FUNDO SOBERANO DO BRASIL: UM POSSÍVEL DESVIO DE FUNÇÃO Francisco Roberto Fuentes Tavares de Lira Desde a eclosão da crise de 2008, ou antes dela conforme argumentam alguns, temse presenciado, na economia brasileira, uma persistente tendência de apreciação cambial, que tem alarmado o setor industrial, especialmente aquele ligado às exportações. Essas preocupações têm sido partilhadas pelo governo federal, que passou a adotar, de forma crescente, medidas e instrumentos para reverter, ou ao menos, conter essa tendência. Grande parte dessas providências foca-se no fluxo de investimento estrangeiro em carteira, pois, esse é, a princípio, o responsável pela oferta de divisas (primordialmente, dólar) que pressiona a valorização do real. Um exame simples das contas externas indica que o déficit em transações correntes é financiado pela entrada de investimentos diretos estrangeiros. Assim, deduz-se que o investimento externo em carteira traz a oferta adicional de moeda estrangeira que conduz a sua baixa cotação. Gráfico 1 – Relação entre déficit em conta corrente e poupança externa (Valores acumulados) – JAN/2008 A JUN/2011 160.000,00 US$ milhões 140.000,00 120.000,00 Déficit em transações correntes 100.000,00 80.000,00 60.000,00 Investimento Direto Estrangeiro 40.000,00 abr/11 jan/11 out/10 jul/10 abr/10 jan/10 out/09 jul/09 abr/09 jan/09 out/08 jul/08 abr/08 -20.000,00 jan/08 20.000,00 0,00 Investimento em Carteira Estrangeiro Mês/Ano 1 FONTE: BACEN, 2011 . Sob essa perspectiva, a oferta de divisas na economia é provocada pelo enorme diferencial de juros que o Brasil tem assumido em relação às demais nações, em especial as desenvolvidas. Em 2011, os Estados Unidos e a Zona do Euro têm praticado taxa de juros menores que 1% a.a., enquanto que o Brasil as tem mantido acima de 12% a.a. Por esse prisma, o problema da valorização crescente do real deveria ser resolvido por meio da redução da taxa de juros. 1 Elaboração do autor. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.4, n. 7, setembro 2011 |1 No entanto, o governo federal não dispõe atualmente de margem de manobra para que haja uma compressão significativa dos juros no curto prazo devido a diversos fatores, entre os quais se sobressai o cumprimento das metas de inflação. Neste contexto, compreende-se a utilização de medidas contingenciais para sanar a valorização cambial, mesmo diante da contradição inerente à política de juros. Inicialmente, a apreciação do câmbio foi combatida pelo governo ao intensificar os esforços de elevar a demanda por divisas, cujas operações esterilizadas 2 possuíam papel central. Porém, tais ações não pareciam ser suficientes para contê-la em razão do ambiente de liquidez pós-crise. Logo, em meados de 2009 (e em outubro de 2010) elevou-se a tributação (IOF) sobre a entrada de capitais externos de caráter financeiro, como a aquisição de ações e títulos de renda fixa. Marcava-se assim a imposição de controles indiretos de capital, ou seja, através dos preços, buscava-se desestimular a entrada de investimento estrangeiro em carteira. Além disso, as autoridades econômicas brasileiras passaram a trabalhar com as expectativas em relação ao câmbio ao ofertar cada vez mais contratos de swap reverso3; e em julho de 2011, iniciou-se a tributação (novamente, por meio do IOF) de derivativos ligados à cotação do dólar. Com tais medidas, o governo buscava conter e até reverter a demanda por divisas. De todas essas ações, o Ministério da Fazenda tinha alertado, em setembro de 2010, que poderia fazer uso do Fundo Soberano do Brasil (FSB) para intervir no mercado de câmbio. Até agora não se presenciou nenhuma atividade relacionada a esse fundo no mercado em questão. Mas antes de detalhar as características desse instrumento, faz-se necessária uma explicação sobre os chamados Fundos de Riqueza Soberana (FRS). Os FRS são formados por depósitos em poder do governo, que armazena e manipula ativos em moeda estrangeira, e possui objetivos de ordem macroeconômica. Essa definição genérica está conectada à experiência internacional, ressaltando que os FRS de muitas nações possuem patrimônio em moeda doméstica, não havendo qualquer impedimento para emprego na aquisição de divisas. Diversos economistas e instituições, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), adotam diferentes taxonomias para os fundos soberanos. A compreensão adequada da atuação dos fundos exige a qualificação de três funções. 