MESA REDONDA XVIII Simpósio de Mirmecologia O “LARVAL HEMOLYMPH FEEDING”: UM COMPORTAMENTO ALIMENTAR ORIGINAL DAS FORMIGAS (HYMENOPTERA: FORMICIDAE) S. Lacau1,2,3, C. Villemant3, B. Jahyny2,4, L.S. Ramos-Lacau1,2, J.H.C. Delabie 2, O.C. Bueno5 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Departamento de Estudos Básicos e Instrumentais, Laboratório de Biossistemática Animal, BR 415, km 3, s/nº, CEP 45700-000, Itapetinga, BA, Brasil. [email protected] 1 As formigas (Hymenoptera: Formicidae), com 12.032 espécies válidas (AGOSTI &JOHNSON, 2007) organizadas em 408 gêneros, 71 tribos e 28 subfamílias modernos e fósseis (BOLTON et al., 2005) representam a terceira família de himenópteros por ordem de importância específica. Essa grande diversidade taxonômica se completa por uma extraordinária variedade de nichos ecológicos, observando-se que as formigas dominam freqüentemente todos os habitats terrestres (WILSON & HÖLLDOBLER, 2005) e tem papéis extremamente importantes nos fluxos de energia e nutrientes ao nível dos ecossistemas (FOWLER et al., 1991). Uma das características biológicas explicando o notável sucesso ecológico desses insetos é que todas as espécies de formigas são eusociais (HÖLLDOBLER & W ILSON, 1990), o que implica: 1) superposição de, ao menos, duas gerações em determinado momento da vida colonial; 2) divisão do trabalho reprodutor entre indivíduos reprodutivos e estéreis; 3) cuidado cooperativo com a prole (WILSON, 1971). Apesar de inúmeros séculos de estudos sobre esses insetos sociais, novas descobertas originais sobre a biologia do comportamento das formigas são regularmente divulgadas na literatura, evidenciando uma grande diversidade dos seus padrões de organização social (HÖLLDOBLER & WILSON, 1990; P ASSERA & ARON, 2005). Isso é particularmente evidente quando se consideram as interações tróficas entre adultos e larvas. Por exemplo, o fato foi bem ilustrado pela descoberta de MASUKO (1986) do comportamento “vampiro” da rainha de Amblyopone silvestrii (Wheeler) (Amblyoponinae: Amblyoponini). Nas colônias maduras dessa espécie, a gine fecundada se alimenta exclusivamente da hemolinfa das suas próprias larvas, um comportamento muito original e designado como “Larval Hemolymph Feeding” (LHF). Esse estudo tem por objetivo apresentar uma síntese atualizada dos conhecimentos adquiridos sobre esse raro comportamento alimentar, que foi registrado em alguns outros gêneros de formigas depois da sua descoberta em Amblyopone. A partir de uma revisão exaustiva da literatura relativa ao LHF, o significado adaptativo desse comportamento na vida social das formigas é discutido. Apresentamos também novos registros de LHF nos gêneros Amblyopone e Prionopelta Mayr (Amblyoponinae: Amblyoponini), e assinalamos dois casos inéditos de LHF nos gêneros Odontomachus Latreille (Ponerinae: Ponerini) e Typhlomyrmex Mayr (Ectatomminae: Typhlomyrmecini) (LACAU, 2005; L ACAU et al., em prep.). MASUKO (1986) foi o primeiro a estudar a biologia de A. silvestrii. Essa pequena formiga japonesa tem operárias de 4 a 5 mm de comprimento e seus hábitos crípticos fazem dela um animal particularmente discreto. Suas colônias são monogínicas sendo maduras quando produzem sexuados, com mais de 10 operárias. Estas capturam quase exclusivamente centopéias Geophilomorpha (Myriapoda: Chilopoda) para sua alimentação e a das larvas. MASUKO (1986) descreveu o modo de alimentação da rainha nas colônias maduras dessa espécie: a gine fecundada é completamente dependente das larvas de último instar, se alimentando da sua hemolinfa. A cada comportamento de LHF iniciado, a rainha começa por antenar fortemente a larva que escolheu, manipulando-a ativamente com auxílio das suas pernas e mordendo-a em diversos pontos laterais do abdômen. Depois, invariavelmente, com auxílio dos dentículos agudos da extremidade das suas mandíbulas, a rainha perfura o tegumento da região dorso-anterior do abdômen da larva, entre dois segmentos onde a cutícula é a mais fina. As larvas são mais freqüentemente mordidas nos dois sulcos dorsais situados entre o segundo e o quarto segmento abdominal. A gota de hemolinfa fluindo da lesão cuticular é imediatamente absorvida pela rainha, que posiciona suas peças bucais inferiores sobre a ferida. Em seguida, ela permanece imóvel por alguns minutos durante os quais o movimento do seu complexo maxilo-labial é suspenso, indicando que ela está ingerindo a hemolinfa ressumando da cavidade do corpo da larva, utilizando sua bomba faringeal. Após finalizar sua tomada alimentar, a rainha abandona a larva e CEPLAC/ convênio UESC, Laboratório de Mirmecologia, Itabuna, BA, Brasil. Muséum National d’Histoire Naturelle, Laboratoire d’Entomologie, Département Systématique & Evolution, Paris, França. 