Boletim da Sociedade Geológica de Portugal Lisboa Volume XXV, Nova Série pp. 39-44, 2 figs. 2009 ORLANDO RIBEIRO E O DESENVOLVIMENTO DA GEOMORFOLOGIA EM PORTUGAL por António de Brum Ferreira Professor Catedrático Aposentado da Universidade de Lisboa; [email protected] I – O geógrafo Orlando Ribeiro Não me é possível falar de uma das facetas da actividade científica de Orlando Ribeiro sem antes lembrar o Eminente Geógrafo que ele foi e que nos ilumina ainda com os seus ensinamentos e exemplo. Para Orlando Ribeiro, a Geografia, «encruzilhada de ciências», só se realiza verdadeiramente nas obras de síntese, tomando em consideração, em conjunto, os aspectos naturais e humanos da paisagem. Daí o seu desgosto em ver os jovens discípulos dos anos setenta encaminharem as suas teses para campos mais especializados, quer da Geografia física quer da Geografia humana. Apesar disso nunca lhes tentou impor os seus pontos de vista, deixando a cada um a liberdade de trilhar o seu próprio caminho, mas sempre atento ao rigor da análise e do método. E, a meu ver, foi sobretudo nas obras de síntese, aligeiradas de pesadas pesquisas bibliográficas, que Orlando Ribeiro mostrou todo seu génio. São exemplos as suas obras-primas Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico e Mediterrâneo, Ambiente e Tradição. A primeira destas obras, publicada pela primeira vez em 1945, quando tinha a pouca idade de 34 anos, traça os fundamentos da Geografia de Portugal, na encruzilhada de influências dos mundos mediterrâneo e atlântico. O segundo livro retrata com grande finura o ambiente que era o da sua predilecção, como se vislumbra na dedicatória a Juvenal Esteves: ... em lembrança da amizade nunca desmentida, do convívio espiritual que nos enriqueceu e da nossa antiga e persistente fascinação do Mediterrâneo. Orlando Ribeiro percorreu todas as teclas da Geografia clássica, trabalhou em vários continentes, 39 deixou uma obra científica muito vasta que se disseminou em vários países e em várias línguas. Mas é justo também salientar a sua capacidade de organização. Lembrarei apenas dois exemplos. Ainda muito jovem, e com grande escassez de recursos materiais e humanos, abalançou-se a organizar o XVI Congresso Internacional de Geografia, o primeiro depois da Segunda Guerra Mundial, e que decorreu, em 1949, com grande sucesso e agrado dos participantes. No Congresso seguinte, em Nova Iorque, Orlando Ribeiro seria eleito Primeiro Vice-Presidente da União Geográfica Internacional, em reconhecimento pelo trabalho feito, com tão escassos meios. O segundo exemplo que desejaria salientar é o da criação do Centro de Estudos Geográficos, fundado em 1943, uma vez mais, com recursos muito limitados. Apesar de contingências de vária ordem, o Centro de Estudos Geográficos foi-se consolidando e é hoje a principal referência, reconhecida no estrangeiro, da Geografia que se pratica em Portugal. Professor brilhante, de comunicação fácil e dotado de uma grande erudição, foi convidado a leccionar em várias universidades estrangeiras, nomeadamente do Brasil, Canadá e França. E, em consequência do reconhecimento nacional e internacional dos seus méritos de investigador e professor, Orlando Ribeiro foi distinguido com o Doutoramento Honoris Causa, sucessivamente pelas universidades de Bordéus, Complutense de Madrid, Coimbra, Rio de Janeiro e Sorbonne. II – A formação naturalista A formação de Orlando Ribeiro ficou muito a dever, segundo o próprio afirma, à sua frequentação da Sorbonne, entre 1937 e 1940, para onde tinha sido nomeado leitor. Aí pôde estudar ou contactar com grandes mestres da Geografia francesa. De entre todos, aquele que mais parece tê-lo influenciado, e que contribuiu decisivamente para a sua preparação e gosto pela Geografia física, foi Emmanuel de Martonne, de quem, aliás, se considera discípulo. De Martonne foi, seguramente, um dos mais ilustres geógrafos do século XX. Autor de um famoso Tratado de Geografia Física, lido em todo o mundo, com sucessivas edições durante a primeira metade do século, pode dizer-se que De Martonne se tornou, por via dessa obra, um mestre