pensamento hegeliano
inverte o platonismo no sentido em que, ao contrário de uma tradição milenar, o
4
Para uma problematização deste ponto v. Marmasse, 2008, 265-270.
Hoje justamente o entendimento da biologia evolucionista é que “it deals, to a large extent with unique
phenomena, such as [e.g., …] the origin of evolutionary novelties” (E. Mayr, 2004, 32). Nestas
condições, a biologia evoucionista é uma ciência histórica, uma “historical biology […] that involve[s]
the dimension of historical time” (ib. 24). A ordem biológica é resultado de uma temporalidade histórica
dotada de um qualidade própria e irredutível. Cf. J. Dupré, 2010, 44. A biologia faz por isso uma “ponte
importante” entre as “Geisteswissenschaften” e as ciências da natureza (Mayr 2004, 33, 35).
6
V. no entanto as passagens citadas por Wandschneider, 2002, 227-8.
5
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
inteligível é entendido como aquilo que se move, e como o próprio movimento, e não
como o imóvel. A imobilidade é propriedade das determinações do entendimento, ou de
uma concepção unilateral e limitada das categorias lógicas. Esta imobilidade deve ser
entendida como um momento necessário, mas de todo insuficiente, para a
conceptualização e inteligibilidade sistemática do real e das suas categorias. Isto
significa que o movimento da natureza apenas é inteligível na medida em que é
expressão do movimento do conceito, e que unicamente este é compreensível em si
mesmo. ‘Compreender’ é essencialmente o próprio movimento do conceito.
2. Espécie, contingência e a priori.
O conceito é inteligível, em si mesmo e por si mesmo, no seu movimento
objectivo, sendo toda a paralisação deste movimento uma perda da sua inteligibilidade.
Poderá dizer-se que a inteligibilidade das espécies só seria possível, em termos
hegelianos, a partir do momento em que se pudesse compreender o seu movimento e
transformação. Por tal razão, a defesa de Hegel da imobilidade das espécies não se deve
a um essencialismo ou a uma concepção estática do universal. A imobilidade das
espécies naturais reflecte, pelo contrário, a sua contingência e o seu carácter nãoconceptual. Hegel não parece atribuir às espécies empíricas uma dignidade conceptual.
“Os múltiplos géneros ou espécies da natureza não devem ser considerados como algo
de mais elevado do que os acidentes arbitrários do espírito nas suas representações.”7 O
estatuto conceptual da espécie, por outro lado, é entendido como um “processo do
género”, com vários momentos da maior importância, que iremos ainda referir. Na
espécie, enquanto existente determinado real, deverão distinguir-se, então, diferentes
níveis de análise, cada um deles com o seu estatuto próprio. Em primeiro lugar, o
número de espécies, conforme se viu, ou a determinação concreta das espécies parece
estar entregue a uma variabilidade indefinida de um “tipo do animal”8 ou do ser vivo.
Esta variabilidade é não-conceptual, remetida para o plano meramente empírico.
Nenhuma lei conceptual determina o número e o modo preciso das espécies realmente
existentes – e, neste ponto, Hegel partilha com o darwinismo uma concepção não7
“Die vielfachen Naturgattungen oder Arten müssen für nichts Höheres geachtet werden als die
willkürlichen Einfälle des Geistes in seinen Vorstellungen.” (Hegel, 1816, 41)
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
essencialista das espécies. As espécies são, neste sentido, largamente contingentes,9 e
somente porque a contingência é uma categoria lógica, esta determinação das espécies
como contingente não escapa por inteiro à dimensão conceptual. Mas a contingência
refere justamente a tomada de consciência lógica da limitação do conceito.
Mas, em segundo lugar, a espécie, tomada não mais como a espécie empírica
em concreto, mas na sua definição geral de espécie viva, possui também um momento
plenamente conceptual. A espécie tem determinações gerais cujo significado e lugar no
sistema da filosofia da natureza está, por assim dizer, previsto a priori. Em termos
gerais, a existência é a particularização e, por conseguinte, o “tipo do animal” só pode
existir de modo particular, ou seja, em espécies. A divisão da vida em diferentes
espécies é, consequentemente, uma condição da sua determinação. Por outro lado, a
existência da espécie é, do mesmo modo, uma determinação necessária do vivente
individual, cuja singularidade remete para outros viventes semelhantes. Assim como
uma concepção universal da vida não pode dispensar a sua particularização em espécies,
tão-pouco a vida individual dispensa a espécie. O universal existe particularizando-se, o
indivíduo, do mesmo modo, existe somente perante um outro indivíduo semelhante. A
espécie ocorre, segundo Hegel como um a priori da vida, ou do vivente.
Este a priori do vivente deriva do próprio cerne metodológico do pensamento
hegeliano, cerne metodológico que pode ser expresso em termos abstractos, nas três
grandes relações, consigo mesmo, com o seu outro e consigo mesmo como com o seu
outro. Estes três modos mais gerais da relação são condições básicas do pensar e estão,
simultaneamente, impressos na vida, tanto lógica quanto natural ou espiritual. Este
carácter generalizado dos principais momentos metodológicos do pensar mostra que
caracterizar o pensamento, e o próprio sistema lógico como vivo não é somente uma
metáfora. Mas retomaremos ainda este tema. Esta ligação entre relação real e relação
lógica, que a vida realiza, torna a vida eminentemente um processo gerador de valor
significativo, subjectividade e, finalmente, de pensamento. A vida natural apresenta
estas relações de fundo, metodológicas e lógicas, como os momentos naturais,
conhecidos de todo o leitor da Filosofia da Natureza, da figura, assimilação e processo
do género. A figura é a auto-relação, a organização auto-relativa das partes com o todo;
8
9
“Typus des Tiers” (Hegel, 1830, § 368.)
1830, § 368 Z, (p. 503).
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
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a assimilação reúne todo o tipo de trocas, reais e ideais, que o vivente estabelece com o
meio; o processo do género é a relação que o vivente estabelece “com o seu outro como
consigo mesmo”. Este processo assume duas formas gerais. Como é característico de
tudo o que pertence à vida, este é um processo simultaneamente real e ideal. A
especiação da vida gera tanto processos reais, nos quais as espécies se definem, quanto
processos de tipo ideal, de reconhecimento e, finalmente, conhecimento. Ao nível dos
processos reais da espécie Hegel pretende então englobar num momento conceptual
único, noções como as de competição, agressão, reconhecimento, reprodução sexuada e
classificação. Esta concepção unificada de todo um grupo de processos vitais, e uma
concepção científica e gnoseológica daí resultante, parece antecipadora de concepções
biológicas mais actuais, que poderemos aproximar de algum pensamento evolucionista.
A concepção hegeliana apresenta o vivente como em relação negativa com o seu outro.
A sua auto-afirmação e reprodução está então dependente das “suas armas”, “posto que
estas são aquilo por que o próprio animal se põe e conserva, i.e., se diferencia perante os
outros como um ente-para-si.”10 Agressão e competição são assim não só tomadas como
dados de facto da vida natural, mas são também entendidos como realizando, na
natureza, de maneira objectiva, o conhecido princípio metodológico segundo o qual
“omnis determinatio negatio”.
Muito embora a dialéctica hegeliana não valorize, na maior parte dos casos, a
luta como o motivo da criação do novo, da diversidade e da complexidade, optando por
outras expressões do que chama “contradição”, Hegel reconhecer-se-ia na afirmação de
Ernst Mayr, acerca da descoberta de Darwin, de que no mundo biológico “a luta pela
existência não é um estado estacionário sem esperança à la Malthus, mas os próprios
meios pelos quais a harmonia do mundo é alcançada e mantida. A adaptação é o
resultado da luta pela existência.”11 Do mesmo modo, para Hegel, a “harmonia”, o que
quer dizer na verdade uma maior complexidade, pode resultar das oposições
conceptuais e, embora somente ao nível do espírito, das oposições reais. Caso
paradigmático disto é a conhecida “luta pelo reconhecimento” da consciência de si. A
negatividade própria da dialéctica, assim como da evolução, não é jamais entendida
como estática, trata-se de um “diferenciar-se” do conceito, e não de uma “diferença”.
10
“[…] denn sie sind es, wodurch das Tier selbst sich gegen die anderen als ein Fürsichseiendes setzt und
erhält, d.i. sich selbst unterscheidet” (1830, § 368 (p. 501)).
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Este movimento da negatividade em direcção à maior complexidade e “concretude” é
próprio do processo dialéctico, embora não, para Hegel, da vida no seu estádio natural.
3. Processo do género, classificação e reconhecimento.
No processo do género, a existência das espécies não é somente uma actuação
negativa de diferenciação de cada indivíduo e de cada espécie perante as outras. O
processo do género, enquanto relação ao outro como a si mesmo, engloba as formas
positivas do reconhecimento e da reprodução sexuada, com todos os comportamentos
inerentes, que trazem já em crisálida a marca do amor e da apreciação estética.12 A
pertença à espécie é o primeiro momento da subjectividade e da universalidade, que se
estenderá por todo o mundo espiritual como processo do reconhecimento. Este processo
ocorre não somente na luta pelo reconhecimento, mas nas formas da sociabilidade e no
conhecimento. Uma condição primeira do conhecimento, como processo real de um
sujeito real, natural e histórico, passa pela noção de reconhecimento, cujo momento
mais imediato se encontra na reprodução sexuada.13
Observa-se, assim, que com a vida e o processo do género que lhe é inerente,
surge um princípio de sociabilidade e de reconhecimento da espécie, como um processo
objectivo. A descoberta deste processo objectivo corresponde à definição por Hegel do
“universal concreto”.14 Ou seja, a determinação da espécie não é feita por um
observador ou classificador exterior, mas pelo próprio organismo vivo. O vivente
classifica-se a si próprio e exibe o conhecimento da sua espécie como comportamento
objectivo de pertença e reconhecimento. A classificação não é, por isso um
procedimento exterior de um sujeito classificador, mas corresponde a uma realidade
objectiva. Contra os denominados “sistemas artificiais”, Hegel compreende que a
determinação da espécie não é uma simples comparação e pesagem de semelhanças e
diferenças mas que depende de uma realidade objectiva do vivente.
A espécie tem uma realidade objectiva e, por isso, a classificação não é um
11
Mayr, 1988, 228.
Sobre este último ponto v. Hösle & Illies, 1999, 128. Com uma posição diferente v. tb. O’Hear, 2005.
13
Sobre a definição do conceito biológico da espécie a partir da noção de reconhecimento v. M. F.
Claridge, 2010, 96.
14
V. 1816, 36.
12
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
procedimento pertencente ao sujeito ou ao sistema de classificação.15 O sistema
classificativo e o conhecimento do universal que ele expressa são objectivos. A
contingência das espécies empiricamente existentes está, por conseguinte, subordinada a
um esquema racional de conceptualização onde indivíduo singular e espécie universal
estão em ligação indissociável e real. Esta é a determinação própria da espécie viva, de
ser ao mesmo tempo um universal que permite a classificação dos indivíduos singulares
empíricos e, por outro lado, também uma determinação real da natureza. A espécie viva
tem um duplo valor, ideal e real, é conhecimento e ser, e, por isso, é especialmente
adequada na função de expressão da ideia.
Numa classificação entendida de algum modo como a própria “autoclassificação” do vivente, o universal está concretizado e objectivado, e o sujeito não é
um observador exterior, mas está já prefigurado na natureza, como vida e vivente. O
sujeito emerge a partir da vida, pela mediação da pertença do sujeito ao mundo vital e
comunitário. O sujeito integra, com um corpo, os seus processos e a sua comunidade, o
seu mundo vital. O sujeito, na natureza, é subjectividade que apreende, na sua
singularidade, a universalidade: apreende, primeiro, por reconhecimento, o universal
como espécie concreta; depois, através de um processo de idealização, – que não
poderemos abordar aqui mais longamente, mas que parte sem dúvida dos processos de
assimilação sensorial e de reprodução que ocorrem nos organismos vivos, – torna-se no
sujeito propriamente dito, i.e., o universal e o conceito em geral como consciente de si.
Aqui, segundo Hegel, se poderão encontrar bases conceptuais para a definição do
espírito e do eu como um domínio de determinação que tanto pressupõe a natureza
quanto dela se autonomiza.
A ideia da vida é, por conseguinte, adequada para a caracterização das relações
mais gerais dos diferentes domínios categoriais no sistema de Hegel. A vida é
apresentada na Lógica como a “ideia imediata”.16 Ela permite, em consequência, expor
a relação entre ideal e real de modo generalizado, e do modo o mais geral possível. O
sistema é um todo que se pode denominar de vivo porquanto no sistema, como
totalidade, ideal e real estão em tão estreita correlação quanto na espécie viva. Assim
15
A espécie biológica, na sua ‘objectividade’ distingue-se de “definições morfológicas da espécie”, i.e.,
definições fundadas em formas ou essências, porquanto “so-called morphological species definitions are
nothing but man-made operational instructions for the demarcation of species taxa” (Mayr, 2004, 177).
16
1816, 212; 1830, § 216.
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40
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
como na espécie viva, o universal é produto do comportamento objectivo do vivente
que produz a sua classificação e o torna integrável num sistema, também no sistema em
geral passa-se algo de similar: é o modo de ser objectivo de cada momento considerado
que o faz integrar o sistema. Este não é, por conseguinte, jamais um produto de uma
reflexão exterior, de um sujeito cognoscitivo que determinasse, a partir de fora classes,
leis, experiências, conceitos ou princípios explicativos. Todo o procedimento científico
segundo Hegel se tem de basear nesse mesmo “auto-movimento” objectivo dos
conceitos. Estas classes, leis ou conceitos explicativos são, antes, o próprio movimento
intrínseco e real dos momentos de cada vez considerados. O sistema, como universal
mais geral é, por conseguinte, um todo vivo simultaneamente ideal e real, em que o
ideal é determinado pelo próprio comportamento e relacionamento objectivo de cada
momento real, do mesmo modo como cada momento real recebe um momento próprio
dentro do sistema a partir do universal. Por isso, segundo Hegel, “uma divisão filosófica
não é em geral uma classificação exterior de uma matéria disponível, feita segundo um
qualquer ou diversos fundamentos de divisão, mas o diferenciar imanente do próprio
conceito.”17
Mas esta observação acerca do significado da vida como exemplificativa do
funcionamento da totalidade do sistema faz levantar a questão sobre o seu carácter
metafórico. Ou seja, em que medida estamos a lidar com a vida como simples metáfora
do sistema, ou com as espécies vivas como mera metáfora das categorias lógicas ou do
“universal” em geral? Não seria aqui possível investigar mais a fundo a teoria hegeliana
da metáfora, ou seja, definir os meios conceptuais pelos quais uma caracterização pode
ser entendida como literal e científica em sentido pleno, ou somente metafórica e
imagética. O sistema é um todo, dividido em três grandes círculos ou disciplinas
principais, a lógica, a filosofia da natureza e a filosofia do espírito. Estes três momentos
repetem-se e, por assim dizer, reflectem-se especulativamente entre si. Assim, cada
categoria lógica recebe o seu significado com base em duas ordens de razões. Por um
lado, tem um lugar dentro do sistema lógico de determinação, ou seja, existe uma
categoria que a ela conduz e uma outra que resulta dela, e o seu lugar no seu sistema
classificativo define-se por essa posição de resultado de uma anterior e de pressuposto
17
“Eine philosophische Einteilung ist überhaupt nicht eine äußerliche, nach irgendeinem oder meheren
aufgenommenen Einteilungsgründen gemachte äußere Klassifizierung eines vorhandenen Stoffes,
sondern das immanente Unterscheiden des Begriffes selbst” (1995, §33A,).
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
41
Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
para uma posterior. Mas, além disso, a categoria lógica está também inserida no sistema
como um todo, isto é, que compreende a Lógica (ou antes, nos termos de Hegel, “o
Lógico”), a Natureza e o Espírito. Por isso, a categoria lógica só recebe o seu sentido
pleno na medida em que serve para categorizar adequadamente – dir-se-ia literal e não
metaforicamente – uma dada secção do real. A vida como categoria lógica reflecte, por
conseguinte, a vida como categoria natural e espiritual e permite conceber as relações
vitais existentes na natureza e no espírito. Ela não é uma metáfora mas exposição
conceptual adequada dos fenómenos e das relações referidas entre indivíduo singular e
espécie universal e caracteriza por isso, de modo literal, a relação entre o existente
singular e o universal, como espécie ideal em que de algum modo se subsume.
4. A ideia da vida e a lógica do sistema.
Mas a questão vai um pouco mais longe. Questionei em que medida as relações vitais e
a categorização especificamente vital podem ser legitimamente utilizadas para
compreender as relações dialécticas mais gerais entre universal e singular, ou entre real
e ideal, entre universalidade lógica e concretude real. A questão só poderá ser
respondida no âmbito de uma consideração do estatuto e significado das categorias de
tipo lógico, como a ideia de vida, dentro do todo do sistema.
Julgo que a Ciência da Lógica deve ser entendida como um domínio autónomo
do puro pensamento, ou seja, de significações. Nos termos de Hegel, “a propósito do
pensamento não se pode propriamente perguntar pelo significado: o próprio pensamento
é o significado.”18 Ou seja, as categorias lógicas explicam-se a si mesmas dentro do seu
próprio sistema. Por isso o sistema lógico é dito auto-constituído: cada categoria confere
significado às outras e o seu sistema, como um todo, funda-se e esclarece-se a si
mesmo. Mas a este sistema auto-constituído e aparentemente auto-suficiente acrescem
uma filosofia da natureza e uma filosofia do espírito, ou seja, uma realidade, isto é, um
domínio não-lógico de determinação. A vexata quaestio de como definir a relação entre
a Ciência da Lógica e a denominada Filosofia real, ou seja, Filosofia da Natureza e do
Espírito só pode ser respondida, em meu entender, a partir dos recursos postos à
disposição do sistema pela própria lógica. Ela pretende ser um catálogo das puras
18
“Beim Gedanken kann eigentlich nicht nach der Bedeutung gefragt werden: der Gedanke ist selbst die
Bedeutung” (1993, 222).
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Diogo Ferrer
Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
significações e o sistema das determinações puras do pensar, cujo ser é a própria
significação. Assim como o sentido pleno da lógica só se encontra na sua relação
especulativa com o real, o sentido pleno de cada categoria19 só se pode compreender
como um momento co-determinante da relação entre a lógica e a realidade. Assim, não
será incorrecto dizer-se que a relação entre a lógica e a realidade só parece misteriosa ou
objecto de especial dificuldade de interpretação porque não se recorre àquilo que está
mais à mão e que está à mão a cada passo da leitura da Ciência da Lógica, a saber: toda
e cada uma das categorias nela tematizadas. As categorias lógicas são não só adequadas
para pensar a relação entre a própria lógica como um todo e a realidade, mas também, o
seu significado mais pleno consiste justamente em pensar uma tal relação. A lógica,
como um todo, é também e simultaneamente aquilo que se tem denominado a “lógica
do sistema” e serve para pensar as relações mais gerais do sistema. Nesta linha de
pensamento, tomando como exemplo algumas “determinações do pensar” retiradas da
lógica, e dito o mais sumariamente possível: a lógica pode ser entendida como a
essência do real; ou poderá dizer-se que a lógica é um universal que se particulariza no
real; ou que cada parte do sistema é um ser-em-si que se torna ser-para-outro. Tomamos
assim como exemplos da relação entre Lógica e realidade três categorias tipicamente
lógicas: a essência (Wesen); o universal e o particular (Allgemeines, Besonderes); o serem-si e ser-para-outro (In-sich-sein, Sein-für-anderes) Diversos outros modos de pensar
a relação entre lógica e realidade seriam possíveis com base nesta concepção.
A vida, ou o denominado processo do género, em particular, não é pois uma
metáfora ilustrativa, mas um modelo lógico legítimo para a concepção das relações
entre universal e singular no seu significado mais vasto em Hegel. A espécie viva é
similar ao “universal verdadeiro, infinito, que é em si imediatamente, do mesmo modo,
particularidade como singularidade.”20 Este é um modelo privilegiado para
compreender o modo como o indivíduo singular, dotado da sua particularidade, produz
o universal, ou seja, produz a sua espécie, do mesmo modo como a espécie produz o
indivíduo singular. A vida é a forma imediata da ideia porque esta é “a unidade do
conceito e da realidade”,21 o que só é realizável como a relação concreta entre a espécie
19
A expressão é de Puntel (1973, 88).
“[…] wahrhafte, unendliche Allgemeine, welches unmittelbar ebensosehr Besonderheit als Einzelheit in
sich ist” (1816, 37).
21
“Die Einheit von Begriff und Realität” (1816, 208).
20
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43
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
e o indivíduo. A pertença e a relação entre as espécies não é, como se viu, função do
observador ou da reflexão exterior, mas do comportamento mútuo dos viventes. A
pertença à espécie deriva do reconhecimento, da reprodução sexuada e da “reprodução
dos géneros vivos”.22 O universal é reconhecimento, e o comportamento específico do
reconhecimento é o que se pode encontrar na natureza como o comportamento
reprodutivo, que opera normalmente no sentido de garantir o que hoje chamaríamos de
‘integridade do genoma’,23 que permite a coerência e a funcionalidade orgânica do ser
vivo.
Ao vivente, existente no seio da espécie, define-se, assim, para além da relação
negativa de agressão e de defesa perante o meio, pela reprodução sexuada. Neste ponto,
poderá observar-se que ontologia e filosofia da natureza hegelianas têm um parentesco
conceptual com o conceito biológico da espécie e no “pensamento populacional” de
Mayr. O problema mais geral da classificação levantado por Mayr deriva de que “de
longe a mais séria deficiência na abordagem da maior parte dos filósofos foi a assunção
de que a classificação dos animais e das plantas [...] é essencialmente semelhante em
princípio à classificação dos objectos inanimados [...]. É impossível chegar a
classificações com significado, de itens que são produto de uma história de um
desenvolvimento, a menos que sejam devidamente tomados em consideração os
processos históricos responsáveis pela sua origem.”24 Todo o pensamento hegeliano,
tanto ao nível da lógica, da filosofia da natureza ou do espírito, funda-se nesta ideia de
uma classificação a partir do desenvolvimento, e de considerar cada momento do
sistema como produto da história de um desenvolvimento, ao passo que o nervo da
dificuldade dos sistemas de classificação estava, segundo Mayr, em não se entender a
biologia como uma ciência histórica, e procurar proceder à classificação zoológica ou
botânica com base na noção lógica de classe e de semelhanças. Não dispondo de uma
teoria da evolução válida, Hegel não compreendeu que a historicidade caracteriza
também a natureza empírica. No que se refere à classificação em concreto, Hegel
considera, conforme já citado acima, que “para a determinação específica [da espécie],
um instinto correcto levou a tomar as determinações de diferenciação dos dentes, das
garras e similares – das armas, porque estas são aquilo por que o próprio animal se põe
22
23
“Fortpflanzung der lebenden Geschlechter” (1816, 227).
Cf. M. Claridge, 2010, 98-99; Mayr 2004, 178-179.
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
e conserva, i.e., de diferencia perante os outros.”25 Assim, o mesmo princípio da
negatividade que comanda o desenvolvimento lógico-conceptual deve também ser
utilizado como princípio classificativo, o que não significa, naturalmente, que Hegel
chegasse a compreender que a competição e luta real pela sobrevivência, a par da
variabilidade, fossem os princípios determinantes para a evolução das espécies.
5. A essência e a crítica ao essencialismo.
Uma vez recusado um sistema “artificial” de classificação pelo observador
exterior, e a classificação entendida, a todos os níveis do real e do pensar, como assunto
objectivo, Hegel procura justamente aquilo que Mayr refere como uma alternativa quer
ao essencialismo de tipo platónico, quer ao nominalismo. A espécie é sem dúvida uma
realidade objectiva,26 com características de realidade espácio-temporalmente
determinada que a fazem assemelhar-se a um indivíduo, embora com outro tipo de
coesão.
O essencialismo, que atribui à espécie uma realidade não espácio-temporal e a
entende como um princípio de semelhança entre os seus membros, é totalmente
inadequado tanto para o pensamento dialéctico quanto para a biologia evolucionista. A
noção platónica de essência permite elaborar classes segundo um “conceito tipológico”
ou “morfológico” de espécie, segundo o qual “não há relação especial entre os membros
de uma espécie além da sua semelhança. A espécie era apenas uma classe de nível
inferior ao género.”27 O problema da essência, entendida como o eidos platónico, é que
“visto que a essência é constante e nitidamente delimitada perante as outras essências,
ela não pode, absolutamente, evoluir.”28 E este é um problema que se põe tanto para o
24
Mayr 1982, 238-239.
“Für die spezielle Bestimmung [der Art] ist ein richtiger Instinkt darauf gefallen, die
Unterscheidungsbestimmungen auch aus den Zähnen, Klauen und dergleichen, - aus den Waffen zu
nehmen, denn sie sind es, wodurch das Tier selbst sich gegen die anderen als ein Fürsichseinendes setzt
und erhält, d.i. sich selbst unterscheidet” (1830, § 368A).
26
“I have always thought that there is no more devastating refutation of the nominalistic claims than the
fact that primitive natives in New Guinea, with a Stone Age culture, recognize as species exactly the same
entities of nature as western taxonomists” (Mayr, 1988, 317; cf. tb. 315). De acordo com a sua realidade,
embora por razões diferentes estão também Claridge 2010 e Mishler 2010.
27
Mayr, 1988. 337. V. tb. 172, 186, 336. Sobre este tópico e os seguintes, retomo, com algumas
repetições, o meu estudo Ferrer 2009.
28
Mayr, 1988, 176.
25
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Diogo Ferrer
Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
pensamento evolucionista quanto para Hegel. Em termos hegelianos, a negatividade que
distingue as essências, cada uma delas vincadamente diferente de qualquer outra e
incapaz de alteração, constitui-se a partir da negação da alteridade. A essência é uma
identidade fixa, que recebe o seu sentido pela negação do outro, da alteridade e da
alteração. Mas é justamente esta definição da essência pela negatividade que provoca,
segundo Hegel, a necessidade de a criticar e superar por categorias mais concretas.
O conflito teórico entre essência e evolução, ou desenvolvimento corresponde à
relação, em Hegel, entre a Doutrina da Essência e a Doutrina do Conceito na Ciência da
Lógica. Embora não pudesse, em 1830, admitir a evolução das espécies naturais e a
historicidade da vida na natureza, Hegel defendeu não só que os universais estão
sujeitos a movimento e desenvolvimento, como considerou que o movimento é
condição da sua inteligibilidade. Assim, procurou definir a essência, na Ciência da
Lógica, de tal forma que pudesse ser criticada radicalmente e substituída pelo
“conceito”, dotado de uma estrutura universal concreta e de um movimento de
desenvolvimento. Não havendo razões para admitir a evolução das espécies naturais
como facto real, admitiu, como se disse, a evolução ou, mais exactamente, o
“desenvolvimento” como princípio de relação lógica entre as categorias – recusando,
também aqui, ao nível ontológico fundamental, qualquer forma de essencialismo. A
ideia da Lógica de Hegel integra num sistema dialéctico noções, na sua maior parte já
conhecidas da história da filosofia, como por exemplo a de essência, e concede-lhe o
seu lugar próprio. Uma essência, entendida como imóvel, eterna, separada do real
existente, asperamente diferente e incomunicável com outras, pode ser útil para
determinados fins categoriais. Não pode, porém, ser entendida como verdadeira em
qualquer sentido absoluto. Assim, Hegel integra na Lógica uma tal essência imóvel,
própria do essencialismo, mas define-a de tal modo que a imobilidade não é mais do
que um aspecto limitado da sua definição, embora legítimo dentro dos seus limites. A
essência aparece então definida como um modo de ser ideal, como plenamente idêntica
a si própria, eterna porque incapaz de alteração ou devir de qualquer tipo, para além de
manifestar-se no seu outro. Nesta definição encontramos facilmente as principais
propriedades do eidos em sentido platónico, a saber, imutabilidade, idealidade,
identidade e separação e capacidade de produzir aparência no mundo sensível. Alguns
aspectos centrais da inteligibilidade do real, como o princípio da identidade, da não-
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46
Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
contradição ou as leis da natureza em geral, entre outros, são por Hegel derivadas e
classificadas sob a sua definição de essência que prova assim a sua utilidade para certos
fins de inteligibilidade.
As espécies vivas que, salvas as devidas excepções, estão separadas estritamente
entre si por barreiras fenéticas, reprodutivas, comportamentais e outras, parecem
distinguir-se por ostentarem diferentes essências, não havendo por isso transição entre
elas. Nestas circunstâncias, levanta-se para qualquer pensamento evolucionista – e
também para Hegel – a dificuldade de encontrar uma terceira alternativa entre uma
recusa nominalista da realidade e objectividade da espécie, por um lado e, por outro, o
essencialismo, que admite a espécie como conjunto de seres que obedecem a uma
mesma essência ideal imóvel, e que ostentam por isso uma similaridade entre si. Como
solução para a dificuldade, o conceito de população, localizada espácio-temporalmente
e susceptível de alteração substitui hoje a essência, classicamente entendida como eidos
imóvel e fora do espaço e do tempo.29
Levanta-se então a questão a respeito do princípio de unidade da espécie, posto
que não mais se trata de uma unidade ideal que se manifesta em diferentes exemplos
singulares. Como unidade ideal, a espécie como essência não levantava o problema da
unidade, posto que era uma unidade ideal fora do espaço e do tempo, e por isso
insusceptível de perda da sua unidade pela disseminação. Ela limitava-se a mostrar-se
nos seus exemplos, e consequentemente neles somente aparecia. Daí a considerar os
exemplos como simples aparência sem realidade foi um passo. Ao deixar de tomar o
singular como aparência, a espécie como conceito biológico e populacional levanta a
questão da sua própria unidade, posto que é uma realidade física e empírica,
disseminada e dividida então pelos seus diferentes membros. Não se limita a aparecer
nestes, mas é de facto constituída por eles. Tendo a população existência objectiva e
exclusivamente física e real, a questão pelo estatuto de uma tal entidade se torna
urgente. Um princípio de resposta é já antigo: “em finais do século XVII, John Ray
propôs uma solução inteiramente nova. Independentemente dos graus de variação,
deveriam ser considerados da mesma espécie todas aquelas variantes que se tivessem
originado 'da semente de uma e da mesma planta' ou, para o caso dos animais, que
tivessem sido gerados pelos mesmos pais. A reprodução era aqui, pela primeira vez,
29
Cf. Mayr, 1988, 204, 351.