4 Université Paris Laboratoire d’Ethologie Expérimentale et Comparée, Villetaneuse, França. 5 Universidade Estadual Paulista, Iinstituto de Biociência, Centro de Estudo de Insetos Sociais, Rio Claro-SP, Brasil. 2 3 Biológico, São Paulo, v.69, suplemento 2, p.121-128, 2007 121 122 XVIII Simpósio de Mirmecologia rejeita no chão uma ou duas pelotas infrabucais brancas, correspondendo a partículas sólidas da hemolinfa filtradas na entrada da faringe. Em seguida, as peças bucais da rainha são cuidadosamente limpas pelas operárias que, eventualmente, pegam e mastigam as pelotas rejeitadas pela rainha. MASUKO (1986) verificou que nas colônias bem alimentadas, o LHF não impede a metamorfose normal da maioria das larvas de A. silvestrii, as quais continuam se alimentando e conseguem finalmente se empupar dentro de um casulo. Os ferimentos das larvas sujeitas ao LHF se fecham rapidamente por coagulação da hemolinfa, permanecendo apenas cicatrizes escuras no tegumento. Cada seqüência de LHF envolve geralmente uma única larva, no entanto, a rainha pode utilizar várias vezes as mesmas larvas. Assim, o estudo morfológico de 106 larvas de último estágio de uma mesma colônia, revelou que 44 delas (43%) apresentavam uma ou várias cicatrizes, sendo que as larvas mordidas sucessivamente no mesmo ponto exibem cicatrizes de tamanho maior. Finalmente, o mesmo autor concluiu que, em situação trófica normal, o LHF é unicamente realizado pelas rainhas, sendo a hemolinfa das larvas de último instar sua única fonte de nutrientes, mesmo quando presas capturadas pelas operárias estão disponíveis. No entanto, ele constatou que as rainhas fundadoras não praticam o LHF, ao que permite a criação mais rápida das primeiras operárias. Ele observou também que as operárias praticam excepcionalmente o LHF, sendo este mais freqüente quando a colônia encontra-se faminta. Um comportamento de LHF por perfuração do tegumento foi também observado em Amblyopone oregonensis (Wheeler) por WILD (2005), assim como em Amblyopone cleae Delabie e Amblyopone armigera Mayr por LACAU (não pub.). WILD (2005) observou várias vezes o LHF da rainha e das operárias de A.oregonensis, constatando uma grande similaridade com A.silvestrii. Ele estudou principalmente os primeiros itens da seqüência comportamental, observando que a rainha e as operárias que praticam este comportamento, permanecem bastante “agitadas”. Elas manipulam as larvas rapidamente, reposicionando-as várias vezes para morder as diversas partes do seu abdômen de forma aleatória, utilizando suas mandíbulas com mais força do que no cuidado e no transporte das larvas, até conseguir perfurar seu tegumento. Como em A. silvestrii, as cicatrizes de LHF das larvas de A. oregonensis são preferencialmente localizadas nos sulcos dorsais situados entre o segundo e o quarto segmento abdominal. Eventualmente, a perfuração do tegumento larval pode ser feita nos sulcos dorsais situados entre o primeiro e o segundo, ou entre o quarto e quinto segmento abdominal. WILD (2005) observou que mais de 90% das grandes larvas de A. oregonensis apresentam cicatrizes típicas de LHF. Como em A. silvestrii, essas cicatrizes são de dimensões variáveis. WILD (2005) observou até a emissão de um jacto de corpos gordurosos durante as mordidas, o qual foi imediatamente ingerido pela rainha, testemunhando que as feridas praticadas no LHF podem ser relativamente importantes. O mesmo autor constatou o canibalismo de duas larvas sujeitas ao LHF por outras larvas e operárias. Ele também estudou a vulnerabilidade diferencial do tegumento larval às mordidas dos adultos. Testada em dois tipos de tópicos do dorso do abdômen das larvas (no meio dos escleritos e nos sulcos entre escleritos), essa vulnerabilidade se revelou notadamente maior nos sulcos entre o segundo e quarto segmento abdominal, onde justamente observam-se naturalmente as cicatrizes de LHF nessa espécie. Enfim, WILD (2005) constatou que a freqüência do LHF das operárias de