universal. Curiosamente, o primeiro contacto de Orlando Ribeiro com De Martonne foi justamente esse Tratado, que começou a ler durante as férias liceais, na biblioteca pública de Viseu, com a idade de 15 anos. Dez anos mais tarde pôde seguir no Instituto de Geografia da Universidade de Paris as aulas do Mestre, de que recorda especialmente os ....famosos trabalhos práticos de leitura e interpretação de mapas, que reservava a um grupo restrito de estudantes. As aulas seduziam ....pelo que nelas havia de rigor, de exigência e, ao mesmo tempo de virtuosismo, chegando, de uma maneira rítmica, a interpretações luminosas (Ribeiro, 1973, pp. 163-164). Às aulas seguiram-se contactos pessoais frequentes, nomeadamente a discussão anual dos resultados das pesquisas que Orlando Ribeiro ia 40 prosseguindo, durante as férias, sobre a evolução do relevo de Portugal Central. No campo da Geomorfologia, Orlando Ribeiro distinguia também Henri Baulig, que considerava “talvez o maior geomorfólogo de todos os tempos, através dum rigor de observação e na interpretação, que não recorria ao cálculo mas ao mais fino e exacto encadeamento lógico” (Ribeiro, 2003, p. 196). Baulig foi o mais ilustre discípulo de William Morris Davis em França, mas aplicou o modelo davisiano com grande abertura de espírito. No plano teórico, Orlando Ribeiro sentia também uma certa atracção pelo modelo davisiano, simples e, aparentemente, de aplicação universal. Mas os seus trabalhos estão bem longe deste esquema. Pela visão mobilista e pelo atento estudo dos depósitos correlativos, parece bem mais próximo dos conceitos de Walter Penck ou das orientações de Hermann Lautensach e de Pierre Birot. O ensino da Geografia que Orlando Ribeiro havia recebido em Portugal, ....mesmo o de Silva Telles, era exclusivamente verbal, embora atraente, e pouco se tirava dele para a observação pessoal. Por isso decidira seguir as aulas de Geologia que Ernest Fleury ministrava no Instituto Superior Técnico de Lisboa, ....com excursões semanais onde, postos perante um corte, o professor nos obrigava a descrevê-lo e desenhá-lo com minúcia e rigor (Ribeiro, 2003, p. 186). Foi com estas “sérias bases de observação e um razoável conhecimento da estratigrafia do Secundário e do Terciário” (Ribeiro, 1973, pp. 164-165) que Orlando Ribeiro se fez notar na primeira saída de campo à bacia de Paris conduzida por De Martonne, revelando uma preparação geológica superior à dos seus colegas parisienses. O treino na observação e interpretação de campo, de que pôde beneficiar durante as numerosas excursões em que participou, foi, aliás, uma das bases fundamentais da formação que Orlando Ribeiro recebeu nos seus contactos com a Geografia francesa. Orlando Ribeiro, a par de uma sólida formação humanista, possuía assim uma forte propensão naturalista e baseava o seu método científico na observação dos factos concretos, para, a partir deles, chegar às interpretações possíveis. É ele mesmo quem o diz: …eu próprio me considero um naturalista e nas Ciências Naturais adquiri a base da minha formação de geógrafo (Ribeiro, 2003, p. 168); ou ainda: ....a base da minha educação científica é a observação (Ribeiro, 2003, p. 171). A defesa do método indutivo, em contraponto ao “espírito de sistema”, é bem realçada numa homenagem ao seu amigo e colega de trabalho Pierre Birot, em que afirma: Il se complaisait, en effet, au raisonnement abstrait, qui s’accorde mal avec l’observation rigoureuse et objective qui charpente le grandiose exercice des Sciences Naturelles, auxquelles appartient la Géographie (…) (Ribeiro, 1985, p. 184). III – O convívio interdisciplinar: encontros com a Geologia Orlando Ribeiro conviveu com grandes vultos da cultura em Portugal, estimulado pela sua avidez pelas ciências e as artes. Ele próprio teve oportunidade de traçar o seu percurso no ambiente que então se vivia nas universidades de Lisboa e de Coimbra, e de recordar a influência que recebeu de mestres e colegas de então. Acerca do convívio interdisciplinar que sempre procurara, escreveu Orlando Ribeiro: Sempre pensei que o geógrafo, com a variedade e convergência