A Arte da Negociação

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Leonardo Mathias*
A Arte da Negociação
PROCURAREI ALUDIR À arte da negociação1 baseando-me essencialmente na experiência
profissional que foi a minha em 40 anos de serviço no Ministério dos Negócios
Estrangeiros, em mais de 20 dos quais, como Chefe de Missão. Tive o privilégio de
acompanhar de perto, ou de participar, em numerosas negociações tanto a nível
bilateral como multilateral. Não pretendo portanto abordar este tema em termos
académicos, com referências eruditas a obras, e tantas há, onde ele é abundantemente tratado. Antes me pareceu preferível tentar apresentar uma visão que é
função dessa experiência, que pude ir consolidando ao longo dos anos e que
continuo a considerar ter toda a actualidade. Uma perspectiva portuguesa que vivi
e que, naturalmente, melhor conheço.
A negociação não é encarada de igual maneira por todos os que nela intervêm.
Partindo de convenções partilhadas pela maioria dos Estados, ela molda-se depois
aos interesses de quem a ela recorre ou dela se serve. Por isso a negociação poderá
ser interpretada de maneiras diferentes como serão diferentes os pontos de vista de
quem a utiliza. Presume-se, no entanto, que a sua utilização traga vantagens a quem
dela se serve. Em princípio a uma cedência deverá corresponder um ganho, como a
um ganho deverá corresponder uma cedência. Mas nem sempre esse tipo de
compromissos acontece, como no tabuleiro em que os jogadores usam o mesmo
tipo de peças com finalidades claramente distintas.
A negociação internacional compete à diplomacia, como instrumento que é da
política externa dos Estados. Ela é a essência da diplomacia. Não há diplomacia sem
negociação. E na melhor arte da negociação estará a mais eficiente diplomacia.
A negociação abrange hoje um domínio amplo, quase ilimitado, que cobre as
opções políticas que dizem respeito, na relação entre os Estados, à preservação da
*
1
Embaixador.
Texto redigido com base em notas de uma palestra proferida no Curso de Política Externa Nacional,
organizado pelo Instituto Diplomático, em Janeiro de 2006. O autor inspirou-se na sua experiência
profissional e em dois artigos seus publicados, respectivamente em “O que é a Negociação” com o
título “Diplomacia e Negociação”, editora Difusão Cultural, 1996 e “Actualidade da Diplomacia”em
“Informações e Segurança”, editora Prefácio, 2004.
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paz e não impliquem a acção violenta, o recurso à agressão ou ao conflito armado.
A arte da negociação opõe-se assim à arte da guerra embora, no plano teórico, seja
possível proceder à sua comparação, nos movimentos defensivos ou nos
movimentos ofensivos que caracterizam ambas, como nas suas cautelas ou audácias,
ou ainda numa idêntica concepção de comando e orientação, de obtenção e partilha
da informação, de unidade e disciplina.
A negociação diplomática pode ser bilateral, de Estado a Estado, ou multilateral,
envolvendo numerosos Estados em função de objectivos que serão comuns ou se
pretendem partilhados. A negociação bilateral permanece como elemento insubstituível das relações internacionais e como não é previsível, mesmo a longo prazo, o
desaparecimento dos Estados, também não é previsível que a negociação bilateral
venha a perder o lugar que lhe pertence. No caso da negociação multilateral, cada
vez mais comum nos nossos dias, os dois planos serão complementares. Isto é, a
preparação e a execução de uma negociação multilateral tem de ser regularmente
acompanhada no plano bilateral, com a competente intervenção da capital, na
recolha e no tratamento de informações e em necessárias diligências que possam
influenciar a tomada de posições e de decisões da parte contrária. A crescente
complexidade dos assuntos internacionais torna indispensável, tanto em termos
bilaterais como multilaterais, que o negociador possua o mais completo conjunto
de dados relativos à negociação de que é responsável. A utilidade e a eficiência
desses dados medindo-se, como dizia Churchill, pela sua qualidade e não pela sua
quantidade. Essa necessária selecção também deve ser tarefa conjunta dos responsáveis, tanto da representação externa, como da capital.