A. oregonensis é relativa à disponibilidade de presas centopéias dentro do ninho, sendo que as operárias praticam somente este comportamento quando a colônia encontra-se em condição de estresse alimentar. Um LHF similar ao de Amblyopone foi igualmente encontrado em alguns outros táxons de Amblyoponinae: Mystrium mysticum Roger (WHEELER & WHEELER, 1988), Prionopelta kraepelini Forel (ITO & BI L L E N, 1998), Myopopone Roger (S MITH, 1860) e Onychomyrmex Emery (IT O em MA S U K O, 2003), e Adetomyrma veinatrix Ward (FISHER, 2006). Prionopelta Mayr representa um gênero de pequenas formigas crípticas cuja ecologia foi estudada na espécie neotropical Prionopelta amabilis Borgmeier por H Ö L L D O B L E R & WILSON (1986). Nessa espécie monogínica, a rainha alimenta-se exclusivamente de ovos tróficos postos pelas operárias e a superfície das paredes das câmaras de cria é recoberta com fragmentos de casulos. O recrutamento utiliza feromônios de pistas secretados pelas glândulas basitarsais das pernas posteriores das operárias. ITO & BILLEN (1998) estudaram a ecologia nutricional de P. kraepelini. Nessa espécie monogínica,a rainha alimenta-se principalmente por LHF e parcialmente a partir de ovos tróficos postos pelas operárias e de insetos capturados por estas. As modalidades desse LHF são muito similares às de A. silvestrii, no entanto a rainha de P. kraepelini perfura o tegumento das larvas em qualquer parte do seu corpo. Não se sabe quais instares larvais são vampirizados. LACAU (não pub.) observou colônias adultas de Prionopelta sp. cf. antillana coletadas na Bahia (Brasil). Nessa espécie, a rainha encontra-se fisogástrica e se alimenta exclusivamente a partir de LHF larval, enquanto as operárias praticam um LHF facultativo, se alimentando principalmente de pequenos artrópodes. A. veinatrix Ward é uma formiga malgaxe que se revelou tão original pela mistura dos seus caracteres morfológicos primitivos e evoluídos, Biológico, São Paulo, v.69, suplemento 2, p.121-128, 2007 XVIII Simpósio de Mirmecologia que WARD (1994) criou um novo gênero para sua descrição. Em 2001, Fisher coletou uma colônia completa dessa rara formiga numa mata seca (FISHER, 2006). Ele observou o grande tamanho da sua população (mais de 10.0000 operárias) e a sua nidificação no interior de um tronco de árvore morto e na serapilheira. A poliginia funcional da colônia, sugerida pela ocorrência de várias gines dealadas ao mesmo tempo, não foi verificada. As operárias predam artrópodes para alimentar as larvas, sendo que, tanto as gines dealadas como as operárias alimentam-se exclusivamente da hemolinfa das larvas depois de perfurar o seu tegumento (FISHER, 2006). O LHF por perfuração do tegumento foi também pontualmente relatado em algumas outras subfamílias de Formicidae. Assim, MASUKO (1986) descobriu sua ocorrência no gênero Proceratium Roger (Proceratiinae: Proceratiini). Ele observou as cicatrizes características do LHF no tegumento larval de Proceratium japonicum Santschi, Proceratium watasei (Wheeler) e Proceratium itoi (Forel), confirmando o caractere exclusivo e persistente desse comportamento da rainha somente nessa ultima espécie. Do mesmo modo, AIKAWA et al. (2002) relataram a ocorrência desse tipo de LHF em Gnamptogenys bicolor Emery (Ectatomminae: Ectatommini). Nessa espécie, a rainha ergatomórfica pratica um LHF facultativo, sendo que ela se alimenta principalmente de presas capturadas pelas operárias e, ocasionalmente, de ovos tróficos. No entanto, esses autores não informaram quais instares larvais são sujeitos ao LHF. Enfim, JAHYNY (não pub.) observou numerosas cicatrizes características do LHF no tegumento dorso-anterior do abdômen das grandes larvas de uma espécie não identificada de Odontomachus. Esse caso de LHF é o primeiro registrado na subfamília Ponerinae. O material biológico estudado provém de uma colônia que foi imediatamente fixada em álcool após a sua coletada dentro de um cupinzeiro de Nasutitermes sp. (Isoptera: Termitidae) na Bahia. Por isso, as evidências morfológicas da ocorrência do LHF nessa espécie não puderam ser completadas por observações comportamentais. Observou-se que a distribuição das cicatrizes no corpo das larvas é similar à do gênero Amblyopone. O fato de que o LHF ainda não tenha sido registrado para Odontomachus, gênero relativamente bem estudado comportamentalmente, sugere que ele