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
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introduzida na definição da espécie.”30 Em termos mais modernos, a espécie biológica –
embora não exclusiva e invariavelmente – é definida por uma comunidade reprodutiva.
Como vimos, a concepção hegeliana da espécie como universal que se produz como
singular e inversamente, apresenta um fundamento lógico-dialéctico para uma tal
concepção.
O elo de ligação da espécie deixa de ser uma propriedade inteligível de uma
essência intemporal idêntica, capaz de estar presente, sem interrupção, em muitos
tempos e espaços separados. Este elo de ligação reside então na própria capacidade de
reconhecimento, na pulsão auto-reprodutiva e na sexualidade. O conceito biológico da
espécie e o pensamento populacional a ele ligado permitem entender a classificação
como facto objectivo, histórico e comportamental, à maneira hegeliana. Por um lado, ao
nível das categorias mais elevadas, a classificação é feita, desde Darwin, a partir da
comunidade de ascendência, eliminando a necessidade de uma observação e pesagem
de caracteres que permitisse definir, de modo sempre mais ou menos arbitrário e
artificial, uma maior ou menor similaridade entre dois seres vivos. Por outro lado, se se
considerar o indivíduo, a classificação é feita objectivamente pelo comportamento
reprodutivo do próprio vivente, conforme se referiu. Conceptualmente, passa-se assim
de uma versão intelectualista da essência para uma versão intersubjectiva, com base no
reconhecimento.
O conceito biológico da espécie como ascendência comum e comunidade
reprodutiva traz a reprodução sexuada para o centro da questão biológica e filosófica,
do reconhecimento, subjectivo e objectivo, da espécie. E esta admissão da sexualidade
tem como consequência a alteração do estatuto não só da espécie, que se torna um
processo objectivo, e do indivíduo, porquanto “organismos que pertencem a uma
espécie são partes da espécie, não membros.”31 Ou seja, o indivíduo não é subsumido a
um conceito abstracto, como exemplar, mas participante concreto numa comunidade
reprodutiva real. O universal é, por isso, concreto.
Na medida em que a reprodução sexuada só tem sentido dada a unicidade
singular de cada indivíduo,32 a biologia vem ajudar a esclarecer a singularidade como
categoria filosófica inseparável da espécie universal. O universal concreto verifica-se
30
31
Ib. 340. Sobre Darwin, v. ib. 318. V. tb. Mayr 2004, 177ss.
Mayr, 1988, 344.
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
precisamente como espécie biológica, em que o universal não é nem uma essência ideal
abstracta, nem uma mera classe produzida por um nome, nem uma categoria
classificativa pertencente ao classificador, mas um comportamento concreto de
reconhecimento e pertença, o que se manifesta, e.g., no comportamento matrimonial de
muitas espécies animais. Algumas expressões hegelianas, sobre a transição e produção
mútua entre singular e universal podem receber sentido mais claro justamente por meio
desta consideração de conceitos só muito posteriormente elaborados pela biologia.
Exemplo disto, como se disse, é a noção de que singular e universal como que transitam
entre si, um remetendo ao outro: “o progredir consiste antes em que o universal se
determina e é para si o universal, i.e., do mesmo modo singular e sujeito.”33 O modelo
biológico do conceito torna certamente mais compreensível a referência de Hegel, a
propósito do conceito, ao amor e ao reconhecimento: “o universal poderia ser também
chamado o livre amor e bem-aventurança sem limites, posto que é um relacionar-se
com o diferente somente como consigo mesmo; nesse, ele retornou a si mesmo.”34 O
como um modo de continuação do indivíduo singular no seu outro, como pulsão viva e
espécie real.
Hegel submete a uma crítica radical a concepção essencialista da essência –
passe a expressão, – mostrando que a essência pressupõe a caconceito hegeliano não é
um universal abstracto, mas poderá compreender-se tegoria do “conceito” e deve ser
substituída por esta categoria. O conceito é mais “verdadeiro”, mais concreto, mais
inteligível e capaz de apreender realidades mais complexas do que a essência. As
principais características do “conceito” – que é a categoria que sucede à essência na
ordem lógica – são a capacidade de se desenvolver e de constituir uma relação
organizativa e sistémica entre singulares e particulares diversos. Enquanto a essência se
exprime como necessidade, o conceito exprime-se como liberdade, no sentido de pleno
reconhecimento do indivíduo num todo, a par do desenvolvimento autónomo do
singular. É o conceito hegeliano em sentido pleno, onde o singular se reconhece e
desenvolve no universal, e não a essência, como identidade necessária do fenómeno,
32
Mayr, 2004, 76.
“[D]as Fortgehen besteht vielmehr darin, daß das Allgemeine sich selbst bestimmt und für sich das
Allgemeine, d.i. ebensosehr Einzelnes und Subjekt ist” (1816, 290).
34
Das Allgemeine [...] könnte [...] auch die freie Liebe und schrankenlose Seligkeit gennannt werden,
denn es ist ein Verhalten seiner zu dem Unterscheidenen nur als zu sich selbst; in demselben ist es zu sich
33
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
que permite acomodar os aspectos referidos do pensamento biológico.
Na lógica hegeliana, a essência e o conceito, no significado técnico dos termos
em Hegel, repartem entre si as funções tradicionalmente atribuídas ao universal. Uma
das inovações conceptuais mais surpreendentes e originais do pensamento de Hegel
resulta da compreensão de que o universal não é a essência mas o conceito, dotado de
desenvolvimento. O ser em geral, uma vez compreendido como implicando também a
sua negação, é entendido como submetido a um devir ou alteração sem reflexão ou
retorno. A essência, por sua vez, distingue-se do ser ao receber as características
seguintes: é pura identidade e reflexão em si mesma; e é negação do outro, ou posição
do outro como nulo, i.e., degrada-o a simples aparência. O essencialismo corresponde,
nestes termos, à recusa do devir e à degradação do singular real a simples aparência,
entregue à total contingência. O seu significado próprio está no universal ideal, fora dele
mesmo. O conceito, por fim, distingue-se da essência porque reúne a imutabilidade
desta com o simples devir do ser num “movimento do pensar” cuja designação técnica é
“desenvolvimento” (“Entwicklung”). No desenvolvimento, a alteração é limitada pela
reflexão, e a reflexão não se limita a reconduzir o outro a si. A identidade não se perde
então na simples alteração. O conceito, como esta simultânea posição do outro e da
própria reflexão serve, assim, tanto para pensar fenómenos de tipo histórico, em que um
mesmo sujeito recebe formas diferentes, quanto organizações e organismos complexos,
onde cada parte se reencontra reflectida nas outras, participando todas de uma mesma
totalidade.
6. Os princípios evolucionistas e o pensamento de Hegel.
Em qualquer caso, Hegel não aceita a ideia de um desenvolvimento gradual de
umas espécies naturais nas outras, embora aceite a noção de um desenvolvimento, que
não é gradual ou quantitativo, mas que envolve verdadeira diferença, entre conceitos ou
determinações do pensar ao nível do pensamento filosófico. Este desenvolvimento
abrange tanto os conceitos lógicos quanto o desenvolvimento histórico. Admite, além
disso, o desenvolvimento ao nível do espírito. A natureza não expõe correctamente o
conceito, mas desempenha antes o papel de limite do conceito e, por isso, é também a
selbst zurückgekehrt” (1816, 36).
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50
Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
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ideia exposta sob uma forma não-conceptual, ou seja, intuível. Contudo, a própria
natureza, embora seja pura diferença em relação ao conceito, o “ser-outro” do espírito
em sentido absoluto, é marcada pela inteligibilidade que só o conceito lhe pode conferir.
Ela exibe os traços do conceito, desde o seu primeiro momento, onde é a mais pura aconceptualidade, i.e., a pura intuição. Mesmo a pura exterioridade do espaço, grau zero
do conceito, e relação puramente não conceptual, é já uma forma análoga ao conceito. O
espaço é, a saber, aquilo que é capaz de abraçar uma multiplicidade, composta de vários
pontos ou lugares numa unidade totalmente exterior e não-refectida. Trata-se de uma
diferença totalmente indeterminada, mas análoga à relação de subsunção conceptual.
Porque mesmo quando o nega, nunca abandona inteiramente o conceito, a natureza vai
exibir ou antes, reconstituir, as formas do conceito na exterioridade espacial. E, na
medida em que alcança o nível do organismo vivo, a natureza é capaz de expor a ideia,
ou seja, o conceito em união com realidade.
Em face dos dados conceptuais estudados, não há, aparentemente, nenhum
argumento decisivo contra a aceitação do desenvolvimento conceptual ao nível da
orgânica. E tão-pouco, por conseguinte, contra a integração da evolução das espécies na
filosofia da natureza hegeliana. Na verdade, os principais componentes teóricos mais
gerais da teoria da evolução não entram em conflito com as concepções hegelianas.
Em primeiro lugar, Hegel dispõe da noção fundamental de que a vida é um
processo essencialmente reprodutivo. Ou, melhor ainda, o vivente é ontologicamente
determinado pela reprodução. Segundo Hegel, “só como reproducente, e não como
ente, é que o vivente é e se mantém.”35 “O organismo animal é reprodutivo; é-o
essencialmente, esta é a sua efectividade.”36
Em segundo lugar, reconhece que cada indivíduo é único, no sentido de singular
e irrepetível. A espécie, conforme procurei mostrar, não é uma essência, mas um
universal real e concreto, que não pode ser pensado fazendo abstracção do singular, que
se reflecte do seu outros nas suas particularidades. Verificámos por isso uma
aproximação possível entre o pensamento populacional e o universal hegeliano. A
singularidade é admitida por Hegel, que não retira, no entanto, as conclusões que dela
35
“[N]ur als dieses sich Reproduzierende, nicht als Seiendes, ist und erhält sich das Lebendige” (1830, §
352).
36
“Der animalische Organismus ist reproduktiv; dies ist er wesentlich, oder dies ist seine Wirklichkeit”
(1830, § 353Z).
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51
Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
parecem decorrer, ou seja, tanto a importância fulcral da variabilidade quanto a
historicidade da natureza, conforme requeridas pela evolução.
Em terceiro lugar, Hegel conhece que é ontologicamente determinante para o
vivente a sua relação com o seu outro e com o seu meio. Na verdade, a figura do
vivente, segundo Hegel, não é senão uma forma intuível da relação consigo próprio do
organismo e com o seu meio. Aquilo que materialmente se intui na figura do vivente é a
pura relação a si e ao seu meio, na verdade, um conceito relacional. Esta relação
determina-se como assimilação teorética e prática, passiva e activa, mas é também
relação de competição. A relação do vivente com o meio parte da carência essencial ao
vivente. “Só um vivente sente carência.”37 O vivente não é pensável sem a relação ao
meio, orgânico e inorgânico, para onde se dirige e de onde se separa para constituir a
sua própria auto-reflexão com sujeito.
Em quarto lugar, concebe a relação com o meio como sujeita ao acaso e à
negação. “O ambiente da contingência exterior só contém quase o estranho; ele exerce
uma permanente violência e ameaça de perigos […].”38 A relação com o meio e os
competidores é de breve satisfação, carência e morte, embora evidentemente Hegel
jamais se tenha aproximado do mecanismo mais importante da evolução e da descoberta
maior de Darwin, a selecção natural. No entanto, o acaso, necessário à variabilidade e à
abertura de novas possibilidades evolutivas, não é de todo estranho ao pensamento
hegeliano. “As formas da natureza não se deixam inserir num sistema absoluto e as
espécies dos animais estão, assim, expostas à contingência.”39 Ou seja, Hegel está muito
longe de qualquer concepção das espécies vivas como formas necessárias criadas por
desígnio, mas entende-as como entregues à contingência. Não há nenhum sistema
coerente pré-determinado em que se enquadrem as espécies vivas, mas o seu sistema é,
por assim dizer, um sistema negativo, um equilíbrio produzido pela pura contingência.
Isto acontece também na medida em que o acaso é uma categoria da maior importância
na Ciência da Lógica, e deve por isso determinar a priori largos domínios do real. O
acaso intervém na natureza viva de modo essencial, tal como requerido pela evolução
darwiniana.
37
“Nur ein Lebendiges fühlt Mangel” (1830, § 359).
“Die Umgebung der äußerlichen Zufälligkeit enthält fast nur Fremdartiges; sie übt eine fortdauernde
Gewaltsamkeit und Drohung von Gefahren […]” (1830, § 368).
39
“Die Formen der Natur sind also nicht in ein absolutes System zu bringen und die Arten der Tiere
38
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
Em quinto lugar, não admite a presença na natureza de nenhuma força vital
específica dos viventes, nenhuma vis formativa que conduzisse os seres vivos em
qualquer sentido finalístico, ou que pudesse orientar alguma evolução. Hegel entende o
procedimento científico, em todos os domínios, como imanente. Nada intervém, por
assim dizer, de fora. O desenvolvimento é, a todos os níveis, seja na lógica ou na
natureza, um desenvolvimento puramente imanente. Isto torna o procedimento
dialéctico compatível com qualquer explicação da vida que apenas conte com a
química, ou da evolução da vida e das espécies que conte com a reprodução, a
variabilidade, a morte, o acaso e pouco mais. Não há nenhum interveniente estranho aos
meros mecanismos, que se podem dizer cegos, da natureza. Deverá observar-se que o
modo como o conceito lógico intervém na natureza e aparentemente condu-la em
direcção à complexificação – ou, na terminologia do autor, o modo como a ideia retorna
a si mesma, – é sempre um auto-movimento das próprias formas naturais, que se
constituem como formas exclusivamente a partir da natureza.40 Aliás, esta imanência da
explicação natural é parte integrante daquilo que é demonstrado pela Filosofia da
Natureza de Hegel.
Isto bastará para indicar que, embora não tenha de modo nenhum antecipado
Darwin, o pensamento hegeliano não só não se opõe ao pensamento evolucionista,
como fornece algumas das bases ontológicas para a sua compreensão, nomeadamente,
nas suas concepções de desenvolvimento, de universal concreto e da vida natural. E, por
outro lado, que a sua noção de movimento do conceito é uma recusa fundamental do
esssencialismo.
7. Conclusão. Sobre a recusa da evolução por Hegel.
Como conclusão, gostaria de retomar a conhecida rejeição explícita por Hegel de
qualquer transformação das espécies: “tais representações nebulosas, – que no fundo
são representações sensíveis, tal como é uma representação nebulosa, e no fundo
sensível, o chamado emergir, por exemplo, das plantas e animais a partir da água e,
damit der Zufälligkeit ausgesetzt” (1830, § 368 Z).
40
Isto é, naturalmente, ponto assente em qualquer concepção científica actual da vida, independentemente
de se subscrever um programa de tipo reducionista ou não. Cf. E. F. Keler, “It Is Possible to Reduce
Biological Explanations to Explanatyions in Chemistry and/or Physics” in Ayala & Arp (eds), op.cit., 19-
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Diogo Ferrer
Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
então, o emergir das organizações animais mais desenvolvidas a partir das inferiores, e
etc., – tais representações nebulosas têm de ser recusadas pela consideração pensante.”41
Esta rejeição significa principalmente duas coisas: por um lado, a rejeição de uma
concepção metafísica; por outro, a recusa de qualque concepção gradualista e somente
quantitativa do desenvolvimento, que entende como reducionista.
Quanto ao primeiro ponto, Hegel considera a evolução como semelhante à
emanação, ou seja, modos metafísicos de esbater o significado do processo evolutivo
em si mesmo. Tanto o reducionismo gradualista quanto a metafísica espiritualista de
tipo emanatista, reconduzem o processo ora ao seu terminus a quo ora ao ad quem,
impedindo a compreensão da realidade efectiva do processo, que é o que sobretudo
interessa a Hegel. O processo seria, na verdade, inútil e insignificante, se fosse dado um
fundamento positivo, como o seu sentido último, no seu começo ou no seu termo.
Quanto ao gradualismo, ou seja, conceber a evolução como gradualmente,
“paulatinamente evoluindo no tempo”,42 seria, julga Hegel, no máximo um problema
empírico sem interesse filosófico. Hegel subestima sem dúvida o interesse filosófico da
teoria da evolução pouco a pouco das espécies ao longo do tempo, sobretudo pelo que a
sua realidade e os seus resultados têm de surpreendente. No entanto, a sua preocupação
em evitar um gradualismo corresponde à necessidade de conceber o processo como
produtor de real novidade. Hegel recusa o gradualismo porque está interessado no
estatuto ontológico, nas propriedades estruturais e na realidade a atribuir às formas
complexas que emergem onde antes não estavam. O gradualismo faz esquecer o facto
de que as formas complexas possuem e ganham, por direito próprio, uma realidade
irredutível a qualquer explicação que as entenda como “nada mais que” uma
determinada disposição física ou química de compostos mais elementares.43 Como
vimos, Hegel somente considera inteligível o próprio processo, e não essências imóveis
– sejam estas dadas como começo ou como telos do processo. A descrição empírica do
processo de evolução das espécies como um acontecimento gradual – obviamente
indisponível em 1830 – permite compreender como se formam as realidades mais
31 e J. Dupré, 2010, esp. 33. V. Mayr, 2004, 22-23.
41
“Solcher nebuloser, im Grunde sinnlicher Vorstellungen, wie insbesondere das sogenannte
Hervorgehen z.B. der Pflanzen und Tieren aus dem Wasser und dann das Hervorgehen der
entwickelteren Tierorganosationen aus den niedrigeren usw. ist, muß sich die denkenden Betrachtung
entschlagen” (1830, § 249).
42
“[…] nach und nach in der Zeit evolvierend” (1830, § 249Z).
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Espécies, Classificação e Evolução em Hegel
Diogo Ferrer
complexas a partir das mais simples. Deixa na sombra, no entanto, o facto de que a
realidade das mais complexas não é idêntica à realidade das mais simples, embora,
estranhamente, nada mais contenha de real do que estas. O seu estatuto facilmente se
torna então duvidoso e leva a uma dualidade entre reducionismo e emergentismo. Por
isso, segundo Hegel, é importante compreender que a causa da realidade não é a matéria
de que toda a realidade é de facto, em última análise constituída, mas aquilo que
denomina o conceito.44
O conceito é o que confere inteligibilidade. A subjectividade própria ao
conceito, por sua vez, quando não é entendida explicitamente, à maneira de Hegel,
como função organísmica presente na natureza viva ou inteligente, costuma permanecer
somente implícita nas teorias.45 Hegel pretende naturalizá-la, e realizá-la. Mas no que se
refere ao conceito e às suas condições de sentido, o conhecimento empírico não pode
fornecer mais do que as bases de trabalho.
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Physics”, in Ayala & Arp (eds.), op cit., 32-47 [= 2010]
CUMMINGS & ROTH, “Traits Have Not Evolved to Function the Way they Do
Because of a Past Advantage”, in Ayala & Arp (eds.), op. cit., 72-85 [= 2010]
43
Cf. J. Dupré, 2010, 34.
Também segundo Mayr, uma especificidade da biologia é que “most theories in biology are based not
on laws, but on concepts” (Mayr, 2004, 28, 30). Entende o conceito que, no seu entender, evolui, como a
palavra correcta para designar o chamado “meme” (ib.153-154).
45
Conforme pretendem Cummings & Roth (2010) uma vez que “it is dangerous to start thinking that
natural objects, processes, structures or traits are for something […because] it inevitably suggests
intelligent design” (81). Para evitar tal perigo de recurso a instâncias de tipo sobrenatural e não-científico,
como a teleologia, negam a existência objectiva de funções na natureza. Assim, chegam à posição muito
improvável, de que o coração, por exemplo, embora bombeie o sangue, entre outras coisas que também
faz, não existe para bombear o sangue (75) ou que os olhos, embora possam ver, não são para ver (81).
As funções, como relações organísmicas “para” alguma coisa não são objectivas, mas dependem das
finalidades teóricas arbitrariamente adoptadas pelo observador (82-83). Esta é, segundo Hegel, a posição
típica da denominada “reflexão exterior”. O sujeito, humano ou animal, como conjunto de funções
centralizadas pela meta-função do “eu” está então ausente da natureza objectiva. Mas, não podendo o
sujeito, como condição básica de sentido para qualquer empreendimento cognoscitivo, simplesmente
desaparecer, tem a sua função entregue exclusivamente ao observador exterior. Para Hegel, pelo
contrário, o sujeito é real e está presente já desde a natureza viva.
44
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55
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Artigo recebido em maio de 2010
Artigo aceito para publicação em julho de 2010
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Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 57-73
Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch*
____________________________________________________________________
Resumo: O presente trabalho visa entender a concepção hegeliana do tempo e do
espaço como realização de um desiderato que a estética transcendental de Kant deixa
em aberto. Argumenta-se que a teoria kantiana do tempo e do espaço exige uma
modificação conservadora para evitar uma contradição que, de contrário, surgiria na
distinção entre a idealidade transcendental e a relidade empírica do espaço e do
tempo. No entanto, mesmo na sua forma revisada a concepção kantiana não explica a
mediação do tempo e do espaço com o nosso pensamento discursivo. Defende-se que
a dedução hegeliana do tempo e do espaço busca conciliar o tempo e o espaço
discursivamente e, com isso, empenha-se em dissolver este enigma.
Palavras-chave: Tempo, Espaço, Idealismo Transcendental, Kant, Hegel
Abstract: The present paper aims to understand the hegelian conception of space and
time as realizing a desideratum which remained unfulfilled in Kant’s transcendental
esthetics. It is argued that a conservative modification of the kantian theory of space
and time is required to avoid a contradiction which otherwise would arise within the
distinction between transcendental ideality and empirical reality of space and time.
However, even in the revised version the kantian conception does not explain the
mediation of space and time with our discursive thinking. As will be argued, the
hegelian deduction of space and time aims to reconcile space and time in a discursive
way, thus trying to dissolve this enigma.
Keywords: Time, Space, Transcendental Idealism, Kant, Hegel
____________________________________________________________________
No que se segue será primeiramente traçado o conceito de espaço em Hegel (1).
Daí a análise se voltará para Kant e, na verdade, primeiramente para o seu conceito de
fenômeno (2) e, em seguida, tanto para a diferença entre o transcendental e o empírico,
quanto para uma contradição que se dá em conexão com a idealidade transcendental e a
realidade empírica do espaço e do tempo (3). O passo seguinte consistirá em propor
uma modificação conservadora da estética transcendental a fim de superar esta
contradição, modificação que, além disto, compatibiliza-se com a teoria da relatividade
geral (4) e, então, indicar um desiderato que a doutrina kantiana, apesar desta
*
Doutor em Filosofia pela Universidade de Heidelberg; professor do Departamento de Filosofia da
mesma universidade. E-mail: [email protected]. Tradução: Kleber Carneiro Amora (UFC).
REH – Revista Eletrônica
Estudos Hegelianos
Jul./Dez. de 2009
N. 11, v.01
pp.57-73
Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
modificação, ainda deixa em aberto, a saber, o da mediação da natureza do espaço e do
tempo com a natureza de nosso pensar discursivo (5). Por fim, será discutida a forma
como Hegel pensa realizar este desiderato e em que medida ele se sai bem em tal
empreitada.
1. O conceito de espaço em Hegel
Hegel trata do espaço e do tempo muito concisamente em três parágrafos no
início do texto principal da Filosofia da Natureza, na Enciclopédia de 1830. Antes, na
Introdução, ele afirma, de modo breve, sobre o conceito de natureza:
“A natureza mostrou-se como a idéia na forma do ser-outro.
Visto que a idéia é assim como o negativo dela mesma ou
exterior a si, assim a natureza não é exterior apenas relativamente
ante esta idéia (e ante a existência subjetiva da mesma, o espírito),
mas a exterioridade constitui a determinação, na qual ela está
como natureza.” (Hegel, 1997, p. 26 (§ 247))
O fundamento elementar das relações da natureza consigo mesma e com a Ideia
são as relações logicamente existentes do outro de si consigo e com algo idêntico a si
mesmo. O outro de si é, por um lado, o seu outro, porém, exatamente aí idêntico a si;
assim, ele se funde consigo mesmo em seu outro e é algo idêntico a si. A alteridade
permanece, por outro lado, em sua auto-relação o que ela é: alteridade, ou seja,
negatividade logicamente existente e não livre, um constante sair-de-si em ou ao lado de
algo idêntico a si. Na Lógica, este sair-de-si é suprassumido na transição do algo finito
para o infinito e, ulteriormente, para o ser-para-si. Na natureza, ainda que não lógico,
ele é temporal, se põe de modo duradouro e não é apenas um sair-de-si inquieto, mas
também um sair-de-si sereno e impassível. Neste ponto, Hegel inicia o primeiro
parágrafo relativo ao espaço (Enz. § 254):
“A determinação primeira ou imediata da natureza é a abstrata
universalidade de seu ser-fora-de-si, a equivalência dele sem
mediação, o espaço. Ele é totalmente ideal ao lado-um-do-outro,
porque é o ser-fora-de-si e simplesmente contínuo, porque este
fora-um-do-outro ainda é totalmente abstrato e não tem em si
nenhuma diferença determinada.” (Hegel 1997, p. 47 (§ 245))
No ser-fora-de-si da natureza em sua “universalidade abstrata”, aprendemos
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
agora, não há nenhuma diferença concreta. Em seu “caráter indiferente e destituído de
mediação” há algo de diverso, cujos elementos, sem exceção, estão constituídos e não
detém ainda nenhuma relação qualitativa ou essencial. Isto seria caracterizado por Kant
como um múltiplo puro ou como um múltiplo da intuição sensível. Certamente, desta
forma, na condição de um diverso indiferente (ou puro) destituído de mediação e, ao
mesmo tempo, universal e abstrato, a natureza não se revela e não pode efetivamente se
revelar. O que nela corresponde a esta descrição é justamente o puro espaço, mas o
espaço enquanto algo abstrato, sem aquilo que o preenche como algo ideal, ou seja,
como algo que existe apenas como suprassumido, não ainda também como algo
independente, por exemplo (como veremos mais detalhadamente com Kant), apenas
como um conteúdo da representação, não ainda, da mesma forma, como um objeto
externo à representação. Em seu caráter abstrato, ele é, além disto, um continuum,
porque ele “não tem” ainda “nenhuma diferença em si” que pudesse levar a alguma
ruptura de sua conexão.
Na “Ciência da Lógica”, Hegel apresentou o caráter do diverso indiferente,
contínuo, ideal e abstrato do espaço como um exemplo da quantidade pura. Entretanto,
o espaço é quantidade pura não mais como “determinação lógica, mas como existindo
de modo exterior e imediato” (Hegel 1997, p. 48 (§ 254 Anm.)), e, assim em seu ser
externo e imediato, o que faz dele, na verdade, um algo logicamente transitório, porém,
temporalmente permanente.
A natureza, prossegue Hegel no mesmo parágrafo, diferentemente como no
pensar puro,
”... por isso não começa com o qualitativo, mas com o
quantitativo, pois sua determinação não é, como é o ser lógico, o
abstratamente primeiro e imediato, mas essencialmente é o já em
si mediato, ser-exterior e ser-outro.” (Hegel 1997, p. 48)
Mas se a natureza não começa, da mesma forma, com o qualitativo, algo de
qualitativo já brota nela imediatamente, pois ela não é simplesmente o espaço abstrato e
contínuo, ou seja, o espaço geométrico, mas (ainda abstraindo completamente do
tempo) o espaço físico e preenchido. Ela dispõe de um conteúdo rico, porque ela é a
Idéia ou o Espírito, embora estas últimas na forma do ser-outro ou do ser-fora-de-si. O
espaço geométrico abstrato é apenas esta forma para-si.
É até onde vai o primeiro parágrafo que trata do espaço em Hegel. Nos dois
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
parágrafos seguintes ele almeja deduzir as dimensões do espaço da natureza da Idéia, ou
seja, do conceito e, ao mesmo tempo, realizar uma transição ordenada e lógica para o
tempo como tema subseqüente. Voltaremos a falar sobre isto mais tarde. Dirijamos,
agora, a nossa atenção para a teoria do espaço que Kant desenvolveu na Estética
Transcendental. Para isto se faz necessário algumas observações preliminares sobre o
conceito kantiano de fenômeno.
2. Fenômeno e ser-em-si
Um fenômeno ou aparência é um objeto real que se manifesta, e na medida em
que se manifesta. Em virtude do manifestar-se, ele está essencialmente relacionado com
a subjetividade cognoscente, a qual, por sua vez, é manifestação, uma pluralidade de
pessoas no espaço e no tempo. Enquanto fenômeno, o real não está, portanto, fechado
em si, mas acessível do ponto de vista epistêmico e pode se tornar conteúdo de
representações sem prejuízo de sua objetividade, ou seja, de sua independência frente às
representações subjetivas. O que, porém, existe apenas como conteúdo de
representações é algo ideal, não algo real objetivo, independente e autônomo. A
objetividade do real exige, por conseguinte, que ele retenha um resíduo de si que não
pode se tornar conteúdo de representações. Todavia, a objetividade do real tem também
de poder se manifestar; caso isto não seja possível na representação enquanto um
conteúdo particular, então – assim pensa Kant – junto à representação, enquanto um
modo de sua validade, ou seja, enquanto necessidade (Ver KrV A 109 seq.). O
compreender conceitual preciso do manifestar-se da objetividade e o determinar da
relação da retenção com a renúncia epistemológica, da objetividade com a
fenomenalidade, do ser-em-si com o ser-para-outro, etc., é uma das mais difíceis tarefas
da filosofia.
