hospital: disciplinamento do sujeito ou da subjetividade social?

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HOSPITAL: DISCIPLINAMENTO DO SUJEITO OU DA
SUBJETIVIDADE SOCIAL?
VERONESE*, Silvia Mara
[email protected]
Resumo
Esse artigo tem por objetivo delinear uma compreensão da instituição hospitalar e sua relação
com o sujeito e o corpo social, a partir da perspectiva de Michel Foucault. A perspectiva
genealogicamente pretendida é a da contemporaneidade, quando o hospital e as clínicas
recebem uma condição de “hotel”, e o sujeito um hóspede e não doente. Essa perspectiva
promove um “alívio” social, visto que a compreensão é a de que o sujeito contemporâneo não
possui e não busca o entendimento necessário da essência do ser, do qual a morte faz parte.
Essa ascensão do conceito do hospital é entendida neste texto como uma forma de
(re)organização social, realizada efetivamente a partir da forma como se exerce o poder
dentro das relações entre os sujeitos. Assume-se a perspectiva de que os indivíduos são
novamente classificados em suas “normalidades”, as quais constituem condições sine qua non
para que o sistema social funcione segundo as diretrizes do poder exercido. Cabe ao hospital,
como instituição onde se legitimou o poder a partir do “exame”, da “organização” e da
“disciplina”, instituindo uma epistemologia humana (re)elaborada, uma nova forma de
“tratar” o sujeito não produtivo, sem afetar o corpo social.
Palavras-Chaves: Poder. Saber. Hospital. Humanização Hospitalar. Perspectiva. Sujeito.
O hospital e o sujeito1: uma relação2 de poder, a construção de um saber.
Com base na perspectiva de Michel Foucault, busca-se nesse artigo desenvolver uma
análise conceitual das relações de poder que ocorrem em relação ao sujeito e o hospital. São
estratégias analíticas desenvolvidas a partir do conceito de genealogia 3 , no qual são
consideradas “ferramentas metodológicas”, como a descontinuidade, a desconstrução e a
*
Mestre em Educação – UTP.
Segundo Veronese (2007), o processo social, por meios de seus dispositivos sociais – como a escola e o
hospital, promovem a construção de sujeitos a partir de ações externas, preparando os indivíduos com o objetivo
de destiná-los a participar da máquina social de produção e reprodução.
2
As relações são a condição de possibilidade do exercício do poder, estendendo seus efeitos de forma capilar,
por todos os níveis do corpo social.
3
A genealogia de Foucault (1990) é uma desconstrução dos enunciados, relacionados a um momento histórico
que representem a gênese ou parte importante da constituição dos saberes, dos discursos e dos domínios do
objeto de pesquisa.
1
4441
periodização, que permitem utilizar-se dos escritos do autor, referentes a um período anterior,
aplicados a análise de conceitos contemporâneos.
Essa perspectiva permite apresentar uma forma de questionamento dos processos, do
como, do porque acontecem e funcionam, buscando compreender os deslocamentos do poder
e as rupturas que causam dentro das relações entre os sujeitos.
Esses instrumentos permitem compreender o desenvolvimento dos mecanismos de
poder, que originaram formas diferenciadas de sujeição dos indivíduos e como estes são
disciplinados através dos dispositivos4, no interior das relações sociais.
Dentro dessa perspectiva, assume-se a condição de que os indivíduos são
continuamente classificados “para” e “a partir” de suas “normalidades”, as quais constituem
condições sine qua non para que o sistema social funcione segundo as diretrizes do poder
exercido.
Normalidades, relações de poder, subjetividades 5 e sujeitos são elementos que
constituem o objeto de estudo de Foucault (1986) em sua primeira fase de desenvolvimento
de estudos foi a de tentar reconstituir a identidade através de certas técnicas éticas de si, que
formaram por exclusão alguns grupos, como criminosos, loucos, etc. estas tecnologias do
indivíduo constituíram todos os sujeitos sociais que conhecemos hoje.
São dos escritos constituídos nesse período que se compreende que os discursos6 se
produzem e mantém nos sujeitos, que são efeitos do discurso (sujeito social); ao buscar
responder a questão “como chegamos a ser o que somos hoje?”, é por meio do discurso que se
percorre esse caminho. É uma característica também da influência de Nietzsche na teorização
foucaultiana, essa forma de entender os ciclos e as descontinuidades por meio dos indivíduos,
dos discursos que se perpetuam nos corpos dos sujeitos.