de matérias que utiliza, tem de ser uma pessoa cientificamente «bem relacionada». Por isso procurei apoio em disciplinas próximas das duas faces da Geografia (Ribeiro, 2003, p. 124). Uma dessas disciplinas foi a Geologia, tendo mesmo trabalhado com eminentes geólogos do nosso país, entre outros, Carlos Teixeira, Georges Zbyszewski e Cotelo Neiva. O primeiro encontro com Carlos Teixeira deu-se, curiosamente, no Instituto de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras de Paris, onde Orlando Ribeiro fazia o seu leitorado. Carlos Teixeira regressava de um estágio na Universidade de Lille, onde se aperfeiçoara no estudo da flora do Carbónico. Conduziu-o ao Laboratório de Geografia física da Faculdade de Ciências e apresentou-o a G. Zbyszewski e ao orientador deste, o geólogo Jacques Bourcart, os quais haviam já trabalhado em Portugal. De volta ao nosso país, e desiludido com a falta de convívio científico que então se vivia na Faculdade de Letras de Coimbra, para onde tinha sido convidado como Professor extraordinário, resolveu contactar Carlos Teixeira e Cotelo Neiva, que trabalhavam na Faculdade de Ciências do Porto. Recorda Orlando Ribeiro: Convenci-os a arejarem, e empreendemos juntos trabalhos de campo de que, à noite, no café, eu ditava os resultados depois do acerto, por vezes em linguagem veemente e crua, das nossas discordâncias. Trabalhámos nos arredores do Porto, no Cávado, no Luso e publicámos as primeiras notas. Homens de laboratório, que nunca fui, creio que ganharam com a observação de campo, feita sempre na melhor disposição e alegria (Ribeiro, 2003, pp. 192-193). Orlando Ribeiro, Carlos Teixeira e Cotelo Neiva viriam a ser contratados, em 1945, “colaboradores benévolos” da prestigiosa instituição Serviços Geológicos de Portugal, recebendo “ajudas de custo e de deslocação”, benefício que a Faculdade não assegurava. Na qualidade de colaborador dos Serviços Geológicos de Portugal, Orlando Ribeiro estudou durante vários anos os depósitos discordantes das superfícies de aplanamento da Beira Baixa, contribuindo assim para o levantamento da Carta Geológica de Portugal, na escala de 1:50 000, nomeadamente das folhas de Nisa (1965) e de Castelo Branco (1967). No domínio da Geologia, convém lembrar também o convívio que estabeleceu com os ilustres cientistas espanhóis Eduardo e Francisco Hernández-Pacheco e Solé Sabarís, a quem os progressos da Geomorfologia da Península Ibérica tanto ficaram a dever. Orlando Ribeiro procurou sempre no conjunto do espaço peninsular o enquadramento necessário para o seu estudo e interpretação do território português, e isso é muito claro nos trabalhos sobre o maciço antigo de Portugal, o tema fundamental das suas pesquisas geomorfológicas. É porventura no estudo do Quaternário que geólogos e geomorfólogos encontram o melhor campo de colaboração. Apesar dos importantes progressos recentes, pode dizer-se que a verdadeira idade de ouro dos estudos do Quaternário em Portugal se situa nos anos quarenta do último século, graças a uma colaboração interdisciplinar, em que avultam os trabalhos conjuntos do geólogo Georges Zbyszewski e do pré-historiador Henri Breuil (o conhecido Abbé Breuil). Estes dois cientistas reuniram os resultados das suas pesquisas em dois importantes volumes dos Serviços Geológicos de Portugal, um datado de 1942 e outro de 1945. Baseados essencialmente no estudo das indústrias paleolíticas e na geologia das praias e terraços da parte vestibular do Tejo, propuseram um modelo de cronologia do Quaternário em Portugal que, em vários aspectos, se pode considerar ainda válido. Foi neste contexto de renovação dos estudos do Quaternário em Portugal que surgiram os trabalhos de campo conjuntos de Orlando Ribeiro, Carlos Teixeira e Cotelo Neiva sobre o litoral português, cujos resultados foram resumidos em dois pequenos artigos publicados, em 1943, no Boletim da Sociedade Geológica de Portugal. Num deles, “Depósitos detríticos da Bacia do Cávado”, é identificado um antigo estuário do Cávado, que se ligaria a uma praia tirreniana, situada a Sul do curso actual do rio. No outro, intitulado “Depósitos e níveis pliocénicos e quaternários dos arredores do Porto. Nota preliminar.”, é descrita uma sucessão de praias e terraços na área vestibular do Douro. Outra observação interessante consignada nesse trabalho foi a identificação do depósito grosseiro de Medas, que se espraia no sopé da crista quartzítica de Valongo, e que é mais antigo do que a formação dos terraços, ou seja, anterior ao encaixe quaternário daquele grande rio. Cotelo Neiva, Orlando Ribeiro e Carlos Teixeira em trabalho de campo, em 1943. 