seja talvez facultativo ou limitado a somente algumas espécies do gênero. As rainhas de Leptanilla (Leptanillinae: Leptanillini) alimentam-se também de hemolinfa larval. No entanto, as modalidades desse LHF são diferentes, pois são facilitadas pela aparição de um dispositivo anatômico particular no corpo das larvas. As espécies de Leptanilla estão entre as menores formigas existentes e todas têm um modo de vida subterrâ- neo e críptico, fazendo com que estejam também entre as mais raramente coletadas. Por isso, sua biologia social permaneceu totalmente desconhecida durante mais de um século, até que MASUKO (1989) capturou 11 colônias de Leptanilla japonica Baroni Urbani no Japão. O comportamento e a ecologia dessa espécie foram detalhadamente estudados por MASUKO (1989 e 1990). Ela forma pequenas colônias de aproximadamente 120 operárias cujo comprimento é de apenas 1,2 mm. Muitos dos seus hábitos são similares aos das formigas legionárias das subfamílias Dorylinae e Ecitoninae. Trata-se de um predador ultra-especializado, cujo regime alimentar é limitado à captura de centopéias Geophilomorpha (Myriapoda: Chilopoda), presas habitualmente gigantes quando comparadas ao seu próprio tamanho. As operárias forrageiam seguindo pistas químicas num pequeno raio ao redor do ninho. Não se sabe se as centopéias são localizadas por uma forrageadora que, em seguida, vai recrutar outras operárias, ou se a caça é organizada por um grupo de indivíduos, da mesma maneira que as formigas de correição. As colônias migram imediatamente quando perturbadas e as operárias são bem adaptadas anatomicamente a essas mudanças, possuindo uma extensão particular das suas mandíbulas para transportar as larvas. Estas exibem uma protuberância na parte antero-ventral do corpo para que as operárias as agarrem, facilitando assim seu transporte. As colônias de L. japonica apresentam um ciclo sincronizado com as estações quente e fria que, como nas formigas legionárias, é marcado pela alternância de um período consagrado à oviposiçao e de um outro à criação das larvas. Durante o período de criação da prole, a rainha não oviposita e possui necessidades alimentares reduzidas. Seu abdômen permanece magro, lhe permitindo correr facilmente com as operárias durante as migrações da colônia que se desloca de um sitio para outro a fim de permanecer próxima às suas presas. As operárias caçam ativamente as centopéias, presas que permitem sua própria nutrição e um crescimento rápido das larvas que se desenvolvem de forma sincronizada. Quando estas chegam no último estágio de desenvolvimento, a colônia entra na fase de oviposição. A rainha, que nunca se alimenta das presas capturadas pelas operárias, começa então a praticar um intenso LHF, explorando todas as larvas ao seu alcance, e até tomando as larvas cuidadas ou transportadas pelas operárias. No entanto, estas colocam geralmente as larvas próximas desta para facilitar o seu LHF. Esse festim de “vampiro” faz com que a rainha de L. japonica engorde muito rapidamente e seu abdômen distende-se fortemente em resposta ao aumento dos seus ovários. A rainha torna-se assim completamente fisogástrica num período de somente alguns dias. Depois, ela põe aproximadamente 100-200 ovos em três dias. Já que a rainha se Biológico, São Paulo, v.69, suplemento 2, p.121-128, 2007 123 124 XVIII Simpósio de Mirmecologia encontra então relativamente tranqüila e que nenhuma larva necessita ser alimentada, a colônia exige bem menos alimentos. Isso faz com que a captura de centopéias cesse, e as atividades das colônias se reduzam durante o inverno. Na primavera seguinte, os ovos eclodem, e um novo ciclo recomeça. MASUKO (1989) estudou detalhadamente o comportamento de LHF. A cada seqüência iniciada, a rainha de L. japonica bate uma larva de ultimo instar com as suas antenas, brevemente mas fortemente, a pega com as suas pernas e coloca suas peças bucais em contato com a superfície lateral da larva. Ela então mantém esse contato oral enquanto movimenta a larva com as suas pernas, como se fosse buscar um ponto preciso no corpo. Durante essa exploração, a rainha morde freqüentemente e levemente a larva com suas mandíbulas, especialmente sobre as bordas laterais finas dos segmentos abdominais. A rainha segura a larva com o auxílio das suas três pares de pernas e, geralmente, se deita de lado. Finalmente, ela pára sua