Em relação a esta tarefa, Kant e Hegel seguem caminhos diferentes. Hegel
apresenta em pertinentes seções da Lógica da Essência aquele movimento através do
qual o retido e o renunciado das coisas, seu interno e seu externo, devem ser abrigados
nos fatos lógicos da realidade, a qual é a manifestação residual de si mesma. Isto se
realiza na assim chamada relação absoluta: enquanto substancialidade, causalidade e,
por fim, enquanto ação recíproca. Na ação recíproca, a fenomenalidade e o ser-em-si se
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60
Espaço e Tempo em Kant e Hegel
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penetram completamente e, no momento seguinte, no conceito, na transparência
conceitual, são, pois, a mesma coisa reflexão-em-si e reflexão-no-outro, ser-em-si-epara-si e ser-posto.
Caso isto, de fato, leve a um resultado positivo! – murmura, duvidosa, uma
pessoa prudente. Mas claro que sim, promete Hegel; isto funcionará se recorrendo, na
verdade, às relações lógicas da essência e do ser anterior, porém, com usos adequados e
úteis, porque, em seu tratamento, surge, primeiramente, a lógica do conceito e, em
seguida, a filosofia do real, não tendo ele condições de mudar mais nada na tendência
básica graças à qual o real se manifesta sem resíduo, não sendo ele mais que sua própria
manifestação: um manifestar-se que manifesta a si mesmo. (Felizmente isto não pode
levar a um resultado positivo – festejam Nietsche e Adorno, os espíritos críticos e livres
que vieram depois. Seria o pesadelo. Não haveria nenhuma surpresa a mais ou apenas o
trivial. Seria o domínio totalitário que não se reconhece como amor livre). Em Kant é
diferente, não apenas na formação positiva da teoria, como também lá onde esta última
se depara com seus limites e permanece no limiar, como se assim Kant não tivesse, por
fim, compreendido o problema do manifestar-se ou o abandonado de modo voluntário,
já que, para ele, era claro que uma luz nesta mata densa não seria mais possível. Kant
amarra a fenomenalidade das coisas, seu manifestar-se, à estrutura espaço-temporal:
tudo aquilo que é espaço-temporal é fenômeno e todo fenômeno é espaço-temporal. O
aprisionamento das coisas em seu ser-em-si reside, conseqüentemente, fora do espaço e
do tempo. Na medida em que as coisas se destacam no espaço e o tempo elas entram
ipso facto na existência, ou seja, ganham acessibilidade epistêmica. Difícil, quase sem
perspectiva, é querer aqui estabilizar uma capacidade conceitual operativa; diria que até
mesmo absolutamente impossível, caso sigamos a doutrina principal e simpática da
Lógica de Hegel que afirma que a capacidade conceitual filosófica enquanto tal é
essencialmente fluída e, por princípio, não é estabilizável sem contradição. Como se
comporta, por exemplo, o ser-em-si das coisas em relação a sua objetividade? Aquele é
o ser-em-si em-si, fora do espaço e do tempo e esta última o ser-em-si para-nós, no
espaço e no tempo? Talvez. Deixemos isto em aberto factual e exegeticamente e
detenhamo-nos em algo menos controvertido.
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
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3. O transcendental e o empírico
Em relação a Kant é necessário diferenciar de modo mais exato a
fenomenalidade transcendental da fenomenalidade empírica. A primeira é a
temporalidade espacial, a segunda aquilo que atualmente é discutido sob o nome de
“qualia”. Entretanto, uma qualia é concebida, por sua vez, espaço-temporalmente; uma
qualia da cor, por exemplo, terá uma figura e uma duração determinada. A
fenomenalidade empírica não permite ser apartada, portanto, de sua fenomenalidade
transcendental. Disto se pode e se deve concluir que as qualia (sob as condições-padrão
da percepção) não existem na cabeça do observador, mas fora, nas coisas espaço
temporais, embora Kant não tenha tirado esta conclusão, mas apenas dito que as qualia
se referem a objetos e que a ação que promove esta referência objetivante é o pensar
(KrV A 247/B 304).
Agora, enfim, à estética transcendental. Aqui encontramos a doutrina da
idealidade transcendental e da realidade empírica do espaço e do tempo. O que se pode
compreender com tal afirmação? Que espaço e tempo são empiricamente reais significa
que eles, no mesmo sentido e na mesma medida, são reais como aquilo que lhe é dado
empiricamente. A realidade empírica das coisas e acontecimentos em minha volta são
transmitidos para o espaço e o tempo. Espaço e tempo são empiricamente reais porque
as coisas e acontecimentos são neles empiricamente reais. Empiricamente reais ou pura
e simplesmente reais? Este é um ponto interessante, pois, espaço e tempo devem ser
ideais do ponto de vista transcendental e, por isto, põe-se a pergunta se sua idealidade
transcendental é transmitida para as coisas e acontecimentos da mesma forma como,
inversamente, sua realidade empírica é transmitida para o espaço e o tempo. As coisas
seriam, neste caso (assim como o próprio espaço e o próprio tempo), empiricamente
reais, porém, ideais do ponto de vista transcendental, portanto, não pura e simplesmente
reais.
De fato, Kant afirma isto, como veremos de modo breve. Porém, o termo
“transcendental” não combina com objetos (coisas e acontecimentos) empiricamente
dados. Pois, transcendental Kant denomina os conteúdos da representação através dos
quais nos relacionamos não com objetos, mas com nosso conhecimento a priori de
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
objetos (KrV A 12/B 25). Um conteúdo transcendental está livre de componentes
empíricos e, neste sentido, é puro; os conteúdos, porém, através dos quais nós nos (e os)
relacionamos com objetos, são todos igualmente empíricos. Os objetos são, por isto,
dados empiricamente e, além disto, são reais. Na medida em que eles são
empiricamente reais, são reais pura e simplesmente. É possível, portanto, admitir, para
eles, um ser-em-si fechado em si, graças ao qual eles são independentes das
representações que temos deles. O próprio Kant afirma dos conteúdos empíricos de
nossas representações (KrV B 44) que falando mais precisamente, não compete a eles
nenhuma idealidade, mesmo se eles entram, neste aspecto, em acordo com a
representação do espaço e pertençam simplesmente à constituição subjetiva dos
sentidos, como visão, audição e sentimento.
As qualia não são, portanto, ideais; nós podemos seguir consolados Kant neste
aspecto e a pergunta é tão somente sob qual categorização. Kant opta, com Locke, pelo
seguinte: que elas (diferentemente do espaço e do tempo) são reais no sujeito enquanto
episódios sensoriais; eu as deixaria preferencialmente fora, nas coisas.
A idealidade transcendental é transmitida, portanto, não do espaço e do tempo
para os objetos e não pode de forma nenhuma fazê-lo, porque nossas representações dos
objetos não são puras no sentido transcendental. Os objetos dados empiricamente são,
portanto, reais no sentido transcendental? Não, a alternativa inteira não se coaduna com
o empírico. Real do ponto de vista transcendental poderia ser no máximo algo acessível
de modo transcendental, portanto, numa primeira aproximação, algo do qual
dispuséssemos, do mesmo modo, uma representação pura, tal como do espaço vazio e
do tempo vazio e que, porém, existisse independentemente de nossa representação. Tais
objetos não existem efetivamente, nós podemos no máximo imaginá-los como coisas
mentais puras e negligenciar chamando-os de “noumena”.
Os noumena seriam dados ou pensados de modo transcendental (ou seja, seriam
puros, não empíricos) e, além do mais, reais. Na medida em que eles fossem reais do
ponto de vista transcendental seriam reais pura e simplesmente. Em sua pureza, porém,
seriam transparentes ao conhecimento. Não seria possível atribuir-lhes nenhum ser-emsi fechado em si, graças ao qual eles seriam independentes das representações que lhe
dizem respeito, por exemplo, (per impossibile) das representações que temos deles. Seu
ser-em-si seria acessível do ponto de vista epistemológico, portanto, seria, ipso facto,
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Anton Friedrich Koch
ser-para-nós e sua realidade ipso facto idealidade – como o ser-para-si de Hegel. Assim,
seriam, em relação a sua intuição intelectual criativa, primos subjetivos e objetivos
primeiros do conceito hegeliano. Charlatanismo - afirma Kant – cometido em relação às
nossas possibilidades de conhecer! Espaço e tempo são, de qualquer modo, ideais e, na
verdade, idéias pura e simplesmente, mesmo que, em virtude da pureza das
representações que temos deles, pareçam ser candidatas ao status de realidade
transcendental.
Em virtude disto, surge, então, um problema; pois espaço e tempo devem herdar
dos objetos realidade empírica que havia se revelado como realidade pura e
simplesmente. Espaço e tempo seriam, portanto, reais pura e simplesmente, não ideais e,
por outro lado, ideais pura e simplesmente, não reais – uma contradição aberta.
Uma forma insatisfatória de resolvê-la seria aceitar uma tese do sujeito duplo do
conteúdo, a saber, de que os homens são, na verdade, sujeitos empíricos no espaço e no
tempo, e que, porém, dormita (ou vela) em cada homem um segundo sujeito que seria
transcendental e que espaço e tempo, relativos ao sujeito empírico, são reais e, relativos
ao sujeito transcendental, ideais. De fato, é definidor para a subjetividade que ela é o
que ela compreende e o que ela compreende o que ela é (para ela vale, efetivamente,
enfim, a transparência do conceito hegeliano). Quem (certamente não apenas eu)
compreende a si como sujeito não pode, por isto, ser dois sujeitos.
É necessário admitir que Kant (eu já fiz referencia a isto) dá impulso à tendência
exegética em submeter-se à tese do sujeito duplo, na medida em que ele não limita o
idealismo transcendental ao espaço e ao tempo abstratos, mas o estende explicitamente
para os objetos que, enquanto fenômenos, “tal como as representamos enquanto seres
extensos ou séries de mudanças, não têm fora dos nossos pensamentos existência
fundamentada em si” (KrV A 491/B 519; Kant, 2001, p. 437). A idealidade é
transmitida, portanto, do espaço e do tempo para os objetos, assim como a realidade é
transmitida dos objetos para o espaço e o tempo. Conseqüentemente, fazem-se
necessárias duas formas de idealidade e duas formas de realidade e, por conseguinte,
dois tipos de sujeito, um transcendental e um empírico, os quais não se comportam
simplesmente como se o primeiro fosse uma simples abstração frente ao último. Neste
sentido, não se está mais distante do quadro curioso em que uma coisa-em-si
incognoscível afeta um sujeito transcendental incognoscível, o qual constitui, por
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
conseguinte, um sistema espaço temporal com objetos concretos e sujeitos empíricos.
Pois um sujeito transcendental enquanto tal não seria, em sua pureza, por princípio,
passível de ser afetado. Afecção nega a pureza. Passíveis de serem afetados são, por
puras razões conceituais, apenas sujeitos empíricos. – Nós nos enredamos em uma
grande confusão e que, para sairmos dela, Kant certamente não nos aponta nenhuma
saída.
4. Uma modificação conservadora da Estética Transcendental
Como uma forma fática e exegética atrativa para solucionar a contradição entre
idealidade e realidade e escapar à confusão mencionada, são propostas as seguintes
ampliações conservadoras ou modificações da Estética Transcendental de Kant.
É necessário fazer uma diferença entre um sistema espaço-temporal real e físico
e um sistema espaço temporal ideal e geométrico. Em virtude da simplicidade,
consideremos, na seqüência, apenas a parte espacial do sistema, portanto, o espaço. (A
transposição para o tempo pode ser feita, portanto, sem problemas). O espaço real é
acessível do ponto de vista epistêmico na intuição empírica, ou seja, do ponto de vista
interno a si; esta intuição espacial parcial é completada pela faculdade da imaginação e,
ao mesmo tempo, modificada para a intuição do espaço contínuo, plano, infinito e
tridimensional. Removido pela imaginação do espaço real, este conteúdo da intuição
pura é, como também lemos em Hegel, o espaço ideal e abstrato. Suas propriedades são
reconhecidas de modo a priori na intuição pura e, na verdade – de acordo com a posição
transcendental de Kant em relação ao espaço – na geometria euclidiana, cujos teoremas
são, conseqüentemente, juízos sintéticos a priori; eles têm, portanto, valor necessário,
entretanto, contra as expectativas de Kant, não se referem ao espaço real, mas apenas a
sua posição originária abstrata e ideal.
Valor necessário é valor em todos os mundos possíveis. A geometria euclidiana
vale – assim temos de afirmar em nossa modificação conservadora da Estética
Transcendental – em todos os mundos possíveis, todavia, de modo irreal apenas para a
posição originária imaginada, pura e ideal. O espaço real de um mundo possível é um
desvio da posição originária de Euclides, induzido através dos objetos que preenchem o
espaço e que, justamente por isto, abandonam a posição originária para encurvá-lo,
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
apresentá-lo quanticamente ou enriquecê-lo com dimensões suplementares. Nenhum
mundo possível tem um espaço vazio e, conseqüentemente, um espaço euclidiano;
porém, o espaço euclidiano forma, para cada mundo, a posição originária imaginada e
ideal. Portanto, pode-se dizer que o espaço euclidiano é, na verdade, metafisicamente
impossível, porém, necessário do ponto de vista transcendental.
Vejamos, pois, como no caso do espaço e dos objetos, realidade e idealidade
pertencem um ao outro. Os objetos compactos são reais e transmitem sua realidade para
o espaço, na medida em que eles o fazem perder a posição originária euclidiana.
Conseqüentemente, os objetos e o espaço são igualmente empiricamente reais. O espaço
puro da geometria euclidiana, por outro lado, é abstrato e ideal. Ele é apenas o caso
limite irreal e a condição originária imaginada, condição que o espaço físico perdeu
através dos corpos massivos que o preenchem. O espaço puro não pode, pois, reproduzir
sua idealidade, por assim dizer, sua natureza etérea e metafísica, nos objetos compactos;
estes últimos são para ele metafisicamente muito pesados e muito densos e o penetram
apenas na medida em que o deformam. Assim se separam notadamente faculdade de
imaginação e percepção ou intuição pura e intuição empírica. Nós percebemos o espaço
encurvado na medida em que percebemos os objetos nele, suas condições de
deformação. O que nós percebemos aí, de fato, são objetos curvados espacialmente, os
quais nós não podemos imaginar. Pois, na imaginação, os conteúdos empíricos e
compactos, que poderiam induzir um encurvamento do espaço, não estão eles próprios
presentes. O espaço da imaginação é, por isto, necessariamente plano; e, por isto,
podemos ainda na escola provar com boa vontade que a soma dos ângulos internos do
triangulo é igual a dois retos, embora saibamos há muito que isto não vale de modo
algum para o espaço físico e real. Nós intuímos justamente aquilo que não podemos
imaginar: os encurvamentos do espaço; e imaginamos aquilo que não podemos intuir de
modo a priori: o espaço plano.
Assim, Kant teria podido antecipar de modo a priori o pensamento básico da
relatividade geral, sem prejudicar substancialmente sua própria teoria. Porém, é possível
falar disto posteriormente. À época de Kant, a autoridade de Newton era inquestionável
e o que valia como real era a concepção do espaço contínuo, plano, infinito e
tridimensional da geometria euclidiana. Caso um filósofo tivesse querido se contrapor à
tal concepção, teria enfrentado uma situação extremamente difícil e sofrido muita
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
pressão. A teoria newtoniana da Física teria de ser primeiramente abalada, antes que os
filósofos, a partir de razões filosóficas genuínas, permitissem a si mesmos ousar,
imaginar e exigir algo melhor.
A proposta de modificação da Estética Transcendental é, portanto, não apenas
uma saída para a contradição instalada entre idealidade e realidade, mas faz adequar
também, sem forçar, a doutrina kantiana às descobertas da Física moderna, a qual
parecia já tê-la refutado empiricamente (e que, de fato, o fez literalmente), pois é difícil
que a geometria euclidiana tenha validade necessária e a priori se o espaço não é de
forma alguma concebido euclidianamente, mas encurvado. Não se pode esperar que a
dificuldade kantiana seja eliminada tomando nossa representação espacial como
representação genérica que conserve neutralidade nas perguntas relativas ao “se”, ao
“como” e ao “quanto” da curvatura do espaço. Pois é essencial na doutrina kantiana que
nossa representação espacial seja uma intuição e, com isto, uma representação singular,
especifica e determinada universalmente e que nada possa permanecer indeterminado
no que toca à evidente curvatura do espaço. O que, por outro lado, efetivamente dissipa
a aparência de uma refutação da Estética Transcendental pela teoria da relatividade
geral é a tese esquemática de que a geometria euclidiana é falsa do ponto de vista
metafísico-necessário e verdadeira do ponto de vista transcendental-necessário e que
ela, além disto, vale, em cada mundo possível, para o caso-limite fundamental, porém,
não verificável, em que o espaço seria vazio.
5. O a priori sensível e o discurso: um desiderato
O espaço e o tempo são, de acordo com Kant, as formas universais das intuições
e, ao mesmo tempo, as formas através das quais nós, seres humanos, intuímos de modo
sensível (Ver KrV A 42/B 59 seq.). Tudo aquilo que sai de seu ser-em-si fechado em si
e entra nas intuições tem de se adequar ao filtro do sistema espaço-temporal ancorado
nas dimensões 3 + 1 (filtro que este sistema, todavia, também influencia como reação ao
kantismo literal); e tudo o que os homens imaginam e intuem sensivelmente, intuem,
quer dizer, imaginam como extensos no espaço e como perseverando no tempo.
A tese do espaço e do tempo como formas da intuição humana não deve ser
entendida como se houvesse mundos possíveis nos quais existissem tanto homens
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
quanto outros seres com outras formas de intuição. Em um único mundo não há lugar
para formas de intuição divergentes do ponto de vista transcendental. Pois, graças às
nossas formas de intuição, encontramo-nos em uma relação de dependência recíproca e
essencial com o nosso mundo cujo sistema espaço-temporal está assentado em uma
posição originária ideal e neutra na forma como nós seres humanos imaginamos, tal
sistema em uma intuição a priori e em que os desvios da posição originária resultam da
repartição correspondente da matéria no espaço e no tempo.
Kant, de fato, parece querer admitir de qualquer forma que talvez haja mundos
possíveis nos quais nenhum ser humano, mas, outros seres com outra capacidade
cognoscente existam e que intuam diferentemente de nós no sentido transcendental. Em
tais mundos haveria, no lugar de um sistema espaço-temporal conhecido por nós, uma
forma alternativa de diversidade abstrata e pura (ou, fazendo uso de um conceito de
Hegel, uma forma alternativa de ser-outro da natureza), para a qual não se poderia
exigir, de forma alguma, a validade da geometria de Euclides, até mesmo para seu casolimite ideal e imaginado. Por isto, a necessidade da geometria euclidiana não seria mais
uma necessidade transcendental ilimitada, mas antes a ser comparada com uma
necessidade nomológica, que é aquela necessidade relativa a verdades que vale em uma
sub-classe da classe de todos os mundos, ou seja, nos mundos acessíveis
nomologicamente, portanto, naqueles mundos em que dominam as mesmas leis naturais
do nosso. Análogo aos mundos acessíveis nomologicamente, se faz necessário aceitar,
então, os mundos acessíveis sob o ponto de vista estético transcendental enquanto
aquelas sub-classes reais de todos os mundos nos quais existem as mesmas formas da
intuição de nosso mundo. Porém, os axiomas da geometria euclidiana são demonstrados
e aqueles da Física teórica, por outro lado, comprovados pela experiência. Isto aponta
para uma profunda impossibilidade de analogia entre a necessidade física nomológica e
a necessidade estética transcendental, aspecto que não permaneceu oculto também em
Kant. Muito pelo contrário, Kant acentuou fortemente esta impossibilidade analógica,
em virtude de sua concepção básica, sem, porém, poder levá-la em conta de modo
adequado nos quadros desta concepção. Para isto seria necessário um entrelaçamento
interno da Estética com a Lógica Transcendentais, ou seja, uma interligação entre as
formas da intuição sensível e os princípios sintéticos do discurso (das categorias). Mas
aqui Kant desiste.
É verdade que “há dois troncos do conhecimento humano,
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
porventura oriundos de uma raiz comum”; mas esta fonte nos é efetivamente
desconhecida (KrV A 15/B 29; Kant, 2001, p. 56). Por isto, a natureza da necessidade
dos teoremas geométricos nos é também desconhecida, tratando-se pois de um enigma
não resolvido; pois não se trata aqui de uma necessidade nomológica simplesmente
fática e não devemos acoplá-la, segundo Kant, a uma necessidade categorial, lógica e
conceitual, de cujo tipo aquela parece ser.
6. Dedução da natureza do espaço e do tempo em Hegel
Hegel se empenha em dissolver este enigma e conciliar o espaço e tempo
discursivamente. O espaço é infinito porque a Idéia é infinita, cuja forma do ser-outro
ele apresenta como exterioridade recíproca abstrata. Ele é plano e contínuo porque,
como nós lemos, “esta exterioridade recíproca ainda é completamente abstrata e não
contém nenhuma diferença determinada” (Hegel, 1997, p. 47 (§ 254)). Permanece a
tridimensionalidade, cuja necessidade, afirma Hegel
“... repousa sobre a natureza do conceito, cujas determinações,
aliás, nesta primeira forma do fora-um-do-outro, [isto é] na
quantidade abstrata, são de todo apenas superficiais e uma
diferença plenamente vazia. Não se pode dizer de que modo
altura, comprimento e largura se distinguem entre si, porquanto
elas apenas devem ser diferentes, mas não são nenhuma diferença;
é plenamente indeterminada a classificação de uma direção como
altura, comprimento ou largura.” (Hegel 1997, p. 50 (§ 255 obs.))
Hegel passa então (no último dos três parágrafos dedicados ao espaço) a tratar da
diferença das dimensões também em seu aspecto qualitativo, mas o faz de modo muito
breve. Ele mostra como surge a tridimensionalidade do espaço: 1º) do ponto enquanto
da negação (ela própria espacial) do espaço, 2º) da linha enquanto do primeiro ser-outro
do ponto e 3º) da superfície enquanto a negação desta negação, a qual, na verdade, em
sentido negativo, é uma ulterior “determinidade frente à linha e ao ponto” e, em sentido
afirmativo, porém, “superfície encerrante” e, “com isto o restabelecimento da totalidade
espacial” (Hegel, 1997, p. 50/51 (§ 256)). O fato de que uma determinação conceitual
necessita essencialmente de condições de aplicação, portanto, de uma esquema
kantiano, não é aí satisfeito. Nós necessitamos de uma compreensão orientada para
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
aplicação a priori da altura, da largura e da profundidade antes de podermos relacionar
estas direções a realidades empíricas como no caso da ação da gravidade e das
assimetrias do corpo. Disto, nada encontramos em Hegel.
Também no que toca ao tempo ele é espantosamente breve. Kant a diferençou
como a forma do sentido interno do espaço como forma do sentido externo. O sentido
interno é afetado por nós mesmos na atividade discursiva e, na verdade, com o resultado
de que nós nos atribuímos os conteúdos espaciais e externos, bem como também, os
conteúdos de nossas próprias representações. Um mesmo verde fenomênico é, assim,
por um lado, a cor da relva e, por outro, o conteúdo de minha intuição da relva, aquela
no sentido externo e esta última no interno. Dado, pois, que a atividade discursiva afeta
o sentido interno como síntese espontânea, suas formas de execução se encontram em
uma relação imediata com o tempo como forma do sentido interno. Assim, o tempo e
aquelas formas de execução podem se determinar reciprocamente. As formas de
execução da síntese adquirem, através do tempo, condições a priori de aplicação, as
quais foram caracterizadas por Kant como esquemas transcendentais e graças às quais
elas, na qualidade de conceitos, ou seja, conceitos puros do entendimento ou categorias,
podem atuar. Inversamente, o tempo é determinado através das categorias, por exemplo,
através da categoria da substância como ultrapassando o instante atual e através da
categoria da causalidade como um eixo de determinação nomologicamente rigorosa.
Porém, Kant
tem como evidente em relação ao tempo apenas aquilo que
Mctaggart chama de série B, ou seja, uma exterioridade recíproca linear de pontos
temporais que devem ser ordenados pela relação entre o ser-anterior e o ser-posterior.
McTaggart insistiu, com razão, no fato de que o tempo é também essencialmente série
A, na qual os acontecimentos são diferençados enquanto futuros, presentes e passados.
A série B, aquela que nos vem primeiramente à mente quando pensamos no tempo, é
uma sobreposição de duas concepções originárias do tempo. Uma das duas é a
concepção básica do desaparecimento do tempo como exterioridade ou justaposição
recíprocas dos pontos no tempo sem diferença qualitativa em relação à direção, ou seja,
sem a seta do tempo. Assim o tempo é compreendido pela ciência da natureza
fundamental, a teoria quântica. A concepção oposta fundamental do tempo é aquela que
se poderia chamar de tempo A não serial e que Heidegger denomina de temporalidade
originária: o perpassar recíproco dos três tipos de “êxtases” da temporalidade: futuro,
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
presente e passado, fazendo-se abstração da exterioridade recíproca dos pontos do
tempo e, com isto, da sucessão temporal.
Nem Kant, nem Hegel tiveram a intenção de compreender o tempo a partir da
temporalidade originária (do tempo A). Antes ambos avaliam a série B do tempo como
essencial, a qual, efetivamente, tanto frente ao tempo A, quanto frente à série do tempo
e sem direção da teoria fundamental da natureza - a série C, é uma séria derivada. Isto é
o comum mesmo nos procedimentos inconseqüentes que conservam a direção do tempo
nos quadros da ciência teórica e não gostariam de adotar a série C sem direção. A rigor,
seria necessário tomar a série A como base quando se estabelece a direção. Isto
significaria, porém, em última instância, partir do ponto de vista do presente e,
conseqüentemente, afirmar que tal ponto de vista influencia no conteúdo do discurso.
Para a ciência teórica – Matemática, Física e Metafísica – a representação é a diretriz; o
tempus verbi e, enfim, o próprio ponto de vista seria, enquanto algo exterior aos
conteúdos, a serem deixados para trás. Dado que Kant e Hegel se movem em
conformidade um com o outro em sua autocompreensão na ciência teórica, seguem esta
representação diretora. Somente Heidegger assumiu a ingrata tarefa de, no interior da
filosofia acadêmica, elaborar um pensamento que fosse além da ciência teórica, no qual
a temporalidade originária pudesse também ter o seu lugar de direito.
Kant determina, como já mencionado, a estrutura do tempo a partir de seu papel
em sistematizar as categorias. Assim, ele espera da causalidade a fundação da seta do
tempo – neste caso uma esperança inútil, posto que a causalidade, enquanto simples
legalidade natural, não distingue nenhuma das duas direções do tempo. Também Hegel
recorre às categorias, ou seja, às determinações lógicas para apreender a estrutura do
tempo e, portanto, aquilo que toca à seta do tempo com grandes esperanças de sucesso,
dado que ele pode remeter ao desenvolvimento lógico assimétrico como ao modelo de
um desenvolvimento temporal assimétrico. Todavia, uma coisa é pensar uma série
assimétrica com direção e outra é implementar efetivamente uma assimetria pensada
como série C sem direção do tempo. Trata-se novamente aqui do problema das
condições de aplicação e, em minha opinião, ele só pode ser solucionado caso se
assuma que um sujeito constituído temporalmente determine a série temporal através de
ações reais a partir da vontade livre e em consonância com a assimetria lógica. Isto
permanece em Hegel um desiderato; em todo caso, ele chega, de fato, a uma dedução da
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
seta do tempo com mais precisão que Kant quando ele, como já dito, pode apontar, in
abstracto, para o desenvolvimento lógico assimétrico como para o modelo do
desenvolvimento temporal assimétrico.
Ele determina, in concreto, o tempo como a mesma “negatividade, que se refere
como ponto ao espaço”, apenas agora como existindo “para-si [...] na esfera do serfora-de-si” (Hegel, 1997, p. 53 (§ 257). De um modo teórico fértil ele supera, neste
caso, representações kantanas habituais, afirmando que ele determina o tempo como “o
ser que, enquanto é, não é, e, enquanto não é, é”, como “vir-a-ser intuído” (Hegel,
1997, pp. 54/55 (§ 258). De acordo com as representações habituais, o discurso do
transcurso do tempo é uma metáfora infundada e fática. O tempo, assim afirma Kant,
“em que toda a mudança dos fenômenos deverá ser pensada, permanece e não muda ...”
(KrV B 224 seq.; Kant, 2001, p. 212; ver A 144/ B 183). Hegel, por sua vez, possibilita
aprofundar teoricamente o fenômeno do transcurso do tempo e se distanciar das
representações habituais:
“No tempo, diz-se, tudo surge e [tudo passa] perece; se se abstrai
de tudo, a saber, do recheio do tempo e igualmente do recheio do
espaço, fica de resto o tempo vazio como o espaço vazio - isto é,
são então postas e representadas estas abstrações de exterioridade,
como se elas fossem por si. Mas não é que no tempo surja e
pereça tudo, porém o próprio tempo é este vir-a-ser, surgir e
perecer, o abstrair essente, o Kronos que tudo pare, e que seus
partos destrói [devora]. - O real é bem diverso do tempo, mas
também essencialmente idêntico a ele.” (Hegel, 1997, p. 55 (§
258 Obs.)).
Como, porém, o tempo pode ser limite permanente, ou seja, medida do transcurso e, ao
mesmo tempo, fluxo, Hegel deixa em aberto. Um déficit estrutural de sua concepção é
que o espaço e o tempo conservam seu lugar fixo no sistema justamente no começo da
Filosofia da Natureza, na seção da “Mecânica”. O conceito integral tanto do espaço
quanto do tempo não pode ser desenvolvido independentemente dos temas da Filosofia
do Espírito. Para isto, a referencia ao sujeito de ambos os conceitos que Kant traz à tona
quando fala das formas da intuição sensível, é de suma importância. Em cada momento,
eu, enquanto sujeito empírico, corporal e livre, oriento-me de modo a priori no espaço e
no tempo e estabeleço, com isto, diferenças qualitativas entre as quatro dimensões
espaço-temporais em sua totalidade e suas respectivas direções. Assim, altura, largura e
profundidade são definidas e orientadas originariamente por meu corpo em um sistema
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Espaço e Tempo em Kant e Hegel
Anton Friedrich Koch
de coordenadas egocêntricas e informais e o futuro é objetivamente diferençado do
passado de modo originário através de minhas ações livres. De fato, como já
mencionado, trata-se de transcender este estado de coisas e a ciência teórica através de
sua indexialidade.