41 IV – Estudos sobre o maciço antigo: uma visão mobilista e a análise de depósitos correlativos A principal contribuição de Orlando Ribeiro para a geomorfologia de Portugal diz respeito aos seus estudos sobre a evolução do relevo do maciço antigo, nomeadamente na Beira Baixa e na Cordilheira Central. Nesses estudos revela uma visão mobilista da evolução de uma unidade estrutural muitas vezes considerada estável no ciclo alpino e numa altura em que em França se privilegiava ainda a análise cíclica do relevo, de inspiração davisiana. A sua base de trabalho era essencialmente a observação de campo, com o apoio de uma cartografia topográfica e geológica muitas vezes insuficiente. A observação minuciosa das formas e a análise dos depósitos superficiais constituíram os fundamentos das suas interpretações sobre a natureza dos acidentes do relevo e sobre as principais etapas da evolução geomorfológica. Pode-se distinguir três fases na publicação dos resultados: a mais antiga, que é também a mais produtiva, vai de 1939 a 1943, e insere-se na preparação de uma tese de doutoramento de Estado a defender na Sorbonne, projecto que foi abandonado devido sobretudo às contingências da guerra; a segunda fase inicia-se em 1949, o ano do Congresso, e termina em 1955, altura em que Orlando Ribeiro apresenta uma síntese da geomorfologia do território português, inserida na sua Geografia de Portugal, publicada em Espanha. A terceira fase, da qual não trataremos, é essencialmente fruto de um trabalho de colaboração, e que culmina em 1986 com a publicação de uma importante memória sobre as Bacias da Lousã e de Arganil, da autoria de Suzanne Daveau, Pierre Birot e Orlando Ribeiro, e que reúne os resultados de diferentes fases de pesquisa, ao longo de meio século. Depois de alguns estudos ainda preliminares publicados em revistas francesas da especialidade, o primeiro trabalho de vulto de Orlando Ribeiro sobre o maciço antigo português surge em 1942, no Boletim da Sociedade Geológica de Portugal, sob o título “Notas sobre a evolução geomorfológica da orla meridional da Cordilheira Central entre Sobreira Formosa e a fronteira”. É, porventura, o estudo mais sólido do conjunto de publicações do primeiro ciclo referido. Nele identificou uma escadaria tectónica na vertente meridional da Cordilheira Central, com confirmação geológica das falhas, quer por deslocações das cristas quartzíticas quer pelos contactos anormais com os depósitos arcósicos terciários, e sobre os quais se derramou um manto de depósitos grosseiros de sopé. Estabeleceu a comparação entre estes depósitos e acumulações semelhantes que ocorrem a Sul da Cordilheira Central espanhola, sobretudo nos Montes de Toledo, onde constituem vastas superfícies cascalhentas, de fraco declive, conhecidas pelo nome regional de rañas. A ilustração do trabalho é muito rica, com cortes geológicos e blocos-diagramas, e inclui ainda um esboço geomorfológico onde figuram superfícies de aplanamento, cristas quartzíticas e outros relevos residuais, a distribuição dos depósitos arcósicos e de sopé, e as escarpas de falha. 