Sendo assim, como e quanto os discursos e as relações de poder condicionam e
modelam nosso comportamento?
Segundo Foucault (1986), no Século XVIII, o hospital surge como uma ferramenta
que possibilita o exame incondicional, e promove o surgimento epistemológico da medicina.
Em seguida, é no século XIX, com o surgimento das ciências empíricas que se articulam as
formações discursivas sobre as práticas sociais, o que oportuniza o estudo da representação
4
Segundo Foucault (1990), um dispositivo é um conjunto de elementos similares que dispõe as bases de uma
relação em forma de rede e tem uma função estratégica na articulação das relações de poder.
5
Foucault (1990) compreende que as subjetividades são efeitos das relações que o sujeito estabelece consigo e
com os outros.
6
Na perspectiva foucaultiana o discurso constitui-se em um enunciado que se apóia em uma formação
discursiva, que pode ser comum a outros discursos, visando o estabelecimento de uma ordem social, disciplina,
etc.
4442
humana e, então a construção das ciências humanas, a partir da vinculação de saberes
correlatos.
Segundo o autor, a epistemologia humana foi possível a partir do disciplinamento do
indivíduo, que aconteceu em instituições como a escola, os quartéis e o hospital. A disciplina
é o controle do corpo do indivíduo, da constituição de suas subjetividades, a partir da forma
em que se trabalha o corpo detalhadamente, exercendo sobre ele uma coerção contínua, a
partir de cada gesto, atitude e movimentos. São elementos constituintes da disciplina a
vigilância, a sanção, o adestramento e o exame.
O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza.
É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e
punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são
diferenciados e sancionados. (FOUCAULT, 1986, p. 86).
O exame foi o centro de uma tecnologia7 que organizou o indivíduo em um efeito e
objeto de poder e de saber. Em conjunto com a vigilância hierárquica proporcionada pelos
hospitais, além da normalização, que classificou e definiu quais indivíduos seriam mantidos
nos hospitais, realizou as principais funções disciplinares de classificação, de extração
contínua de forças e do tempo – combinadas às aptidões do sujeito, e da acumulação genética
contínua. O exame realizado nos hospitais proporcional uma modalidade de poder que
subsidiou a fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória.
O homem tornou-se produto do conhecimento que os processos disciplinares
normativos lhe podem absorver e no que tange a instituição hospitalar, o exame tem grande
influência.
O exame constitui-se em um ritual que une relações de poder e permite obter e
constituir saber. No século XVIII permitiu a liberação epistemológica da medicina, e em
conjunto com a escola examinatória marcou o início da pedagogia da ciência. O exame
caracteriza-se como um poder escrito, revertendo em códigos disciplinares de conduta; são
poderes escritos, registros, organização documental, a pesquisa de casos. É a formalização do
indivíduo dentro das relações de poder, a liberação epistemológica do saber sobre o homem.
O poder é tema transversal em toda teorização foucaultiana, pois se constitui em uma
rede produtiva que permeia o corpo social com a função de produzir coisas, motivar o prazer,
constituir o saber e engendrar o discurso. Por isso, mais do que por reprimir, não pesa como
uma força e é, além de aceito, é assimilado e difundido.
7
Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um certo
modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova “microfísica” do poder;
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É dessa forma que o poder se institui, não tomando o corpo de forma a supliciá-lo, mas
o aprimora e o adestra, tomando por instrumento sua positividade característica, sua eficácia
produtiva, base do capitalismo. Nessa perspectiva, o poder não existe como algo que se possa
apoderar-se, existe em relações, práticas, exercícios, tecnologias e mecanismos que o
veiculam.
Sendo assim, estabelece o controle dos atos e pensamentos, constituindo-se na forma
de promover a prática moral de determinada sociedade. São as moralidades do
comportamento, que além da substância da ética, também inclui diferenças que incidem sobre
os modos de sujeição.
Assim, os sujeitos disciplinados se caracterizam como corpos dóceis 8 que tem sua
subjetividade instituída de forma externa e interiorizada, tornando-o um sujeito
“normalizado”, que pertence a determinado grupo. Essa forma de constituição de
subjetividades são características do sistema racional e tecnocrata, o qual monopoliza as já
constituídas funções de exame, planejamento e supervisão das decisões, a fim de manter o
controle das ações.
