florestan fernandes - Fundação Joaquim Nabuco

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FLORESTAN FERNANDES:
artífice do saber, da esperança e da política. 1
Antônio Jorge de Siqueira
Professor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE e
Diretor do Instituto de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco
Aceitei a tarefa deste texto como um desafio, posto que se trata de
homenagear um personagem da mais alta relevância acadêmica da vida nacional. Um
desafio, também, na medida em que se evita cair nas armadilhas das louvaminhas,
perseguindo, isto sim, a meta-biografia. Mas o fato é que fiquei imensamente feliz em
ser lembrado, repito, na medida em que todos de minha geração, educadores,
cientistas sociais de modo especial, somos levados por uma questão de justiça e
gratidão à obrigação de cultuar devidamente a memória de um brasileiro que soube
dedicar sua vida à militância política, ao parlamento, à educação pública, à
universidade, também ela pública e de qualidade. Um brasileiro que soube conciliar
ciência com política, coisa tão rara num país como o nosso, onde a Política se confunde
com o político e, ambos, são jogados no desvão da depreciação, ferindo a ética e a
cidadania com a hipocrisia oligárquica de nossas elites.
Os cientistas sociais - e aqui incluo os estudiosos e pesquisadores de todas as
áreas - são herdeiros do enorme cabedal e patrimônio do saber científico que legou
Florestan, posto que foi a um só tempo historiador, etnólogo, antropólogo, politicólogo,
e não apenas sociólogo. Principalmente sociólogo. Florestan foi um cidadão que
encarnou de modo peculiar o élan republicano. De origem pobre, filho de portugueses
mal sucedidos em São Paulo, cultivou a magnanimidade do ethos público. Soube ser
disciplinado - extremamente rígido, dizem seus contemporâneos - nos laboratórios,
nas salas de aula, em suas relações com os alunos orientandos. Ao mesmo tempo, foi
um acadêmico generoso que se comprazia em gerar e transmitir saberes bem
planejados, iniciados e concluídos com todo o rigor possível. Foi um cidadão que se
encantou com a política e se indignou com a prepotência do mando exacerbado.
Severo como docente/pesquisador foi, igualmente, extremamente exigente com a
disciplina e a causa partidárias e com o decoro parlamentar, não confundindo os
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espaços da esfera privada com aqueles da esfera pública, até mesmo quando foi mister
cuidar da sua combalida saúde. Recusando-se tratar em hospitais do primeiro mundo,
às expensas do dinheiro público, teria dito que não tinha motivos para desacreditar a
competência da medicina brasileira. Pagou caro, sabe-se, na medida em que um
descuido médico no tratamento da hemodiálise lhe custou a vida, para sempre.
Florestan, vítima deste acidente, prenunciava a catástrofe que se abateria, depois, nos
Caruarus da vida que podem ser aqui, como o foram em São Paulo e que afinal viriam
a ser também em outros lugares deste país. Afinal, é o retrato da saúde pública do
país, ceifando a vida de tantos Florestans. Mas Florestan morreu apostando na nossa
capacidade de sermos competentes. Isto é um conforto para nós. Mais do que conforto
é uma esperança, herdeiros que somos dela. É a nossa melhor herança.
1. De que herança se trata?
Antes de tudo, o trabalho acadêmico perseverante na busca da qualidade. Sem
a menor dúvida que Florestan Fernandes é um personagem crucial e dos mais
importantes na história da construção das ciências sociais no país a partir da década
de 30. Efetivamente, reuniu em torno de si um grupo de pesquisadores que seriam
pioneiros da produção e da divulgação das ciências sociais, trabalhadas sob o signo do
rigor metodológico e da qualidade acadêmica. Bastaria citar, dentre outros, Fernando
Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Renato Jardim Moreira, Maria Sylvia de Carvalho
Franco, Marialice Foracchi, Paul Singer, José de Souza Martins e Luiz Pereira.
