Ceticismo, naturalismo e o papel da reflexão filosófica em Hume

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Ceticismo, naturalismo e o papel da reflexão filosófica em Hume
Skepticism, Naturalism, and the role of philosophical reflection in Hume
Mariane Farias de Oliveira1
Resumo: A posição filosófica de Hume não pode ser tomada por um viés reducionista, muito
menos sua obra. Os rótulos do ceticismo e do naturalismo percorreram e percorrem seu trabalho
através de comentadores do filósofo até hoje. Acredito que a melhor maneira para abordar essa
discussão seja investigar o sentido de “crença” para Hume e a maneira como sua visão do que
deveria ser o fazer filosófico influenciou sua própria obra. Para isso, serão tratadas aqui,
principalmente, as noções de ceticismo teórico e prescritivo de Fogelin e a leitura de Stroud de que
Hume veria a filosofia com o objetivo de trazer algum “bem” à vida humana. Também, a partir da
leitura direta do Tratado da Natureza Humana, tentaremos vislumbrar o papel fundamental que a
noção de crença tem para essa discussão. Dessa forma, voltaremos à tentativa de definir uma
posição não reducionista, que comporte ceticismo e naturalismo na obra humeana.
Palavras-chave: Hume. Ceticismo. Naturalismo. Crença.
Abstract: The philosophical position of Hume cannot be reductionist, much less his work. The
labels of skepticism and naturalism walked and run through the work of the philosopher
commentators today. I believe that the best way to approach this discussion is to investigate the
meaning of "belief" to Hume and how his vision of the role of philosophy influenced his own work.
For this reason, will be treated here especially Foling’s notions of theoretical skepticism and
prescriptive and Stroud’s lecture that Hume would see philosophy in order to bring some "good" to
human life. Also, from the direct reading of the Treaty, try to envision the role that the notion of
belief to have this discussion. Thus, back to trying to define a non-reductionist position, bearing
skepticism and naturalism in the work Hume.
Keywords: Hume. Skepticism. Naturalism. Belief.
***
Introdução
Por muitos anos a filosofia de Hume foi vista apenas pelo viés do ceticismo, de
forma ampla, muitas vezes sem distinguir também de que tipo de ceticismo se tratava essa
suposta "posição" filosófica de Hume. Algum tempo depois se começou a pensar no que se
denominou "naturalismo" para a justificação da crença nos textos de Hume, no momento
1
Graduanda em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e bolsista de Iniciação
Científica do programa PIBIC-CNPq sob orientação da professora Dra. Kathrin Lerrer Rosenfield. O presente
artigo foi escrito sob supervisão e orientação do professor Dr. Eros Carvalho (UFRGS).
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em que foi discutido o sentido de "crença" para este autor. O presente trabalho propõe-se,
através da discussão entre dois comentadores da obra humeana, tentar apresentar
brevemente as noções de ceticismo envolvidas no Tratado da Natureza Humana e a relação
entre o que modernamente é chamado de "naturalismo" e o que poderia ser seu
correspondente na visão que os antigos tinham da filosofia.
Dessa forma, pretendemos discutir a posição filosófica de Hume através do que
tentamos interpretar de sua própria visão do papel da reflexão filosófica tanto na filosofia
como na vida prática.
1. Fogelin: Ceticismo teórico e ceticismo prescritivo. O ceticismo de Hume no Tratado
Como já é bastante conhecida a dificuldade em definir a posição filosófica de Hume
e, principalmente, do que muitos chamaram de seu "ceticismo", poderemos ver nas
considerações de Fogelin (2007) uma diferenciação básica entre os usos do termo
"ceticismo" em uma reflexão filosófica que poderá tornar mais claro como e em que
momentos surge o ceticismo na filosofia de Hume.