42 No ano seguinte surgem mais dois artigos com muito interesse. Um deles, publicado nas Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal, refere-se à evolução da falha do Ponsul, importante acidente tectónico e topográfico que faz a transição entre a plataforma de Castelo Branco e a superfície do Alto Alentejo. A falha deslocou os depósitos arcósicos, e as escarpas resultantes foram fossilizadas por depósitos grosseiros de sopé correlativos do levantamento da Cordilheira Central, os quais chegam a atingir, na região, espessura de 250 metros. A fossilização das escarpas permitiu a epigenia do rio Ponsul, que tanto percorre em garganta o compartimento superior da falha, como, ao rés do solo, o bloco abatido. O outro estudo, incluído nas Publicações do Museu e Laboratório Mineralógico e Geológico da Faculdade de Ciências do Porto, incide sobre uma área de grande variedade geológica e geomorfológica, nos arredores de Vila Velha de Ródão, onde se situa a impressionante garganta epigénica do Tejo, conhecida por Portas de Ródão. Novamente são identificadas e comprovadas do ponto vista geológico numerosas falhas. Estas têm geralmente direcção bética, mas outras, facilitadas pelas diferenças de resistência entre as cristas quartzíticas e os xistos, tomam o rumo das deformações hercínicas. Discriminam-se três tipos de depósitos: arcoses, rañas e terraços fluviais. O estudo inclui um mapa geológico a cores, na escala de 1:50 000, ainda esquemático e provisório, mas que tem por objectivo mostrar as relações entre a natureza das rochas, as deslocações tectónicas e as formas do relevo. Dos estudos da segunda fase, fazem parte uma importante síntese sobre as rañas, publicada em colaboração com Mariano Feio, e uma série de artigos em que se nota a grande finura da interpretação puramente morfológica do relevo. O trabalho sobre as rañas foi o objecto de uma comunicação ao Congresso Internacional de Geografia, realizado em Lisboa. É, efectivamente, a síntese clássica sobre as rañas em Portugal, incidindo sobre vários aspectos: constituição, morfologia, condições de génese, posição estratigráfica. Os depósitos de sopé das vertentes montanhosas, tal como acontece na Cordilheira Central, estão sobretudo ligados às deslocações tectónicas, enquanto os depósitos de planície, alimentados sobretudo pelas cristas quartzíticas, têm origem essencialmente climática. Coroando o enchimento sedimentar das bacias pliocénicas e sendo anteriores aos mais antigos terraços quaternários, os depósitos de raña foram atribuídos ao Vilafranquiano, e têm constituído, à falta de outros elementos de datação, um marco cronológico de importância na evolução geomorfológica do maciço antigo. Datam de 1949 dois artigos publicados nas Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal. Um deles, “A Cova da Beira. Controvérsia de Geomorfologia”, é um confronto de opiniões entre Orlando Ribeiro e Pierre Birot sobre a importância relativa da erosão e da tectónica na origem e evolução deste importante acidente geomorfológico, discussão suscitada e alimentada pela ausência de depósitos correlativos. O outro, “O Fosso Médio do Zêzere”, é a interpretação morfológica de um graben entre os dois horsts principais da Cordilheira Central, e por onde se insinuou aquele rio. Dois anos mais tarde, num outro artigo publicado também nas Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal, e intitulado “Três notas de Geomorfologia da Beira Baixa”, é bem evidente a renovação da análise geomorfológica permitida pelos mapas topográficos na escala de 1:25 000, de que são reproduzidos alguns trechos muito sugestivos. Particularmente interessante é o estudo da origem e evolução dos montes-ilhas, relevos frequentes na zona tropical, e que se encontram também na Cova da Beira e na superfície de Castelo Branco. Em “Estrutura e Relevo da Serra da Estrela”, artigo publicado em 1954, no Boletim da Real Sociedade Espanhola de História Natural, individualizam-se os vários patamares e escarpas, assim como os alinhamentos tectónicos denunciados pelos cursos de água, e conclui-se que a serra da Estrela é um horst complexo, uma verdadeira montanha de blocos. A Geografia de Portugal da autoria de Orlando Ribeiro, publicada em 1955, constitui o tomo V de uma grande obra colectiva, dirigida por Manuel de Terán, dedicada à geografia da Península Ibérica. A síntese geomorfológica incluída nesse volume não se confina, obviamente, ao maciço antigo, embora este ocupe um lugar relevante, que se justifica por se tratar da mais extensa unidade estrutural do território português. Comparando essa síntese com