O hospital, como instituição ou dispositivo de normalização disciplinar, tem suas
ações orientadas para constituir um espaço salutar e corretivo, que de maneira indireta
mantém constante vigilância social. Quando atua de forma direta – na recuperação de
paciente/clientes – (re)organiza o hábitos dos pacientes e, principalmente, interage com a
moral das condutas, principalmente no que diz respeito a contemporânea “humanização do
atendimento hospitalar”.
Na contemporaneidade, hospitais e clínicas passam por uma transformação, da
condição de simples casa de recuperação ou enclausuramento de enfermos para o “hospital
hotel”, e o sujeito um hóspede e não paciente. Segundo o Ministério da Saúde (2000),
humanizar é garantir ao sujeito um atendimento ético, ou estabelecer ações e valores que
dizem respeito à forma de receber e tratar o sujeito. Essa perspectiva do Estado e sua
preocupação em “humanizar” o atendimento hospitalar estão relacionadas à questão da
interação do sujeito com seus pares no corpo social.
Segundo Matos (1998), um amplo efeito positivo pode advir na recuperação do
paciente/hóspede, com pequenas mudanças realizadas no ambiente hospitalar, que é estranho
8
Segundo Foucault (1990) corpos dóceis são os que podem ser disciplinados, submetidos, de tal forma
continuamente utilizados, e constantemente transformados e aperfeiçoados.
4444
a quem a este espaço limitado, como, “por exemplo, pintar as paredes de cores variadas e usar
roupas de cores diferentes”. (p. 49).
A “hotelaria hospitalar” visa oferecer um “ambiente humanizado”, onde elementos
como o ambiente, os equipamentos e o atendimento aprimoram o atendimento hospitalar,
agregando matéria, trabalho e valores. Esse processo de “hotelaria hospitalar” tem por
objetivo declarado criar um ambiente terapêutico propício à recuperação do cliente/paciente,
suprindo suas necessidades básicas9 de sobrevivência e abrigo.
O atendimento “hotelaria hospitalar” se caracteriza por ser uma filosofia que busca
manter a integração do sujeito com seu macro-ambiente, mesmo quando este está impedido de
conviver com sua rotina de atividades. Nessa perspectiva são aplicados também princípios
administrativos do marketing, como a investigação das necessidades e desejos do
cliente/paciente, a fim de atraí-lo a determinada instituição hospitalar, a fim de que realize seu
tratamento de saúde.
Portanto, fica compreendido que o objetivo primeiro da “humanização” no
atendimento “hotelaria hospitalar” é assegurar a continuidade da convivência do
cliente/paciente com seus semelhantes, mesmo enquanto encontra-se em tratamento.
Por outro lado, é possível delinear uma visão crítica da “hotelaria hospitalar”, quando
se estabelece uma teorização sob os escritos de Michel Foucault. Essa condição de
humanização no atendimento de saúde promove um “alívio” social, visto que a compreensão
é a de que o sujeito contemporâneo não possui e não busca o entendimento necessário da
essência do ser, do qual a morte faz parte.
As mudanças ocorridas ao longo do tempo dentro dos hospitais e clínicas fazem com
que estes sejam considerados como locais de tratamento e cura sim, mas com uma
“dignidade” que lhes é agora proporcionada pelo conceito de “hotel”. Esse conceito é
característico da contemporaneidade, onde a morte e as doenças não são aceitas e
compreendidas de forma objetiva e pública. O sujeito enfermo é isolado de forma “digna”, a
fim de que não “contamine” o corpo social com sua condição não produtiva – o que tem
influencia tanto psicológica quanto física nos demais sujeitos.
A morte e a doença são problemas de quem tem consciência de que ela existe - ou
seja, dos sujeitos - e da forma como estes se posicionam nos fatores que com ela se
relacionam ou que estão associados, como é o caso dos hospitais. A evolução da tecnologia da
vida proporcionou que a morte fosse “adiada”; porém, em sentido completamente oposto, as
9
Maslow hierarquizou as necessidades humanas representadas em uma pirâmide, crescentes em relação à escala
do desenvolvimento do sujeito na sociedade.
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subjetividades que constituem os sujeitos foram instituídas de forma a não aceitar ou
compreender a morte e as doenças, pois esse é o período menos produtivo da vida dos
sujeitos, que não interessa em nenhuma forma ao poder exercido no corpo social.
Para caracterizar esse conceito de morte e doença, alguns autores utilizam o termo
“recalcada”. Sob uma perspectiva que é comum a Freud, Nietzsche e Foucault, pode-se
delinear uma nova forma de ver esse conceito da morte, o da interpretação. É por essa
perspectiva que Foucault (2005) verifica um tema comum a Nietzsche, Marx e Freud, sendo a
interpretação uma técnica de desvendar o que conceitos, discursos e enunciados querem dizer
e não é de imediato apresentado, e que se há algo mais a se dizer.
