MUITA SAÚVA, POUCA SAÚDE Já dizia Macunaíma: “muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são”. Para as formigas já se inventou uma série de armas devastadoras, frente às quais essas teimosas acabam dando um jeito de resistir e escapar. Mas sem dúvida a vida delas tem ficado mais difícil com os progressos da tecnologia agrícola, embora a gente dizer “progressos”, neste caso, não seja exatamente ponto pacífico entre os ambientalistas. É difícil contentar a todo mundo... Mas no caso da saúde, mais do que no das saúvas, parece bem mais difícil deixar todos satisfeitos. Abrimos os jornais, assistimos os noticiários, auscultamos o bom e velho senso comum para ver o quê? Só desgraça... É a fila, é a falha, é a falta, é a f(r)atura, é a fome, é a fala, é o falecimento na fila por falta de fármacos. É (muito) f... mesmo. Mas apesar disso tudo, nos traz o Ministério da Saúde um calhamaço intitulado Saúde no Brasil no qual se lê, em boa letra, que a situação de saúde do País está... Adivinhem? Ora, não sejamos pessimistas nem adeptos de conspirações: diz o MS que as coisas estão melhorando. Dá pra acreditar? Qual será a verdade, afinal? Como sou médico, embora tenha abandonado, há muitos anos, o trato com gente individualizada, deitada e doente, para cuidar de gente no plural, deambulante e ainda sadia – sou um dos tais sanitaristas – me qualifico a botar minha colher de pau (pois não sei usar bisturi...) na ferida, para tentar responder. E vou logo adiantando, por incrível que pareça, que há verdade nisso, sim, embora o fenômeno precise ser compreendo em sua inteireza, para não ficarmos da situação do tolo no adágio chinês, aquele que, ao lhe ser apontada a lua, não enxerga nada mais do que o dedo. Tem coisa boa acontecendo, gente, pode crer! Por exemplo, aumenta a estatura das crianças brasileiras, em tal ritmo que já se prevê a desnutrição será vencida em breve nesta faixa de idade. Come-se mais, cresce-se mais. Isso, infelizmente, não significa que todos já se alimentam de maneira saudável, pois o risco de obesidade também vem aumentando, principalmente entre os jovens do sexo masculino. As mulheres, como seria de se esperar, se cuidam mais. Como tantas coisas mais no Brasil, saímos da desnutrição para o sobrepeso e das mortes por verminose para o infarto do miocárdio, assim como passamos da era medieval à modernidade, da vida rural à aglomeração nas metrópoles, do jegue ao telefone celular. Eita país complicado! Os estudos mostram também que as mulheres adultas cresceram quase duas vezes mais que os homens. Mesmo estando abaixo do padrão mundial, certamente isso já representa um alívio para muitas baixinhas por aí. Neste campo, também, os homens que se cuidem! Um dos segredos dessas mudanças de estatura parece estar na orientação sobre alimentação saudável e realização de atividades corporais, oferecida pelas equipes de Saúde da Família com apoio das equipes escolares. Cerca de 2,6 milhões de alunos, em mais de 16 mil escolas, em 608 municípios são atendidos. Parece pouco, mas não deixa de ser um bom começo. Também nas mortes por doenças do coração e das artérias temos algo importante a comemorar: caíram em 20,5% desde 1990. Entre elas estão duas das principais causas de morte no país, o infarto e o acidente vascular cerebral. Só em 2006 foram mais de 300 mil patrícios que nos deixaram por motivo de infarto cardíaco, muitos precocemente. Já as mortes por derrame cerebral tiveram uma redução ainda maior: 30,9%. Mais uma vez as desigualdades falam alto: as reduções mais significativas estão nas regiões Sul e Sudeste; a região Nordeste apresentou aumento nessa área. Doenças de rico? Sei não... Essas melhorias não vieram de graça e nem por acaso. Estão sem dúvida associadas ao maior nível de instrução geral e de informação, mas também – temos que admitir – às boas políticas de prevenção e promoção à saúde, como aquelas citadas acima, relativas à alimentação e atividade física. Sem deixar de valorizar a expansão da estratégia de Saúde da Família – ás vezes mal compreendida – hoje presente em praticamente 100% dos municípios brasileiros, com cobertura de quase 100 milhões de pessoas (é isso mesmo!), o que trouxe possibilidades de maior controle, diagnóstico precoce e informação a tanta gente. Ainda no terreno do otimismo, estudos mostram que o Brasil experimenta também uma redução significativa no hábito de fumar (também, com tanta proibição por aí...). Isso certamente deve estar contribuindo para a redução da mortalidade por doenças cardiovasculares. Na diabete não andamos tão bem, pois parece haver uma tendência de aumento nas mortes por esta doença. Aqui, o grande fator pode ser a mudança no hábito alimentar do brasileiro, o mesmo que leva o indivíduo ao aumento de peso e de estatura. É isso aí, o preço de se levar uma vida sedentária e se empanturrar, na melhor das hipóteses, de massas, picanha e cerveja e, na pior, de doritos e bolachas recheadas, é muito caro! O Brasil também registrou queda de até 90% nas mortes infantis por diarréia, doenças imunizáveis, desnutrição e outras, antes tidas como típicas da infância. O que mais chama a atenção, entretanto, é o número absoluto, não o percentual. Pasmem: 130 mil brasileirinhos deixaram de morrer entre 1980 e os primeiros anos do século XXI. É de arrepiar (de emoção), não? MUITA SAÚVA, POUCA SAÚDE E, MENOS AINDA, VERGONHA Confesso que andei fazendo o que ninguém tem feito no Brasil, ou seja, mostrar que alguma coisa presta na saúde nacional. Agora, entretanto, saio do terreno do risonho para buscar os arrabaldes da tragédia. O mote de partida será mais uma das frases de efeito da história pátria, como aquela outra, que fala de saúde & saúvas, que ilustrou o artigo anterior: “todo brasileiro é obrigado a ter vergonha na cara”. Isso vale também para a saúde. Antes que se imponha o senso comum, devo dizer que o SUS é, antes de qualquer coisa, parte da solução, não do problema em si. Ele, sem dúvida, é bem concebido do ponto de vista formal e jurídico, mas admitamos que precisa melhorar – e como! Questioná-lo e apontar seus defeitos não é nada demais. A unanimidade faz mal à saúde, tanto aquela a favor como a contrária. Assim, por exemplo, é claro que a saúde no Brasil precisa de mais dinheiro. Aquela história, tão grata à imprensa e ao senso comum por ela (de)formada, de que o que falta é gestão na saúde, não passa de uma falácia, do jeito que é colocada. A gestão é fraca, sem dúvida, mas a grana, convenhamos, é ridícula. Trezentos dólares por cidadão ao ano, o que não dá nem dois reais por dia, é situação que só tem como rivais na América Latina a Bolívia, o Paraguai, o Haiti. É mole? Três vezes isso já estaria adequado... Outro problema é o nosso sistema federativo, conhecido como perfeita jabuticaba (uma daquelas coisas que só dão no Brasil, entendem?). Aqui, são todos autônomos e poderosos: União, estados, municípios. Os municípios, de Nova Iorque (no Maranhão) a São Paulo, são tratados juridicamente como entes iguais – seja lá o que isso for. Questionar isso tem sido considerado heresia, no mínimo um atentado contra a democracia. Mas que democracia seria essa? Em seu nome, tomado em vão, é que vêm os hospitais de 10 ou 20 leitos, sempre deficitários ou com obas interrompidas; as clínicas de alta tecnologia nos mais remotos grotões, fechadas por falta de equipamentos e profissionais; as equipes de saúde que se desfazem a cada mudança de administração municipal; as ambulâncias correndo sofregamente pelas estradas esburacadas (levando pacientes? Nem sempre... Boa parte são eleitores mesmo!). Parte do problema é que