igual tentativa de Hermann Lautensach, datada de 1932, diz Suzanne Daveau (in Ribeiro et al., 1987, pp. 201-202): O correspondente capítulo I de O. Ribeiro, publicado em 1955, consegue já ser uma interpretação genética do conjunto do relevo de Portugal. É de estilo sintético; em vez de apoiar-se, a cada passo, na citação sistemática dos trabalhos utilizados, enumera simplesmente os mais importantes na bibliografia final. Além das contribuições de Lautensach e do próprio autor são aqui aproveitadas as de outros geomorfólogos, principalmente P. Birot, A. Fernandes Martins e Mariano Feio, e as de vários geólogos, entre outros, C. Teixeira, Cotelo Neiva e G. Zbyszewski. A apresentação evolutiva do relevo, a distinção de fases sucessivas da sua elaboração levaram O. Ribeiro a adoptar uma articulação espacial de base geológica e não morfográfica como Lautensach (…)”. Trata-se, efectivamente, de uma síntese luminosa do conhecimento geomorfológico de Portugal à data em que foi escrita. Esta síntese fecha um ciclo de ouro da investigação geomorfológica em Portugal, ao qual se segue um longo hiato, que será apenas interrompido no final dos anos sessenta, agora sob o impulso de Suzanne Daveau. V – Uma experiência invulgar: o estudo das erupções vulcânicas do Fogo e dos Capelinhos Vale a pena lembrar aqui esta faceta da investigação científica de Orlando Ribeiro, a observação e descrição de duas erupções vulcânicas, uma em Cabo Verde e outra nos Açores. É o próprio Orlando Ribeiro quem o afirma: O naturalista conta entre os mais felizes episódios da sua vida científica as duas erupções vulcânicas que estudou (Ribeiro, 2003, p. 208). Se o contacto com a erupção do Fogo foi fugaz, ela viria a ser o pretexto para a elaboração de uma das obras mais admiráveis do autor, “A Ilha do Fogo e as suas erupções”, justamente considerada por Suzanne Daveau ....uma das obras-primas da «Escola geográfica de Lisboa». No caso da erupção dos Capelinhos, na ilha do Faial, Orlando Ribeiro e Raquel Soeiro de Brito, que o acompanhou, realizaram duas campanhas, uma em Outubro de 1957, logo no início da erupção, e outra em Janeiro do ano seguinte. As descrições e a ilustração que nos deixaram da erupção (Ribeiro & Brito, 1958) têm o maior interesse, mas, ao contrário do que havia sucedido com a do Fogo, a erupção dos Capelinhos seria amplamente estudada por cientistas portugueses e estrangeiros. Um papel importante desempenhado pelos dois geógrafos na ocasião foi o aconselhamento das autoridades locais no socorro às populações: embora sem provocar vítimas mortais, a erupção implicou o realojamento de 680 pessoas. A erupção do Fogo, iniciada em Junho de 1951, prolongou-se por dois meses. Devido a problemas práticos de vária ordem, a permanência de Orlando Ribeiro junto do foco eruptivo durou apenas uma semana. Mas foi possível ainda filmar a emissão de lavas, que se haviam de imobilizar pouco tempo depois. Desses dias de observação do fenómeno eruptivo, o autor deixou-nos descrições muito vivas, por vezes cheias de emoção: O espectáculo, que a escuridão da noite revelava em toda a grandeza (…), é dos mais belos e impressionantes que olhos humanos possam contemplar. O cinema não o reproduz exactamente (…) (Ribeiro, 1960, p. 287). Orlando Ribeiro voltaria ao Fogo, desta vez acompanhado por Torre de Assunção e outros cientistas, a fim de poderem documentar com mais rigor as consequências da erupção. As duas estadas no Fogo permitiram a Orlando Ribeiro fazer observações em toda a ilha e inquéritos junto da população. Disso e da análise da documentação escrita disponível resultou uma monografia, que é um modelo de geografia insular, onde as gentes e a vida rural ocupam lugar de relevância. Uma das realidades da vida da ilha que mais atenção e mais emoção suscitaram a Orlando Ribeiro foi o das crises climáticas, com o seu cortejo de miséria, fome e morte, consequências afinal evitáveis, que ele denunciou, corajosamente, perante as autoridades de então. Recorda mais tarde Orlando Ribeiro: Quando a curiosidade sempre desperta para os fenómenos naturais me levou a estudar a erupção da