Outra herança que nos foi legada por este cientista foi a universidade como
atividade acadêmica comprometida com a cidadania. Isto ficou muito patente no caso
do engajamento de Florestan com a criação paulista da Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas e a sua luta em defesa da escola pública, nos finais dos anos 50 e
já na década de 60. Dizia ele sobre este engajamento: “Até esta época eu ficara preso
nas malhas da profissionalização do sociólogo. Do sociólogo que faz seu trabalho
obedecendo a uma ética da ciência que foi construída no período liberal. (...) Por que
o cientista que se isola e se retrai pensa que está agindo em nome dos padrões da
ciência? (...) Desta maneira, quebrei meu isolamento e deixei de estar confinado não
só dentro da universidade, mas de uma universidade que estava em processo de
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formação, sujeita à forte inibição de controles externos conservadores, e submetida a
várias pressões, todas elas de tipo elitista”.
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Outro legado seu é o papel do intelectual que vivencia, correlaciona e concilia
os espaços da academia com aqueles da construção da cidadania plena. Como
professor e como acadêmico tem nítida consciência do seu papel de intelectual, numa
sociedade marcada pelo traço da cultura patrimonialista. Afirmava ele, em depoimento
recente: “Como intelectual aproveitei muito e, principalmente, descobri que a
sociologia precisa responder às expectativas de que não deve nascer dos donos do
poder, mas sim de critérios racionais de reforma, que levam em conta as necessidades
da nação como um todo, ou das pressões históricas de grupos inconformistas”.
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A partir, portanto, da experiência do engajamento na campanha em defesa da
escola pública, conclui Florestan: “O engajamento me ensinou duas coisas. De um
lado, que não se deve incentivar o isolamento do intelectual de qualquer forma,
mesmo que seja para ele participar de posições reacionárias ou ultraconservadoras.
(...) É melhor ter o Corção dizendo o que ele pensa, do que ter o Corção exercendo
essa influência de uma maneira desconhecida. De outro lado, a participação possui
uma lógica e todo processo de discussão democrática legitima o antagonista. Em
outras palavras, o que aceita o debate público e nele defende sua posição, qualquer
que ela seja, não pode cobrar o silêncio daquele que pensa de maneira diferente. (...)
Isso é importante no meio brasileiro (não só é importante de maneira geral). Em
nosso meio sempre prevaleceu o monopólio conservador da verdade” 4. Aí está um
Florestan de corpo inteiro e que nos deixa o melhor legado de sua herança, como diria
Antônio Cândido, seu grande amigo de lutas políticas e acadêmicas: Florestan, dizia
ele, “é autonomia-referência sem egoísmo, sacrifício sem passividade, orgulho e
humildade, força e brandura”.
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2. A construção da ciência social no Brasil
Florestan Fernandes foi o grande iniciador da sistematização teórica e
metodológica da sociologia no Brasil. Buscou obstinadamente contribuir para instaurar
uma produção sociológica no país, a partir das especificidades nacionais e da realidade
sul-americana. Numa ocasião como esta, nossa melhor homenagem a este cientista
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social consiste em dialogar com ele, reconhecendo-o como cidadão militante e
engajado mas, sobretudo, como um sociólogo pioneiro, neste polifacetado continente
sul- americano. Afinal, quer na qualidade de professor, quer como exilado e sobretudo
como parlamentar, Florestan foi sempre sociólogo e contribuiu decisivamente para
fundir a imagem dele com a da sociologia, no Brasil e na América do Sul. Num texto
escrito entre os anos de 1956-57, ele empreende uma espécie de periodização do
pensamento social, no país. É importante retoma-la até para contextualizar o autor e
sua contribuição. 6
Segundo Florestan, haveria três etapas históricas basilares para a compreensão
da Sociologia no Brasil. A primeira teria sido marcada pelo autodidatismo e teve início
no terceiro quarto do século XIX, correspondendo, portanto, à desagregação social do
escravismo. Este período se caracteriza, segundo ele, pelo uso de conhecimentos
sociológicos marcados como recursos parciais de interpretação. Não se pretendia fazer
investigação sociológica propriamente dita, mas considerar os fatores sociais nas
relações entre o direito e a sociologia, a literatura e o contexto social, o Estado e a
organização social. A segunda fase se iniciaria nos princípios do século, quando a
sociologia é marcada pela análise histórico-geográfica e sociológica daquele momento.