Kant e Hegel vêem naturalmente estas estruturas marcadas abundantemente por
este caráter indicador e tentam levá-las em conta contra a arquitetura de seus respectivos
sistemas. Kant acredita, assim, poder encontrar a seta do tempo na causalidade natural e
Hegel também fala, na sua “Mecânica”, de fatos relativos ao tempo que não dizem
respeito ao pensamento de que o tempo tem três modos – Hegel fala de “dimensões’ –
presente, futuro e passado (Hegel, 1997, p. 39 (§ 252)). O parâmetro t da Física teórica
é, porém, a série C do tempo que conceitualmente é de todo reduzida e para a qual os
modos do tempo não desempenham nenhum papel. Portanto, por mais que seja
compreensível que Hegel se ancore em um conceito mais rico de tempo, tanto menos é
aceitável que o local para este conceito seja, efetivamente, o começo da Filosofia da
Natureza.
Porém, nós temos de diferençar a crítica imanente da crítica do principio. Talvez
tenha a sistemática hegeliana permitido desenvolver, primeiramente, os conceitos
pobres do espaço e do tempo no começo da Filosofia da natureza, e permitir que se
enriquecessem passo a passo através de momentos compatíveis. O que, com isto, ainda
não se teria alcançado seria uma auto-compreensão perspectivista, insofismável e com
caráter indicador em relação a mim enquanto sujeito corporal e finito em minha relação
recíproca com o espaço e o tempo, relação que é essencial para ambos os lados e não
apenas para mim mesmo.
Referências bibliográficas
HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), Volume
II: Filosofia da Natureza. Tradução de José Nogueira Machado. São Paulo: Edições
Loyola, 1997
KANT, I. Crítica da Razão Pura, Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001
Artigo recebido em junho de 2010
Artigo aceito para publicação em setembro de 2010
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 74-95
A natureza como objeto sensível,
múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse*
_________________________________________________________________
Resumo: O presente trabalho visa elucidar a concepção hegeliana da natureza como
exterioridade contraditória, que é caracterizada pela ausência da unidade do conceito
e, ao mesmo tempo, tende a tal unidade. Defende-se que essa concepção implica que
uma filosofia da natureza no sentido hegeliano tem por objetivo pensar a alteridade
da natureza como tal, e não extingui-la. Com base nisso, discute-se finalmente a
questão de em que sentido Hegel aceita a ideia de um desenvolvimento da natureza,
negando-lhe o tipo de desenvolvimento que é característico do espírito e rejeitando a
tese comum de um transformismo natural.
Palavras-chave: Hegel,
Natureza,
Alteridade
Abstract: The present paper aims at elucidating the hegelian conception of nature as
contradictory externality, which is caracterized through the absence of the unity of
the concept and, at the same time, the tendency to develop such unity. As will be
argued, this conception implies that a philosophy of nature in the hegelian sense
intends to conceive nature’s otherness as such, and not to eliminate it. Based on this
result, we finally discuss the question in what sense Hegel accepts the idea of a
development of nature, in spite of his denial of the idea that nature is capable ot the
kind of development which is a caraceristic of spirit, and of his rejection of the
common thesis of natural transformism.
Keywords: Hegel,
Nature,
Otherness
_________________________________________________________________
A filosofia da natureza aparece frequentemente como a parte mais envelhecida do
sistema hegeliano. Sua dependência em relação às ciências empíricas de seu tempo, as
quais estão hoje em dia amplamente esquecidas, contribuiu para lhe dar uma aparência
de algo obsoleto. Por outro lado, as numerosas críticas que ela contém a respeito de
concepções que ao final lhe superaram – tais como a teoria newtoniana da força da
gravitação, a ideia da decomposição química do ar ou da água, ou o transformismo –
*
Doutor em Filosofia pela Universidade Paris-1 Panthéon-Sorbonne; Maître de conférences em filosofia
da Universidade Paris-4 Sorbonne. Email: [email protected]. Tradução de José Pinheiro
Pertille (UFRGS) e Greice Ane Barbiere (UFRGS).
REH – Revista Eletrônica
Estudos Hegelianos
Jul./Dez. de 2009
N. 11, v.01
pp.74-95
Gilles Marmasse
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
colaboraram para seu descrédito. Seria preciso concluir que é algo vão se interessar por
esses textos? Não, se admitirmos que eles não sejam lidos para compreender o que é a
natureza, mas para compreender porque, em um determinado momento, foi possível, e
até mesmo necessário, pensá-la como Hegel a pensou. De certo modo, não temos que
procurar no texto uma caução ou um apadrinhamento para tal ou qual concepção
contemporânea da natureza, mas, sobretudo, compreender em que seu autor é o
testemunho de uma certa época do pensamento – um testemunho ao mesmo tempo
perfeitamente representativo e criador. Da mesma maneira que não se pode mais ser,
hoje em dia, um discípulo ingênuo de Hegel, não se pode tampouco ser um denunciador
ingênuo, precisamente porque a problemática hegeliana tornou-se estranha ao nosso
horizonte intelectual. Todavia, é paradoxalmente aí que reside seu interesse para nós:
aquele de nos fazer ascender a um estilo de pensar inabitual e exigente, do qual é
preciso procurar a coerência interna e a propósito do qual é preciso se perguntar por que
ele foi, um dia, perfeitamente plausível.
A presente exposição repousará antes de tudo sobre uma leitura da Introdução da
Filosofia da Natureza da Enciclopédia. Como é sabido, esta Introdução é guiada por
duas grandes problemáticas: de um lado, o que é conhecer filosoficamente a natureza?
De outro, o que é a natureza? É em relação à segunda problemática que iremos nos
interessar – entendendo-se que, para Hegel, a natureza, assim como a lógica ou o
espírito, não é uma coisa que estaria dada de uma vez por todas, mas, antes, um ser que
se produz a si mesmo em um contexto de processus. Mais precisamente, se tentará
responder às seguintes questões: em que sentido se pode dizer que a natureza é
caracterizada por uma contradição não resolvida? Qual é a forma própria deste
processo? Pode-se considerar a natureza como um organismo vivo animado por um
télos geral? A hipótese fundamentalmente defendida será, então, a seguinte: para Hegel,
a natureza é analisada como um objeto não somente múltiplo, mas também
contraditório, na medida em que os seres naturais estão ao mesmo tempo separados uns
dos outros e mutuamente relacionados. Os seres naturais tendem à independência, mas
jamais chegam a atingi-la. Por outro lado, a natureza é desprovida de uma razão de ser
interior, de tal modo que ela pode ser referida como irracional. É por isso que a filosofia
da natureza, pensada como contingência radical, nos convida a reformular a
interpretação tradicional do hegelianismo como puro e simples racionalismo.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
75
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
A contradição não resolvida
A característica essencial da natureza é, segundo Hegel, a exterioridade. A natureza
é não somente exterior ao espírito, mas é igualmente exterior a si mesma.1 O que se
entende por isso? a) Eu diria que, em primeiro lugar, a noção de exterioridade designa
aquilo que se manifesta de maneira sensível, como mostra esta afirmação da
Enciclopédia: “O sensível é [...] sinônimo do exterior-a-si-mesmo”.2 Que a natureza
seja algo exterior significa que tudo nela se manifesta na experiência imediata, ou seja,
na experiência possibilitada pelos sentidos. Não existem nem qualidades ocultas, nem
pneuma no sentido estóico do termo, nem natura naturans distinta de natura naturata,
mas a natureza se reduz à série indefinida dos seres singulares sensíveis. b) Mais
fundamentalmente, entretanto, reconhece-se na noção de exterioridade o tema da
multiplicidade. A natureza é exterior a si mesma no sentido em que ela é radicalmente
plural, ainda que, em contrário, uma verdadeira unidade não possa lhe ser atribuída a
não ser que ela tenha uma projeção, sobre si, de um princípio espiritual: “Mostra-nos a
natureza uma infinita multidão (unendliche Menge) de figuras e fenômenos singulares.
Precisamos [como espírito] de levar a unidade a essa multiplicidade vária
(Mannigfaltigkeit)”.3
Certamente, esta dispersão dos seres naturais não implica sua independência mútua.
Por exemplo, a relação de gravitação liga o sol aos planetas, enquanto ácidos e bases se
definem uns em relação aos outros. O desmembramento da natureza não deve ser
concebido como significando o desdobrar-se sobre si de seus componentes ou sua
indiferença mútua; pelo contrário, há entre eles relações incessantes. Em compensação,
estas relações não implicam sua unificação a partir de um princípio interior. Em outras
palavras, os seres naturais não são realizações particulares de um princípio universal
imanente, mas somente as partes de uma série que se define, precisamente, pela soma
de seus componentes.
Na natureza, o universal não é “em si e para si”, mas somente “para nós”, espíritos
1
Enciclopédia das Ciências Filosóficas II, § 247 (Hegel 1997, p. 26; 1970, vol. 9, p. 24).
Enciclopédia III, § 401, Adendo (Hegel, 1995, p. 106; 1970, vol. 10, p. 103. Cf. igualmente
Enciclopédia I, § 38, Adendo (Hegel, 1995, p. 106; 1970, vol. 8, p. 111).
3
Enciclopédia I, § 21, Adendo (Hegel 1995, p. 74; 1970, vol. 8, p. 77).
2
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
76
Gilles Marmasse
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
que idealizam a natureza, por exemplo, no conhecimento científico ou filosófico: “estes
momentos caem uns fora dos outros, são conservados como subsistentes-para-si uns
face aos outros. Tal é por assim dizer a maldição da natureza”.4 Enquanto que cada
homem particular, ser espiritual, encarna em si mesmo o espírito em geral, o universal,
na natureza não é constitutivo dos seres existentes. É nesse sentido que Hegel pode
escrever que a natureza é desprovida de conceito (entbehrt des Begriffs),5 ou, ainda, que
o ser natural é infinitamente divisível: “aquilo que é material é divisível, quer dizer,
exterior a si mesmo. Se consideramos um ser material ou espacial, sabemos [...] que
podemos dividi-lo. [...] Justamente, estes pontos materiais não subsistem senão por si
mesmos, eles excluem os outros deles mesmos. A natureza é uma multiplicidade
infinita, uma exterioridade infinita”.6
Definitivamente, a natureza não se realiza nem interiormente (diferentemente da
lógica), nem por sua unificação com a alteridade exterior (diferentemente do espírito),
mas pela passagem interminável de um indivíduo particular ou de uma determinação
particular à outra: mudanças de posição no espaço, de clima, de propriedades químicas,
de engendramento de novos animais, etc. Mas essas mudanças, em verdade, não são
verdadeiras mudanças, e a natureza não existe senão de um modo fundamentalmente
quantitativo. Tudo nela se multiplica e se divide, cresce e decresce alternadamente. De
certa maneira, Hegel vai ao encontro da moderna apreensão da natureza, uma apreensão
caracterizada pelo reinado da quantidade: “na natureza, enquanto ela é a idéia na forma
do ser-outro e ao mesmo tempo do ser-fora-de-si, a quantidade também tem justamente
por essa razão uma importância maior que no mundo do espírito, este mundo da
interioridade livre”.7 Entretanto, a quantidade não é aqui uma determinação
epistemológica, quanto ao modo que tem o pensamento de se apoderar de seu objeto,
mas é mais propriamente uma determinação ontológica, quanto ao modo de ser do
objeto.
4
Hegel, 1983-1995, vol. 2, p. 219-220. Schleiermacher, em seu livro Der christliche Glaube (18211822), define a natureza como “o conjunto do corpóreo [...] em suas manifestações diversas e
fragmentadas que se condicionam mutuamente”. Ao contrário, “Deus é um ser incondicionado e
absolutamente simples” (§ 91,1).
5
Enciclopédia II, § 248, Observação (Hegel, 1997, p. 31; 1970, vol. 9, p. 28). Cf. Ciência da Lógica,
Hegel, 1970, vol. 6, pp. 282-283.
6
Hegel, 2002, p. 17.
7
Enciclopédia I, § 99, Adendo (Hegel, 1995, p. 201; 1970, vol. 8, p. 211).
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
77
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
A dependência recíproca dos fenômenos exteriores
Todavia, a própria natureza é puramente e simplesmente plural? A noção de
alteridade, trazida, por exemplo, pelo § 247 da Enciclopédia, estreita a contradição entre
dois pólos, o do “mesmo” e o do “outro”: “A natureza mostrou-se como Idéia na forma
do ser-outro” [p. 26]. A natureza não é assim somente uma multiplicidade, mas também
um sistema de dependência recíproca. Ela é o reino da relatividade: “A [...]
determinabilidade de fora tem na esfera da natureza seu direito”.8 O ser natural, segundo
Hegel, assim me parece, não é somente para si, mas é também para um outro, e é por
isso que suas propriedades não possuem necessidade intrínseca. O próprio de um ser
natural é finalmente a sua incapacidade de se dar suas propriedades de maneira
autônoma, uma vez que ele é inevitavelmente relativo aos outros seres naturais. E é por
isso que suas propriedades são contingentes, no sentido de serem elas dependentes de
condições exteriores.9
Por exemplo, o planeta é caracterizado por um movimento espontâneo, mas sua
trajetória é definida a partir do sol. Igualmente, a causa do devir de tal reativo químico
se encontra, ao mesmo tempo, em suas propriedades e no reativo que lhe é associado em
tal ou qual experiência. Ou ainda, a modificação de um órgão qualquer do corpo vivo
seguramente corresponde à sua configuração e dinâmica própria, mas também à ação
exercida pelos outros órgãos. O ser natural é assim ao mesmo tempo parcialmente
independente e parcialmente relativo. Ele representa bem, nesse sentido, esta ligação
imperfeita da imediateidade e da mediação que é pensada pela Doutrina da Essência em
seu modo puro. Essa contradição não é tal que o ser natural não possa ser, mas ela
implica o caráter inevitavelmente frustrante dos processos da natureza. Por um lado, o
ser natural é determinado pelo outro, mas não ao ponto de ser confundido com esse. Por
outro lado, ele é individualizado, mas não ao ponto de ser autônomo. Os seres naturais
não são nem mutuamente indiferentes, nem unificados em uma totalidade, mas relativos
uns aos outros. Por exemplo, “a luz e sua negação estão uma ao lado da outra, mas a luz
8
Enciclopédia II, § 250 (Hegel, 1997, p. 36; 1970, vol. 9, p. 34). Não se pode deixar de pensar aqui na
caracterização da sociedade civil dos §§ 182 e 183 da Filosofia do Direito. No entanto, a sociedade civil é
bem menos exterior e contingente que a natureza, na medida em que os “burgueses” que a compõem
pertencem à mesma sociedade e mantêm entre si uma relação não natural, e por isso não violenta, mas
cultural, isto é, de cooperação fundada sobre representações (cf., por exemplo, o § 187 e sua Observação).
9
Cf. Hegel, 1996, p. 40: “A contingência é a necessidade externa, que certamente resulta de causas, mas
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
78
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
é a potência que persegue as trevas”.10 Encontramos aqui uma estrutura
fundamentalmente reflexiva, e isso não é nenhuma surpresa, pois a natureza é o segundo
grande momento do sistema.
De certa maneira, Hegel inverte a análise da natureza proposta por Aristóteles no
começo do livro II da Física, quando esse define os seres naturais como dispondo de um
princípio interno de movimento.11 Para Hegel, nada na natureza é para si estritamente
falando, mas tudo é sempre para um outro.12 O que consegue dar conta de um animal
determinado? – Seu genitor e sua genitora, ou seja, indivíduos que são outros que ele
mesmo. Pelo contrário, como pensa o espírito? – Por ele mesmo. Hegel insiste
regularmente sobre o caráter enigmático da natureza, por oposição à clareza do
espírito.13 Compreende-se agora o porquê. É que o espírito se explica a partir dele
mesmo e é deste modo concebível. Inversamente, a identidade do ser natural é obscura,
porque ele remete, ao mesmo tempo e contraditoriamente, a uma tendência interior e a
uma causa exterior. Parece, assim, que o estatuto epistemologicamente problemático da
natureza não é senão o correlativo de sua indignidade ontológica.
Certamente somos tentados a opor à nossa interpretação a figura do animal, uma
vez que esse poderia aparecer como uma unidade fechada e autodeterminante. De fato,
os diferentes órgãos do corpo estão em uma relação de mútua alteridade. Por outro lado,
o organismo natural está cindido entre a alma e o corpo. Com efeito, Hegel insiste
regularmente sobre esse caráter “separável” entre os dois termos.14 A alma natural não
se conhece nem se dá a conhecer em seu corpo, ela não mantém consigo uma relação de
identificação. Ao contrário, ela se opõe a ele tendendo a lhe impor uma regra que ela se
esforça, quanto a si, a transgredir: “O corpo vivo está sempre em prontidão de passar
de causas tais que elas mesmas não são senão circunstâncias exteriores”.
10
Hegel, 1983-1995, vol. II, p. 510.
11
Cf. Aristóteles, Física II, 1, 192 b 8-32.
12
Deste ponto de vista, Hegel, contra o aristotelismo, está alinhado ao pensamento moderno que coloca
em paralelo as duplas: natureza – espírito e necessidade exterior – liberdade interior; cf. a Introdução da
Fenomenologia do Espírito (Hegel, 1970, vol. 3, p. 74): “O que está restrito a uma vida natural não pode
por si mesmo ir além de seu ser-aí imediato, mas é expulso-para-fora dali por um Outro; [...] Mas a
consciência é para si mesma seu conceito; por isso é imediatamente o ir-além [...] de si mesma” [Hegel,
2005, p. 76).
13
Cf., por exemplo, Hegel, 1996, p. 288-289: “É na vida que o inconcebível tem o direito mais elevado de
nos confrontar, esse é o lado do [ser] natural no reino da natureza, [enquanto] o espírito se dá a
compreender. [...] O espírito é claro, ele se manifesta para si mesmo. [...] Inversamente, a natureza é
apenas a ocultação (das Verbergen)”.
14
Enciclopédia I, § 216 (Hegel, 1970, vol. 8, p. 374): “Assim a vida é essencialmente [um ser] vivo, e,
segundo sua imediatez, é este ser-vivo singular. A finitude tem nessa esfera a determinação de que corpo
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
79
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
para o processo químico: oxigênio, hidrogênio, sal, [tudo isso] sempre quer emergir,
mas é de novo suprassumido”.15 Correlativamente, a alma não age sobre o corpo de
maneira soberana, mas de maneira indireta, no sentido em que ela defende com os
órgãos seus objetivos próprios: “Os intestinos [as vísceras], os membros em geral são
sempre [...] ativos uns em relação aos outros; e como cada um se apresenta como ponto
central à custa de todos os outros, por isso cada um existe somente por meio do
processo; isto é, aquilo que é, como suprassumido, rebaixado e posto como meio é isto
mesmo o fim [alvo], o produto”.16 No corpo orgânico existe, portanto, ao mesmo tempo,
cisão e relatividade.
Observa-se, no espírito, múltiplos efeitos de dependência, como por exemplo, na
relação de dominação e escravidão. Contudo, essa última relação consiste em um
reconhecimento recíproco. A despeito da incontestável rudeza da escravidão, ela não faz
o escravo recair ao nível de um animal. Ela não é “inumana”, na medida em que um e
outro são protagonistas, em sua dependência mútua, da constituição de consciências de
si. Da mesma maneira, a história, aos olhos de Hegel, é fundamentalmente infeliz – as
páginas de felicidade são aqui folhas brancas: entretanto, ela é uma elevação em direção
à liberdade. Ou ainda, quando o espírito se mostra irrefletido, absorvido pelos afetos ou
pelas intuições imediatas, ou quando ele opera por escolhas arbitrárias, essas
determinidades, ainda que não fundamentadas, não são contrárias àquilo que é, mas elas
o exprimem. O homem pode ser louco, mas, contudo, ele nunca é um simples “animal”.
Pelo contrário, “o mais alto para onde a natureza impulsiona em seu ser-aí é a vida; mas
esta está entregue somente como idéia natural à sem-razão [ao irracional] da
exterioridade”.17
A natureza é assim irracional,18 porém não no sentido em que ela seria um caos que
não oferecesse nenhuma inteligibilidade, mas no sentido propriamente hegeliano,
daquilo que é desprovido de unidade e incapaz de se constituir em uma totalidade viva.
A natureza é caracterizada pela única inteligibilidade do entendimento, isto é, pelas
ligações locais e provisórias, e não por uma organização geral e imanente que atribuiria
e alma são separáveis, em virtude da imediatez da idéia” (Hegel, 1995, p. 353).
15
Enciclopédia II, § 337, Adendo (Hegel, 1997, p. 352; 1970, vol. 9, p. 338).
16
Ibid. § 352, Adendo (Hegel, 1997, p. 455; 1970, vol. 9, p. 436).
17
Enciclopédia II, § 248, Observação (Hegel, 1997, p. 30; 1970, vol. 9, p. 28).
18
Cf., entre outros textos, a Recensão das Obras de Jacobi (Hegel, 1970, vol. 4, p. 448): “O que aqui é
encontrado como irracional (Unvernünftiges), como natureza, o é tanto como natureza exterior, corporal,
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80
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
a cada fenômeno sua razão de ser e sua determinação própria. Como a natureza busca,
então, esta razão da qual ela é privada? A partir de um modo negativo, alterando sua
fenomenalidade, ou seja, suprimindo tendenciosamente a cisão que a constitui. A
natureza é o processo sem fim pelo qual os seres naturais tendem, por sua interação, a
abolir sua multiplicidade. Todavia, ao fazer isso ela só chega a se destruir e não a se
unificar. Com efeito, aos olhos de Hegel, é impossível se constituir como unidade a
partir de uma alteridade exterior. Na medida em que, por definição, um ser natural não
se determina senão por meio de um outro fora de si mesmo, sua busca de unidade é
necessariamente vã. Isso assim se mostra como desprovido de razão interior e, por isso
mesmo, como enigmático.
Encontramos na Razão na História uma análise sintética, ainda que um pouco
sinuosa, da oposição entre natureza e espírito: “O sujeito, a efetividade real, é somente
aquilo que fez retorno a si. O espírito não é senão o seu próprio resultado. A
representação da semente pode explicar isso. A planta começa com a semente, mas essa
é ao mesmo tempo o resultado de toda a vida da planta: a planta se desenvolve para
produzi-la. Mas a impotência da vida aparece no fato de que a semente é ao mesmo
tempo começo e resultado do indivíduo – o qual, enquanto ponto de partida e enquanto
resultado, é diferente e, no entanto, idêntico, produto de um indivíduo e começo de um
outro”.19 Enquanto o espírito dá-se conta de si no sentido em que ele se estabelece como
a instância que tem saber e querer de si mesmo, o ser natural apenas mediatiza um
outro. O ser natural não é uma relação de totalização do sujeito universal com um
objeto seu, mas uma relação contraditória de dependência e independência entre objetos
irredutivelmente diversos.
A contingência natural consiste na relação recíproca entre seres finitos. Uma vez
que eles são finitos, de um lado, eles não são capazes de se identificar e não podem
senão concorrer entre si, de outro lado, nenhum deles é autossuficiente e dependem
inelutavelmente uns dos outros: “Ora, se bem que a contingência, em virtude do que foi
discutido até agora, seja apenas um momento unilateral da efetividade, e por
conseguinte não possa confundir-se com ela mesma, contudo lhe compete seu direito
também no mundo objetivo, como a uma forma da idéia em geral. Isso vale antes de
tudo para a natureza, em cuja superfície, por assim dizer, a contingência tem seu livre
quanto como natureza interior, sentimento, tendência, hábito e costumes”.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
81
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
curso, que também como tal tem de reconhecer-se, sem a pretensão (às vezes atribuída
erroneamente à filosofia) de querer encontrar nisso um poder-ser somente assim, e não
de outro modo”.20 O princípio da razão, tal como ele é, por exemplo, enunciado por
Leibniz, postula que a série dos seres condicionados seja suspendida por um ser
incondicionado.21 Em se tratando da natureza, Hegel claramente toma a posição
contrária: “Na natureza, não somente o jogo das formas tem sua ilimitada, desenfreada
contingência, mas cada figura por si carece do conceito dela mesma”.22 Por exemplo, os
pontos do espaço são relativos aos outros pontos do espaço segundo um encadeamento
indefinido, mas o próprio espaço, como momento, não é determinado por um elemento
infra ou supranatural. Da mesma maneira, o encadeamento dos seres vivos constitui um
círculo indefinido que não é de modo algum apresentado por Hegel como dependente de
um ser exterior à natureza. De um modo mais geral, o surgimento incessante do ser
natural não é incondicionado, na medida em que ele se explica por um outro: mas, este
outro é ele mesmo condicionado, e assim por diante. A natureza não remete a nada que
não seja natural e finito.
Para ilustrar este ponto de maneira trivial, como Hegel resolve a questão sobre o
ovo e a galinha? Estabelecendo, justamente, que não há solução para esse problema. As
galinhas são dadas e se reproduzem. Não há razão em ser, e é aí que a natureza é
contraditória. O ser natural existe pura e simplesmente, entretanto, como um ser
relativo, relativo a uma alteridade que, enquanto tal, é natural. A deficiência da natureza
está no fato de que ela não é incondicionada. O autor da Enciclopédia estabelece assim
que a ausência de racionalidade não concerne aqui, simplesmente, ao nosso saber, mas
mais exatamente à própria coisa. É isso que distingue, por exemplo, a tematização
hegeliana da natureza como exterioridade radical da afirmação kantiana segundo a qual,
no quadro do conhecimento fenomenal da natureza, não se pode chegar ao
incondicionado. Em se tratando da natureza, a finitude é um atributo não do saber, mas
19
Hegel, 1955, p. 58. Cf. Enciclopédia III, § 379, Adendo (Hegel, 1995b, p. 12; 1970, vol. 10, pp. 14-15).
Enciclopédia I, § 145, Adendo (Hegel 1995a , p. 272; 1970, vol. 8, p. 286).
21
Cf., por exemplo, o § 8 dos Princípios da Natureza e da Graça, G. VI, 602, ou ainda a Monadologia,
Art. 37: “É preciso que a razão suficiente ou última esteja fora da sequência ou série deste detalhe das
contingências, tão infinita quanto ela possa ser”. Leibniz, A Monadologia, 1979, art. 37, p. 109.
22
Enciclopédia II, § 248, Observação (Hegel, 1997, p. 30; 1970, vol. 9, p. 28). Inversamente, o espírito se
caracteriza pela contingência suprassumida: “Também o contingente se faz valer no mundo espiritual,
como já se notou antes a propósito da vontade, que contém em si o contingente na forma do [livre]arbítrio, embora seja somente como [um] momento suprassumido” (Enciclopédia I, § 145, Adendo
(Hegel, 1995a, p. 272; 1970, vol. 8, p. 286).
20
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
82
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
da própria coisa.
Pensar logicamente a exterioridade da natureza
Entretanto, caso se considere que a natureza designa o momento da renúncia de si
da Ideia, como então admitir a possibilidade de uma filosofia da natureza como discurso
inteligível? Estamos aparentemente diante do seguinte dilema: ou o fato de que a
natureza seja filosoficamente pensável contradiz sua definição de Entäusserung da
lógica, ou, então, a lógica não se exterioriza radicalmente na ascensão da natureza, o
que lança uma dúvida sobre a seriedade do “negativo” na filosofia hegeliana. Em
verdade, podemos escapar do dilema ao observar que a natureza em si mesma se
distingue da natureza enquanto ela é pensada. Logo, no discurso filosófico, a natureza
não é mantida tal como ela é originariamente na medida em que ela é idealizada. O
discurso filosófico é possível na medida em que ele consiste em operar a Aufhebung de
seu objeto. Ele não restitui a natureza tal como ela é – com seus odores e seus ruídos –
mas a transfigura em um objeto do pensamento. Natureza e pensamento da natureza não
se confundem, e o segundo não pretende substituir a primeira. Se a natureza é pura e
simplesmente uma exterioridade radical, contudo, o objeto da filosofia não é essa
natureza mesma, mas a natureza enquanto ela é aufgehoben. Em outras palavras, que a
natureza seja o outro da lógica não impede que ela adquira, por idealização, uma
unidade racional – aquela do conjunto sistematicamente organizado da filosofia da
natureza.
Surge então a objeção contrária. Se a filosofia pode tomar a seu encargo seu outro,
ela assim não o transforma a ponto de perder completamente aquilo que ele era
inicialmente? O próprio discurso filosófico sobre a natureza não está, de uma vez por
todas, desvinculado da natureza originária? Ele simplesmente não a transforma em algo
de abstratamente lógico ou em algo de muito concretamente espiritual? Na verdade, se a
filosofia opera a espiritualização de seu objeto, ela não o substitui por outra coisa, mas
se contenta em transfigurá-lo. O uso das categorias lógicas, no discurso filosófico, não
significa a substituição de um ser lógico ou espiritual por um ser natural, mas a
logicização do ser natural, seu uso como material de aplicação da lógica. Se, graças à
filosofia, a natureza é manifestada discursivamente como possuindo um sentido, ela é,
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
entretanto, reconhecida como diferente da lógica e do espírito. A filosofia não extingue
a alteridade de seu objeto, mas o pensa.