Ilha do Fogo, em 1951, vi que ela não trazia qualquer risco, embora causasse prejuízos, à população. Mas a fome e a miséria, fatalidade climática dum arquipélago flagelado por seis anos secos em cada decénio, tocaram fundo o meu espírito e o meu sentido de que alguma coisa se deve fazer pelos «humilhados e ofendidos», e descrevi sem rebuços a mortandade com que a fome reduz a população de cerca de um terço, acompanhada de misérias e sofrimentos que Baltazar Lopes, escritor local, no mais belo romance da infância 43 da nossa língua (Chiquinho) descreveu com trágico vigor (…). O que é certo é que, graças à sinceridade do meu livro, à independência política que sempre tomei sem me preocupar até onde era bem vista ou consentida, as fomes acabaram em Cabo Verde por uma medida da mais elementar simplicidade: acudir com alimentos aos famintos antes que morram (Ribeiro, 2003, pp. 207-208). Bibliografia RIBEIRO, O. (1943a) – Notas sobre a evolução morfológica da orla meridional da Cordilheira Central entre Sobreira Formosa e a fronteira. Bol. Soc. Geol. Portugal, vol. I (3), 123-144. ------ (1943b) – Evolução da falha do Ponsul. Com. Serv. Geol. Portugal, XXIV, 109-124. ------ (1943c) – Novas observações geológicas e morfológicas nos arredores de Vila Velha de Ródão. Publ. Mus. Lab. Min. Geol. Fac. Ciênc. Porto, 32, 24 p. ------ (1949a) – A Cova da Beira. Controvérsia de Geomorfologia. Comun. Serv. Geol. Portugal, XXX, 23-41. ------ (1949b) – O fosso médio do Zêzere. Comun. Serv. Geol. Portugal, XXX, 79-85. ------ (1954) – Estrutura e Relevo da Serra da Estrela. Bol. Real Soc. Esp. Hist. Nat. (homenaje E. Hernández-Pacheco), Madrid, 549-566. ------ (1955) – Portugal, tomo V de Geografia de España y Portugal, (dir. Manuel de Terán). Montaner y Simón, Barcelona, 290 p. ------ (1960) – A ilha do Fogo e as suas erupções. Mem. Ser. Geográfica, JIU, 1, Lisboa, 2ª ed., 319 p. ------ (1968) – Mediterrâneo. Ambiente e Tradição, Fund. C. Gulbenkian, Lisboa, 273 p. ------ (1973) – Um mestre da Geografia do nosso Século – Emmanuel de Martonne (1973-1955). Finisterra, Rev. Port. Geogr., Lisboa, 16, 163-264. ------ (1985) – La personnalité scientifique et humaine de Pierre Birot. Finisterra, Rev. Port. Geogr., Lisboa, 40, 183-194. ------ (1986) – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Esboço de Relações geográficas. Livr. Sá da Costa Edit., Lisboa, 4ª ed., 189 p. ------ (2003) – Memórias de um Geógrafo (apresentação de João Carlos Garcia). Col. Humanismo e Ciência, Ed. João Sá da Costa, Lisboa, 210 p. (reúne essencialmente três textos do autor, publicados entre 1970 e 1986). RIBEIRO, O. & BRITO, R. S. (1958) – Primeira Notícia da Erupção dos Capelinhos na Ilha do Faial. Naturalia, Lisboa, VII, 33 p. RIBEIRO, O., COTELO NEIVA, J. M. & TEIXEIRA, C. (1943a) – Depósitos detríticos da bacia do Cávado. Bol. Soc. Geol. Portugal, III (1/2), 87-94. ------ (1943b) – Depósitos e níveis pliocénicos e quaternários dos arredores do Porto. Bol. Soc. Geol. Portugal, III (1/3), 95-103. RIBEIRO, O. & FEIO, M. (1950) – Les dépôts de type raña au Portugal. C. R. Congr. Int. Géogr. Lisbonne II, 152-159. RIBEIRO, O., LAUTENSACH, H. & DAVEAU, S. (1987) – Geografia de Portugal, I. A Posição Geográfica e o Território. Ed. João Sá da Costa, Lisboa, 334 p. Comentário de António Ribeiro Desejo agradecer a intervenção do Professor António de Brum Ferreira em homenagem a Orlando Ribeiro. Na qualidade de Presidente da Direcção da Sociedade Geológica de Portugal devemos-lhe o testemunho de um discípulo sobre a obra de Orlando Ribeiro na sua interacção com os geólogos seus contemporâneos. Como filho de Orlando Ribeiro, devo um agradecimento pessoal, e em nome dos familiares mais próximos, em especial de meu irmão Fernando aqui presente. Relembro também, que Orlando Ribeiro, recém licenciado nos anos 30, soube buscar inspiração nas aulas e excursões de Ernest Fleury, professor de geologia do Instituto Superior Técnico; aliás, o papel deste na actualização da geologia em Portugal, elevando-a a um nível europeu de excelência, foi também recordado por outros homenageados e oradores. 44