O processo negocial obedece a um método que é função de critérios
razoavelmente definidos. Existe um tácito entendimento prévio quanto à linguagem
a utilizar. Uma linguagem que não tem, sobretudo na fase inicial, necessariamente
rigor jurídico, não só porque nesse caso poderia essa linguagem ser redutora, mas
sobretudo porque é diplomática e portanto política, sem limitações em termos de
argumentação e de livre recurso dialéctico a perspectivas históricas, sociais, culturais
ou outras que o seu exercício faculta e são parte da sua expressão.
Pode assim aludir-se a uma escala política e diplomática de negociação que, em
graduações diferentes, começaria por notas acordadas para comunicação conjunta;
pela divulgação de declarações ou comunicados oficiais; por actas de conferências;
por recomendações aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas; por
Conclusões de Conselhos Europeus; por decisões votadas no Conselho de Segurança
das Nações Unidas; por Notas trocadas entre Governos ou, e aqui naturalmente
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revestidas de cuidadosa linguagem, por acordos, convénios, alianças ou tratados
internacionais. Deve ser pois conhecido, pelas partes, o contexto convencional em
que o processo negocial se situa. O seu respeito permite o prosseguimento da
negociação, a alternativa sendo a interrupção ou o rompimento da negociação.
A diplomacia é pois o instrumento da negociação com que o Estado procura
valorizar posições ou pontos de vista seus, engrandecer causas que lhe sejam
próprias; que possam alargar o seu prestígio, criar zonas de influência e fortalecer o
seu nome. Ou, noutro sentido, como acontece quando são muito desiguais em
poder os intérpretes da negociação, que atenue ou limite a desvalorização das suas
posições ou pontos de vista e evite o enfraquecimento do seu prestígio, da sua
influência ou do seu nome.
A negociação diplomática procura o desenvolvimento pacífico das relações
entre os Estados; a protecção e a promoção dos seus interesses e dos seus nacionais;
a prossecução de intercâmbios políticos, económicos, ou culturais; a defesa de
posições estratégicas ou de segurança. E porque o mundo se estreitou, se intensificaram as relações entre os povos e se multiplicaram os actores na vida
internacional, a diplomacia teve de se modernizar para assumir novas e mais
variadas responsabilidades. Moldou-se às circunstâncias e aos tempos sem perder as
características que a definem. Compete-lhe hoje a negociação do direito do mar e
do espaço exterior, de questões relacionadas com os transportes ou a saúde, o
ambiente ou a energia, a justiça ou a condição feminina, a proliferação de
armamentos ou a prevenção de conflitos. Vê-se confrontada com a rapidez, quase
instantânea, das comunicações e a intervenção crescente e poderosa, de meios de
informação e de Organizações Não--Governamentais de toda a sorte. Tem também
de agir consciente da interdependência económica dos Estados, dos desafios da
globalização e da actividade de numerosas multinacionais com peso político próprio
nos negócios do mundo. Tem de saber lidar com a criminalidade e o narcotráfico. E
com a violência cega do terrorismo transnacional e das suas múltiplas ameaças. Mas,
e valerá a pena sublinhá-lo, permanece sendo a única com legitimidade para falar e
agir em nome do Estado e das suas instituições representativas, governo e
parlamento, submetidas estas também às exigências dos novos tempos.
Este tipo, simultaneamente mais vasto e tecnicamente mais específico de negociações, obriga ao recurso a peritos de múltiplas procedências, cujos conhecimentos
e experiências passaram, em tantos domínios, a ser essenciais ao exercício da
diplomacia. E compete pois aos diplomatas saber actualizar a sua cultura sem perder
a linguagem profissionalizada que é a sua e para a qual terão de traduzir as
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informações fornecidas por aqueles peritos. Na sua reserva e contenção, no
cumprimento dos seus códigos e ritos, ela será compreendida pelos seus pares
noutras latitudes e noutros horizontes.