exploração ao nível do quarto segmento abdominal onde MASUKO mostrou a existência de um minúsculo par de fendas bilaterais e estendidas dorso-ventralmente. Cada fenda (10 µm de comprimento e 1-2 µm de largura)é adjacente posteriormente a dois sulcos menores, e abre-se no centro de uma área circular e nua que é circundada por pequenas setas curvas e rígidas (10 µm de comprimento), e destacada por uma outra bem maior (cerca 60 µm de comprimento). Essas fendas correspondem à abertura externa de curtos órgãos tubulares fortemente curvos (7-8 µm de diâmetro), especializados na secreção de hemolinfa. Segundo MASUKO (1986), esses tubos abrem-se diretamente na cavidade interna da larva e esse dispositivo anatômico funciona como uma “torneira de hemolinfa” (loc. cit. “larval hemolymph tap”) que permite à rainha de se alimentar o quanto ela quiser e sem causar ferimento à larva. Assim, a rainha mantém um contato oral com esses poros por um período de tempo durante o qual a ausência de movimentos do seu complexo maxilo-labial indica que a bomba faringeal esta sendo utilizada para ingerir a hemolinfa. MASUKO (1986) indicou que a duração média de uma seqüência de LHF da rainha é de aproximadamente 100 segundos, sendo significativamente diferente entre sua condição fisogástrica e não fisogástrica. Depois de se alimentar, nenhuma pelota infrabucal é rejeitada no chão pela rainha. As operárias de L. japonica alimentam-se também por LHF, mesmo na presença da rainha. A ocorrência do órgão larval especializado para o LHF foi também confirmada em Leptanilla revelierei Emery por WHEELER & WHEELER (1989). Pela primeira vez, nos assinalamos aqui um caso inédito de comportamento de LHF por sucção de um órgão larval especializado similar ao de Leptanilla, descoberto no gênero Typhlomyrmex por LACAU (2005). Foram os traços biológicos fundamentais de três das espécies do gênero, em particular de Typhlomyrmex rogenhoferi Mayr (LACAU, 2005; LACAU et al., 2001; LACAU et al., 2003; LACAU et al., 2004; LACAU et al., no prelo; LACAU et al., em prep.). Typhlomyrmex é um pequeno gênero de formigas neotropicais cujas operárias têm uma morfologia robusta mas alongada, medindo entre 1.5 e 5 mm de comprimento (LACAU, 2005). Sua biologia permanece relativamente pouco conhecida, mas os primeiros dados ecológicos e comportamentais coletados sugerem uma grande heterogeneidade entre espécies (LACAU, 2005). No entanto, todas parecem ser crípticas, possuir colônias monogínicas com uma rainha fisogástrica, e são predadoras mais ou menos especializadas sobre um tipo particular de artrópode (LACAU, 2004; 2005; DELABIE et al., 2007). Typhlomyrmex rogenhoferi é uma espécie com regime alimentar generalista cujas colônias adultas são populosas com cerca de 3.000 indivíduos, e que nidifica dentro dos troncos de árvores mortos caídos no chão das florestas ombrófilas. Os estudos comportamentais e morfológicos de LACAU (2005) revelaram a existência no corpo das larvas de Typhlomyrmex de um órgão especializado, semelhante ao de Leptanilla, que serve para alimentar a rainha e/ou as operárias com hemolinfa. As modalidades desse LHF são levemente variáveis entres espécies de Typhlomyrmex, porém, globalmente muito similares às de Leptanilla japonica (LACAU et al., em prep.). Enfim, ITO (2000) relatou a ocorrência de um comportamento de LHF no raro gênero Calyptomyrmex Emery (Myrmicinae: Stenammini). Estudando uma espécie indonesiana não identificada desse gênero, esse autor observou que essas formigas são predadores altamente especializados de ovos de artrópodes. Ele constatou também que as operárias exibem freqüentemente um comportamento de LHF e que a rainha nunca se alimenta diretamente dos ovos capturados, mas recebe nutrientes principalmente por trofalaxia oral com as operárias. No entanto, o autor não esclareceu se a rainha também pratica o LHF e quais são as modalidades detalhadas deste comportamento, sendo que não se sabe se esse LHF é praticado através de perfurações do tegumento ou utiliza um órgão especializado das larvas. As particularidades dos hábitos alimentares das formigas praticando o LHF vão bem além do seu regime alimentar especializado. Por isso, elas receberam o nome sugestivo de “formigas vampiras” ou, ainda, de “formigas Drácula” (HÖLLDOBLER & W ILSON, 1994; SAUX et al., 2004; WILD, 2005; FISHER, 2006). Apesar do LHF já ter