vivemos sob a égide do “todo poder aos municípios”, palavra de ordem da década de 80, ainda não devidamente reciclada. Não vamos construir sistema de saúde algum com base municipal pura, mas sim regional. Mas para isso é preciso convencer os prefeitos, sempre ciosos de seu pedacinho, e também os deputados e outros políticos, defensores das famigeradas emendas parlamentares no orçamento público – que fazem tampa & balaio uns com outros. Ah, os políticos... Ninguém os supera nas promessas e na ousadia com que fazem gato e sapato de nossa inteligência. Na saúde, acham que resolvem tudo com a tríade hospital, pronto atendimento e ambulância, embora a realidade, de forma contundente, viva a mostrar que não é nada disso. O buraco nem é mais embaixo: ele está em volta e é mais do que buraco, precipício... Vontade (ganância...) política é o que não falta a essa turma, mas bom senso, isso é moeda rara. Nem falo naqueles desvios de dinheiro tradicionais na história da administração pública brasileira. Falo de desvios de propósitos, muitas vezes mais graves e mais onerosos do que a gatunagem vulgar. Exemplos? Leitos hospitalares insustentáveis ao invés de atendimento básico; ambulâncias no lugar de equipes profissionais permanentes no município; medicamentos distribuídos pela Primeira Dama, comprados na farmácia da esquina... E vai por aí a fora. Mas podemos isentar os políticos, em seus diversos coturnos, da totalidade da culpa. Tem mais... A própria sociedade, seja no pólo dos pacientes ou dos praticantes, tem também uma visão muito distorcida do que seja ter ou manter a saúde. Histórias que seriam engraçadas se não fossem trágicas pululam por toda parte. Certa vez, me disse uma paciente que acabara de ter inaugurado em seu bairro o programa Saúde da Família: “não gosto não, seu moço, eles ‘ispicula’ demais a vida da gente...” É mole? No caso da mulher que preferiria não ser “ispiculada”, o que estava em pauta é uma modalidade assistencial que procura ser tudo o que as formas tradicionais negam à clientela, dando-lhe tratamento diferenciado e integral, ao invés da mera receitinha e do vulgar encaminhamento para exames, que fazem a alegria de tantos pacientes. E contentam também aos que produzem medicamentos ou neles se escoram para disfarçar o mau ensino das faculdades de medicina e outras, que atualmente afloram como cogumelos à sombra, pelo Brasil a fora. E tome médicos de quatro empregos, enfermeiros que somente trabalham em plantões, dentistas que sonham com uma clientela de boca limpa e perfeita... O SUS está repleto destes tipos, pouco adaptados e sintonizados com o atendimento integral e minimamente acolhedor, do ponto de vista humano e cultural, dos pacientes que lhes procuram. Sinceramente, mais do que dinheiro, probidade e decisão racional, o que se precisa, na saúde, é de uma revolução cultural sem precedentes, eis a verdade. Mas que fique claro: com todos os problemas existentes na saúde, o grande responsável pelas mudanças positivas encontradas é mesmo o SUS. Sim, ele mesmo! O combalido, difamado e, sobretudo, incompreendido, sistema de serviços de saúde oferecido ao povo brasileiro. Ruim com ele? Vocês não imaginam como seria pior se ele não existisse, sem a presença do Estado (mesmo frágil como é), sem a participação dos cidadãos, sem a Saúde da Família chegando a 100 milhões de cidadãos no país. O contrário do SUS não seria nenhuma maravilha ajustada aos Mercados. O contrário do SUS é a barbárie sanitária! Assim como tantas outras coisas nesse País, vergonha na cara é ingrediente em falta também na saúde. Mais do que remédios, leitos de hospital, ambulâncias, exames e novas faculdades. Mas na cara de quem? Dos políticos e dos profissionais, principalmente, mas também dos cidadãos em geral. E revoguem-se as disposições em contrário!