A negociação, tanto bilateral como multilateral, deve ser precedida de um
pensamento estratégico que melhor possa avaliar os passos que a acção diplomática
deverá dar em função do que se pretende obter. Trata-se portanto da análise, de
preferência exaustiva, do que está em causa e dos argumentos de que se poderá
dispor, tentando distinguir o fundamental do acessório; admitir a existência de
pontos mais vulneráveis das posições que se vão assumir e preparar para essas
circunstâncias as respostas possíveis. Convirá procurar ter uma correcta percepção
das realidades, das possíveis alianças que elas podem fazer surgir e das ambições e
dos homens envolvidos na negociação. E imaginar a argumentação da parte contrária.
O profundo conhecimento do tema da negociação, das suas implicações e consequências a diversos níveis, contribuirá para evitar que a parte contrária possa provocar
situações de surpresa. A surpresa, quando habilmente utilizada no contexto de uma
negociação, é uma arma poderosa.
Um conjunto de exigentes qualidades convirá possuir para melhor tentar obter
êxito numa negociação internacional e que, numa visão ideal, enumeraria: sentido do
interesse nacional; alguma inteligência e senso comum; capacidade dialéctica;
coragem, determinação, honestidade intelectual, integridade profissional, comunicabilidade. E, não subestimando nunca a parte contrária, ter vontade de procurar
fórmulas de compromisso e de conciliação. Ter conhecimento do passado e uma certa
percepção do futuro; e imaginação e iniciativa, com ousadias que surpreendam ou
perturbem. Dizer a verdade embora não necessariamente sempre a verdade toda. Ser
credível portanto, sendo firme, sem ser inflexível, sendo paciente sem ser teimoso,
sendo franco sem ser ingénuo, sendo digno sem vaidades, sendo prudente sem revelar
receios.
Quando falo em correcta percepção das realidades, refiro-me, como salientei no
princípio, ao caso português, e portanto ao que deve ser a consciência da dimensão
geográfica, demográfica, económica e militar do país por um lado e, por outro, da sua
dimensão histórica e cultural. É a partir dessas realidades que, em meu entender, se deve
pensar com lucidez numa estratégia negocial, que naturalmente deve ser ambiciosa e
hábil, capaz de seduzir, influenciar, convencer. A história ensina a que ponto os mais
poderosos, tantas vezes arrogantes, podem impor as suas ideias. Mas também a que
ponto outros, menos poderosos souberam recorrer à negociação e à diplomacia para
compensar e superar condicionalismos por vezes muito difíceis.
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O diplomata terá assim presente as metas que lhe cumpre atingir. Saberá revelar
no início dos trabalhos abertura de espírito, procurando criar um clima de confiança,
de serenidade e de franqueza, evitando a crispação ou reacções precipitadas. Saberá
conhecer a fronteira a partir da qual não poderá mais recuar nem fazer concessões. E
para ir ganhando a confiança dos interlocutores haverá que observar-lhes qualidades e
defeitos, ambições, vaidades ou fraquezas para ter deles o mais exacto perfil e melhor
lhes avaliar a personalidade.
No início da negociação poderão ser colocados objectivos que se admitirá, num
contexto reservado e nacional, serem dificilmente alcançáveis, mas que podem
servir de moeda de troca em aparentes cedências que procurem dar ao interlocutor
a impressão de que obteve vantagens. No decurso da negociação todas as palavras
serão pesadas, como o serão as da parte contrária. Essa ponderação hoje é mais fácil
de fazer na medida em que as negociações são ou podem ser gravadas. A redacção
de textos deverá obedecer a critérios rigorosos mesmo quando se tratar de projectos.
Uma mesma ideia que interesse defender, poderá surgir, redigida de forma
diferente, mais do que uma vez, para reforçar um argumento ou poder permanecer
num texto se uma sua outra versão terá sido eliminada.
É conveniente evitar expressões do tipo “isto é inegociável” ou “isto não é
aceitável” a não ser que se tenha chegado ao limite das concessões e a situações de
extrema gravidade porque de afirmações como essas não se deve recuar, o que a
acontecer, acarreta perda de credibilidade e enfraquecimento da posição negocial.
Sempre que necessário serão utilizadas maneiras de ganhar tempo para reflectir,
ponderar a situação, ouvir aliados e amigos, imaginar outras formas de acção.