Havia intenções de intervenção racional no complexo social e então a sociologia
inspirava-se num modelo de análise histórico-pragmático. Finalmente, num terceiro
período, que só vai se configurar com relativa clareza no pós-guerra -- no caso de
Florestan, em meados da década de 50 -- a característica dominante seria subordinar
o trabalho intelectual no estudo dos fenômenos sociais a padrões científicos
sistemáticos. Vejamos de perto esta sociologia do autor.
3. A Sociologia de Florestan Fernandes
A Sociologia de Florestan tem quatro etapas relativamente marcantes e
delimitadas. A primeira é constituída pelo período de sua formação intelectual (19411952). Fase em que a Sociologia no Brasil estava voltada para estudos empíricosistemáticos, onde aparecem seus primeiros trabalhos: Organização social dos
Tupinambás (1949), A Função social da guerra na sociedade Tupinambá - sua tese de
doutorado - (1949) e Folclore e mudança em São Paulo (1961). Como estudos
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teóricos desta fase, destacam-se uma Introdução à tradução de Contribuição à crítica
à economia política de Marx (1946) e O problema do método na investigação
sociológica (1947). Ainda nesta fase, registre-se a preocupação de Florestan em
detectar
as
possibilidades
da
construção
de
uma
ordem
social
industrial
e
democrática, como processo de intervenção racional, e sua articulação metodológica
com o funcionalismo de Radcliff Brown. Esta preocupação está presente no texto
Significado das Ciências Sociais no Mundo Moderno, publicado em 1950.
A segunda etapa da sua produção no campo das ciências sociais é constituída
por uma espécie de sociologia aplicada, no sentido de que, além de "historicizar" o
objeto de investigação, tenta estabelecer uma racionalidade entre o objeto e sua
problemática teórica, ou seja, as possibilidades efetivas da construção da ordem
social, industrial e democrática, no Brasil. Do processo histórico ele dirá: “A história
projeta o homem em um passado que se faz presente ou um presente que recupera o
passado -- não existe a negação do passado pelo futuro mediante um presente que
coloca o homem em tensão com sua época”.
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Desta etapa, o seu primeiro texto é
Desenvolvimento Histórico Social da Sociologia no Brasil (1956). Ainda desta fase são
as obras seguintes: O Método de Interpretação Funcionalista em Sociologia (sua tese
de Livre-Docência, em 1953); Os Problemas da Indução na Sociologia e Fundamentos
Empíricos da explicação Sociológica. Liedke Filho sugere que esta etapa seja
subdividida em dois outros sub-períodos, ambos marcados pela preocupação do autor
em
entender
o
Brasil,
oportunidade
em
que
emite
duas
hipóteses
que
corresponderiam aos dois sub-períodos: a hipótese da demora cultural (1954-1959)
e a do dilema social brasileiro (1959-1965).
Nestas duas hipóteses inserem-se obras como: Existe uma Crise de Democracia
no Brasil? (1954) e Obstáculos extra-econômicos à industrialização (1959). No caso da
primeira hipótese, demora cultural, nosso sociólogo presumia que, quando não fosse
homogêneo o ritmo da mudança, nas diversas esferas culturais e institucionais de uma
sociedade, algumas delas, mudando mais rápido que outras, introduziriam um
desequilíbrio. Esta defasagem, então, produziria fricções e tensões sociais.