2 3 As operações esterilizadas consistem na compra divisas e realização de venda de títulos públicos, pela autoridade monetária, por meio das operações de mercado aberto (open market). Isto provoca a retirada de moeda estrangeira (que se transforma em reservas internacionais) sem afetar a base monetária doméstica, porém, eleva a dívida pública. O swap reverso constitui um contrato em que ambas as partes trocam riscos, isto é, um agente (no caso, o governo) compromete-se a pagar um determinado juro enquanto outro assume a cobrir a variação cambial. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.4, n. 7, setembro 2011 |2 A primeira refere-se à estabilização, que busca amenizar os efeitos dos ciclos econômicos sobre os ingressos fiscais, ao mantê-los constantes através do tempo. Isso se dá por meio do acúmulo de recursos em tempos de prosperidade para usá-los em períodos de escassez (recessão). Esta função é facilmente adaptada para economias dependentes de atividades intensivas em recursos naturais, como ouro ou hidrocarbonetos, suscetíveis às flutuações de preços. As nações que dispõem de fundos de estabilização exemplares são Chile e Noruega, que administram, respectivamente, as receitas públicas oriundas da exploração do cobre e do petróleo. A segunda função é a de poupança intergeracional, ou acúmulo de recursos escassos oriundos geralmente da exploração de commodities minerais, e a preservação para as seguintes gerações. Possui a prerrogativa de distribuir os ativos do FRS à população para desfrutá-los de alguma forma. A experiência do FRS do Alaska (E.U.A) é emblemática neste aspecto, administrando o patrimônio formado com as receitas do petróleo, para distribuir anualmente aos contribuintes locais os dividendos decorrentes da gestão financeira da riqueza do petróleo (APFC, 2011). A terceira função é a de investimento (ou desenvolvimento), centrada no armazenamento de recursos derivados de excedentes fiscais ou externos4 a fim de preservar e potencializar essa riqueza. O FRS, ao agir como um fundo de investimento, dedica-se na manutenção da riqueza ao direcioná-la a projetos estratégicos (sempre pautado pela gestão do risco ao diversificar os investimentos). O governo de Cingapura dispõe de um fundo soberano com essas características. A classificação exibida não é estática. Nada impede que o governo altere a função pré-concebida de um FRS, ou, em outros termos, um fundo de estabilização pode agir também como poupança intergeracional e vice-versa, por exemplo. Após esta interpretação sumária sobre os fundos de riqueza soberana, pode-se ter uma ideia das contradições subjacentes à criação do Fundo Soberano do Brasil (FSB). O fundo não é sustentado por excedentes nas contas externas que, aliás, não são derivados de superávits em transações correntes, mas de resultados positivos na conta de capitais. Dessa forma descarta-se a atuação do FSB como um fundo de estabilização ou de poupança intergeracional. A economia brasileira não é dotada de poupança pública significativa, pois, apesar do comprometimento do governo com os superávits primários, há um enorme buraco nas 4 Excedentes externos podem ter diversas fontes que abrangem desde a exportação de commodities até significativas remessas de lucros e juros para a economia. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.4, n. 7, setembro 2011 |3 contas quando são consideradas as despesas com juros dos títulos públicos, o que conduz a resistências na concepção de um FRS como um fundo de investimento. Mas, contrariando a experiência internacional dos FRS, no final de 2008, o governo federal transferiu recursos do superávit primário para fundar o FSB, que foi instituído com amplas atribuições, conforme revela a lei de criação. Fica criado o Fundo Soberano do Brasil – FSB, fundo especial de natureza contábil e financeira, vinculado ao Ministério da Fazenda, com as finalidades de promover investimentos em ativos no Brasil e no exterior, formar poupança pública, mitigar os efeitos dos ciclos econômicos e fomentar projetos de interesse estratégico do País localizados no exterior (BRASIL, 2008, p. 1). Percebe-se que o FSB tende a funcionar como um fundo de investimento, ao levar em conta a estrutura econômica brasileira e o texto da lei que o gerou. Cabe salientar que o FSB não dispõe das reservas internacionais, que continuam sob a guarda do Banco Central; e sua base de sustentação patrimonial é constituída por recursos do Tesouro Nacional, procedentes do superávit primário (tal como o primeiro aporte responsável pela sua criação) ou de ativos derivados da dívida mobiliária federal. Em relação à última característica do FRS brasileiro, transparece uma situação singular em termos de poupança pública: o governo irá se endividar para sustentar o fundo. Por ocasião de sua criação, imaginava-se que o FSB poderia intervir no mercado de câmbio e auxiliar na redução do custo de carregamento das reservas internacionais 5. Realizaria investimentos arrojados no exterior, o que implicaria na aquisição de divisas da economia doméstica, e reforçaria a demanda do governo por moeda estrangeira, operando contra a tendência de valorização cambial. Os investimentos em ativos externos poderiam auferir rendimentos superiores à gestão das reservas internacionais, que é feita pelo Banco Central (Bacen), que aplica as divisas em seu poder em dívidas soberanas, essencialmente na norte-americana, cuja renumeração em 2011 está na ordem de 0,1% a.a. Nesse aspecto, o fundo poderia auxiliar na gestão das reservas, pois apesar de não lidar com elas, as suas aplicações estrangeiras trariam rendimentos que atenuariam o custo de captação de divisas no mercado, lastreado pela SELIC. Por exemplo, como os títulos norte-americanos (T-bills) rendem 0,1% a.a, enquanto a SELIC rende 12,5% a.a, o custo de carregamento das reservas seria de superior a 12,0% % a.a, mas, se for incluso o rendimento do FSB – recordando que este recebe os recursos oriundos dos títulos 5 O custo de carregamento de reservas internacionais refere-se ao acúmulo de divisas decorrentes das operações esterilizadas e traduzem-se no custo de captação delas por meio da dívida mobiliária federal, deduzido do rendimento auferido pela gestão delas. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.4, n. 7, setembro 2011 |4 públicos, que ao levar em conta a renumeração de outros fundos soberanos, como o de Cingapura, cujo rendimento foi de 4,4% em 2010 – o custo ficaria em 7,28% anual. Entretanto, em 2011, essas possíveis atuações do Fundo Soberano do Brasil desapareceram devido à forma como tem sido gerido e ao descumprimento das promessas de intervenção no mercado de câmbio por meio dele, feitas em setembro de 2010, pelo Ministério da Fazenda. A gestão do patrimônio tem sido um fator preocupante, já que até setembro de 2010, os ativos do FSB estavam em poder do Tesouro Nacional que os aplicava em operações compromissadas com o Bacen, ou seja, em títulos públicos em poder dessa instituição (LFT’s, LTN’s, NTN-B’s). Mas, a partir daquele mês, a estratégia conservadora de investimento foi trocada por uma mais arrojada, que prevê o uso do patrimônio para a aquisição de ações do Banco do Brasil (representando de 10,47% do fundo) e da Petrobrás (por volta de 80% do FSB). Infere-se, a princípio, que se trata de investir em empresas nacionais, cuja programação de projetos tem se concentrado mais no Brasil do que no exterior (ao contrário da Vale, que tem alçado vários projetos na África e Canadá). Mas este detalhe é insignificante diante da reduzida diversificação dos ativos do FSB, expondo o patrimônio a um risco não desprezível. A compra de papéis da Petrobrás, em meio à euforia da oferta pública secundária de ações da empresa,6 trouxe apreciável prejuízo, pois o preço das ações da estatal caiu a ponto de prejudicar o desempenho do FSB. Se não fosse pela valorização dos papéis do Banco do Brasil, nos meses seguintes, o rendimento do fundo soberano brasileiro não estaria próximo de sua meta, a qual tem como parâmetro a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) que está em 6% a.a. 6 A aquisição das ações da Petrobrás pelo FSB em meio a esse momento foi considerada por muitos como uma estratégia por parte do Governo Federal em ampliar a sua participação no controle acionário da companhia. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.4, n. 7, setembro 2011 |5 Gráfico 2 – Índice de preços das ações da Petrobrás e do Banco do Brasil (Base=01/09/2010) – 01/09/2010 a 28/01/2011 1,2500 1,2000 1,1500 1,1000 1,0500 1,0000 0,9500 0,9000 0,8500 0,8000 BBAS3 PETR3 19/1/11 5/1/11 22/12/10 8/12/10 24/11/10 10/11/10 27/10/10 13/10/10 29/9/10 15/9/10 1/9/10 PETR4 7 FONTE: Infomoney, 2011 . Gráfico 3 – Evolução do patrimônio do FSB em relação à TJLP – MAR/2010 A MAR/2011 FONTE: Tesouro Nacional, 2011. 7 BBAS3 refere-se a ações ordinárias do Banco do Brasil, enquanto a PETR3 e PETR4 referem-se respectivamente a ações ordinárias e preferenciais da Petrobrás. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.4, n. 7, setembro 2011 |6 Como se vê, o Fundo Soberano do Brasil está agindo muito mais como um fundo multimercado em poder do governo8, do que como um fundo de riqueza soberana, sobretudo se for observado que o Congresso aprovou uma lei9 que permitisse o FSB investir em títulos públicos federais. Tendo em vista os altos juros praticados no Brasil, essa lei quebra os incentivos para que o fundo persiga rendimentos diversificados no exterior, reduzindo o custo de carregamento da reservas. Há indícios de que o fundo soberano brasileiro não pretende lidar com ativos em moeda estrangeira e assumirá o papel de cobrir possíveis despesas indesejadas (ou desejadas) da administração pública federal. 8 9 Vale salientar que braço executor dos investimentos do FSB, o FFIE (Fundo Fiscal de Investimento e Estabilização), é cadastrado como um fundo multimercado pela Comissão de Valores Mobiliários. Lei Federal nº 12.409/2011. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.4, n. 7, setembro 2011 |7 REFERÊNCIAS APFC (Alaska Permanent Fund Corporation). An Alaskan’s Guide to the Permanent Fund. 2011. Disponível em: <http://www.apfc.org/home/Media/publications/2009AlaskansGuide.pdf>. Acesso em 19 ago. 2011. BACEN (BANCO CENTRAL DO BRASIL). SGS – Sistema Gerenciador de Séries Temporais. 2011. Disponível em: <http://www4.bcb.gov.br/pec/series/port/aviso.asp>. Acesso em 19 ago. 2011. BRASIL. Lei nº 11.887, de 24 de dezembro de 2008. Dispõe sobre a criação do Fundo Soberano do Brasil (FSB). Diário Oficial da União, Brasília, ed. 251, p. 1, dez 2008. BRASIL. Ministério da Fazenda. Fundo Soberano está pronto para comprar dólares, mas ainda não está atuando, diz ministro. 2011. Disponível em: <http://www.fazenda.gov.br/audio/2010/setembro/a210910.asp>. Acesso em 20 ago. 2011. ____________________. Mantega anuncia novas medidas para garantir a estabilidade do câmbio. 2011. Disponível em: <http://www.fazenda.gov.br/audio/2010/outubro/a181010.asp>. Acesso em 20 ago. 2011. CHILE. Ministerio de Hacienda: Fondos Soberanos. Santiago de Chile, abril 2010. Disponível em: <http://www.hacienda.cl/fondos/>. Acesso em 19 ago. 2011. GIC (Government of Singapore Investment Corporation). 2011. Disponível em: <http://www.gic.com.sg/>. Acesso em 20 ago. 2011. Infomoney. 2011. Disponível em: <http://www.infomoney.com.br/>. Acesso em 19 ago 2011. Tesouro Nacional. Fundo Soberano do Brasil: Relatório de Desempenho – 1º Trimestre de 2011. Brasil, 2011. Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/legislacao/download/fundo/Relatorio_Desempenho_1 Trimestre_2011.pdf>. Acesso em 20 ago. 2011. ____________________. Fundo Soberano do Brasil: Relatório de Administração e Demonstrações Financeiras – 2º Semestre de 2009. Brasil, 2011. Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/legislacao/download/fundo/Relatorio_Administracao_F SB_22009.pdf>. Acesso em 20 ago. 2011. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.4, n. 7, setembro 2011 |8