sido observado por alguns autores de forma fragmentária e mal interpretada em determinadas espécies de formigas, MASUKO (1986) foi o primeiro a identificar e reconhecer o LHF como sendo um Biológico, São Paulo, v.69, suplemento 2, p.121-128, 2007 XVIII Simpósio de Mirmecologia comportamento alimentar original e estereotipado. Após a descrição detalhada por MASUKO (1986, 1989 e 1990) dos dois tipos de LHF hoje conhecidos, as múltiplas descobertas de novos casos de LHF em outros gêneros, com modalidades idênticas ou diferentes, justificam uma re-análise das hipóteses propostas por este autor sobre o significado adaptativo do LHF. Comportamentalmente, o LHF representa uma interação trófica muito particular entre os adultos e as larvas de formigas, raramente encontrada. Até hoje, esse comportamento alimentar foi observado em somente 12 gêneros e 20 espécies de formigas, e nunca foi relatado em outra família de himenópteros sociais. Praticado pela rainha e/ou as operárias, o LHF representa uma forma de canibalismo controlado e não destrutivo, uma vez que não interrompe o desenvolvimento das larvas (M A S U K O, 1986; 1989). Evolutivamente, MASUKO (1986, 1989; 1990) sugeriu que esse comportamento em Amblyopone e Leptanilla seria uma adaptação alimentar a recursos tróficos instáveis. Essa hipótese interessante poderia ser também explicativa no caso do gênero Proceratium: as presas desses três gêneros de formigas especialistas são freqüentemente difíceis de obter (esporádicas e de grande tamanho no caso das centopéias, cuidado parental no caso dos ovos de artrópodes) (ITO &B ILLEN, 1998). Nesses gêneros, a disponibilidade em hemolinfa larval durante os períodos nos quais a colônia encontra-se faminta por falta de presas, permitiria à rainha e as operárias de continuar se alimentando, sem que houvesse graves prejuízos para o desenvolvimento da colônia. MASUKO (1986 e 1989) observou efetivamente uma maior freqüência do LHF das operárias de A. silvestrii e L. japonica quando as presas se tornavam mais raras, e WILD (2005) observou o mesmo fenômeno em A. oregonensis. No entanto, essa hipótese revela-se insuficiente: a grande especialização morfológica e comportamental desses animais poderia ser considerada como suficiente para explicar o seu sucesso para explorar eficientemente os recursos tróficos do seu nicho ecológico, como sugerido pela sua relativa grande abundância no campo. Além disso, outros gêneros de formigas poneromórficas têm um regime alimentar especializado sobre presas relativamente difíceis de obter (ex.: a predação de Leptogenys propefalcigera Roger (Formicidae: Ponerinae) sobre crustáceos Isopoda), mas nem por isso exibem um comportamento de LHF. Enfim, o caso de T. rogenhoferi, espécie generalista cuja rainha alimenta-se exclusivamente de hemolinfa larval, demonstra que não há correlação obrigatória entre especialização alimentar e ocorrência do LHF. A ausência de trofalaxia em Amblyopone e Leptanilla foi também sugerida por MASUKO (1986; 1989) como uma condição prévia favorável à aparição do LHF nesses gêneros. Em efeito, a trofalaxia não é um fenômeno universal nas formigas, sendo freqüentemente impossível devido à inexistência de uma válvula entre o papo e o intestino médio (H ÖLLDOBLER & WIL SON, 1990). Assim, as espécies que não podem praticar trofalaxia preferem uma alimentação à base de carne que não apresenta problemas particulares para ser redistribuída às larvas equipadas de mandíbulas funcionais (PASSERA & ARON, 2005). No entanto, a dificuldade permanece inteira para a rainha que pode aceitar somente uma alimentação líquida. Caso as operárias não pratiquem uma pseudotrofalaxia alternativa ou não serem capazes de pôr ovos tróficos, a rainha de uma colônia faminta encontra-se então em grande perigo. A única fonte liquida ao alcance das suas mandíbulas para obter nutrientes é o conteúdo das larvas que estão sempre turgescentes e gordas.No entanto, tal canibalismo representa um prejuízo evidente para o desenvolvimento da colônia. Evolutivamente, no entanto, isso poderia explicar a seleção de um comportamento de LHF da rainha (e eventualmente das operárias), este tipo de canibalismo não sendo destrutivo. A descoberta da ocorrência de um caso de LHF em Calyptomyrmex (ITO, 2000) é extremamente interessante para entender qual é a importância da inexistência de uma trofalaxia para