Já no caso da segunda hipótese – dilema social brasileiro –, este consistiria
numa resistência residual intensa à mudança social que assume conseqüências
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sociopáticas, comportamento típico das elites privilegiadas do ponto de vista político e
econômico
e
que
se
caracterizam
pelo
apego
ao
passado,
professando
um
conservantismo cultural sistemático. Neste período, acontece o envolvimento do autor
com a campanha política em defesa da escola pública, um dos grandes marcos de sua
vida acadêmica e política.
A terceira etapa da Sociologia de Florestan é a reflexão sobre a revolução
burguesa no Brasil. Esta se iniciaria em 1964, ocasião em que se opera uma ruptura
radical com tudo o que ele produzira e vinha produzindo até então. Deste início de
ruptura há dois textos que são fundamentais: o seu discurso de paraninfo à turma de
formandos em Sociologia, na USP, em 1964, intitulado A Revolução Brasileira e os
Intelectuais (1965), assim como a sua Autodefesa, no IPM que se seguiu à sua prisão,
em setembro de 1964, publicado posteriormente, em 1977, como Apêndice do livro
Em Busca de Uma Sociologia Crítica e Militante. Entretanto, o texto básico desta fase
de rompimento é Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (1969). É um texto
síntese entre os conceitos de Marx, Weber e Durkheim, na explicação macrosociológica
do
subdesenvolvimento
econômico.
A
tese
principal
defende
o
subdesenvolvimento como forma específica de realização do capitalismo mundial que,
por sua vez, significa uma forma particular de revolução burguesa, despojada de
qualquer élan revolucionário, sempre segundo Liedke Filho.
Vale a pena ir um pouco mais fundo nesta contribuição de Florestan. Com
efeito, (a) através dela é introduzido o conceito de revolução burguesa em países
periféricos. Como vimos, nos ensaios Sociedade de classe e subdesenvolvimento;
Capitalismo Dependente e Classes sociais na América Latina e, principalmente,
Revolução Burguesa no Brasil, ele avança argumentos que se contrapõem aos teóricos
da modernização, quais sejam: a revolução burguesa se consolida através do
fortalecimento do capitalismo periférico. Palavras dele: “Muitos sociólogos não
concordam com a idéia de que a revolução burguesa se dê sob o contexto da
dominação imperialista. Barrignton Moore sustenta que a última revolução burguesa
foi a norte-americana. Estipulava-se como requisito um mínimo de autonomia nacional
para caracterizar a emergência de uma revolução burguesa”.
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Florestan critica esta
tese como inconsistente. E avança suas razões. O problema central está na
transformação capitalista. Segundo ele, uma burguesia nacional dependente, se
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conseguir uma industrialização maciça, associada com capital e tecnologia externos,
ela poderá produzir uma revolução burguesa, no sentido de uma transformação
estrutural. Essencial é que haja, sempre segundo ele, uma burguesia interna; se não
existir, retroage-se à situação colonial ou se terá a transição direta para o socialismo,
o que não tipifica o caso das nações capitalistas dependentes da periferia.
(b) Conceito de dependência. No final da década de 50 e início de 1960,
Florestan preferia usar o termo heteronomia que ele supunha ser de Weber e que,
mais tarde, descobriu ser de Marx. Mas foi em 1956 que usou a expressão “burguesia
dependente”. Florestan faz uma leitura que consiste em afirmar que os “países
centrais estavam interessados no fortalecimento das burguesias da periferia. Era-lhes
vital fortalecer o capitalismo da periferia – e, com ele, as burguesias nacionais
dependentes – como um recurso extremo para impedir a irrupção de revoluções
socialistas e a universalização do socialismo”.
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Com esta teoria, há uma contribuição importante de Florestan para a Sociologia
do Brasil e a do conjunto dos países da América Latina. Primeiro, porque responde
qual é a peculiaridade da revolução burguesa retardada, num país de periferia
atrasada de então, resposta esta que fora dada por Lênin, no caso da Rússia, na fase
de 1905 a 1907. Em se tratando da América Latina capitalista, as burguesias usaram
seu poder econômico, social e político seja para manter o controle do Estado, seja
para convertê-lo em uma tirania e acelerar a revolução burguesa no plano econômico.