Em outros termos, mesmo se o espírito filosófico transpõe seu objeto no elemento
do pensamento e o organiza de maneira sistemática, ele o conserva como material, um
material nele mesmo perfeitamente acessível. Pode-se distinguir, por um lado, a
natureza como exterioridade radical e, de outro lado, sua interpretação filosófica como
pensamento unificando essa exterioridade. A filosofia não absorve seu objeto, mas se
contenta em idealizá-lo. Ela não o abole, mas o subordina. De certo modo, se vê aqui
como o conceito da Aufhebung permite evitar as aporias da coisa em si kantiana. A
filosofia da natureza não consiste, assim, em conceber a natureza como um ser lógico,
mas em pensar a aplicação da lógica à natureza. Ela não é cega ao caráter
originariamente não lógico de seu objeto, uma vez que, precisamente, ela mostra o
sentido dessa não logicidade.
Um processo sem fim de supressão da exterioridade
Por outro lado, numerosos são os textos que opõem o “conceito” e o “ser” da
natureza. Haveria assim, nessa, uma contradição entre o seu princípio e a sua efetuação:
“A natureza é divina em si, na idéia; mas, como é, não corresponde seu ser a seu
conceito”.23 Pode-se dizer, aqui, que a natureza é objetivamente cindida em dois pólos
opostos: de uma parte sua forma essencial, de outra seu conteúdo a cada vez dado na
experiência: “a idéia eterna imanente à natureza [...] efetua ela mesma a idealização, a
suprassunção do ‘fora-um-do-outro’, porque essa forma de seu ser-aí está em
contradição com a interioridade de sua essência”.24 Segundo essa afirmação, a natureza
não se reduz a um pacífico encadeamento de fenômenos, pois sua essência está em
conflito com sua existência. Ora, se disse mais acima que a natureza é caracterizada, ao
mesmo tempo, pela dependência recíproca e pela multiplicidade. É então razoável
admitir que a primeira constitua o pólo essencial e a segunda o pólo existencial do ser
natural. Assim, a natureza é caracterizada pelo antagonismo entre a ligação ideal e a
multiplicidade real: “As diferenças em que se desdobra o conceito da natureza são
23
24
Enciclopédia II, § 248, Observação (Hegel, 1997, p. 30; 1970, vol. 9, pp. 27-28).
Enciclopédia III, § 381, Adendo (Hegel, 1995b, p. 21; 1970, vol. 10, p. 24).
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Gilles Marmasse
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
existências mais ou menos autônomas umas diante das outras; mediante sua unidade
originária estão, sem dúvida, em relação umas com as outras”.25 A contradição, da qual
havíamos falado mais acima, pode ser interpretada dinamicamente, no sentido em que a
ligação luta continuamente contra a dissociação. É precisamente esse conflito que
assegura o surgimento de momentos naturais cada vez mais concretos.
A passagem acima citada permite, de outro ponto de vista, eliminar uma
interpretação possível da essência interior da natureza, segundo a qual essa essência
estaria na origem, no sentido de instância produtora dos fenômenos naturais. Na
realidade, a essência não é a instância de engendramento dos seres existentes, mas a de
sua organização: ela dá conta, diz o texto, da unidade das coisas naturais – uma unidade
que resta, entretanto, inevitavelmente incompleta. Os seres naturais estão pressupostos
em sua existência – pois sua produção não é senão uma reprodução –, e a essência
interior não intervêm senão para trabalhar em sua colocação em forma [mise en forme].
Consideremos, por exemplo, esse caso exemplar de relação entre o ideal e o real que é a
relação entre alma e corpo no animal. Como dissemos mais acima, a função da alma
natural é simplesmente lutar contra a tendência do corpo a adotar uma processualidade
físico-química. Pois uma processualidade, com efeito, está constantemente a ponto de se
fazer valer no corpo, e a tarefa da alma é, então, orientar a atividade dos órgãos ao lhes
fazer servir à conservação do todo: “Quando a alma escapa do corpo, as potências
elementares da objetividade entram em jogo. Essas potências estão, por assim dizer,
permanentemente armando o bote para dar início ao seu processo no corpo orgânico; e a
vida é o combate constante contra isso”.26 Se vê aqui que o corpo é capaz de ser, e de ser
ativo, independentemente da alma: contudo, sua atividade não é então orgânica, mas
físico-química, o que lhe destina à decomposição. A função da alma do ser vivo não é
produtora, mas organizadora. Ela tende para unificar os processos do corpo ao lhes fazer
servir aos interesses do conjunto. O corpo natural é duplo enquanto tensionado entre
dois pólos, um como princípio de organização, o outro como dado existente múltiplo.
O fato é que nunca a natureza é uma calma multiplicidade, mas ela tende
continuamente em direção à unidade. Um texto da Razão na História mostra isso de
maneira particularmente clara a propósito do peso da matéria: “A matéria tem peso na
25
26
Ibid. (Hegel, 1995b, p. 16; 1970, vol. 10, p. 19).
Enciclopédia I, § 219, Adendo (Hegel, 1995a, p. 355; 1970, vol. 8, p. 376).
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85
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
medida em que existe nela uma impulsão em direção ao centro. Ela é essencialmente
composta e constituída de partes puramente singulares as quais todas tendem em
direção ao centro; não existe assim unidade na matéria. Ela subsiste como uma
exterioridade recíproca e procura sua unidade; ela procura seu contrário e se esforça
para suprimir-se a si mesma. Se ela chega a isso, ela não será mais matéria; ela terá
desaparecido como tal”.27 De um modo mais geral, a natureza deve ser compreendida
como uma tendência em direção a sua própria abolição, na medida em que ela se
esforça para suprimir a sua multiplicidade. Tal é a fonte de seu dinamismo. O corpo em
queda livre tende a anular a distância que o separa do centro, os planetas giram em torno
do sol porque eles procuram um lugar que não estaria nem aqui nem ali, o ácido e a base
se esforçam para um neutralizar o outro, etc.
Entretanto, a ligação natural fica parcial e, assim, inevitavelmente destinada à
caducidade, pois ela associa os seres particulares do exterior e não do interior. Ela não
produz uma unidade, mas sempre um agregado. Por exemplo, instantes sucedem
instantes, mas não se alinham [recourbent] em uma memória. Da mesma maneira, os
membros do corpo se destroem e se substituem continuamente, mas eles não se
produzem eles mesmos, como uma forma plasticamente expressiva de um sentido
unitário – diferentemente do corpo representado na escultura ou na pintura. O mal
infinito da natureza, como um eterno retorno do mesmo, traduz sua incapacidade de se
transformar em uma verdadeira totalidade: “A mudança é, por conseguinte, aqui, um
percurso circular, uma repetição incessante do mesmo. Em todas as mudanças da
natureza, nada surge de novo. É nisso que a natureza é entediante”.28 Na medida, com
efeito, em que ela é originariamente desprovida de universalidade, ela não pode senão
reproduzir indefinidamente sua finitude.
A natureza é um organismo vivo?
Como, então, pensar a articulação dos momentos da natureza? Comecemos por
evocar duas interpretações opostas, as quais devem ser consideradas seriamente, mas
que, entretanto, se expõem a objeções complementares. De acordo com a primeira
27
28
Hegel, 1955, p. 55.
Hegel, 1996, p. 38.
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86
Gilles Marmasse
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
hipótese, os momentos da natureza constituiriam regiões ontológicas sem relação mútua
objetiva, no sentido de que eles não se determinariam uns por meio dos outros. O
filósofo disporia, como num quadro, os diferentes níveis da natureza, mas uns não
teriam influência sobre os outros. A natureza surgiria “em bloco”, sem que a interação
dos diversos momentos lhes fosse constitutiva. A oposição de Hegel ao transformismo
indubitavelmente fornece armas a este tipo de leitura, mas é preciso interrogar-se até
que ponto.
De acordo com a segunda hipótese, a organização em momentos corresponderia à
metamorfose de uma natureza que, nesta transformação, conservaria, no entanto, a sua
identidade. Em uma palavra, a natureza seria um organismo vivo. O sucesso da
interpretação organicista da natureza, no meio germânico do primeiro terço do século
XIX, torna plausível tal hipótese de leitura. Para Schelling, por exemplo, a natureza é,
de fato, uma totalidade viva que se desenvolve de maneira finalizada: “A natureza,
como unidade na infinitude, é para si um todo e traz em si todas as “potências” das
coisas, sem, contudo, ser particularmente nenhuma dentre elas. Nela se encontra o prius
absoluto de cada uma, nela está a unidade, a infinitude e a identidade das duas, cada
uma sem mistura na mesma clareza e, todavia, em uma unidade eterna. […] A natureza
que se esforça com toda a sua aplicação e toda a sua arte para criar plantas de espécie
divina, aspira, através de todas as formas, à unificar, tanto quanto possível, a unidade
essencial com a unidade contingente”.29 Ora, os textos de Hegel parecem, por sua vez,
multiplicar as menções a um objetivo e a um fim da natureza considerada como um
organismo. Segundo o § 251 da Enciclopédia, “a natureza é em si um todo vivo”.30 A
Lição de 1821/22 precisa: “O sistema dos níveis […] deve ter um objetivo determinado
e um fim último”.31 O problema da articulação dos momentos da filosofia da natureza
parece, assim, resolvido: a natureza seria viva, o seu desenvolvimento responderia a um
télos imanente, ela seria, nesse sentido, racional e teria por objetivo produzir-se como
espírito.32
Imediatamente, contudo, objeções se apresentam. Se a natureza constituísse uma
29
Schelling, Aforismos para introduzir à Filosofia da Natureza, SW. 7, 181-183.
Enciclopédia II, § 251 (Hegel, 1997, p. 38; 1970, vol. 9, p. 36).
31
Hegel, 2002, p. 20. Cf. ibid., p. 4: “poderíamos evocar no homem o sentido do inesperado da natureza
para expor a insuficiência desta maneira [reflexiva] de considerar a natureza. Todo sentido não esperado
apreende a natureza como um todo vivo, pressentindo que ela é uma unidade”.
32
Cf. Filion, 2007, p. 139-143.
30
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Gilles Marmasse
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
totalidade que visa um objetivo unitário, a alienação da lógica como natureza não seria
uma simples aparência? A natureza não conservaria, então, uma plena logicidade ou –
ponto de vista oposto, mas, igualmente incômodo – não revelaria já, mais ou menos
sub-repticiamente, a esfera espiritual? De resto, como admitir que a natureza seja viva,
no seu conjunto, enquanto que a vida é apenas o seu momento último? Na própria física
orgânica, constata-se que não há vida em geral, mas somente uma multiplicidade de
vivos. Aliás, o conceito de alma do mundo, posto anteriormente por Schelling, brilha
pela sua ausência na filosofia hegeliana da natureza. Significativamente, a alma do
mundo apresenta-se apenas na filosofia do espírito, e com um sentido muito
desvalorizado, uma vez que ali designa a receptividade indeterminada da alma humana
em relação à natureza exterior.33 Contudo, há mais: se lermos rigorosamente os textos
evocados acima, constatamos que eles determinam a natureza como viva em si ou de tal
maneira que o seu fim último é um dever-ser. Estes textos, longe de resolverem o
problema, apenas o tornam mais agudo.
Uma metamorfose apenas interna
Com novos recursos, tentemos compreender o princípio de desenvolvimento da
natureza lendo o § 249 da Enciclopédia. Este texto, que retoma afirmações já
formuladas no § 97 da Enciclopédia de Nuremberg,34 concentra, com efeito, as
explicações e as dificuldades do pensamento da passagem ao seio da natureza:
A natureza é para considerar-se como um sistema de [estágios ou] degraus dos
quais necessariamente um procede do outro e é a verdade mais próxima daquele
[degrau] do qual resulta; não porém de modo que um seja naturalmente gerado pelo
outro, mas na idéia interna constitutiva do fundamento da natureza. A metamorfose
acontece só ao conceito como tal, pois só a alteração deste é desenvolvimento. Mas
o conceito é na natureza parte só algo interior, parte existindo apenas como
indivíduo vivo; a este, somente, fica limitada a metamorfose existente.35
Na verdade, este texto parece afirmar coisas contrárias. Por um lado, os momentos
33
34
35
Cf. Enciclopédia III, § 389, Adendo (Hegel, 1995b, p. 45; 1970, vol. 10, p. 46).
Cf. Propedêutica Filosófica (Hegel, 1970, vol. 4, p. 33).
Enciclopédia II, § 249 (Hegel, 1997, p. 33; 1970, vol. 9, p. 31).
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Gilles Marmasse
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
ocorreriam uns a partir dos outros. Por outro lado, contudo, a metamorfose dos
momentos teria validade apenas “conceitual”. Como conciliar estes dois conjuntos de
afirmações?
A hipótese que gostaria de defender é a seguinte. Haveria uma relação genética
objetiva dos diferentes momentos da natureza, entretanto, estes não resultariam de um
fim comum e não concerniriam de modo algum a um só e mesmo ser. Em outras
palavras, os seres naturais seriam uns para os outros, mas a natureza não poderia ser
pensada como um organismo que apresenta um fim universal. Os momentos ocorreriam
uns através dos outros, mas sem ligação unitária: eles não teriam uma base substancial
comum e não corresponderiam à atualização de um télos geral imanente. A força da
teoria hegeliana seria, então, a de asseverar que a alteridade constitui, nela mesma, o
princípio do advento dos momentos da natureza. Haveria condicionamento recíproco
dos seres múltiplos, mas não metamorfose de uma só e mesma Ideia.
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer estas afirmações enigmáticas segundo as
quais a passagem não é natural, mas revela apenas o conceito interior da natureza. Podese concluir destas considerações a ideia de que os momentos da natureza seriam
objetivamente indiferentes uns dos outros e que haveria relatividade mútua apenas de
acordo com o ponto de vista do filósofo? Com efeito, a sequência do texto, e os
desenvolvimentos correspondentes das Lições, mostram que se trata aqui de uma crítica
do transformismo: “Tem havido uma inepta representação dentro da filosofia da
natureza, tanto na mais antiga como na mais moderna: ver o progredir e a passagem de
uma forma ou esfera da natureza para [outra] mais elevada como produção
exteriormente-efetivada, que, entretanto, as pessoas relegam para a escuridão do
passado, com a intenção de tornar essa produção mais clara [e compreensível]”. 36 O
transformismo, tal como é criticado por Hegel, significa que um momento qualquer da
natureza resultaria da transformação de outro momento. Por exemplo, ao longo das
gerações, os peixes tornar-se-iam animais anfíbios, que se tornariam pássaros, etc. “Esta
idéia há muito tempo tem assombrado a filosofia da natureza e ainda reina”.37 O
transformismo é inaceitável para Hegel, especialmente porque a temporalidade natural é
aquela da repetição e não do progresso. Portanto, as coisas naturais são sempre já isto
36
37
Ibid., § 249, Observação (Hegel, 1997, p. 33; 1970, vol. 9, p. 31).
Hegel, 2000, p. 93.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Gilles Marmasse
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
que elas são, e não sua obra própria.38 Uma coisa pode progredir apenas na medida em
que é capaz de transcender as suas determinações dadas, resumidamente, onde ela é
idealizante. Ora, tal é o caso do espírito, mas não da natureza.
Objetar-se-á, contudo: na natureza muitos seres, especialmente os organismos
vivos, são caracterizados por uma autotransformação. Isso é certo, mas o
desenvolvimento dos organismos naturais permanece, com efeito, apenas formal. Como
se disse acima, a gênese do ser vivo, com efeito, consiste num crescimento ou numa
multiplicação, isto é, num vir-a-ser simplesmente quantitativo. Os seres naturais são
fundamentalmente imediatos, no sentido de que são como são dados e não tais como se
produzem a si mesmos. Para retornar a um exemplo evocado previamente, os leões são
todos conformes a um tipo, dado que, como tal, ele é incapaz de evoluir
qualitativamente. De um modo mais geral, a representação transformista vai contra a
concepção hegeliana da natureza, na medida em que postula uma unidade fundamental
dos seres naturais. Com efeito, se há transformação de um gênero no outro, certa
identidade é conservada de um gênero ao outro, o que é contraditório com o tema da
natureza como multiplicidade radical, e o que vem a apagar a diferença entre a natureza
e o espírito. Finalmente, o balanço é o seguinte: a recusa do “engendramento natural”,
no § 249, não serve para desqualificar toda ideia de advento dos momentos em virtude
do seu condicionamento recíproco, mas simplesmente a tese segundo a qual a gênese da
natureza deveria ser compreendida de um modo transformista.
Como compreender, então, a ideia da metamorfose “apenas interior”? Importa, de
fato, distinguir o interior e o somente interior. A interioridade é apenas interior,
unilateral, quando não chega a exteriorizar-se numa existência que lhe corresponderia.
Isto tem duas consequências correlatas: por um lado, “como algo de interior, [o
princípio existe apenas] como disposição, vocação, etc.”.39 Por outro lado, a existência
exterior não sendo atualmente determinada pelo princípio interior, o é por um ser que é
ele mesmo exterior. Em uma palavra, ela é heterônoma. Este ponto é afirmado na
Doutrina da Essência da Ciência da lógica: “O germe da planta, a criança, não são
inicialmente senão planta interior, homem interior. Mas, por esta razão, a planta ou o
38
Cf. Bonsiepen, 1986, p. 157.
Enciclopédia I, § 140, Adendo (Hegel, 1995a, p. 263; 1970, vol. 8, p. 276) [“Assim, por exemplo, a
criança, enquanto homem em geral, na verdade é um ser racional; só que a razão da criança como tal é
inicialmente só como um interior, isto é, como disposição, vocação etc.”; p. 263].
39
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Gilles Marmasse
A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
homem são, como germe, algo de imediato, algo de exterior que ainda não se deu a
relação negativa consigo mesmo, algo de passivo, de entregue ao ser-outro”.40 O
desenvolvimento do germe é condicionado pela terra que lhe serve de matriz e a criança
vê a sua vontade sujeita à autoridade dos seus pais ou de seus mestres.41 Assim, quando
Hegel afirma que, na natureza, o conceito é apenas interno ou que a metamorfose ocorre
apenas no conceito, ele entende que os seres naturais são fundamentalmente passivos e
a cada vez mediatizados, não por uma essência interior, mas por um dado exterior, ou
seja, por um outro ser natural. De modo mais geral, o desenvolvimento da natureza pode
ser explicado somente a partir do conflito recíproco de seus componentes. No entanto,
como este desenvolvimento passivo provém do mau infinito, ela é ao mesmo tempo a
procura de uma processualidade autônoma. A autodeterminação está presente “em si”,
como termo de um progresso nunca realizado.
A relatividade dos momentos, princípio do progresso sistemático
Finalmente, o desafio argumentativo do § 249 é duplo: refutar a tese comum do
transformismo natural e mostrar a especificidade da natureza negando-lhe um tipo de
desenvolvimento que é verificado, na esfera real, apenas pelo espírito, a saber, o
desenvolvimento autônomo de um sujeito. Como compreender, então, a dinâmica
sistemática da natureza? Os momentos não se produzem uns pelos outros, mas
pressupõem-se reciprocamente. Eles já estão todos desde sempre lá, mas a sua vida
consiste em se reproduzirem ao negarem-se mutuamente. O vir-a-ser da natureza não é
a autotransformação de uma entidade que continuaria a ser fundamentalmente idêntica a
si mesma, como no espírito, mas o conflito repetitivo de uma multiplicidade de
entidades dadas, e que se contentam, no seu conflito, em proliferar de maneira
monótona. Por exemplo, qual é a relação entre o tempo e o espaço? Um e outro, como
sequência indefinida de seus componentes próprios, já estão sempre lá: são
fundamentalmente dados. Contudo, existem a título de opostos recíprocos. O tempo é
40
Ciência da Lógica II, Hegel, 1970, vol. 6, p. 184.
Já foi corretamente apontado o caráter autoritário da pedagogia hegeliana, expresso, por exemplo, na
seguinte sentença: “Assim como a vontade, também o pensamento deve começar pela obediência”
(Textos Pedagógicos, Hegel, 1970, vol. 4, p. 332). Esta concepção está associada a uma precisa análise
metafísica: o que é incoativo é incapaz de se desenvolver por si e requer uma mediação exterior.
41
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
dado, mas é dado a título de negação do espaço e vive-versa. Mesmo quando os dois
momentos não se produzem um ao outro, se um não fosse, o outro não seria. O mesmo
ocorre, para tomar outro exemplo, na relação das espécies animais: estas não se geram
mutuamente, mas desenvolvem-se umas contra as outras, em relações de concorrência e
predação. A concepção hegeliana da gênese da natureza associa assim a imediatidade, a
relatividade e a repetição.
Pode-se, no entanto, falar da “Idéia interior da natureza” no singular, na medida em
que cada ser natural é habitado por uma mesma tendência. Trata-se do se fazer valer em
detrimento dos outros e, assim, de unificar a alteridade sob sua lei particular. Há, por
conseguinte, “em si” uma identidade fundamental dos seres naturais: “A vida eterna da
natureza é [...] que a idéia se apresente em cada esfera da maneira como pode
apresentar-se em tal finitude, assim como cada gota de água dá uma imagem do sol”.42
A proliferação dos seres naturais não permite, então, que alguns dentre eles realizem de
forma adequada esta tendência. Por exemplo, por que existe uma extensão interminável
do espaço? Porque nenhum ponto do espaço é total. Por que há uma sequência
sempiterna de gerações animais sempre novas? Porque nenhum animal chega a ser por
si. O paradoxo da natureza é que ela procura o seu remédio na sua doença, a saber, a
multiplicidade.
A especificidade da filosofia da natureza de Hegel consiste em dar conta da origem
dos momentos sem pressupor a sua unidade genérica. Os momentos não são “autistas”,
pois estão em relação recíproca. Contudo, não há princípio positivo de identificação.
Eles são realmente relativos, mas é pelos seus conflitos multiformes que se explica a sua
atividade. A originalidade da natureza, no ciclo lógica-natureza-espírito, concerne ao
fato de que nela os seres não remontam de um princípio comum, mas, no entanto, se
determinam mutuamente. Em razão disso, a natureza constitui um encadeamento de
fenômenos que permanece desprovido de razão. A natureza é uma gênese perpétua (o
sentido antigo do physis: “nascimento”, é retomado), entretanto não é a gênese de um
ser, mas a de uma multidão de seres mutuamente hostis. Porque não há télos geral da
natureza, esta não é um sujeito. Certamente, há subjetividade na natureza, por exemplo,
nos organismos vivos, mas a natureza, como tal, não é subjetiva. A natureza é sem
finalidade, tanto em relação à outra coisa quanto a seu próprio respeito. Ela é habitada
42
Enciclopédia II, § 252, Adendo (Hegel, 1997, p. 42; 1970, vol. 9, pp. 39-40).
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
por uma tendência, mas esta é cega: a natureza visa simplesmente sua reprodução ao
idêntico. Nesse sentido, não se poderia identificá-la com a natureza schopenhaueriana?
Não, porque a natureza, de acordo com Schopenhauer, reporta à vontade una, imutável,
e incondicionada. Pelo contrário, a natureza hegeliana não se reporta a nenhuma
entidade supranatural, ela é estritamente múltipla e variável, e tudo nela é condicionado.
Para Schopenhauer, a vontade como coisa em si é a substância oculta da natureza
fenomenal; para Hegel, em contrapartida, a natureza não é outra coisa senão a
multiplicidade dos seus fenômenos.
Há, por conseguinte uma gênese da natureza, no sentido de que os momentos se
produzem uns contra os outros. No entanto, a vida destes momentos não é nunca
inovadora, mas constitui a simples repetição daquilo que já teve lugar. A natureza, para
Hegel, não evolui de nenhuma maneira. Sabe-se que a noção de Ideia designa uma
totalidade. Ora, há totalidade verdadeira apenas se ela possui um princípio universal
que dá conta da série das suas determinações particulares. Tal não é, seguramente, o
caso da natureza. No entanto, esta tende a se desfazer de sua exterioridade, ainda que
esta luta seja vã, dado que se opera apenas sobre um modo exterior. Por exemplo, um
animal qualquer é, certamente, gerado por seus congêneres e depende do seu ambiente:
no entanto, a violência que ele desenvolve em relação aos seus semelhantes e ao seu
meio constitui, sob a forma do mau infinito, uma atividade de autonomização. De um
modo mais geral, a dependência recíproca dos fenômenos da natureza significa que esta
última é caracterizada por uma infinidade de ligações finitas: se não é uma totalidade
efetiva, em si e para si, é, no entanto, uma totalidade em si, como adição dos seres
naturais justapostos, e é precisamente isto que Hegel exprime, ao dizer que a natureza é
a Ideia fora de si ou a Ideia na forma do ser-outro. Desse ponto de vista, o autor da
Enciclopédia está do lado dos Antigos ou dos Modernos? Não se pode responder de
maneira simples. (a) A natureza é, de fato, no entender de Hegel, como dos Antigos,
uma ordem hierarquizada e dinâmica. Contra os Modernos, ele se recusa a fazer da
natureza o meio inerte dos movimentos que se produzem nela, e considera que o ser
natural é caracterizado por uma tendência imanente à supressão de sua exterioridade.
Além disso, se considerarmos que a ciência moderna caracteriza-se não pela sua
fidelidade aos dados da observação ingênua, mas, ao contrário, pelas abstrações que
opera (abandono do estudo da causa, estudo de casos limites, geometrização dos
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A natureza como objeto sensível, múltiplo e contraditório
Gilles Marmasse
fenômenos, produção de um espaço experimental sui generis…), Hegel está mais
próximo dos Antigos do que dos Modernos. (b) Em contrapartida, como estes últimos, o
autor da Enciclopédia coloca em primeiro plano as determinações quantitativas dos
seres naturais, bem como sua exterioridade e sua relatividade recíproca. Além disso,
contra os Antigos, ele distingue estritamente a ordem natural e a ordem humana e nega
à natureza qualquer normatividade em relação ao espírito, considerando, pelo contrário,
que aquela está destinada a ser instrumentalizada por este. (c) De certa maneira, o autor
da Enciclopédia tende, então, a operar a síntese das duas épocas. Pode-se fazer aqui
uma analogia com o seu pensamento político. Hegel permanece próximo dos Antigos ao
definir o Estado como uma unidade integrativa que triunfa sobre os indivíduos. Em
contrapartida, ele é moderno nisto que faz da liberdade o desafio da atividade política.
De maneira análoga, a propósito da natureza, continua a ser próximo dos Antigos pela
sua denúncia do sensível múltiplo. Em contrapartida, é moderno negando à natureza
qualquer razão de ser interna, e fazendo do encadeamento exterior dos fenômenos a sua
característica própria.
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Artigo recebido em setembro de 2009
Artigo aceito para publicação em abril de 2010
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 96-112
Comienzo, concepto y método, como
antecedentes del tránsito de la idea a
la naturaleza
Jorge Eduardo Fernández*
_______________________________________________________________________________
Resumen: La corroboración más nítida de la relación entre comienzo y concepto la
encontramos en la consideración del método que Hegel desarrolla al final de la Ciencia de la
lógica. Con la consideración del método Hegel retoma la exposición del comienzo que
finalizará con el libre desprenderse (freis entlassen) de la idea en la naturaleza. Dicho pasaje
se encuentra en el último capítulo de la Lógica que Hegel dedica a “La idea absoluta”. En él el
comienzo, tal como ha ido efectuándose en el curso de la obra, es considerado una
anticipación “defectuosa” del método, y el método es expuesto como la cumbre más elevada
del comienzo. El método es el resultado o el comienzo recuperado en su verdad y libertad, lo
positivo (das Positive) pero comprendido éste no en la inmediatez empírica de la certeza
sensible, ni en la inmediatez e indeterminación del ser, sino en la unidad especulativa del
concepto. Dice Hegel que el método es: “la simple determinidad, que puede ser de nuevo un
comienzo”. Esta similitud entre el movimiento del comienzo y el libre desprenderse de la
idea, nos permite sostener una visión de la circulación del sistema cuyo movimiento interno
conlleva una permanente negación de la totalidad, la misma es efectuada mediante la
adecuación del concepto al libre desprenderse de la idea en pos de un nuevo comenzar.
Palabras claves: Comienzo, concepto, método, naturaleza
Resumo:A confirmação mais clara da relação entre começo e conceito encontra-se na
consideração do método que Hegel desenvolve ao término da Ciência da Lógica. Com a
consideração do método Hegel retoma a exposição do começo que concluirá com o “freies
Entlassen” da idéia na natureza. Esta passagem está no último capítulo da Lógica que Hegel
dedica a "A idéia absoluta." O começo, da mesma maneira que no curso da Ciência da lógica,
é considerado uma antecipação "defeituosa" do método, e o método está exposto como o
ápice do começo. O método é o resultado ou o começo que recuperou sua verdade e liberdade,
o positivo (das Positive) não mais compreendido na imediação empírica da certeza sensível,
nem na imediação e indeterminação do ser, mas na unidade especulativa do conceito. Hegel
diz que o método é "a determinação (Bestimmtheit) simples que pode ser novamente um
começo." Esta semelhança entre o movimento do começo e o “freies Entlassen” da ideia nos
permite sustentar uma visão do caráter circular do sistema cujo movimento interno sustenta
uma permanente negação totalidade. O mesmo é feito por meio da adaptação do conceito para
o livre liberar-se idéia à procura de um novo começar.