Fogelin começa por uma distinção básica entre dois princípios dentro do ceticismo:
o ceticismo teórico ("Não há fundamentos racionais para juízos do tipo A.")2 e o ceticismo
prescritivo ou normativo ("Não se deve assentir a juízos do tipo A.")3. Fogelin considera
que podem haver relações entre eles, mas que, de fato, eles se dão de forma independente
um do outro. Considerando, de fato, esses dois tipos, vemos claramente que não há relação
obrigatória entre dizermos que não há fundamentação racional para darmos assentimento a
algo, o que ainda nos permite crer ou agir (o que para Hume seria o mesmo) de acordo com
aquilo, e dizermos que não é permitido assentir a certos juízos, o que torna obrigatória, se
não assentimos, também a nossa conduta de não agir de acordo com tal crença. Poderíamos
talvez dizer que o ceticismo teórico está mais próximo da reflexão filosófica do que o
prescritivo ou normativo, de certa forma, pois no segundo princípio podem haver casos
como o que Fogelin cita: "Pode-se recomendar a suspensão do juízo com base em razões
bíblicas, e não teóricas" (2007, p. 99), por exemplo.
2
3
FOGELIN, 2007, p. 100.
Idem.
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A partir disso, Fogelin argumenta que as duas formas de ceticismo aparecem na
filosofia de Hume: o ceticismo teórico sendo inteiramente não mitigado e o ceticismo
prescritivo sendo variável. O que nos interessa neste trabalho é mostrar como o argumento
a que Fogelin recorre para mostrar o ceticismo teórico não mitigado de Hume diz respeito
à maneira com que Hume apresenta seu ceticismo com relação à razão, que parece ser
tomada no sentido forte, uma vez que o argumento consiste em (I) a redução do
conhecimento à probabilidade e (II) a "extinção total da crença e prova" (FOGELIN, 2007,
p. 111) que decorre de (I) – porém não decorre isoladamente de (I), como veremos a seguir.
A primeira parte do argumento de Hume está baseada em seu exemplo das somas
complexas e nossa propensão ao erro:
Em cálculos longos ou importantes, os comerciantes raramente confiam na
certeza infalível dos números; em vez disso produzem, pela estrutura
artificial dos registros contábeis, uma probabilidade que ultrapassa aquela
que deriva da habilidade e experiência do contador. Pois esta, por si só, já
constitui claramente um grau de probabilidade, embora incerta e variável,
segundo o grau da experiência e complexidade do cálculo. Ora como
ninguém sustentaria que nossa certeza em um cálculo complexo excede a
probabilidade, posso afirmar com segurança que não há praticamente
nenhuma proposição numérica sobre a qual possamos ter uma certeza mais
completa." (T., p. 214)
É interessante perceber como Hume parte de algo advindo totalmente da
experiência (o fato de que comerciantes não costumam confiar em longos cálculos) para
uma reflexão bem mais profunda acerca do conhecimento e da probabilidade. Em seguida,
no argumento, ele afirma que mesmo este seu raciocínio acerca das somas deve se
"degenerar em probabilidade" (T, p. 214) e reduz, por fim, todo o juízo a uma
probabilidade a partir da justificação de que qualquer conhecimento acaba "por adquirir a
mesma natureza que essa evidência que empregamos na vida diária" (T., p. 215).
Na segunda parte do argumento, Hume apela à "segurança" que podemos ter acerca
de nossos juízos, mesmo que de probabilidades, e a autoridade que conferimos a uma
probabilidade parece nunca ser suficiente, precisando sempre de um juízo anterior para
verificá-la. Ora, se há sempre um juízo para justificar outro, aí teremos um regresso ao
infinito. Mas Fogelin afirma que a "saída" de Hume neste problema é diferente: ele não
cede ao regresso ao infinito e, por sua vez, "progressivamente conduz a probabilidade do
juízo original até 'nada'" (FOGELIN, 2007, p. 105). Parece ser uma solução razoável a de
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Hume, uma vez que nossas crenças não diminuem em termos infinitesimais, ou seja, em
um determinado momento, nesta série, a crença é tão baixa que qualquer diminuição nela
prova a anulação da mesma. Em um sentido mais forte, o que Fogelin refere como "nada"
diz respeito à anulação da crença e da prova para Hume nesta seção, o que reforça, mais
uma vez, o argumento do comentador de que o ceticismo teórico de Hume, pelo menos no
Tratado, é completamente não mitigado.