Em segundo lugar, com esta teoria, o autor oferece uma contribuição para se
esclarecer os mecanismos políticos de dominação na atualidade. Ou seja, vamos para
além do tipo clássico de revolução burguesa dentro dos padrões de desenvolvimento
inerentes ao capitalismo competitivo que pressupunha um mínimo de autonomia
econômica, sócio-cultural e política. O que consubstancia esta tese? Segundo o autor,
“um tipo retardado de revolução burguesa, que concilia potencialidades econômicas,
sociais e políticas das multinacionais dos países hegemônicos, das burguesias
nacionais dependentes e de um Estado burguês ditatorial. Todos convergentes na
defesa de um mundo para o capitalismo. Isto propicia um regime instrumental para a
dominação das burguesias periféricas, impedindo uma revolução de baixo para cima".
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Cabe mencionar, neste período, os estudos que Florestan empreendeu sobre a
negritude: Integração do Negro na Sociedade de Classes (1965). Foi um grande
momento em sua vida, dirá. “... De todos os temas que eu tratei, aquele que me
engrandeceu mais, do meu ponto de vista, foi o estudo do negro”.
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A contragosto,
decidiu colaborar com Roger Bastide numa pesquisa sobre o negro. O professor
Bastide chegou a lhe implorar: “eu coleto os dados e você escreve”, diria Bastide!
Florestan, diante daquele que fora seu mestre por quatro anos, fica comovido e as
lágrimas lhe vêm aos olhos. Decide participar da pesquisa. Palavras dele: “Aquela foi a
maior pesquisa de que participei e os dois livros contam como a maior contribuição
empírica que logrei dar ao conhecimento sociológico da sociedade brasileira. Por
acaso, o encadeamento das pesquisas foi fundamental para mim. Através do índio,
ficara conhecendo o Brasil dos séculos XVI e XVII; através do negro teria de estudar
relativamente a fundo o Brasil dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX. Pus o pensamento
sociológico no âmago da sociedade ‘colonial’, ‘imperial’ e ‘republicana’, o que
representou uma enorme vantagem em termos de aprendizagem ou de possibilidades
de lidar comparativa e historicamente com os problemas de estratificação social e de
evoluções de estruturas sociais”.
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E, vai mais além quando afirma: “De um ângulo teórico, portanto, esse foi o
trabalho que teve maiores conseqüências para mim, seja para conhecer o Brasil como
sociedade nacional, seja para chegar à temática da sociologia do subdesenvolvimento
e da dependência. Além disso, eu me senti como ser humano em comunhão com
outros seres humanos”. E, mais adiante, acrescenta: “O sociólogo, como ser humano,
sempre interage e recebe o impacto do que estiver investigando. (...) Estabeleceu-se
uma base de identificação psicológica profunda, em parte por causa do meu passado,
em parte por causa de minha experiência socialista prévia, em parte graças à origem
que tenho -- descendo de uma família de imigrantes portugueses que se destroçou em
São Paulo --, condições sem as quais, provavelmente, tudo isso não apareceria e eu
seria o típico sociólogo profissional “neutro”, “seco” e “impecável”. Porém, dada a
minha história de vida, eu era a pessoa para fazer aquela pesquisa e aproveitar aquela
oportunidade que ela me oferecia de amadurecer o sociólogo como cientista e como
ser humano”.
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Em 1969 Florestan é cassado e aposentado da USP, e tanto a sua avaliação da
situação política do Brasil, quanto sua dor causada pelo exílio serão transparentes no
texto que escreveu no Canadá, em Toronto, no ano de 1977: A Geração perdida. De
volta ao Brasil, em 1973, foi superando o isolamento do retorno e, em 1978, leciona
na PUC-SP, ocasião em que publica uma entrevista intitulada “Sobre o trabalho
teórico”.