Palavras-chave: Começo, conceito, método, natureza
_______________________________________________________________________________
*
Professor doutor da UNSAM (Buenos Aires). Email: [email protected]
REH – Revista Eletrônica
Estudos Hegelianos
Jul./Dez. de 2009
N. 11, v.01
pp.96-112
Comienzo, concepto y método
Jorge Eduardo Fernández
Introducción:
Este escrito, que pretende ser programático, puede servir en lo inmediato para
localizar y determinar la finalidad de la lógica del concepto, en tanto lógica subjetiva,
en la obra de Hegel y de manera particular en la Ciencia de la lógica, como una
cuestión en sí misma y como antecedente del tránsito a la naturaleza.
Sabemos que Hegel le asigna al “concepto” una significación propia y
característica. Por un lado, “concepto” abarca y al mismo tiempo se diferencia de las
acepciones anteriores, por otro, ocupa un lugar definitorio en la exposición del sistema
hegeliano que será sobrepasado en su alcance solamente por la idea.
Todo el material filosófico desplegado por Hegel encuentra en el desarrollo del
concepto un tópico clave de convergencia.
El problema, o mejor dicho la contradicción, radica en que el concepto está
supuesto en la inmediatez de todo tipo de conocimiento, y sin embargo, se comprueba al
mismo tiempo la imposibilidad de poder comenzar por él. Esta contradicción e
imposibilidad la encontramos en el comienzo de la Fenomenología del espíritu y
podemos decir que determina la necesidad de su desarrollo y la función de introducción
al sistema que cumple esta obra. Ello hace que el comienzo en sentido estricto opere
como un supuesto del desarrollo fenomenológico del concepto. El mismo se desplaza a
través de la exposición negativa – dialéctica, desplegada mediante figuras, hasta el
inicio de la Ciencia de la lógica: “Womit muss der Anfang der Wissenschaft gemacht
werden?”1 y ss. donde el comienzo es “hecho” en vías de la superación del concepto en
tanto supuesto. No obstante este “hecho”, que el comienzo se haga efectivo al iniciar la
Ciencia de la lógica, su desarrollo reaparece hacia el final de esta obra en la Lógica del
concepto en las páginas que Hegel le dedica al método.
De este modo sucinto queda presentada la relación entre comienzo, concepto y
método.
En vistas de poder desarrollar la relación entre estos tres términos, expondré en
este escrito los siguientes puntos:
1. El inicio de la Fenomenología del espíritu y el comienzo de la Ciencia de la
1
Hegel, 1990, pág. 55.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
97
Comienzo, concepto y método
Jorge Eduardo Fernández
lógica.
2. Comienzo, concepto y método en la lógica subjetiva.
3. El tránsito a la naturaleza.
1. El inicio de la Fenomenología del espíritu y el comienzo de la Ciencia de la
lógica.
La Fenomenología del Espíritu empieza, como sabemos, a partir de lo que Hegel
denomina “la certeza sensible” (Die sinnliche Gewissheit). En ella, la instancia más
inmediata del conocimiento, la contradicción del concepto y por ello también la
imposibilidad del comienzo, se encuentra en que, por un lado ella aparece a la
“suposición” como la más verdadera y cercana a la experiencia de la cosa, y por otro,
nos ofrece la verdad en su forma más abstracta y pobre.2
El inicio de la Fenomenología del espíritu concede desde sus primeras líneas la
imposibilidad de comenzar por el concepto. Lleva hacia adelante su derrotero
postergando la tarea de hacerse cargo de aquello que ya está desde el comienzo.
Podríamos decir, para explicitar mejor esta cuestión, que Hegel está pensando
aquí en aquella frase que Kant formula en la Introducción a la Crítica de la razón: “…si
es verdad que todos nuestros conocimientos comienzan con la experiencia, todos, sin
embargo no proceden de ella,…” “Wenn aber gleich alle unsere Erkenntnis mit der
Erfahrung anhebt, so entspringt sie darum doch nicht eben alle aus der Erfahrung”.3 A
partir de allí queda introducido el problema de la doble significación del comienzo, que
luego en Hegel se desdoblará en el tratamiento fenomenológico y en el lógico. Por este
motivo es que Hegel insiste en indicar que la Ciencia de la lógica supone la tarea
realizada por la Fenomenología, es decir, que para empezar por la Lógica es necesaria
la previa superación de las determinaciones fenomenológicas de la conciencia.
En un sentido general y lineal, podemos afirmar que el tránsito de la
Fenomenología a la Ciencia de la lógica se opera en el Saber absoluto. El contenido del
Saber absoluto que no se encuentra expuesto mediante figuras, como sí ha ocurrido con
el desarrollo anterior de la Fenomenología, tampoco alcanza a iniciar el despliegue del
2
3
Hegel, 1988 (en adelante: PhG), pág. 69.
B 1 (Kant, 1998, pág. 43).
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Comienzo, concepto y método
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concepto que será objeto de la Lógica.
El traspaso que opera el Saber absoluto cumple, entre otras tareas, la de
posibilitar el tránsito del lenguaje fenomenológico al lógico, de un lenguaje concentrado
en la configuración de la experiencia a otro que tiene por meta desplegar su
significancia despojada de toda representación figurativa.
En el saber absoluto las figuras, a través de las cuales la conciencia se ha ido
reconociendo a sí misma, son disueltas mediante un proceso de interiorización
(Erinnerung) y convertidas en momentos del desarrollo del saber. En este proceso de
interiorización la conciencia niega toda referencia externa, figurativa, y comienza a
reconocerse a sí misma en las figuras que antes se le oponían como objeto exterior a sí.
En este sentido el saber absoluto recupera, a modo de una maceración concentrada en su
propia interioridad, el material (Stoff) decantado a través de toda la Fenomenlogía del
espíritu.
Lo que en el saber absoluto se ha agregado es, dice Hegel: “…en parte, la
reunión de los momentos singulares cada uno de los cuales presenta en su principio la
vida del espíritu todo y, en parte, la fijación del concepto en la forma del concepto,
cuyo contenido se había dado ya en aquellos momentos e incluso bajo la forma de una
figura de la conciencia”.4
A partir de aquí la cuestión comienza a desplazarse hacia la exposición pura del
concepto. Ella tendrá en la Lógica objetiva -la lógica del ser y la de la esencia-, el
desarrollo de su “génesis”, para acceder finalmente, en la Lógica subjetiva, al
despliegue de la naturaleza subjetiva del concepto.
En la Introducción a la Lógica Hegel dice con claridad:"En la Fenomenología
del espíritu he expuesto a la conciencia en su movimiento progresivo, desde su primera
oposición inmediata respecto al objeto, hasta el saber absoluto. Este camino pasa a
través de todas las formas de las relaciones de la conciencia con el objeto, y tiene como
su resultado el concepto de la ciencia".5
La Lógica, que deberá “hacer” efectivo el comienzo absoluto de la ciencia,
supone la tarea de la Fenomenología, la cual ha partido desde su propia incapacidad
4
Hegel, 1988, pág. 522.
“In der Phänomenologie des Geistes habe ich das Bewußtsein in seiner Vortbewegung von dem ersten
unmittelbaren Gegensatz seiner und des Gegenstandes bis zum absoluten Wissen dargestellt. Dieser Weg
geht durch alle Formen des Verhältnisses des Bewußtseins zum Objekt durch und hat den Begriff der
5
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Comienzo, concepto y método
Jorge Eduardo Fernández
para hacer el comienzo.
En este sentido, en la Ciencia de la lógica Hegel se refiere al saber absoluto de
esta manera: "El saber absoluto es la verdad de todas las formas de la conciencia,
porque, como resultó de aquel desarrollo suyo, sólo en el saber absoluto se ha disuelto
totalmente la separación entre el objeto y la certeza de sí misma, y la verdad se igualó
con esta certeza, como ésta se igualó con la verdad".6
En la medida en que la Fenomenología cumple con su propósito de superar la
oposición entre el objeto y la certeza de sí que la conciencia obtiene de él, libera al
concepto de su dependencia sensorial y lo eleva como unidad del contenido del saber.
De esto se trata cuando hablamos del comienzo de la ciencia a partir de la unidad
inmediata de “lo lógico”, del ser depurado y concebido como objeto puro del
pensamiento.
“¿Con qué tiene que ser hecho el comienzo de la ciencia?”. Con esta pregunta
inicia Hegel el primer pasaje de la Ciencia de la lógica. Este pasaje ocupa un curioso
lugar en la obra, pues no pertenece a la Introducción y tampoco está contenido en la
organización de sus secciones y capítulos. Ya que no es habitual en la obra de Hegel
encontrar preguntas que titulen escritos, capítulos o pasajes, podemos nosotros
preguntarnos con cierta insidiosa curiosidad: ¿por qué en el comienzo de la Lógica nos
encontramos con una pregunta? ¿Hay alguna relación entre la naturaleza del principio y
el preguntar? Podemos además corroborar, observando simplemente el índice temático,
que el comienzo precede al ser y que al comienzo se accede mediante una pregunta.
Comprobaremos que todo esto es cierto, pero debemos observar también que la
pregunta no se cuestiona directamente por el comienzo, sino que, suponiéndolo de algún
modo, se pregunta ¿con qué? “¿Con qué tiene que ser hecho el comienzo de la
ciencia?”.
Hegel indica que esta pregunta surge en torno al debate, contemporáneo suyo7,
acerca de si es posible hallar un comienzo de la filosofía, y si éste debe ser mediato o
Wissenschaft zu seinem Resultat” (Hegel, 1990, pág. 32).
6
“Das absolute Wissen ist die Wahrheit aller Weisen des Bewußtseins, weil, wie jener Gang desselben es
hervorbrachte, nur in dem absoluten Wissen die Trennung des Gegenstandes von der Gewißheit seiner
selbst vollkommen sich aufgelöst hat und die Wahrheit dieser Gewißheit sowie diese Gewißheit der
Wahrheit gleich geworden ist” (Hegel, 1990, pág.33).
7
La referencia es al debate entre Jacobi y Schelling generado en torno a la obra de Jacobi: Von den
Göttlichen Dingen. Tenemos que considerar aquí que el planteo acerca de la inmediatez del comienzo
tuvo una significativa repercusión en el pensamiento de Hegel. Al respecto se puede leer: Gawoll, 2000.
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Comienzo, concepto y método
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inmediato. Él empieza este pasaje de manera muy parecida a como inicia el Prólogo y la
Introducción a la Fenomenología del espíritu. En los tres casos se refiere Hegel a
supuestos de la filosofía de su tiempo. En el primero habla del sentido que debe tener un
prólogo en filosofía y en el segundo de la suposición de que en filosofía antes de
comenzar por la cosa misma hay que ponerse de acuerdo acerca de si el conocimiento es
un medio o un instrumento.
En los tres casos su modo de responder es también en gran medida parecido. En
efecto, podemos suponer que esto indica mucho más que una coincidente similitud de
estilo, y que el problema del comienzo de la Ciencia de la lógica, el de la
Fenomenología, y naturalmente también el del prólogo al sistema, se encuentran
implicados.
En la mencionada Introducción Hegel señala que el conocimiento no es ni una
cosa ni la otra, ni medio ni instrumento, ni siquiera “la refracción del rayo”, sino “el
rayo mismo”. El conocimiento y el absoluto no son cosas distintas sino una y la misma
cosa. Podríamos suponer y señalar que sobre este supuesto, y en vías de su superación,
se desarrolla la Fenomenología del espíritu.
La respuesta en la Lógica no posee un estilo muy diferente. Frente al debate en
torno a si “El comienzo de la filosofía debe ser mediato o inmediato,...” señala Hegel:
“...es fácil demostrar que no puede ser ni lo uno ni lo otro”8, pues: “Nada hay en el
cielo, en la naturaleza, en el espíritu o dónde sea, que no contenga al mismo tiempo la
inmediatez y la mediación”.9
Desde esta simple consideración de los diferentes inicios, podemos ver como
tanto el contenido de la Fenomenología, como la necesidad de comenzar a partir de la
mediación y de la inmediatez, confluyen en esta cuestión del comienzo. En tanto que la
primera remite a la tarea dispensada a la Fenomenología, vista ahora como tarea previa,
necesaria para la Lógica, la segunda refiere al comienzo efectivo de la Lógica.
Por ello: “El comienzo es lógico en cuanto debe efectuarse en el elemento del
pensamiento libre que está siendo para sí, es decir en el saber puro”.10
Nuevamente en esta frase vemos que la Ciencia de la lógica supone haber
8
“…es ist leicht zu zeigen, daβ es weder das eine noch das andere sein könne” (Hegel, 1990, pág. 53).
“…nichts im Himmel oder in der Natur oder im Geiste oder wo es sei, was nicht ebenso die
Unmittelbarkeit enthält als die Vermittlung,…” (Hegel, 1990, pág. 54).
10
“Logisch ist der Anfang, in dem er im Element des frei für sich seienden Denkens, im reinen Wissen
9
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101
Comienzo, concepto y método
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alcanzado el saber puro como elemento en el cual se desarrolla el pensamiento libre, el
comienzo de la ciencia presupone el camino de depuración del saber de la conciencia y
su objeto. De este modo, para Hegel ya la Fenomenología se despliega dentro de la
esfera de la ciencia y forma parte de su desarrollo. “Ella misma es ya ciencia”, pero
sólo en un sentido inmanente, es decir, aún no desarrollado.
En el sentido que Hegel le adjudica en la Lógica, “hacer el comienzo” significa
establecer el cruce del principio con la decisión de hacerlo. De este modo se determina
la doble significación inherente al comienzo. Mediante ella se “hace” y se desarrolla el
movimiento especulativo del comienzo; podríamos decirlo como un movimiento de
permanente purificación del principio mediante la también permanente opción por la
verdad. “Sólo la decisión (Entschluß) de tomar al pensamiento en cuanto tal está
presente, la cual también puede ser considerada una arbitrariedad (Willkür)”.11
El comienzo “se hace” con “decisión” (Entschluß) y “arbitrariedad” (Willkür).
Lo que quiere decir decidirse a concebir al pensamiento en la libertad de toda
presuposición.
2. Comienzo, concepto y método en la lógica subjetiva
La finalidad de la Lógica del concepto se encuentra expresada en los primeros
renglones de la sección dedicada a la idea, allí Hegel dice: “La idea es el concepto
adecuado, lo verdadero objetivo o sea lo verdadero en cuanto tal”.12
Haciendo caso omiso a la necesidad de una interpretación exhaustiva de esta cita
y de la génesis madurativa del significado de: “objektive Wahre”, en función del
propósito de este escrito destaco la expresión “concepto adecuado”. El objetivo de la
obra de Hegel, y según él el de la filosofía y su historia, se define en torno a la tarea de
preparación para que el concepto pueda ser concebido de manera adecuada, esto es, para
que el desarrollo del concepto coincida con la exposición objetiva de la verdad de la
idea.
Este desarrollo, aquí solamente mencionado, introduce una cantidad de
gemacht werden soll” (Hegel, 1990, pág. 55).
11
“Nur der Entschluβ, den man auch für eine Willkür ansehen kann, nämhlich daβ man das Denken als
solches betrachten wolle, ist vorhanden” (Hegel, 1990, pág. 56).
12
“Die Idee ist der adäquate Begriff, das objektive Wahre oder das Wahre als solches” (Hegel, 1994, pág.
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Comienzo, concepto y método
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cuestiones significativas para comprender el pensamiento de Hegel. Las mismas quedan
reunidas en el título de esta ponencia: “Comienzo, concepto y método”, que lo podemos
desgranar de la siguiente manera:
1. Lo que Hegel se plantea en torno al problema del comienzo ahonda y supera
una filosofía que pretende comenzar a partir de la determinación de principios y/o
axiomas que sean considerados de antemano puntos de partida de su exposición. 2.
Debido en gran medida a la contradicción antes mencionada, el concepto está desde el
comienzo, pero no es posible establecer una adecuación inmediata con el comienzo
como punto de partida. En el comienzo el concepto es contradicción consigo mismo. 3.
Este desplazamiento del comienzo transforma la noción de método y lo desplaza hacia
el final de la exposición en la que el método se conforma en torno a un nuevo comenzar
que consiste en la libre exteriorización de la idea en la naturaleza.
Siguiendo este planteo dividiré mi exposición de este segundo punto en tres
cuestiones: 2.1. Lógica y concepto, 2.2. Concepto y comienzo, 2.3. Concepto y método.
2.1. Lógica y concepto:
En el pasaje de la Ciencia de la lógica titulado “Del concepto en general”, Hegel
se plantea la cuestión en sus propios términos: “Es tan imposible manifestar de modo
inmediato la naturaleza del concepto, como explicar directamente el concepto de
cualquier otro objeto” (Hegel, 1994, pág. 5). El concepto esta a la base de todo objeto,
pero es imposible comenzar por él. Buscar explicar esta afirmación de Hegel nos
conduce en principio hacia atrás, a tener que considerar la relación entre introducción y
comienzo que se remonta al inicio y tarea de la Fenomenología del espíritu, a los
Posicionamientos del pensamiento ante la objetividad y al desarrollo de la Lógica
objetiva en la Ciencia de la lógica. Todos estos pasajes cumplen de alguna manera una
función introductoria, de introducción al sistema como es el caso de la Fenomenlogía, a
la exposición enciclopédica del mismo en el caso de los posicionamientos, y de génesis
del concepto en el caso de la lógica objetiva.
Como sabemos el énfasis puesto en el problema de la introducción a la Ciencia
de la lógica, se lo debemos particularmente a Hans Friedrich Fulda. Fulda define al
205).
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103
Comienzo, concepto y método
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movimiento de la ciencia (Wissenschaft) como “El retorno de la ciencia en su
comienzo”13, lo cual puede ser comprendido además como una descripción formal del
método.
Comienzo y método se encuentran operando en cada momento del despliegue de
la ciencia, y en este sentido cada uno de ellos señala y responde respectivamente al
retorno de la inmediatez y a la necesidad de mediación. Por eso es que el método sólo
podrá tratarse al final del proceso como resultado, mientras que el permanente retorno
de la ciencia a su comienzo mantendrá su carácter introductorio. Este último se trata de
un saberse ya en la ciencia, pero aún no de la manera lo suficientemente adecuada para
comenzar.
Así resulta que el comienzo de la Lógica “hace” el comienzo que en la “certeza
sensible” había quedado en cierne, como así también podría sostenerse que la Lógica
del concepto desarrolla un nuevo posicionamiento del pensamiento ante la objetividad
el cual consiste en el desarrollo del sistema de la subjetividad.
Comentario aparte, este es un buen punto para señalar la diferencia entre la
lógica grande y la chica. La lógica chica, o enciclopédica, presupone al concepto en el
comienzo sin tener que dar cuenta esta presuposición, por ello puede empezar
afirmando: “El ser es el concepto solo en sí”14. En cambio la lógica grande se encuentra
con el problema de hacer el comienzo, de disolver este supuesto y partir de la
inseparabilidad (Untrenbarkeit) de ser y nada.
Hegel empieza el primer capítulo de la Doctrina del ser diciendo: “Ser, puro
ser, -sin ninguna otra determinación”.15 El ser inmediato indeterminado es el ser puro,
donde “puro” significa vacío de determinación. El ser indeterminado y puro, es el puro
intuir, pensar vacío, nada. Pirmin Steckeler-Weithofer desde su teoría crítica de la
significación señala: “Concepto “en sí” es la aparente inmediata referencia de
palabras, proposiciones o algunas representaciones semióticas, las cuales llegan a ser
puestas en principio como puras referencias formales, es decir, como momentos
abstractos de significación. El análisis del ser, de la lógica del ser, se ocupa
esencialmente de la crítica de cada hipóstasis madura de la significación formal, la
cual es constitutiva interna en cuanto tal de un sistema usual de un lenguaje general, o
13
14
“Die Rückkehr der Wissenschaft in ihren Anfang” (Fulda, 1965, pág. 275).
“Das Sein ist der Begriff nur an sich” (Hegel, 1991, § 84).
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Comienzo, concepto y método
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demanda de signos”.16
Lo que me interesa destacar de esta cita, es la significatividad del ser puro. Ser
en tanto concepto en sí es signo puro, carente de significación, y en esta carencia radica
la “demanda de signos”. El signo puro opera como clave del comienzo en tanto
“demanda de signos”. Ser, es el concepto vaciado de significación.
Carencia y significación, considerados como negación y posición del ser del
comienzo, se consuman ambos simultánea y conjuntamente. Con lo cual, en esta
naturaleza especulativa del ser del comienzo se consuman tanto el escepticismo como el
nominalismo. Todas las palabras o representaciones pueden ser vaciadas de significado
y puestas en función de la pura significación. Pero con el ser puro ocurre algo inverso,
puesto como concepto vacío, “nur an sich”, sigue significando. En este sentido podemos
comprender al comienzo como la prueba de resistencia semiótica cuyo resultado es que
“ser” es el único signo que significa aún vacío de significados, es el único signo
significante “nur an sich”.17
A partir de aquí se inicia la Lógica objetiva, que contiene la lógica del ser y la de
la esencia, como desarrollo de la “génesis del concepto”. En la Lógica subjetiva el
problema del comienzo es planteado a partir de la naturaleza subjetiva del concepto. La
inmediatez del ser y la reflexión exterior de la esencia han sido traspasadas, con la cual
la inmediatez del comienzo en el concepto no es ni indeterminada ni externa, sino
concebida. Es el comienzo del concepto a partir de su naturaleza genéticamente
concebida mediante la lógica objetiva.
De este modo la Lógica objetiva contiene la “Exposición genética del concepto”
y como resultado el concepto es la unidad activa del ser y de la esencia. “Génesis” y
“sistema”, ambas del concepto, son los temas de cuya articulación depende la unidad
entre las dos partes que conforman la Ciencia de la lógica. La Lógica objetiva en tanto
ha desarrollado la génesis del concepto opera el traspaso hacia la Lógica subjetiva, la
cual tiene por tarea fluidificar y dar nueva vida a la osamenta muerta de la lógica.
15
“Sein, reines Sein, - ohne alle weitere Bestimmung” (Hegel, 1990, pág 69).
“Begriff ‘an sich’ ist die scheinbar unmittelbare Referenz von Vörtern, Sätzen oder irgenwelchen
semiotischen Repräsentationen, die sich aber in der Analyse zunächst als rein formaler Bezug und d.h.
als abstraktes Bedeutungsmoment herausstellen wird. Die Analyse des Seins, die ‘Seinslogik’, beschäftigt
sich also wesentlich mit der Kritik jeder reifizierenden Hypostasierung der formaler Bedeutung, die als
solche kontituiert ist innerhal eines üblichen Systems eines allgemeinen Sprach- oder Zeichengebraucht”
(Steckeler-Weithofer, 1992, pág. 95).
17
Fernandez, 2003.
16
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Comienzo, concepto y método
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En ella el comienzo es hecho a partir del concepto como resultado que, tras la
génesis objetiva, es concebido como verdad de la substancia. El concepto como
resultado reconoce como pertenecientes a su actividad a todas las determinaciones
objetivas. En palabras de Hegel: “Así el concepto es la verdad de la substancia, y como
la manera determinada de la relación de la substancia es la necesidad, la libertad se
muestra como verdad de la necesidad, y como la manera de relación del concepto”.18 El
punto de unión y traspaso en torno al cual se define el cuño del idealismo, y en el cual
se encuentran substancia y sujeto, naturaleza y espíritu, necesidad y libertad, está
ubicado al comienzo de la Doctrina del concepto. Recién en ella es asumido como acto
de libertad, la arbitrariedad (Willkür) de la Des-cisión (Entschluß) hecha con el
comienzo la “de tomar al pensamiento en cuanto tal”.19
2.2. Concepto y comienzo:
En el concepto el comienzo alcanza la libertad del acto de comenzar. La verdad
del comienzo radica pues en la libertad del concepto y en el ulterior desarrollo de sus
determinaciones, es decir, adecuado al despliegue de la idea. Con esto podemos pensar
que toda introducción, cualquiera de las tres mencionadas, es de por sí doblemente
insuficiente: 1. porque toda introducción incluye la negación de un comienzo ya
operante y en este sentido ella misma está internamente determinada por tal suposición,
y 2. porque toda introducción conduce hasta la libertad como forma inmediata e
indeterminada del comienzo.
De este modo el comienzo es hecho a partir de la necesidad e insuficiencia de la
introducción. La introducción se desarrolla en el saberse tiempo comenzado, lo que
significa suponerse acogida en el concepto sin poder aún dar aún razón de ello. La
introducción opera como mediadora evanescente que conduce, al modo de una
retrorremisión, hacia la necesidad de hacer el comienzo. Por ello el comienzo supone la
mediación y el evanescimiento de la introducción. El comienzo es en su máxima
expresión la necesidad que ha alcanzado la libertad de hacer.
18
“So ist der Begriff die Wahrheit der Substanz, und die indem die bestimmte Verhältnisweise der
Substanz die Notwendigkeit ist, zeigt sich die Freiheit als die Wahrheit der Notwendigkeit und als die
Verhältnisweise des Begriffs” (Hegel, 1994, pág. 6).
19
“Nur der Entschluβ, den man auch für eine Willkür ansehen kann, nämhlich daβ man das Denken als
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En este “hacer” el comienzo, en esta des-cisión, se invierte la relación entre
libertad y necesidad, espíritu y naturaleza, objetividad y subjetividad. Por ello dicho
“hacer” señala, como lo ha expresado Edgardo Albizu un “kairos”, que es a la vez,
tanto “teórico, -como- práctico y poiético”.20
Del cual Ryosuke Ohashi dice: “Este instante del comienzo es el “des” de la decisión”.21 La tesis de Ohashi tiende a mostrar como el movimiento especulativo opera
una “des-trucción” del comienzo y una “re-ducción” de las categorías a la temporalidad
liberando un lugar de éxtasis. Lugar que deja espacio para “el libre desprenderse de sí
de la idea”.
En cierto sentido podemos marcar que en esta primacía de la libertad consiste el
rasgo determinante del idealismo, el cual en Hegel se efectúa en torno a la adecuación
del concepto al despliegue de la idea. Algo por el estilo ocurre con las obras de
Schelling cercanas a la primera década del 1800 y de manera especial con diferentes
versiones de las Edades del mundo y Las investigaciones sobre la esencia de la libertad
humana… . De manera semejante a Hegel, la preocupación de Schelling por el
comienzo tiene que ver con la transformación que se produce en el núcleo de su
filosofía. Tal transformación es expresada por Schelling mediante el traspaso de la
necesidad inherente a la filosofía de la naturaleza a la libertad del espíritu. El diseño del
sistema a partir de la libertad se corresponde con el desarrollo de la parte ideal de la
filosofía.
2.3. Concepto y método
Ya en el Prefacio a la Fenomenología del espíritu Hegel presenta al método
especulativo como "el ritmo inmanente del concepto". Este ritmo es expuesto en el
breve desarrollo de la “proposición especulativa”, la cual, del mismo modo que el
“comienzo absoluto” no parte de ningún principio, sino de un movimiento de
despojamiento de los principios posibles para permitir que la “cosa misma” se
despliegue sin previas determinaciones.
solches betrachten wolle, ist vorhanden” (Hegel, 1990, pág. 56).
20
Albizu, 2000, pág. 149 ss.. En la tercera parte de este trabajo señala el triple carácter: teórico, práctico y
poiético del comienzo.
21
“Dieser Augenblick des Anfangs ist das “Ent” des Ent- Schlusses,....” (Ohashi, 1984, pág. 45).
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Por ello la “des-cisión” del comienzo en tanto desencadenante del despliegue de
la verdad, alcanzará la verdad de su libertad en el libre desprenderse de la idea.
La corroboración más nítida de la relación entre comienzo y concepto la
encontramos en la consideración del método que Hegel desarrolla al final de la Ciencia
de la lógica. El método, como el concepto, no puede ser explicitado al comienzo, más
bien ocurre de manera inversa, con el método se inicia la exposición del comienzo.
Dicho pasaje se encuentra en el último capítulo que Hegel dedica a “La idea
absoluta”, la cual “es la identidad de la idea teórica y de la idea práctica” y “el único
objeto y contenido de la filosofía”. En ella el concepto es el “libre concepto subjetivo”
con lo cual, el método no es comprendido como algo exterior a él, sino como su
desarrollo en “el libre desprenderse de sí de la idea”.
El método es en este sentido la cumbre más elevada del comienzo. Y el
comienzo, tal como ha ido efectuándose, es una anticipación “defectuosa”22 del método.
Lo “defectuoso” consiste en la arbitrariedad (Willkür) del impulso (Trieb) necesario
para comenzar. El método es el resultado o el comienzo recuperado en su verdad y
libertad. Es lo positivo (Das Positive) pero comprendido éste no en la inmediatez
empírica de la certeza sensible, sino en la unidad especulativa del concepto. El cual es,
apelando a la precisión de Wolfgang Marx: “mediación de inmediatez y mediación en la
forma del ser”.23
De este modo el método es “la simple determinidad, que puede ser de nuevo un
comienzo”.24
Esta similitud entre el movimiento del comienzo y el libre desprenderse de la
idea alcanzada al final de la Lógica, nos permite sostener una visión de la circulación
del sistema cuyo movimiento interno conlleva una permanente negación de la totalidad,
es la adecuación del concepto al libre desprenderse de la idea, es decir, en pos de un
nuevo comienzo.
La Ciencia de la lógica no contiene un planteo en donde el conocimiento del
22
“Da sie (Die Methode) aber die objektive, inmanente Form ist, so muß das Unmittelbare des Anfangs
an ihm selbst das Mangelhafte und mit dem Triebe begabt sein, sich weiterzuführen” (Hegel, 1994, pág.
289).
23
“Vermittlung von Unmittelbarkeit und Vermittlung in der ‘Form des Seins’ zu sein” (Marx, 1972, pág.
115).
24
“…in die einfache Bestimmheit zusammengegangen, welche wieder ein Anfang sein kann” (Hegel,
1994, pág. 299).