Entretanto, seria um erro entender a filosofia de Hume apenas pelo ceticismo
teórico que é apresentado de forma muito forte nesta seção do Tratado ou entender que seu
ceticismo teórico pode tornar-se um ceticismo prescritivo, ou seja, a partir dele abandonar a
crença e, assim, a ação. Quanto a isso, Fogelin afirma que:
A ideia central de Hume parece ser essa: se a crença fosse fixada por
processos de raciocínio, então o argumento cético recém-apresentado levaria
todos aqueles que o consideraram a um estado de suspensão total da crença.
De fato, em nosso gabinete, essas reflexões céticas podem chegar muito perto
de induzir esse estado extremo. Contudo, quando retornamos aos nossos
afazeres da vida diária, nossas crenças ordinárias voltam rapidamente a nós e
nosso estado prévio (talvez com tremor remanescente) como divertido. Mas
essa restauração da crença não é uma questão de raciocínio e, portanto, não
pode ser explicada com base em qualquer teoria tradicional de formação de
crença, em que se supõe que a mente chega às suas crenças por uma espécie
de raciocínio. (FOGELIN, 2007, p. 108)
O que Fogelin afirma está em contato estrito com a noção de "naturalismo" na
filosofia de Hume, que supõe a crença como motor da ação e uma invariável força natural
(o costume ou hábito) que nos impõe certas crenças mais básicas, como as relações de
causa e efeito. Para falar dessa concepção de naturalismo, julgamos necessário articular o
comentário de Fogelin a outro autor, Stroud, que a aproxima de uma noção mais geral do
que seria a filosofia para Hume. Tentaremos mostrar também como, para Stroud, essa
noção está articulada ao papel da reflexão filosófica para os antigos.
2. Stroud: Hume e os filósofos antigos - o papel da reflexão filosófica
A filosofia na Antiguidade também visava a busca por um bom modo de viver, seus
laços com a vida prática (como vivê-la a partir do que se chegava através da reflexão
filosófica) eram estreitos. Hume, como demonstra no Tratado, conhece os gregos e,
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principalmente, os céticos antigos – embora sua leitura do Sexto Empírico seja discutível,
mas não é nosso ponto aqui –, e seu modo de conceber a filosofia parece às vezes
aproximar-se dos antigos. Na seção final do primeiro livro do Tratado, Hume afirma que é
preciso levar a investigação filosófica com "bom-senso" e que devemos procurar um
conjunto de opiniões que seja pelo menos satisfatório para a mente humana, pois o
ceticismo excessivo pode levar-nos à melancolia e ao desespero. Tentaremos mostrar, nos
próximos parágrafos, como isso pode aproximar-se da visão antiga da reflexão filosófica de
uma maneira geral.
Stroud afirma que as questões que surgem no último capítulo do Tratado devem ser
entendidas não como meramente biográficas, mas sim como uma "expressão da filosofia de
Hume" (STROUD, 2008) e "do que Hume pensava que a filosofia podia ser e fazer"
(STROUD, 2008). Se tomarmos essa relação entre a concepção da filosofia de Hume e dos
antigos, poderíamos ver o problema do último capítulo do Tratado a partir de duas coisas:
(1) a fragilidade e o papel fundamental da imaginação em nossas crenças e (2) a melancolia
que isso gera a partir da concepção de filosofia de Hume. Mais do que uma crise em suas
reflexões ou a melancolia que ele acredita ser causada por levar a dúvida cética às últimas
consequências, aí também está contida a noção de que Hume acredita que a filosofia deva
trazer algum tipo de "bem" à vida humana na própria maneira de viver, e não apenas nas
conclusões (ou perguntas mais refinadas) a que possamos chegar, na medida em que as
reflexões não levem ao desespero.
Parece haver um momento em que a dúvida cética se torna maléfica e, por isso,
deve ser moderada na reflexão:
A visão intensa dessas variadas contradições e imperfeições da razão
humana me afetou de tal maneira, e inflamou a minha mente a tal ponto,
que estou prestes a rejeitar toda crença e raciocínio e não consigo
considerar uma só opinião como mais provável ou verossímil que as
outras. (T., p. 301)
Ainda segundo Stroud, o que afirmamos como causa (1) do episódio do último capítulo do
Tratado se resume a que, tendo chegado à conclusão de que a imaginação tem um papel
fundamental em nossas crenças, Hume também considera a imaginação pouco fundada na
razão. Para aqueles que necessitam de uma justificação baseada na razão, a imaginação,
uma faculdade fundamental de nosso entendimento, torna-se pouco confiável. Mas há uma
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ressalva, da parte de Stroud, em relação ao julgamento de Hume a respeito da imaginação:
apesar de considerá-la pouco fundamentada na razão, "os princípios da imaginação não são
triviais para a natureza humana, eles a tornam o que ela é" (STROUD, 2008, p. 171).