Porque uma negociação bilateral pode permitir, embora não seja frequente, a
intervenção de terceiros, o que no domínio multilateral é prática corrente porque o
debate aí é aberto a essa participação. Até finalmente chegar o momento em que o
diplomata se dará por satisfeito, depois de ter analisado, com desejável equilíbrio e
sentido comum, o balanço da negociação e verificado não ser possível ir mais longe
em compromissos aceitáveis para o seu interlocutor.
Estes são os termos gerais em que pode decorrer uma negociação bilateral entre
dois Estados. Em princípio nem a negociação nem os seus termos deveriam ser
tornados públicos, o que poderia comprometer a própria negociação. Mas sabemos
como as opiniões públicas e os meios de comunicação, de tão relevante dimensão
política nas sociedades democráticas dos nossos dias, são levadas a exigir serem
regularmente informadas da forma como pode estar a decorrer uma negociação. Não
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podendo evitar essa curiosidade, hoje tornada legítima, a melhor solução será acordar,
no decurso da própria negociação, o que se dirá aos órgãos de comunicação social e
essa questão também passar a fazer parte da ordem do dia.
Lembro-me de ter participado em reuniões onde se ocupava parte do tempo
não só a procurar acordar os termos em que se falaria aos media à saída da
negociação, mas também a acordar o espírito e o tom com que se falaria. Por vezes
parecia que essas prudências adiavam o debate sobre o conteúdo mesmo da negociação. Mas este dado, que não tem nada de episódico ou de anedótico e cria por
vezes uma curiosa cumplicidade entre os negociadores, revela bem, por outro lado,
o peso que têm os órgãos de comunicação social e a atenção que lhes dão os
responsáveis políticos em geral, conscientes de que a sua imagem depende em larga
medida do tratamento que esses órgãos lhes dão.
Uma vez encerrada a negociação, não deverá o negociador dar a impressão, se
for esse o caso, de que ficou aquém do que esperava ou ambicionava. Mas também
terá a humildade inteligente de não transmitir em excesso um espírito de vitória
que humilhe a parte contrária. Sem ostentações na vitória, sendo discreto no êxito.
Os acordos deverão ser cumpridos de boa-fé. Com atenção se acompanhará o
seu cumprimento pela parte contrária. E sempre se poderá avaliar das vantagens e
dos inconvenientes de tentar reabrir a negociação e regressar ao princípio. As
relações internacionais, como as relações entre os homens, renovam-se, alteram-se,
actualizam-se. A diplomacia, por seu lado, permanece disponível para acompanhar,
com a sua capacidade negocial, esse processo ininterrupto que se confunde com a
própria história.
Não obstante as alterações que vêm sendo introduzidas na vida pública
internacional, os conceitos que procurei apontar permanecem a meu ver
verdadeiros, mesmo quando as circunstâncias impõem inevitáveis adaptações de
forma.
Será o caso da actividade diplomática e da negociação no domínio das
organizações, instituições ou conferências internacionais. A diplomacia multilateral
é, em larga medida, pública. E sabe-se a que ponto a globalização, a modernização
dos meios de transporte e de comunicações não só facilitaram de maneira
revolucionária as oportunidades de contactos políticos entre os representantes dos
Estados ou de organizações regionais ou mundiais, como sobretudo puderam passar
a dar a conhecer ao mundo, por vezes em directo, os debates, os argumentos
utilizados, a sua intensidade dramática, as réplicas que suscitam.
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À tradicional reserva das chancelarias, já de si abalada nos termos a que acima
fiz referência, tem assim tendência para substituir-se uma diplomacia exposta
perante as opiniões públicas e os meios de informação. Essas realidades hoje
também exigem a maior atenção dos responsáveis políticos que terão, cada vez
mais, de se pronunciar em função da sua existência. O palco mais relevante, em
termos de exposição, será o das Nações Unidas.