explicar o aparecimento do LHF numa linhagem de formigas. Infelizmente, no limite atual das informações divulgadas por esse autor, não se sabe se a rainha pode realizar ou não um LHF como suas operárias, além da trofalaxia que ela pratica com as mesmas. Constatando que a rainha de A. silvestrii inibe completamente o desenvolvimento dos ovários das suas operárias através de comportamentos de dominância, e que as operárias de L. japonica não têm ovários, MASUKO (1986, 1987; 1989) sugeriu que a ausência de ovos tróficos para alimentar a rainha representaria uma outra condição prévia favorável à aparição do LHF nesses gêneros. Essa hipótese poderia também se aplicar ao gênero Proceratium para o qual nunca foi relatada a ocorrência de ovos tróficos. Ao desfavor dessa hipótese, o caso da biologia do gênero Prionopelta é particularmente interessante: a rainha de P. amabilis alimenta-se exclusivamente de ovos tróficos postos pelas operárias sem praticar o LHF (HÖLLDOBLER & WILSON,1986), enquanto a de P. kraepelini alimenta-se principalmente por LHF e parcialmente a partir de ovos tróficos postos pelas operárias (ITO & BILLEN, 1998). Isso sugere que não existe uma correlação obrigatória entre a ocorrência de ovos tróficos e a ausência de LHF da rainha. Igualmente, essa conclusão é sustentada pela ocorrência de ovos tróficos para alimentar ocasionalmente a rainha de G. bicolor que pratica um LHF facultativo (AIKAWA et al., 2002). Do mesmo modo, a ocorrência de um LHF obrigatório da rainha em T. rogenhoferi, ao mesmo Biológico, São Paulo, v.69, suplemento 2, p.121-128, 2007 125 126 XVIII Simpósio de Mirmecologia tempo em que suas operárias põem ovos tróficos destinados exclusivamente à alimentação das larvas (LACAU, 2005; LACAU et al., em prep.) sugere que, evolutivamente, o aparecimento de um LHF não seria obrigatoriamente correlacionado à ausência de ovos tróficos. Além disso, não pode ser excluída a possibilidade de que o aparecimento dos ovos tróficos nessa espécie represente um evento evolutivo posterior ao do LHF. No entanto, é preciso lembrar que a distancia filogenética entre os diversos gêneros supracitados limita fortemente a objetividade das considerações evolutivas feitas a partir da comparação entre as suas biologias. A partir do estudo dos diversos casos de LHF por perfuração, registrados até hoje, constata-se que o LHF ocorre quase exclusivamente em espécies cujas colônias são monogínicas. No entanto, no desconhecimento do caractere monogínico ou poligínico de A. veinatrix, não se pode afirmar que a ocorrência do LHF numa espécie é primariamente condicionada pela sua monoginia. Também, a ocorrência do LHF em P. kraepelini e T. rogenhoferi, espécies que exibiram um regime alimentar generalistas no laboratório (ver respectivamente ITO & BILLEN, 1998; LACAU, 2005), mostra que esta não é diretamente correlacionada à existência de um regime alimentar especializado, como no caso, por exemplo, de Amblyopone, Leptanilla ou Proceratium (MASUKO, 1986; 1989; ITO & BILLEN, 1998). Enfim, como mostrada no caso de Prionopelta, a ocorrência do LHF não representa obrigatoriamente um traço comum a todas as espécies de um mesmo gênero. No entanto, as observações do LHF em três espécies de Typhlomyrmex por LACAU (2005) e em três de Proceratium por MASUKO (1986), sugerem que o aparecimento do LHF representa geralmente um evento evolutivo único das diversas linhagens de formigas. Esse comportamento alimentar poderia ser secundariamente derivado, sendo perdido ou tornando-se facultativo, como foi possivelmente o caso em P. amabilis e P. kraepelini. MASUKO (1989; 1990) e LACAU (2005, em prep.) consideram as respectivas torneiras de hemolinfa das larvas de Leptanilla e Typhlomyrmex como estruturas morfológicas evoluídas de novo. A grande distância filogenética entre Ectatomminae e Leptanillinae sugere que as diversas semelhanças observadas na morfologia do órgão larval e no comportamento de LHF entre Leptanilla e Typhlomyrmex, representam somente analogias (LACAU, 2005; em prep.). No entanto, esses 2 tipos de torneira de hemolinfa têm um valor filogenético, representando sinapormorfias respectivas desses dois gêneros. Porque a neoformação de um tal órgão larval representa um passo muito importante e caro evolutivamente, suspeita-se que sua aquisição foi selecionada em Leptanilla e Typhlomyrmex, sob uma forte