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resultado pueda ser solamente entendido como la verdad del comienzo, y mucho menos
a la inversa. Es decir, que la verdad del absoluto no se encuentra sólo en el principio o
en el fin, sino por el contrario, cada momento del desarrollo contiene una arqueología y
una teleología de la mediación.
3. El tránsito a la naturaleza
Si planteásemos el tránsito de la idea a la naturaleza en términos caros a
Schelling, diríamos que, ganado el espacio propio de la libertad, se trata ahora de pensar
el pasaje de la libertad a la necesidad. En cierto sentido este planteo sirve también para
Hegel. La gran diferencia radica en la autonomía que Hegel le adjudica a la naturaleza.
En palabras tomadas de la Enciclopedia la naturaleza es: “la contradicción irresuelta” e
irresoluble, es la “caída”, el deshecho de la idea.25 En este punto radica el carácter
ambivalente de la naturaleza en el sistema hegeliano, ella es por un lado el medio para
llegar al espíritu, y por otro, es un medio que se rebela y persiste en sí misma. La
naturaleza es un resto irreducible, un medio que contiene un resto de mediación no
evanescente.
Por ello cabe considerar estos dos aspectos: 1. La naturaleza como medio, es
decir, como exteriorización de la idea, y 2. La naturaleza como esfera autónoma no
deducible de la lógica y del espíritu.
Recordemos que en el §244 con el que finaliza la lógica Hegel alcanza a afirmar
la libertad absoluta de la idea para dejarse ser en la naturaleza. “La libertad absoluta de
la idea… …se decide a desprenderse de sí como naturaleza”. Este desprenderse de sí
implica el traspaso a la naturaleza como: momento de la particularidad (Besonderheit),
primer determinado o ser-otro (Andersseins), idea inmediata o “contra-aparencia”
(Widerschein).
En el §245, el primero de la Introducción a la Filosofía de la naturaleza, Hegel
distingue el punto de vista teleológico finito de la naturaleza como algo exterior y
diferente del ser humano. “La naturaleza no contiene en sí misma el fin último”, sino
solamente en tanto el “concepto… …es inmanente a la naturaleza en cuanto tal”.
En el §246 queda definida la mirada de la naturaleza que le compete a la
25
Hegel, 1991, § 248, Obs.
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filosofía de la naturaleza. A diferencia de la física “…la filosofía de la naturaleza es
contemplación concipiente (begreiffende Betrachtung)… …contempla en su propia e
inmanente necesidad con arreglo a la autodeterminación del concepto”.
El concepto de naturaleza se encuentra definido a partir de la exterioridad, el serotro (Andersseins) de la idea. En tanto ser-otro de la idea, la naturaleza es lo otro de la
libertad absoluta, ella aparece en su inmediata “necesidad y contingencia”
(Notwendigkeit und Zufälligkeit). “La naturaleza es en sí, en la idea divina” (Die
Natur ist an sich, in der Idee göttlich…), pero tal como ella es en su “existencia
determinada” fuera de la idea, ella es “la contradicción no resuelta” (der unaufgelöste
Widerspruch).
De este modo queda planteada con toda claridad la ambivalencia de la naturaleza
en tanto ella es exterior a la idea y contiene la inmanencia del concepto. Esta
ambivalencia queda expresada en que a la naturaleza “…le es propio el ser-puesto
(Gesetztsein), lo negativo, tal como los antiguos captaron la materia en cuanto tal,
como non-ens”.
En esta misma dirección, la que sostiene que en la misma imposibilidad de una
decisión natural de la naturaleza radica la necesidad de concebirla a partir de la idea o
desde el espíritu, Hegel afirma que la naturaleza ha sido enunciada como “la caída de
la idea en sí misma” (“…der Abfall der Idee von sich selbst…”), y luego agrega que,
solamente en la inmediatez de la conciencia sensible, la cual no se sostiene en sí misma,
la naturaleza aparece como lo primero. Como queda expresado en las primeras páginas
de la Fenomenología del espíritu de 1807, la conciencia sensible no puede detenerse en
la inmediatez de su certeza sin tener que signarla en un aquí y un ahora. En la naturaleza
no sólo el “juego de formas” (“Spiel des Formen”), sino cada ente en particular es
puesto en su irresoluble contradicción. De este modo podemos agregar a la
preconcepción del concepto antes indicada, el tiempo y el espacio, como preconcebidos
o a prioris que operan en la filosofía de la naturaleza.
Quizás sea este el punto donde la cuestión se abre en su dimensión filosófica
más honda. La interpretación inmediata, ceñida a los renglones del texto, es la que nos
lleva a comprender a la naturaleza como ser-puesto y éste como negación, lo que se
corresponde con la afirmación anterior que dice que la naturaleza es “contradicción no
resuelta”. Este carácter signa, por así decirlo, la naturaleza de la naturaleza, la decisión
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Comienzo, concepto y método
Jorge Eduardo Fernández
de la naturaleza no se alcanza en la naturaleza, ella es irresuelta en sí misma, y en ese
sentido, es irresoluble.
El segundo aspecto a considerar es la referencia al concepto de materia
comprendida ésta como no-ente. Esto remite en principio a Platón (Timeo 27 d – 28 a),
pero además podemos remitirnos, por cierto de un modo más libre, a la obra de
Schelling, sobretodo a los escritos posteriores a 1802 en los cuales él se esfuerza en
realizar el traspaso de una filosofía de la naturaleza a una filosofía del espíritu, en
particular la consideración y resignificación del no-ente de raíz neoplatónica a partir de
su formulación del “nicht Seyende zu seyn” en el cual la naturaleza pulsa en el absoluto:
Weltalter 1815.26
Esto nos permitiría, por un lado, resaltar el camino que une a ambos pensadores,
Hegel y Schelling, con los aportes del neoplatonismo, pero además, por otro lado, el
tema deriva en la imposibilidad de ambos de seguir concibiendo la materia pura y
exclusivamente desde sus determinaciones exteriores. En Schelling esta cuestión deriva
en tener que pensar la relación interna entre materia y vida, y en el caso de Hegel en el
desarrollo lógico de la llamada (re) flexión interior o referencialidad inherente al Dasein
a través de la cual puede ser concebido el traspaso del ser inmediato e indeterminado al
finito “estar siendo” (Dasein).
De este modo podemos agregar a la preconcepción del concepto antes indicada,
el tiempo y el espacio, como preconcebidos o a prioris que operan en la filosofía de la
naturaleza.
De ahí en más cabe retomar el derrotero de Hegel, concebir la filosofía del
espíritu, sin olvidar que, lo más elevado a lo que aspira la naturaleza es la vida, pero la
vida comprendida pura y exclusivamente desde el horizonte dominado por la misma
naturaleza, es decir, en su estar “…abandonada a la sin razón de la exterioridad”.
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Artigo recebido em junho de 2010
Artigo aceito para publicação em agosto de 2010
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 113-124
A Crítica às Ciências Mecanicistas
na Física Especulativa de Hegel
Márcia C. F. Gonçalves*
_____________________________________________________________________
Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar que: 1º. a Filosofia da Natureza de
Hegel é uma resposta sistemática ao projeto schellinguiano de uma física
especulativa; 2ª. a crítica de Hegel ao mecanicismo moderno fundamenta-se no
diagnóstico sobre seu modo abstrato de pensar a natureza; 3ª. o resultado da crítica
hegeliana contra o mecanicismo moderno consiste em uma concepção do organismo
como superior à mecânica infinita do universo.
Palavras-Chave: Hegel, Natureza, Schelling, Mecanicismo, Organismo
Abstract: The aim of this paper is to demonstrate that: 1. Hegel's Philosophy of
Nature is a systematic response to Schelling’s project of a speculative physics, 2.
Hegel's criticism of modern mechanicism is based on the diagnosis of his abstract
way of thinking about nature, 3. the result of Hegel’s criticism of modern
mechanicism consists in a conception of the organism as superior to the mechanics of
the universe.
Keywords: Hegel, Nature, Schelling, Mechanicism, Organism
_____________________________________________________________________
O objetivo deste trabalho é explicitar a crítica de Hegel contra o mecanicismo
das ciências da natureza modernas fundado no entendimento abstrato. Esta crítica é
diretamente influenciada pelo projeto de uma física especulativa desenvolvido pela
Filosofia da Natureza de Schelling. Mas esta influência não é apenas positiva. O
processo que vai da perspectiva mecanicista, predominante na física moderna, para a
perspectiva organicista, defendida pelo jovem Schelling, é descrito por Hegel apenas
como um desdobramento processual da manifestação da “Idéia”. Neste sentido, a
organicidade da natureza, ao contrário de constituir a totalidade mesma do universo, que
poderia ser intuída intelectualmente ou apresentada imediatamente como um
pressuposto, é meticulosamente deduzida na Filosofia da Natureza de Hegel a partir de
*
Doutora em Filosofia pela Universidade Livre de Berlin (FUBerlin); professora adjunta do Departamento
de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), e-mail: [email protected].
REH – Revista Eletrônica
Estudos Hegelianos
Jul./Dez. de 2009
N. 11, v.01
pp.113-124
Márcia C.F. Gonçalves
A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
sua concepção sobre a sistematicidade necessária que possibilita e fundamenta o raro
fenômeno da vida, cuja idealidade somente o conceito é capaz de alcançar.
Para melhor desenvolver minha tarefa, dividirei este trabalho em três partes
correspondentes a três diferentes teses. Na primeira parte mostrarei de modo muito
conciso que a filosofia da natureza de Hegel é uma resposta sistemática ao projeto
schellinguiano de uma física especulativa. Na segunda parte, pretendo descrever a
crítica do velho Hegel ao mecanicismo da ciência moderna como modo mais abstrato de
conceber a natureza. Na terceira e última parte pretendo apontar as especificidades da
compreensão hegeliana de organismo em sua diferença e proximidade com a concepção
organicista de natureza de Schelling.
Parte 1 – A relação de Hegel com a Filosofia da Natureza de Schelling
A Filosofia da Natureza de Hegel foi claramente influenciada pelo projeto de
uma “física especulativa” desenvolvido pelo jovem Schelling. Contudo, ao contrário de
Schelling, que em 1797, com 22 anos, publica sua primeira obra de filosofia da
natureza, Hegel aguarda até os 47 anos de idade para publicar um sistema completo de
filosofia que inclui uma complexa e extensa obra de filosofia da natureza. Este
adiamento consciente para tratar do tema específico da natureza decorre provavelmente
da necessidade de marcar sua diferença e independência filosóficas em relação ao
amigo Schelling. Neste sentido, a filosofia da Natureza de Hegel é uma resposta
sistemática ao projeto schellinguiano de uma física especulativa.
Logo no início da introdução do segundo volume de sua Enciclopédia das
Ciências Filosóficas, reeditada pela última vez um ano antes de sua morte, Hegel
dispara uma pesada munição de críticas irônicas contra o ex-amigo fundador da
chamada física especulativa. Ele culpa Schelling e seus “amigos” românticos pelo
descrédito alcançado pela filosofia da natureza, transformada em “um instrumento sem
conceito” (begriffloses Instrument) utilizado por uma “imaginação fantástica”
(phantastische Einbildungskraft). (Hegel, 1997, pp.11-12)1 E os adjetivos pejorativos
não param por aí: “complexidade barroca e presunçosa” (ebenso barocken als
anmaßenden Getue), “mistura caótica entre empirismo e formas de pensamento
1
Hegel 1997, pp. 11-12.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Márcia C.F. Gonçalves
A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
incompreensíveis”, “beberagem”, “ausência de método e cientificidade”, “tonteria” ou
“vigarice” (Schwindeleien)... Enfim não poderia ser pior a imagem traçada aqui por
Hegel sobre o jovem filósofo da natureza, cujo sistema ele mesmo defendera em sua
primeira publicação de 1801, conhecida como Differenzschrift2, e com quem dividira
entre 1802 e 1803 a edição do Kritische Journal der Philosophie. E para marcar de vez
a diferença entre seu próprio sistema de filosofia da natureza e o aparentemente
incompleto sistema do jovem Schelling, Hegel adverte: “o que aqui vamos desenvolver
não é força da imaginação, nem fantasia: é coisa do conceito, da razão.”3
Apesar desta posição crítica, a concepção de natureza de Hegel, assim como a
Filosofia da Natureza de Schelling, se funda no projeto comum da construção de uma
física especulativa. A influência de Schelling sobre a filosofia da natureza de Hegel é
mais nítida nos chamados esboços de sistema (Systementwurfen) produzidos pelo jovem
Hegel entre 1803 e 1806. No primeiro destes esboços4, datado de 1803/04, Hegel
apresenta pela primeira vez a tese central de sua Filosofia da Natureza apresentada na
Enciclopédia das Ciências Filosóficas: a de que a natureza é “o outro do espírito”5.
Com esta tese, o jovem Hegel já expressa uma primeira recusa da tese schellinguiana
sobre a unidade imediata e originária entre espírito e natureza. Por outro lado,
entretanto, ele apresenta neste mesmo fragmento o conceito de espírito como a essência
da natureza: “Im Geist existirt die Natur, als das was ihr Wesen ist” (Dentro do espírito
existe a natureza, como aquilo que é a essência da natureza)6. No segundo esboço de
sistema, produzido em 1804/5, Hegel expõe com clareza ainda maior a tese fundamental
da alienação imediata do espírito na natureza que servirá de base para seu sistema
definitivo: a natureza, afirma o jovem Hegel, é “o primeiro momento do espírito que se
realiza” (das erste Moment des sich realisirenden Geistes), mas como “o espírito
absoluto enquanto o outro de si mesmo”7.
2
Título completo: Differenz des Fichte’schen und Schelling’schen Systems der Philosophie. É certo que
já nesse primeiro trabalho Hegel critica o dualismo de Schelling presente em seu Sistema do idealismo
transcendental, como uma estrutura polar formada por dois sistemas paralelos: um da inteligência e um
da natureza.
3
Hegel 1997, p. 12. No original: “Was wir hier treiben, ist nicht Sache der Einbildungskraft, nicht der
Phantasie; es ist Sache des Begriffs, der Vernunft” (Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften.
In: Hegel 1986 a, p. 10.
4
Ver Hegel 1975.
5
Cf. Jaeschke 2003, p. 160.
6
Citado em Jaeschke 2003, p. 161.
7
Hegel 1971, p. 177f.
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Márcia C.F. Gonçalves
A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
Na ocasião da terceira edição da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, a
chamada querela acerca da relação entre uma “filosofia da natureza” considerada
“metafísica” e a ciência da natureza, protagonizada por Cuvier e Saint-Hilaire,
certamente era do conhecimento de Hegel. Como explica Dietrich von Engelhardt, em
seu estudo de 1976 intitulado Hegel und die Chemie, a polêmica pode ser resumida na
oposição entre duas teses: a de que a idéia de unidade é constitutiva da natureza, tal
como defendia a física especulativa do jovem Schelling, e a de que esta mesma idéia é
apenas regulativa, tal como afirmava a filosofia da natureza “transcendental”. A vitória
desta última perspectiva, adotada por Cuvier e seguida por grande parte das ciências da
natureza, é, segundo Engelhardt, a grande responsável pela depreciação da imagem da
filosofia da natureza especulativa, considerada como uma espécie de irracionalismo
romântico8. Curiosamente o grande esforço de Hegel por afirmar-se como um filósofo
da natureza racional, não foi capaz de impedir que sua própria filosofia da natureza
tenha sido alvo das mesmas críticas por parte dos cientistas, para os quais a mais grave
falta do filósofo da natureza metafísico ou especulativo seria seu desconhecimento
matemático.
Obviamente, a crítica sobre o pouco predomínio da linguagem matemática na
filosofia da natureza, não deve ser ingenuamente aceita, sem que se considere sua
verdadeira intencionalidade. No que se refere especificamente a Hegel, não se pode
falar de um desconhecimento, mas sim de uma opção sistemática. Para compreender
melhor este contexto, é interessante considerar que - como mostra Walter Jaeschke em
seu Hegel-Handbuch - uma das primeiras diferenças entre a concepção de uma filosofia
da natureza esboçada por Hegel em Nürnberg entre 1808 e 1811 e aquela manuscrita em
Heidelberg em 1817, consiste em que inicialmente sua primeira sessão não se intitulava
“mecânica”, mas sim “matemática”, de modo que os conceitos de espaço e tempo
conduziam a discussões sobre aritmética, geometria e cálculos integral e diferencial. A
substituição, na parte mais imediata e abstrata da filosofia da natureza, da perspectiva
matemática pela consideração mecânica da natureza indica, segundo Jaeschke, a decisão
de Hegel por apresentar os conceitos de espaço e tempo não mais como formas
matemáticas abstratas, mas em sua “realidade”, a qual se concretiza por meio dos
8
Engelhardt 1976, p. 24.
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Márcia C.F. Gonçalves
A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
conceitos de “movimento” e “matéria”9. Ainda assim é possível interpretar esta nova
organização do sistema de filosofia da natureza como indicação que a concepção
mecânica da natureza - expressa por meio da física mecanicista dominante na idade
moderna - precisa ser e é necessariamente superada por uma concepção de natureza que
a considere como totalidade infinita.
Parte 2 - A crítica de Hegel ao mecanicismo moderno
O que aqui me interessa é menos a luta da ciência por sua emancipação em
relação à filosofia da natureza e sua recusa em aceitar o pensamento especulativo como
modo de se atingir a verdade, e muito mais o aspecto crítico, implícito na filosofia da
natureza de Hegel, contra a visão mecanicista da ciência moderna, que considera a
natureza como uma espécie de máquina desprovida de inteligência ou de um sentido
interno necessário. Esta visão mecanicista da natureza, ainda que inserida como etapa
inicial e portanto também necessária da filosofia da natureza de Hegel é de fato o
grande alvo da crítica hegeliana que serve de base para a construção de seu próprio
sistema filosófico. A crítica de Hegel ao mecanicismo moderno se expressa não
através da negação pura do mesmo, mas de sua localização como o modo mais
abstrato de conceber a natureza.
No último capítulo de suas Preleções sobre a História da Filosofia, dedicado à
exposição da chamada Filosofia da Natureza, Hegel faz uma irônica provocação aos
físicos de sua época, ao afirmar que eles pensam, mas “não sabem que pensam”10. Essa
ironia fundamenta-se sobre a tese hegeliana de que o pensamento humano se
desenvolve em determinados níveis, que vão do modo mais abstrato - e,
consequentemente, menos verdadeiro - ao modo mais concreto - capaz de compreender
a realidade em toda a sua complexidade. A falta de autoconsciência sobre o próprio
poder de conceber pensamentos já de nível racional por parte do cientista moderno,
acusada por Hegel, pode ser compreendida a partir da pretensão de manter-se nos
limites seguros do entendimento, ao qual, como pregara a “doutrina exotérica de Kant”,
não é permitido “saltar a experiência” 11 - início fundamental de todo o conhecimento
9
Cf. Jaeschke 2003, p. 208.
No original: “Die Physiker wissen nicht, daß sie denken, wie jener Engländer Freude empfand, daß er
Prosa sprechen konnte”. (Hegel 1986, vol 20, p. 426).
11
Cf. Hegel 1999, p. 5.
10
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A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
científico. Esta precaução, misturada com a recusa de qualquer conteúdo metafísico, ao
contrário de elevar a ciência moderna ao patamar da verdadeira cientificidade, a reduziu
à fixação em conceitos puramente abstratos, chamados por Hegel de “representações”
(Vorstellungen). O uso privilegiado da representação por parte da ciência da natureza
moderna a aproxima da maneira abstrata com que a religião apresenta seus conteúdos.
Somente por esse inicial nivelamento, seria possível deduzir que a crítica de Hegel ao
pensamento científico e filosófico modernos diz respeito ao seu diagnóstico de uma
tendência à fixação de determinadas verdades, a ponto destas se parecerem com dogmas
religiosos. A crítica de Hegel, contudo, não é tão simples, nem tão reducionista assim.
Quando Hegel critica a física na passagem de sua História da Filosofia anteriormente
citada, ele deixa mais ou menos claro que sua referência ao pensamento abstrato se
volta ora contra um modo unilateralmente empirista adotado pelos cientistas modernos,
ora contra um modo unilateralmente matematizante de descrever os fenômenos naturais.
Segundo ele, o pensamento concreto sobre a natureza deve obviamente considerar a
experiência, mas esta deve superar o modo puramente exterior, fundado apenas nos
sentidos, para mostrar-se como um aspecto do pensamento concreto, capaz de nortear o
verdadeiro conceito:
Os pensamentos na física são apenas formais pensamentos do entendimento. O
conteúdo mais próximo, a matéria não pode ser determinada por meio dos próprios
pensamentos, ela precisa, ao contrário, ser considerada a partir da experiência.
Apenas o pensamento concreto contém a sua determinação e o seu conteúdo dentro
12
de si, apenas o modo exterior do aparecer pertence aos sentidos .
O próprio conceito mecânico de “corpo” é considerado como representação,
assim como as fórmulas matemáticas e suas relações aplicadas na mecânica para
explicar o seu movimento. Apenas com a compreensão do movimento dos planetas,
especialmente a partir das descobertas de Kepler, Hegel reconhece uma mudança
fundamental na física e consequentemente no próprio conceito de corpo, que, agora
tomado como um “corpo universal”, aproxima-se de forma inegável dos conceitos
próprios da filosofia ou da metafísica. Se essa aproximação permite, por um lado, que
Hegel denomine a cosmologia de Newton e Kepler de mecânica absoluta, por outro
12
No original: “Die Gedanken in der Physik sind nur formelle Verstandesgedanken; der nähere Inhalt,
Stoff kann nicht durch den Gedanken selbst bestimmt werden, sondern muß aus der Erfahrung genommen
werden. Nur der konkrete Gedanke enthält seine Bestimmung, Inhalt in sich; nur die äußerliche Weise
des Erscheinens gehört den Sinnen an” (Hegel 1986, vol. 20, p. 426).
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A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
lado, ele ainda se pergunta, em sua expectativa crítica de um filósofo que desejaria ver
na ciência a superação definitiva da abstração da representação:
Quando será [enfim, que] a ciência chegará a conseguir uma consciência sobre as
categorias metafísicas de que necessita e a colocar no fundamento em lugar delas o
13
[próprio] conceito da coisa!
O grande mérito da teoria da física sobre as leis universais do movimento, em
especial aquelas que tratam da força de atração e do magnetismo, está, segundo Hegel,
na superação da chamada mecânica finita, cujas representações, embora já apresentadas
em relações recíprocas, como no caso das forças de atração e repulsão, permaneciam
ainda em um sistema insuficientemente dinâmico. Quando finalmente Hegel apresenta o
que ele denomina não mais de mecânica, mas de física, e começa a descrever os
fenômenos que nitidamente contém relações mais dinâmicas, como os fenômenos da
luz, do calor e do som, curiosamente, ele incorpora em suas descrições alguns processos
que foram desenvolvidos e concebido no âmbito da ciência da química, em uma nítida
tendência para compreender a ciência em sua forma menos abstrata como um modo de
saber que conecta diferentes dimensões da concepção da natureza.
Enquanto Schelling constrói sua física especulativa com base em sua teoria sobre as
dimensões da matéria, estabelecendo um desenvolvimento dinâmico e progressivo das
formas da natureza, e baseada em uma dinâmica dialética de caráter dicotômica e
opositiva, Hegel descreve esses e outros processos da natureza através de uma relação
dialética de caráter contraditória. Um bom exemplo dessa diferença está na descrição de
ambos os filósofos sobre a relação entre os fenômenos da luz e da gravidade. Para
Schelling, essa relação se dá fundamentalmente no nível do dinamismo orgânico, na
medida em que a luz incide na matéria, alimentando seu jogo primordial de forças
opostas, responsável pela geração, não só da vida em sua especificidade, mas da
organização que abrange também a matéria dita inorgânica. Para Hegel, em sua relação
dinâmica com a gravidade, a luz (emitida pelo sol, que é fonte de toda a vida de nosso
planeta), se revela necessariamente e contraditoriamente como obscuridade, pois que a
gravidade se caracteriza não apenas como uma relação entre o sol e os demais corpos
celestes (especialmente o nosso planeta), mas se constitui como força primordial
presente no fundo obscuro de toda matéria.
13
Hegel 1997, p. 95.
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As formas com que Schelling e Hegel transitam através de análises de fenômenos
como o magnetismo, a eletricidade, o quimismo e o desenvolvimento da vida têm a
intenção comum de afirmar uma inexorável conexão destes vários processos, a partir da
ideia de uma ordem fundamental da natureza. Esta ordem ou organização pode ser
compreendida desde sempre através do conceito de ideia. Obviamente, o filósofo da
natureza compreenderá esta organização da natureza de modo muito mais radical do que
o filósofo do espírito, para quem a razão será sempre efetivada no nível superior de uma
autoconsciência espiritual.
Em um momento mais avançado de sua exposição de uma filosofia da natureza,
Hegel quer colocar em prática o projeto schellinguiano de unificação do magnetismo, da
eletricidade e do quimismo, como modo unicamente adequado para pensar o que
realmente importa: o fenômeno da vida. A seção final da filosofia da natureza de Hegel
trata do que ele denomina de “física orgânica”, talvez por falta de uma melhor
designação. Neste capítulo, Hegel percorrerá os três clássicos reinos dos modos de
existência na face da terra: o mineral, o vegetal e o animal. Como se pode prever, estas
suas descrições estão longe de cair em lugares comuns, pois esse último momento da
concepção filosófica da natureza é exatamente destinado à ousadia de criar conexões
como raramente as ciências tradicionais da natureza ousavam tentar.
Parte 3 – A organicidade da vida segundo Hegel
Assim como Schelling, Hegel considera o universo como uma totalidade
organizada segundo princípios essencialmente racional, em especial, segundo o duplo
princípio do jogo de forças dialeticamente opostas. Contudo, ao contrário de Schelling,
Hegel não adota a concepção vitalista de uma alma do mundo, de modo a denominar
esta ordem universal, que rege, por exemplo, o movimento dos corpos celestes, de
“organismo”. Ao contrário, Hegel considera esta ordem cósmica ainda como um
mecanismo, ou, mas especificamente, como a “mecânica infinita”.
O conceito hegeliano de organismo é então reservado para o fenômeno da vida.
Em cada um dos diferentes níveis de manifestação da ideia de vida apresentados por
Hegel na última parte de sua filosofia da natureza nota-se, de forma explícita, como o
modo da ciência de trabalhar preferencialmente com representações vai dando lugar à
manifestação do próprio conceito. No capítulo sobre a natureza vegetal, Hegel faz
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A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
referência direta ao ensaio de Goethe de 1790 intitulado A Metamorfose das Plantas,
justificando inclusive a indiferença dos botânicos contemporâneos em relação a esta
obra, pelo fato de constituir uma teoria “sobre o todo” e não um tratado sobre diferentes
partes da natureza vegetal, como era a praxe científica adotada na época, fundada no
método da análise, na forma de pensar do entendimento e no modo de expressão da
representação:
Mas o interesse em Goethe vai na linha de mostrar como todas estas diferentes
partes da planta são uma vida fundamental permanecendo em si fechada, e todas as
formas permanecem apenas transformações exteriores de uma [só] e mesma essência
fundamental, não só na ideia mas também na existência – cada membro por isso
pode muito facilmente transformar-se no outro; um fugidio sopro espiritual das
formas que não chega à diferença qualitativa fundamental, mas é apenas uma
metamorfose ideal no material da planta.14
Goethe, assim como Schelling, permanecem sendo para Hegel os parâmetros
iniciais para a apresentação de uma física especulativa, uma ciência da natureza cujo
modo de articulação entre as varias compreensões dos fenômenos da natureza resulte
em uma concepção total da natureza. Mas é na descrição dos sistemas presentes no
organismo animal, tais como o nervoso, o sanguíneo e o digestivo, que Hegel elabora de
modo ainda mais explícito sua concepção de natureza como uma totalidade de sistemas.
Esses sistemas orgânicos, descobertos em seus detalhes pela medicina e fisiologia
modernas, possibilitam ao filósofo da natureza realizar as últimas conexões conceituais
possíveis neste âmbito do saber. A descoberta científica desses sistemas possibilitou o
surgimento de uma física verdadeiramente especulativa, fundada no pensamento
conceitual essencialmente dinâmico. A partir desta concepção, os processos que o
organismo realiza para a manutenção de sua vida, são concebidos como estando
intimamente conectados aos processos químicos existentes no nível das sínteses
inorgânicas, aos ciclos que envolvem os mecanismos absolutos da gravidade e da luz,
aos processos da eletricidade e do magnetismo, aos fenômenos do calor e do som.
Todos essas conexões pensadas e concebidas por uma filosofia da natureza de cunho
essencialmente especulativa parte do pressuposto de que a natureza é em si uma
totalidade sistemática movida por um princípio imanente, um princípio racional, ainda
que inconsciente. Apenas a filosofia, em seu gesto ao mesmo tempo idealista e
materialista, típico da física especulativa fundada por Schelling e adotada também por
14
G.W.F. Hegel 1997, p. 403-404.
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A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
Hegel, poderia ser capaz de apresentar essa ideia da natureza, uma ideia que se mostra
ao mesmo tempo real e concreta, dinâmica e viva. pois:
A vida só pode (...) ser apreendida especulativamente, (...) na vida exatamente existe
o especulativo. O agir continuado da vida é assim o idealismo absoluto.15
A intenção de Hegel no fim de sua Filosofia da Natureza, assim como no início
de sua Filosofia do Espírito, expostas ambas no sistema da Enciclopédia das Ciências
Filosóficas é mostrar como o fenômeno natural do organismo é fundamental para a
existência do espírito, não só por que este se manifesta originariamente na existência
humana, que por sua vez ocorre como último momento do desenvolvimento da vida
animal, mas também porque a racionalidade que começa a se expressar como idealidade
da vida tende necessariamente também a desenvolver-se de modo a tornar necessário o
surgimento de um ser consciente.