Stroud ainda conclui afirmando que: "A causalidade e a maioria de nossas demais ideias
importantes foram denunciadas como meras 'ficções' ou 'ilusões'. Essa é uma fonte do
desespero para Hume".
Em relação a (2), que seria a relação que o problema de (1) mantém com a
concepção de filosofia para Hume, estaria primeiramente estruturado na maneira como
Hume concebe o ceticismo e sua "solução cética". Para Hume, muitas concepções acerca
do ceticismo se misturam na sua leitura de um ceticismo que por ele é chamado de
"acadêmico", mas o mais intrigante é que para explicar a atuação da natureza quando esta
dissolve, de certa forma, a melancolia filosófica, Hume denomina isto como "solução
cética" na Investigação, e no Tratado apresenta essa atuação da natureza com mais clareza,
embora não traga essa denominação:
Felizmente ocorre que, sendo a razão incapaz de dissipar essas nuvens, a
própria natureza o faz, e me cura dessa melancolia e delírio filosóficos,
tornando mais branda essa inclinação da mente, ou então fornecendo-me
alguma distração e alguma impressão sensível mais vívida, que apagam todas
essas quimeras. (T., p. 301)
Para Stroud, essa noção de “ceder” às forças da natureza presente no que Hume
denomina como sua “solução cética” faria referência à noção dos antigos de “uma maneira
de viver livre de perturbação ao seguir suas inclinações naturais. Alguns deles parecem ter
pensado que eles poderiam alcançar esse feliz estado somente se não tivessem convicções
ou crenças sobre as coisas como são.” (STROUD, 2008, p. 176). Aí ainda haveria um
problema de que, para Hume, a crença parece ser o motor da ação. Logo, se agimos,
assentimos a algo. Mas o que corrobora com a visão dos antigos não é, de fato, esse
problema que Hume nos traz, mas sim a sua concepção de ação da natureza sobre as nossas
faculdades.
Considerações finais
Através desse breve esboço de algumas noções-chave para entender a filosofia de
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Hume e, mais precisamente, o Tratado da Natureza Humana, foi possível ver que Hume
apresenta em algumas seções um ceticismo teórico ou acadêmico forte (não mitigado)
juntamente a uma noção de crença desvinculada do raciocínio e embasada num princípio
natural. Embora esse ceticismo teórico apresente o problema humeneano em relação à
razão, a suposta “solução” que Hume apresenta está fortemente relacionada à natureza na
noção de hábito ou costume, que, de uma forma ou de outra, interrompe o processo de
regresso ao infinito da probabilidade que nossa razão poderia fazer e faz com que certas
crenças básicas permaneçam, o que podemos perceber através de nossas ações.
Ainda relacionado a isso, procuramos tentar “definir” a visão do papel da reflexão
filosófica para Hume como próxima dos antigos em alguns pontos, demonstrada através do
papel fundamental da natureza como “dissipadora” da dúvida cética em certos momentos, e
vendo a necessidade de delimitar as reflexões filosóficas a ponto de não cair em melancolia
e delírio como um “ceder às inclinações naturais” para uma “boa vida” dos antigos. Mas
isso não é uma “solução definitiva” para Hume, ela se enviesa com o processo reflexivo,
pois apenas o tom naturalista não parece capturar completamente a maneira como Hume
entende a volta à vida prática após a melancolia e o delírio, nem o papel positivo do seu
ceticismo mitigado, embora a natureza seja um fator indispensável para esta volta.
Referências
FOGELIN, R. A tendência do ceticismo em Hume. In: Sképsis, ano I, n. 1, 2007.
HUME, D. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: Ed. UNESP, 2001.
STROUD, B. O ceticismo de Hume: instintos naturais e reflexão filosófica. In: Sképsis, ano
II, n. 3-4, 2008.
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