Canais de televisão nacionais e internacionais transmitem em directo reuniões
do Conselho de Segurança ou intervenções da Assembleia Geral. E não se limitam a
transmitir. Ao fazê-lo, formulam os seus comentários e interpretações e impõem à
negociação, e a quem a conduz, esse dado novo. Em tempos chegou a dizer-se que
a CNN era o décimo sexto membro do Conselho de Segurança pela qualidade das
suas observações, os conhecimentos que revelava e as posições que defendia. A
situação está hoje completamente ultrapassada, como sabemos, tantos os canais de
televisão e os meios de informação que, no mundo, têm acesso directo à negociação
multilateral e empenho em acompanhar, comentar e criticar a forma como são
tratados assuntos que directamente lhes dizem respeito.
A negociação multilateral impõe pois a adaptação das qualidades do diplomata
a novo contexto negocial. Dos gabinetes em que decorre, com as suas pausas,
intervalos e tempos mortos o diálogo bilateral, passa-se para outro plano, logo de
início surpreendente pela sua extrema visibilidade que permite ao observador
menos atento avaliar, com brevidade, o espaço e o número de participantes e a sua
agitação barulhenta e colorida. A iluminação, por potentes focos de luz, denuncia a
presença, em constante atropelo, de inúmeras e pesadas câmaras de televisão, de
fotógrafos e de jornalistas com os seus microfones, por entre os empurrões ou os
abraços dos delegados, uns conhecendo-se outros ignorando-se.
Intui-se, com alguma rapidez, que se assiste ali também a um intenso exercício
de relações públicas. Também esse exercício existe na negociação bilateral mas em
dimensão nada comparável com a que adquire na negociação multilateral e a meu
ver, em larga medida, a caracteriza.
Depois, quando os jornalistas recolhem o seu material e se retiram da sala da
reunião ou a sua actividade profissional se torna aparentemente mais discreta, é
preciso uma atenção especial para depressa reconhecer quem esta a falar, e donde, e
em que língua. É toda uma encenação de que o negociador e a negociação são parte.
Cumprirá confirmar a ordem do dia e verificar a lista dos oradores inscritos para
saber a altura em que se intervém. Porque essa altura muitas vezes obedece a
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critérios políticos: pode ser conveniente falar antes ou depois de determinado país
ou orador, para contrariar ou apoiar uma opinião. A participação em debates
multilaterais pressupõe, naturalmente, o conhecimento correcto e corrente de um
par de línguas, uma delas hoje sendo o inglês, e das regras processuais em que esses
debates decorrem e a que devem obedecer, para tirar partido dessas regras sempre
que necessário. E o diplomata terá, na negociação multilateral, de ser convincente
para várias dezenas de interlocutores potencialmente prontos para contestar ou
opôr-se ao seu discurso.
As Nações Unidas são um instrumento das relações internacionais, mesmo se
nem sempre utilizado. E não creio que sejam pertinentes comparações com a
Sociedade das Nações. No final dos anos trinta, duas das mais poderosas nações da
época, os Estados Unidos e a Alemanha, não pertenciam à Sociedade das Nações, que
nessas condições não podia ter influência no que fossem as suas políticas externas. A
Sociedade das Nações desapareceu por ter deixado de ter relevância na geopolítica
global da altura. Pelo contrário, hoje todos os países do mundo, incluindo a única
superpotência, pertencem às Nações Unidas. Cada novo Estado independente, e são
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encarada como a confirmação da sua participação na comunidade das nações e como
que uma atribuição de legitimidade para agir e negociar em termos de relações
internacionais. Esse conjunto de novos países trouxe para as Nações Unidas uma
grande variedade de pontos de vista que permitiu constatar, por um lado a crescente
mundialização dos problemas, a sua variedade, a sua riqueza, as diversas perspectivas
ou interesses que representam, mas também, por outro, permitiu constatar como
podiam ser ou eram tantas vezes antagónicas essas perspectivas e interesses. Porque
nessa justaposição de Estados, mais difícil se tornou conjugar a ambição de
universalismo da Organização, a defesa dos direitos humanos e da dignidade da pessoa
humana, conceitos herdados da civilização ocidental, com o pluralismo das culturas e
a maior diversidade das religiões.