pressão da seleção natural provocada por um contexto particularmente exigente do nicho ecológico dos seus ancestrais. Como foi sugerida por MASUKO (1989), a aparição de uma torneira de hemolinfa em Leptanilla pode ter acontecido evolutivamente a fim de diminuir o prejuízo resultando de um intenso LHF por perfuração sobre um número de larvas relativamente pequeno. Essa interessante hipótese poderia também ser aplicada a Typhlomyrmex. No entanto, mesmo se isso parece provável, ainda não foi comprovado que os ancestrais desses dois gêneros praticavam primitivamente um LHF por perfuração que depois evoluiu para um LHF por sucção de um órgão especializado. Do ponto de vista trófico, a torneira de hemolinfa representa uma adaptação funcional particularmente bem sucedida, tanto em Leptanilla (MASUKO, 1989; 1990) como em Typhlomyrmex (LACAU, 2005; LACAU et al., em prep.). Sua aparição nas larvas de Leptanilla não representa um fenômeno evolutivo isolado: estas exibem numerosos caracteres evoluídos originais, tais como a protuberância antero-ventral do seu corpo que lhes permitem serem transportadas pelas operárias (MASUKO, 1990). Essa ultima adaptação, única nos Formicidae, sugere que as larvas de Leptanilla são globalmente evoluídas morfologicamente para serem adaptadas ao modo de vida nômade das colônias. Por isso, MASUKO (1989) sugeriu também que a aparição nas larvas de uma torneira de hemolinfa representa uma adaptação alimentar favorecendo diretamente a sincronização eficiente entre a maturação das larvas e a oviposição da rainha. Em efeito, o órgão larval especializado aumenta a eficiência da transferência de hemolinfa para a rainha, permitindo assim um rápido desenvolvimento dos seus ovários, fator imprescindível para uma estrita sincronia na produção de cria e no seu desenvolvimento (MASUKO, 1989). Essas considerações levaram MASUKO (1989) a sugerir a possível existência de um LHF das rainhas de formigas legionárias (ex.: Ecitoninae e Dorylinae) sobre as larvas maturas, apesar de ainda pouco se saber sobre a sua alimentação. No entanto, a ocorrência de um LHF por sucção de um órgão larval especializado no gênero Typhlomyrmex (LACAU, 2005) cujas espécies apresentam um modo de vida sedentário, ao mesmo tempo em que não apresentam sincronização entre a maturação das larvas e uma oviposição cíclica da rainha, sugere que a aparição de uma torneira de hemolinfa não é obrigatoriamente correlacionada com um modo de vida legionário. Essa conclusão é também sustentada pelas pelos hábitos legionários de A. veinatrix (WARD, 1994; FISHER, 2006) cuja rainha e as operárias praticam um LHF por perfuração do tegumento das larvas. Em conclusão desse estudo, constatamos que o LHF representa um comportamento evoluído ainda pouco observado nos Formicidae. No entanto, ele foi Biológico, São Paulo, v.69, suplemento 2, p.121-128, 2007 XVIII Simpósio de Mirmecologia descoberto recentemente e é provável que ele seja futuramente encontrado em vários outros grupos de Formicidae. Globalmente, esse raro comportamento alimentar permanece pouco estudado. Constatou-se que ele foi selecionado independentemente como adaptação alimentar em várias linhagens de Formicidae, segundo duas modalidades possíveis, e sempre conferindo notáveis vantagens ecológicas para as espécies nas quais ocorre. Como esse comportamento já foi observado em seis dos oito gêneros de Amblyoponinae, é muito provável que este represente um traço ecológico primitivo nessa subfamília. Diante das múltiplas recentes descobertas desse comportamento em diversos táxons filogeneticamente distantes, parece hoje necessário de se fazer uma verificação sistemática da sua ocorrência (tanto pela procura de cicatrizes larvais características como através de observações comportamentais diretas) em todas as subfamílias de formigas. Assim será possível realizar um balanço global e introduzir uma visão filogenética na análise do significado evolutivo desse comportamento. Nós agradecemos sinceramente ao Dr Keiichi Masuko (Institute of Natural Sciences, Senshu University, Japão) e ao Prof. Yves Coineau (Laboratoire des Arthropodes, MNHN, França) pelos comentários sobre o LHF, assim como ao Dr Maurice Leponce (Institut de Sciences Naturelles de Belgique, Bélgica) pela providência de algumas referências bibliográficas. 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