O que se extrai das possibilidades interpretativas desses autores, ancorada por
Foucault (2005) é exatamente a capacidade de buscar as configurações da interpretação e não
apenas o sujeito que a proporcionou. Dessa forma, a afirmação da vida seria a negação da
incapacidade humana em conviver socialmente sem a moralidade imposta, ou seja, assumir a
essência humana como condição ética da vida.
Foi o que Freud propôs ao considerar a interpretação dos sonhos como uma forma de
ascender à essência humana. Ao assumir a consciência como resultada da inconsciência, ele
redefine a condição de existência humana, que está ancorada nos impulsos e necessidades
fisiológicas, recalcados no inconsciente pela moralidade e civilidade. A condição
interpretativa reflete-se então como a capacidade de compreender e representar o que foi
projetado de forma direcionada, o resultado da vontade de potência, das lutas internas que
constituem o sujeito.
Então, a evolução do conceito de hospital para hotel é entendida neste texto como uma
forma de (re)organização social, realizada efetivamente a partir da forma como se exerce o
poder dentro das relações entre os sujeitos, ou como estes interpretam de forma menos
improdutiva a questão da morte e da doença.
Nessa perspectiva, a disciplina do “hotel hospital” promove a (re)organização dos
espaços com base em uma tecnologia de disposição dos indivíduos, arranjado-os em espaços
“ideais”, de forma que sejam classificados e hierarquizados. Isso possibilita a utilizar o
hospital como ferramenta de controle do sujeito, fazendo com que um período em que se
permanece no hospital não seja visto como de forma negativa, pela perspectiva do sujeito ou
do corpo social. Por outro lado, o corpo social tem a projeção de que está proporcionando ao
seu semelhante uma condição melhor de enfrentar um momento difícil.
Cabe ao hospital, como instituição onde se legitimou o poder a partir do “exame”, da
“organização” e da “disciplina”, instituindo uma epistemologia humana (re)elaborada, uma
4446
nova forma de “tratar” o sujeito não produtivo, sem afetar o corpo social. Mugiati (1989)
compreendeu que o Estado encontrou na instauração de políticas de saúde e instituições
hospitalares, ainda nos séculos XVII e XVIII, a condição sine qua non de organização social
com predisposição ao seu desenvolvimento econômico.
Sendo assim, o olhar “hospitalar”, que se (re)fez, continua sua condição de estabelecer
o controle social, que mantém a continuidade do biopoder 10 ; é dessa forma que extrai,
interpreta e transfere as informações o exercício do poder legitimado -
o Estado –
promovendo a continuidade da hierarquia de poder, da disciplina. Com esse processo,
conseqüentemente, além de produzir um saber, exerce um poder.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Ministério da Saúde. Manual da Humanização, 2000. Disponível em
http://www.portalhumaniza.org.br. Acesso em 08 de set. de 2007.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol 1: A vontade de saber. 11 ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1977.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 9 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 2 ed. Petrópolis:
Vozes, 2001.
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx. 2 ed. São Paulo: Landy, 2005.
MATOS, Elizete Lúcia Moreira. O desafio ao professor universitário na formação do
pedagogo para a atuação na educação hospitalar. 157 f. Dissertação de Mestrado.
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Programa de Pós-Graduação Mestrado em
Educação. Curitiba, PR, 1998.
MUGGIATI, Margarida Maria Teixeira de Freitas. Hospitalização escolarizada: uma nova
alternativa para o escolar-doente. 78 f. Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade
10
Segundo Foucault (1977), a partir do século XVIII, o Ocidente desenvolve uma “economia do poder” situada
na vida, é o biopoder. O biopoder garantiu ao capitalismo o desenvolvimento que esse necessitava, a partir
inserção dos corpos disciplinados nos processos de produção e economia. Para o autor é o gerenciamento da
população, efetivado nas políticas públicas, que são as intervenções da governamentabilidade no corpo social.
4447
Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação, 1989,
Porto Alegre, RS.
VERONESE, Silvia M. Novas rotas, novos rumos: a mulher ocupando espaço na educação e
no trabalho. 184 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Tuiuti do Paraná, Programa de
Pós-Graduação Mestrado em Educação, 2007, Curitiba, PR.
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