A diferença entre a tese “evolucionária” de Schelling sobre a necessidade da
passagem da inteligência inconsciente para a inteligência consciente, se difere apenas
em parte da tese hegeliana da superação da alienação do espírito na natureza através do
surgimento do ser espiritual no interior mesmo da natureza. Esta diferença se constata
através do modo essencialmente distinto com que Hegel concebe o processo de
desenvolvimento da própria natureza, segundo o qual o surgimento do espírito ocorre
como um importante salto qualitativo em relação aos ciclos de desenvolvimentos
naturais marcados ainda por círculos infinitamente repetitivos, tais como o ciclo da
planta, que começa com a semente, se desenvolve em árvore, que gera a flor, o fruto e
retorna à semente. Por ser essencialmente histórico, o desenvolvimento do espírito
rompe com a circularidade repetitiva da natureza, tornando-se assim capaz de criar
modos inovadores de cultura.
Se compararmos mais uma vez a filosofia da natureza de Hegel com a do jovem
Schelling, podemos constatar que a diferença fundamental é que Schelling admite em
um determinado momento - como modo de resolver um importante paradoxo na ideia
de evolução - a presença da história na natureza, ou - em outras palavras - de uma
racionalidade que, embora inconsciente, adormecida ou “petrificada” (como gostava de
citar Hegel16) é movida não por um mecanismo sem vida, mas por uma idealidade
15
G.W.F. Hegel 1997, p. 353.
Hegel 1995, p. 78. No original: “Wir müßten demnach von der Natur als dem Systeme des bewußtlosen
Gedankens reden, als von einer Intelligenz, die, wie Schelling sagt, eine versteinerte sei” (In: Hegel 1986,
16
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Márcia C.F. Gonçalves
A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
divina, por um fluxo produtivo infinito, que se estende desde os seres aparentemente
sem vida até os processos mais complexos do espírito. Natureza e espírito são na
filosofia do jovem Schelling unificados e indiferentes.
Enquanto Hegel entende a superioridade do espírito como modo de garantir a
exclusividade do conceito de liberdade à esfera espiritual humana, Schelling, em seu
projeto naturalista faz questão de afirmar a liberdade no interior da própria natureza a
partir do reconhecimento de que seu processo de desenvolvimento constitui uma autoorganização. Para Hegel apenas o organismo vivo busca auto-organizar-se e autosustentar-se por meio de seus processos específicos de inter-relação com o outro, que se
desdobra nos processos de nutrição e reprodução. Para Hegel, a organicidade da vida
que prepara para a existência do espírito é superior à ordem infinita do universo.
Mas os processos orgânicos ainda se limitam à circularidade má-infinita da natureza, às
carências próprias dos seres finitos naturais. Apenas na existência espiritual, alcançada
pelo ser autoconsciente, esse tipo de limitação pode ser finalmente suspensa, não por
uma espécie de mágica transformação do ser humano em ser infinito, tampouco porque
Hegel acreditava na presença no ser humano de uma “alma imortal”, como Platão. A
infinitude do espírito se funda apenas e acima de tudo em sua capacidade de suspender
os limites do espaço e do tempo e principalmente os limites da particularidade subjetiva,
para afirmar-se como a universalidade concreta do próprio gênero humano. Não em
função de sua mera generalidade biológica ou natural, capaz de sobreviver e transpassar
a finitude das múltiplas singularidades, mas sim porque o ser humano em geral produz
história, cultura, ciência e pensamento vivo.
Neste mesmo sentido a filosofia da natureza de Hegel busca menos explicar os
processos da natureza em seu desenvolvimento natural - como se o conceito de natureza
pudesse desenvolver-se por si mesmo ao longo da história da própria natureza, automovendo-se e auto-organizando-se, como pensava Schelling - e mais descrever como o
espírito humano concebe a natureza. Neste sentido, como sempre ocorre em seu
sistema, a concepção de natureza é descrita a partir de seu modo mais abstrato até
atingir seu nível mais concreto ou de maior complexidade. A concepção filosófica ou
científica sobre a vida é de fato o modo mais desenvolvido de se compreender a
totalidade mesma da natureza, não apenas porque o organismo constitui um salto
vol. 8, p. 81).
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
123
Márcia C.F. Gonçalves
A Crítica às Ciências Mecanicistas na Física Especulativa de Hegel
inegável em relação aos demais processos da natureza que envolvem apenas os seres
inorgânicos, com seu movimento aparentemente exterior, mas acima de tudo porque
compreender e desvendar os mistérios da vida prepara o espírito humano para
compreender o mistério de sua própria existência.
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Artigo recebido em junho de 2010
Artigo aceito para publicação em agosto de 2010
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº11, Dezembro - 2009: 125-133
A divisão da Ciência da Natureza na
Enciclopédia Filosófica para Classe
Superior (1808 s.)
Marcos Fábio Alexandre Nicolau*
_______________________________________________________________________________
RESUMO:Visa-se compreender a proposta de sistema que Hegel possuía em seu período
em Nuremberg, tempo em que era reitor e professor do Ginásio de Nüremberg (18081816), do qual dispomos da Propedêutica Filosófica, que se trata dos cadernos originais,
utilizados pelo filósofo em seu ensino de filosofia durante o período de 1808 à 1811,
textos que não constituem um escrito orgânico mas um conjunto de textos de
circunstância, nos quais Hegel se entrega à difícil tarefa de abrir à filosofia as mentes
juvenis, acabando por nos dar uma verdadeira síntese de seu sistema, em uma pedagogia
tentativamente simples e direta. Nessa compilação encontramos sua Enciclopédia
Filosófica para Classe Superior, que nos fornece uma Ciência da Natureza, segundo
momento do sistema, que traz a Matemática, e não a Mecânica como encontramos na
Enciclopédia berlinense, como primeira seção. Nessa divisão, que também será a da
versão heidelberguiana, a Mecânica faz parte da segunda seção, a Física Inorgânica.
Cabe-nos saber: por que Hegel deixa essa divisão? Juntamente com intérpretes como
Hösle, buscaremos compreender esta questão determinando qual o lugar da matemática
no sistema de Hegel.
PALAVRAS-CHAVE: Sistema, Filosofia da Natureza, Matemática.
ABSTRACT: This article aims at comprehending Hegel´s systematic purpose during his
time in Nuremberg, when he was headmaster and school teacher (1806–1816). From this
time, whe have the Philosophical Propaedeutics, whose original notes were used by the
philosopher during his teaching years in the period of 1808 to 1811 - texts which do not
constitute an organic writing, but a group of casual texts in which Hegel devoted himself
to the hard work of teaching philosophy to young people, finally giving us a true
synthesis of his system in a simple and pedagogical way. In this collection of notes, we
find the Philosophical Encyclopaedia of the Superior Class, yielding a “Natural Science“
as the second moment of the system, which contains Mathematics instead of Mechanics
as its first section, differently from the Berlin Encyclopaedia . In this division, which also
will be that of the Heidelberg version, Mechanics is a part of the second section, the
Inorganic Physics. This raises the question: Why does Hegel abandon this division?
Along with interpreters like Hösle, we will try to understand this question, determining
the place of mathematics in Hegel’s system.
KEY WORDS: System, Philosophy of Nature, Mathematics.
_______________________________________________________________________________
*
Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da ICA/UFC. Atualmente é
Doutorando em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira FACED/UFC, com
bolsa Funcap. Endereço para correspondência: Rua L, nº 97, Bairro Luciano Cavalcante, Fortaleza-CE,
CEP: 60810-560. E-mail: [email protected].
REH – Revista Eletrônica
Estudos Hegelianos
Jul./Dez. de 2009
N. 11, v.01
pp.125-133
A divisão da Ciência da Natureza
Marcos Fábio Alexandre Nicolau
1. Introdução: Da Lógica à Natureza
Hegel diz, no fim da Ciência da Lógica da Enciclopédia, que a idéia
na absoluta verdade de si mesma, decide-se a deixar sair livremente de si o momento
de sua particularidade, ou do primeiro determinar-se e ser outro – a idéia imediata
como seu reflexo, como natureza. (Hegel, 1995, p. 370-371)
Nesse parágrafo se origina a passagem que há da idéia absoluta, resultada da
Ciência da Lógica, para a natureza, objeto da Filosofia da Natureza. Hegel, remontando
à tradição, toma em sua filosofia do real – a saber, os momentos da natureza e espírito –
duas formas distintas de realidade, pois, como se sabe, o sistema hegeliano descrito na
Enciclopédia é formado por três estágios distintos: o da Lógica e os das acima
mencionadas Filosofia da Natureza e Filosofia do Espírito. Porém, a forma como essa
exposição se deu não fora a ideal nem para o próprio Hegel, o que é fácil perceber pela
complexidade das passagens de uma categoria para a outra e, conseqüentemente, de um
estágio ao outro no sistema. O momento por nós estudado nesse congresso, a filosofia
da natureza, é por muitas vezes negligenciado justamente por sua quase que
intransponível compreensão, pois, poucos são aqueles que se mostraram capazes, como
requer Luft (1995, p. 13-16), de realizar uma crítica interna à sua filosofia da natureza.
Falta-nos o necessário saber em matemática e ciência natural, que comprovadamente
Hegel possuía, como bem nos informa Hösle (2007, p. 313):
foi provado de modo inconteste por trabalhos orientados historicamente, que
consideraram também o contexto histórico-científico da filosofia hegeliana da
natureza, que Hegel, em quase todas as ciências naturais, estava à altura de seu
tempo.
Assim sendo, o próprio Hegel, em seu programa original, buscaria erigir para cada
uma das três partes do sistema uma obra específica e aprofundada, como nos explica
Bourgeois (1995, p. 402):
A publicação da Enciclopédia ocorreu antes do esperado, pois o caráter manual, de
resumo, só pode ser positivo quando – como é o caso da Lógica, primeira parte da
obra – já foi publicada uma obra detalhada sobre o mesmo assunto. Hegel sublinha,
lamentando, o caráter prematuro da publicação da Enciclopédia no que se refere às
duas outras partes: Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito, ainda não
desenvolvidas em uma obra correspondente. Os leitores de Hegel que, não sendo
ouvintes, não têm as explicações orais em que o filósofo desenvolvia os temas da
Enciclopédia, queixam-se da sucessiva brevidade da Filosofia da Natureza, e
sobretudo da Filosofia do Espírito.
Notemos que a natureza está, ainda, na idéia e é, ainda, a idéia, porém, em outro
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
126
A divisão da Ciência da Natureza
Marcos Fábio Alexandre Nicolau
momento de seu desenvolvimento dialético. A natureza é, assim, a idéia exteriorizada,
objetivada, na sua alteridade, é a idéia alienada. Logo, o processo dialético realizado na
filosofia da natureza ocupa no sistema hegeliano um lugar central, convicção que levou
V. Hösle a sentenciar que, no ponto de vista histórico filosófico: “quem descuida a
filosofia hegeliana da natureza está desprezando aquilo que foi a mais própria realização
filosófica de Hegel e Schelling” (Hösle, 2007, p. 311), a saber, a transposição do
idealismo subjetivo ao idealismo objetivo a partir de uma filosofia a priori da natureza;
e, do ponto de vista teórico-sistemático: “quem deixa de ler a Filosofia da natureza de
Hegel não pode nem ao menos pretender ter penetrado na estrutura da Enciclopédia de
Hegel” (Hösle, 2007, p. 311), pois ela é o momento da mediação entre lógica e espírito,
entre a idéia absoluta e o espírito absoluto.
Embora Hegel tenha ocorrido aí em inúmeros equívocos, fato no qual diversos
críticos embasam sua desconsideração da filosofia da natureza ao se propor ao estudo
do sistema, tendo-o como um momento “morto” do sistema, não se justifica
sistematicamente tal coisa.
Assim como na Lógica, a Natureza tem sua subdivisão em uma tríade: Mecânica,
Física e Orgânica. Nossa questão está situada justamente nessa subdivisão, pois em sua
Enciclopédia Filosófica para Classe Superior1, encontrada em suas anotações de aula no
período em que era professor no Ginásio de Nüremberg, Hegel opta por uma subdivisão
na qual a Matemática, e não a Mecânica, ocupa o primeiro momento da tríade. Tal
questão nos remete a outra problematização: qual será o lugar específico da matemática
em Hegel? Seria a subdivisão em questão uma tentativa de Hegel em estabelecer na
filosofia da natureza o lugar de uma filosofia da matemática? Analisemos isso buscando
primeiramente compreender o porquê Hegel propôs essa subdivisão em 1808.
2. A questão: a divisão proposta na Enciclopédia Filosófica para Classe Superior de
1808
O interesse de Hegel pela natureza, segundo Hoffheimer (1985, p. 237), já pode
1
Disposta na Propedêutica Filosófica, compilação realizada por K. Rosenkranz de “uma confusão de
papéis”, que o mesmo descobrira em 1838, esse primeiro esboço da versão enciclopédica de um sistema
da ciência situa-se no período em que Hegel ainda busca uma estrutura ou forma de seu sistema filosófico
(1807-1817), o que já fora iniciado no prefácio à Fenomenologia.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
127
A divisão da Ciência da Natureza
Marcos Fábio Alexandre Nicolau
ser antevisto entre seus períodos em Berna (1793-1796) e Frankfurt (1797-1799), por
influência do pensamento de Schiller, que, principalmente, em sua Educação Estética do
Homem analisa a dicotomia sujeito-objeto como uma separação natural ou objetiva que
acarreta uma dicotomia entre razão e natureza. Curiosamente Hegel já esteve às voltas
com esse problema, sem encontrar solução. Assim, a proposta schilleriana de superar
esse cisma através de uma síntese estética, conciliadora de sujeito e objeto, influencia
diretamente o desenvolvimento, nesse período, do pensamento hegeliano, pois, assim
como Schiller, Hegel tomará a natureza a partir de uma dupla função: como parte e
como modelo para uma reconciliação entre sujeito e objeto, ou seja, como uma
categoria concreta de mediação. Assim, torna-se a natureza um dos objetos centrais na
formação do sistema hegeliano, a ela dedica não somente a segunda parte da
Enciclopédia em suas três edições, mas também os mencionados escritos de Frankfurt,
conhecidos como Escritos Teológicos, em grande parte ocupados com a questão da
natureza, os três esboços de um Projeto de Sistema (I, II, III), frutos de uma série de
conferências dadas pelo filósofo em Iena, e o escrito, por nós analisado, presente na
Propedêutica Filosófica. Como se vê, a questão da natureza em Hegel tem um extenso
histórico, o que toma compreensível as mudanças em sua exposição estrutural ao longo
da formação do sistema, pois se trata de uma busca de construir a priori a experiência,
isto é, é a experiência da natureza transformada em pensamento.
Isso nos capacita a compreender o projeto de uma filosofia da natureza em Hegel:
tematizar a “racionalidade do real”, ou, como bem disse Oliveira (2006, p. 51), mostrar
no real a identidade originária entre ser e pensar, a conciliação entre a razão subjetiva e
a razão objetiva, portanto, a conciliação entre subjetividade e objetividade, ideal e real.
Nesse projeto de racionalização do real, Hegel buscará realizar na esfera da
natureza o mesmo intento da Lógica: uma autofundamentação. Para tal deve haver uma
preocupação com o começo, e qual deve ser o começo da filosofia da natureza? Para
Hegel, assim como para Kant2, o real se dá pelas determinações de espaço e tempo,
“abstrações existentes determinadamente, ou pura forma, pura intuição da natureza”
(Hegel, 1989, p. 45). E continua,
Mas, diferentemente da Lógica, a natureza por isso não começa com o qualitativo,
2
Embora não tomasse tempo e espaço como formas da sensibilidade, como os pensava Kant distintas dos
conceitos do entendimento, mas como as manifestações fundamentais do conceito de natureza. Cf.
Inwoods, 1997, p. 306.
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A divisão da Ciência da Natureza
Marcos Fábio Alexandre Nicolau
mas com o quantitativo, pois sua determinação não é, como é o ser lógico, o
abstratamente primeiro e imediato, mas essencialmente é o já em si mediado, ser
exterior e ser-outro. (Hegel, 1997, p. 48)
Espaço e tempo, assim como ser e nada, estão imbricados mutuamente, sendo o
tempo a negatividade do espaço posta para si (Cf. Hegel, 1997, p. 53-54), ou seja, o
tempo é a verdade do espaço, pois estão em comunicação intrínseca um com o outro.
Como bem afirma Arantes (2000, p. 29), dizer que o tempo é a verdade do espaço
significa que o espaço, em virtude da reflexão própria a seu conceito, se toma tempo,
ou, como lemos no adendo ao §257: “A verdade do espaço é tempo, assim o espaço
vem-a-ser tempo; nós não passamos tão subjetivamente para o tempo, mas o próprio
tempo passa” (Hegel, 1997, p. 54). A partir da suprassunção imediata entre espaço e
tempo deriva-se lugar e movimento, ou seja, matéria. Note-se que espaço e tempo são
aqui tratados como meros em si, idealidades somente afirmadas juntas, ou
especulativamente, proporcionando uma “passagem da idealidade à realidade, da
abstração ao ser concreto” (Hegel, 1997, p. 62).
Feita essa simples exposição do começo da Filosofia da natureza, tomemos a
exposição que Hegel nos dá na Enciclopédia Filosófica para Classe Superior, de 1808.
Sucintamente afirma que o devir da natureza nada mais é que o devir em direção ao
espírito (Hegel, 1989, p. 44), e, o que reafirma no §249 da Enciclopédia, considera-a um
sistema de graus, promanados necessariamente um do outro a partir da ação da idéia
absoluta, subjacente a natureza. Em seu desenvolvimento dialético, a Idéia da natureza,
em seu movimento interno, ingressa em si a partir de sua imediaticidade, suprassume-se
e torna-se espírito. Esse processo tomará primeiramente o ser determinado ideal da
natureza, espaço e tempo ideais, tal momento se chamará aqui no texto da Propedêutica
“Matemática”, mas por quê?
Talvez porque o espaço seja objeto de uma ciência sintética, a geometria, já que o
espaço pode esquematizar-se, representar-se intuitivamente em uma figura real; e pelo
fato de que o tempo, ao tornar-se quantidade, passe a determinação do um, princípio da
ciência analítica do quanto: a aritmética (Cf. Hegel, 1989, p. 46-47). Talvez porque: “A
matemática aplicada aplica a matemática pura as relações de grandeza da natureza, que
ela assume a partir da experiência” (Hegel, 1989, p. 47). Mas o tempo não é uma
categoria matemática, e o espaço tratado na filosofia da natureza é o espaço da física e
não um construto matemático.
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Marcos Fábio Alexandre Nicolau
Interessante é o fato desse esquema ser reproduzido ainda na versão
heidelberguiana da Enciclopédia. Porém, em um adendo ao §259, ainda se lê na edição
berlinense de 1830:
o nome matemática poderia de resto ser utilizado também para a consideração
filosófica do espaço e do tempo. Mas, se se quisesse tratar filosoficamente as
figurações do espaço e da unidade [do um], então elas perderiam sua significação e
figura própria; uma filosofia das mesmas [figurações] viria-a-ser algo lógico ou
também algo de uma outra ciência filosófica concreta. Enquanto a matemática
considera meramente a determinação de grandezas nestes objetos e destes também,
como [foi lembrado, não o tempo mesmo, mas só a unidade em suas figurações e
ligações, [diversamente] na teoria do movimento o tempo também vem-a-ser um
objeto desta ciência, porém a matemática aplicada não é em geral nenhuma ciência
imanente, justamente porque ela é a aplicação da matemática pura a um material
dado e as determinações desse material tiradas da experiência. (Hegel, 1997, p. 6061)
Embora tenhamos nessa passagem uma justificativa dada pelo próprio Hegel de tal
estrutura, já que os adendos tratam-se do testemunho daqueles que ouviram as
explicações do próprio Hegel de suas obras e pensamentos, essa não fora efetivada nas
versões posteriores, indicando uma mudança de perspectiva do filósofo em relação a
essa ordem e nomenclatura, o que é ratificado por Hösle em nota: “Hegel parece tê-la
rejeitado logo após o aparecimento da Enciclopédia heidelberguiana; na preleção de
1819-1820, editada por Gies, lemos no capítulo sobre a divisão referente a primeira
parte: “Mecânica, não apenas matemática” (NPh, p. 11s.)”. (Hösle, 2007, p. 325)
Porém, essa questão da subdivisão empregada por Hegel no processo de formação da
estrutura da filosofia da natureza acaba por suscitar outra: qual seria o lugar específico
da filosofia da matemática no sistema de Hegel?
3. A Matemática no sistema hegeliano
Para Hösle, esse é, talvez, o problema mais difícil do sistema hegeliano, pois
Dentro da Enciclopédia berlinense, a matemática é a única ciência particular cujos
fundamentos não são fundamentados por uma disciplina filosófica regional, e que,
em última instância, não tem nenhum lugar neste sistema. Física, química, biologia,
psicologia, ciência da sociedade e do espírito – todas essas ciências têm na
“Enciclopédia” seu claro lugar sistemático. Mas onde cabe a matemática? (Hösle,
2007, p. 326)
Convencionou-se alocar a filosofia da matemática hegeliana na Ciência da Lógica,
precisamente na esfera da quantidade, na Doutrina do ser, pois aí se trabalha
diretamente com os conceitos de número e operações matemáticas, além de conter uma
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
130
A divisão da Ciência da Natureza
Marcos Fábio Alexandre Nicolau
série de notas sobre o infinito matemático, notas que chegam a quase cem páginas na
edição espanhola de Mondolfo. Tal momento é chave para compreensão da terceira e
última parte da doutrina do ser: a medida, que só pode ser vislumbrada por quem
compreendeu a infinitude do quanto, o que implica a apreensão da questão do infinito
matemático, exposto em uma seqüência de três notas. Quiçá seja por isso a sincera
advertência de Hegel para com esta parte do sistema:
o desenvolvimento da medida, que se busca no que segue, e uma das matérias mais
difíceis. Iniciaria a partir da medida imediata e exterior, e deveria proceder, por um
lado, a uma determinação progressiva abstrata do quantitativo (a uma matemática da
natureza), por outro 1ado, deveria indicar a conexão desta determinação de medida
com as qualidades das coisas naturais, pelo menos em geral. (Hegel, 1993, p. 424)
Muitos são os intérpretes que não “vacilam” em afirmar ser este o lugar de uma
filosofia da matemática em Hegel, mas existe outra corrente de intérpretes que vê na
filosofia da natureza tal lugar. Porém, somados as críticas levantadas acima sobre uma
esfera matemática na filosofia da natureza, temos uma passagem da Enciclopédia de
1830 que parece ratificar, embora com ressalvas, a primeira proposta:
A ciência verdadeiramente filosófica da matemática como teoria das grandezas seria
a ciência das medidas, mas esta já pressupõe a real particularidade das coisas, a qual
só é obtida na natureza concreta. Mas ela bem que seria – por causa da natureza
exterior da grandeza – a mais difícil de todas as ciências. (Hegel, 1997, p. 60)
Mesmo assim, a questão permanece, pois ambas as posições – a das matemáticas
pertencerem à lógica ou a filosofia da natureza – são soluções pouco interessantes.
Primeiramente porque a matemática, em seu método, não pode ser englobada em
um processo dialético, como Hegel (2001, p. 42-46) bem expôs no prefácio à
Fenomenologia do Espírito, o que inviabiliza a consideração de uma fundamentação
filosófica da matemática na estrutura da lógica, além de que, como pensa HösIe (2007,
p. 326-327), resultaria um absurdo que uma única seção da lógica fosse o fundamento
de uma ciência própria particular; por sua vez, como já fora exposto, dificilmente poderse-á considerar a matemática no âmbito da filosofia da natureza, pois, por mais que
tenhamos uma fundamentação da geometria na filosofia do espaço, não podemos
considerar os entes matemáticos como algo natural, pois são ideais.
Apesar de contarmos com trabalhos como os de T. Pinkard (1981), de I. Lakatos
(1976), e do matemático A. L. T. Paterson (1997), que mais claramente falaram sobre a
questão da matemática em Hegel, a questão encontra-se em aberto, e apresenta-se como
um desafio aos estudiosos hegelianos. E óbvio que podemos realizar tais delimitações e
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131
A divisão da Ciência da Natureza
Marcos Fábio Alexandre Nicolau
conjecturações sobre a questão, mas como diversos temas em Hegel, o lugar de uma
filosofia da matemática em seu sistema não pode ser vislumbrado a não ser através de
uma visão totalizante do sistema, sistema esse que o próprio Hegel reconheceu possuir
ainda lacunas a serem preenchidas. Assim, finalizamos com o testemunho, realizado
também sobre a questão pedagógica, de Hegel quanto a necessidade de uma obra
especifica para esclarecer tal questão, pensou ele, quando estava em Nüremberg, em
Compor um compêndio para o ensino teórico da geometria e da aritmética, tal qual
deve ser no ginásio, [...] já que em Iena e aqui eu, em minhas preleções, achei que
esta ciência, sem a intromissão da filosofia, que não cabe aqui, pode ser abordada de
modo mais compreensível e mais sistemático do que usualmente, quando não se vê
de onde tudo isto vem ou para onde vai, pois não é indicado aí nenhum fio condutor
teórico. (Briefe VI, p. 398 apud Hösle, 2007, p. 329)
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PINKARD, T., Hegel’s Philosophy of Mathematics, In: Philosophy and
Phenomenological Research, Rhode Island, v. 41, n. 4 (1981), p. 452-464.
Artigo recebido em junho de 2010
Artigo aceito para publicação em agosto de 2010
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos ano. 6, n. 11, v.1
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REH: NORMAS DE SUBMISSÃO
(Versão resumida)
1. A REH publica artigos, traduções, etc., em torno de Hegel e a filosofia especulativa
em geral e o Sistema de Hegel e seu desenvolvimento em particular;
2. Exceto resumos, resenhas e notas bibliográficas, todos os materiais submetidos
ao Conselho Editorial deverão – obrigatoriamente – conter resumo e palavras-chave
na língua em que forem escritos e em Inglês ou Alemão (para os textos em línguas
de origem latina) ou numa das línguas latinas (para os textos em Inglês ou Alemão);
3. Todo material submetido à avaliação deverá ser acompanhado – no corpo da
mensagem eletrônica (ou do e-mail) em que o mesmo segue anexo – de um Termo
de Responsabilidade, no qual o autor [e cada um de seus colaboradores, caso
existam] assume a autoria do trabalho submetido e a responsabilidade para com o
mesmo, bem como concorda com a cessão de prioridade e direitos autorais
concernentes à sua publicação pela Revista;
4. O material submetido para avaliação deverá ser enviado exclusivamente ao email: <[email protected]>, em arquivo eletrônico, formato WINWORD ou
RTF, em espaço 1,5, papel A4 (210mm x 297mm), fonte New Times Roman, corpo 12,
folhas numeradas e sem formatação, exceto as de praxe; a saber: (1) indicação de
caracteres (negrito e itálico); (2) margens de 3cm; (3) uso de aspas simples para
indicar menção; (4)•uso de aspas duplas para indicar destaque; (5) uso de itálico
para termos estrangeiros e títulos de livro e periódicos;
5. Materiais submetidos em Língua portuguesa deverão seguir as normas da ABNT,
adaptadas para textos filosóficos; materiais submetidos em outras línguas deverão
seguir o padrão internacional estabelecido pela ISO, igualmente adaptadas para
textos filosóficos;
6. Quando de sua primeira citação, o texto citado deverá ser referenciado – em nota
– de modo completo; a partir da segunda citação: caso seja em nota, a referência
deverá trazer: INICIAIS DO NOME DO AUTOR, SOBRENOME, título do texto citado,
op. cit., páginas referenciadas; caso seja no corpo do texto (ou citação dentro de
nota explicativa), deverá restringir-se ao exemplo a seguir: (MENESES, 2006, p. 85),
sem comentários adicionais;
7. Citações de obras de Hegel (numeradas por parágrafos e já vertidas para a Língua
portuguesa), no corpo do texto, deverão ser referenciadas [de acordo com suas
características próprias] – sem acréscimos adicionais – conforme o exemplo: (FE, §
394), onde: (a) “FE” é a abreviatura para a Fenomenologia do Espírito; (b) “§ 394”
refere-se ao parágrafo; quando for o caso, sugere-se o acréscimo da página, de
onde, em “FE, § 394, p. 276”, (c) “p. 276” dizer respeito à página à qual a citação ou
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referência está vinculada 138 REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN2009 (no caso, a segunda edição da versão de Paulo Meneses);
8. No caso de obras como as Linhas fundamentais da Filosofia do Direito (FD) e a
Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio de 1830 (E.), sugere-se ainda o uso
de ‘A’ para as anotações de Hegel e ‘Ad’ para os adendos de seus discípulos;
9. No caso das obras de Hegel (em alemão) ainda não vertidas ao Português (sejam
paragrafadas ou não), mesmo quando também se faça uso das versões portuguesas
ou em outras línguas, sugere-se a manutenção das iniciais do título no original [por
exemplo, ‘WdL’ para a Wissenschaft der Logik], seguidas das páginas da edição (ou
das edições) utilizada(s);
10. Citações de obras clássicas sem tradução brasileira ou citadas preferencialmente
conforme o original ou tradução em língua diversa do português do Brasil, deverão
estar de acordo com as convenções internacionais de praxe na área [exemplo:
‘PhdE’ para Phénoménologie de l’Esprit) ou indicadas em nota;
11. Citações no corpo do texto deverão ser indicadas apenas com (SOBRENOME DO
AUTOR, data e página) ou (SIGLA DA OBRA, parágrafo – se paragrafada – e página);
qualquer acréscimo deverá ser feito em nota, conforme as respectivas normas.
[Para Versão completa, clique, http://www.hegelbrasil.org/normas.pdf]
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