A quarta e última etapa é a chamada etapa da militância cidadã quando, em
1986, aceita convite do PT para concorrer à Câmara dos Deputados. Neste período,
critica o jogo político das elites, na manutenção dos seus privilégios, destacando-se,
no período da Constituinte, a sua luta em favor da educação popular, democrática e
de qualidade, como o fizera, aliás, durante toda a sua vida. Desta fase destacam-se
seus livros: Que Tipo de República (1986); O Processo Constituinte (1988); A
Transição Prolongada (1990), Capitalismo Monopolista na Era atual (1994) e Tensões
na Educação (1995), dentre outros tantos.
4. Novos tempos, segundo Florestan?
Num discurso que fez nas antigas salas da rua Maria Antônia, já no final da
década de 80, Florestan falava do futuro, referindo-se à Universidade. Afirmava,
naquela oportunidade, que a universidade de então não era a de 34, nem a do Antônio
Cândido, nem a do Estado Novo, nem a dos ditadores do pós-64. Era, sim, a que se
abria para o futuro, no momento em que há uma civilização vinculada àquilo que ele
chamava de terceira fase do capitalismo monopolista. E o que era este capitalismo?
Segundo suas palavras, “é um capitalismo mais cruel do que foi o colonialismo direto
dos séculos XVI, XVII e XVIII - conforme o país da América Latina que se considere -,
e, às vezes, indo além, como foi o caso de Cuba, de Porto Rico, pensando só neste
universo pisoteado da América Latina. (...) O capital já não retira o excedente
econômico apenas do trabalho. (...) Nós estamos numa era em que essa exploração é
muito mais forte e muito mais profunda, porque o capital avança através da tecnologia
dos computadores, da automação e da robotização para outro patamar da história, no
qual está cabendo a esta humanidade do ocidente ou se desvanecer ou se refundir, se
recriar”. (...) E a universidade precisa se preparar para esse desafio. À universidade
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cabe um papel de renovação, que coligue com o conceito capitalista de globalização.
Globalização do mercado não é globalização da cultura, não é globalização do espírito
crítico. É globalização do lucro, da turbinação das nações poderosas sobre as nações
mais frágeis, e, às vezes insensivelmente, nações que estavam subindo para o
primeiro mundo se viram lançadas em prantos inventados no exterior, manipulados no
exterior, que resultavam em terríveis crises, que custam fome, perda de emprego,
falta de perspectiva para o futuro, animalização daqueles que não podem, através do
trabalho, chegar à consciência do que é a natureza humana”.
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Como se vê, havia
nele a lucidez na previsão do que viríamos constatar na globalização que, de fato,
vivenciamos hoje. A coerência da denúncia, também é outro traço que o acompanha,
a vida inteira. Lucidez e coerência esta, sem dúvida, é a melhor herança de Florestan
e o resgate disto, de nossa parte, consiste na melhor homenagem que possamos lhe
prestar.
[Notas]
1
Texto da conferência de encerramento do III Encontro de Ciências Sociais do Departamento de Ciências
Sociais do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE. Recife, 2001.
2
Cf. FERNANDES, Florestan. A Condição de Sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978. p. 61.
3
Id., ib.
4
A Condição de Sociólogo, p. 64-66
5
Antônio Cândido, Prefácio a A Condição de Sociólogo.
6
Eno Liedke Filho, Florestan Fernandes: Sociologia e Cidadania. Informativo SBS, n. 12, abril-agosto/1995.
7
Cf. A Condição de Sociólogo, p. 88.
8
Cf. A Condição de Sociólogo, p. 97.
9
Id., p. 98-99.
1C
. A Condição de Sociólogo, p. 92.
11
. Id. p. 95.
12
. Cf. A Condição de Sociólogo, p. 96.
13
. Discurso de Florestan Fernandes na Maria Antônia. Revista USP, n. 29, abril-maio-junho/1989.
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