Foram-se assim acentuando as diferenças, históricas ou demográficas, o
desequilíbrio dos recursos naturais, das economias, dos níveis de desenvolvimento,
do poder militar e até da capacidade de expressão e de argumentação. Estas
realidades são um espelho de contradições que paralisa muitas iniciativas na
Organização, dá a medida das suas limitações e explica muitos dos seus fracassos. É
pois a incapacidade de entendimento entre os Estados membros que traduz a
incapacidade de acção da Organização.
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Mas é a única tribuna que, no contexto do direito internacional, permite
debater as preocupações e os problemas do nosso tempo, políticos, económicos,
sociais e culturais. Tribuna da comunidade internacional onde se preserva, na
Assembleia Geral e no plano formal, e isso só por si é uma conquista, a igualdade
dos Estados. Onde a voz de cada um pode ser ouvida. Um fórum de que o mundo
precisa porque, apesar das suas imperfeições e carências, e muitas são e bem
conhecidas, nenhum outro, com a universalidade deste, existe. E no seu contexto
também se oferece à inteligência, à cultura e à preparação profissional do negociador, sobretudo de Estados de menor dimensão ou de menor influência
internacional, o espaço e as condições para poder ir gerando gradualmente melhor
compreensão para posições que defenda, por vezes para conseguir entendimentos e
até certos acordos, interpretando habilmente a complexa variedade de interesses que
a interdependências dos problemas, a sua integração internacional em tantos casos,
e a sua projecção nas múltiplas agências das NU pode provocar.
Em 2003 o Conselho Europeu aprovou a Estratégia de Segurança Europeia. Nela
sublinhou ser a Carta das Nações Unidas o quadro fundamental das relações
internacionais, indicando ser o fortalecimento da Organização uma prioridade
europeia.
A negociação multilateral, no caso português, permitiu-nos nas Nações Unidas
ser por duas vezes eleitos para o Conselho de Segurança e uma vez para a Presidência
da Assembleia Geral, em condições que nos prestigiaram e que, como os elogios às
Forças Armadas Portuguesas que serviram ou servem em operações de paz, estão
amplamente documentadas. E foi no cenário, cheio de simbolismo, das Nações
Unidas que pudemos testemunhar, com o êxito da resistência à ocupação indonésia,
a independência de Timor-Leste e também o triunfo de uma política em que
Governos portugueses se empenharam durante anos e muitas vezes parecia
condenada ao fracasso. Na mesma perspectiva podemos referir termos sido
membros fundadores da NATO e termos sabido assegurar tanto a nível diplomático
como militar a nossa participação nessa aliança com competência e dignidade,
mesmo em momentos mais complexos, como durante o confronto em África ou em
certos meses que se seguiram ao 25 de Abril.
Do mesmo modo podemos citar a nossa adesão à União Europeia em 1986 e a
forma como temos cumprido as nossas responsabilidades nos diferentes planos em
que ali se desdobra, em permanência, a negociação. Por duas vezes assumimos a
presidência semestral, desempenhando essas funções com qualidade e sem alardes.
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Tive o privilégio, na primeira presidência, de chefiar a troika que teve, nesse período,
a responsabilidade do Médio Oriente, onde já havia estado por duas vezes na
qualidade de presidente de uma Comissão do Conselho de Segurança, e na segunda
de ficar encarregue da questão de Chipre. Pude também constatar, nesses casos
concretos, como se podem negociar, complementar e articular posições comuns em
função da cuidadosa ponderação das posições dos representantes dos Estados
nacionais. Soubemos adaptar-nos com facilidade aos instrumentos negociais de
extrema e imaginativa originalidade que são os da União Europeia. E igualmente
soubemos salvaguardar interesses nacionais, já que a participação na União Europeia
exige a sua lúcida e firme defesa, porque o mérito de políticas comuns não pode
pôr em causa o que é especificamente do interesse de cada um e portanto
intransferível.
Contribuímos para a criação da CPLP – essa fronteira cultural da língua – como
lhe chama Adriano Moreira, que embora ainda numa fase de consolidação, deverá
ocupar cada vez mais a atenção da nossa política externa pelas potencialidades de
expressão, execução e intervenção que encerra. E participámos ainda das
Conferências Ibero-Americanas, espaço de cooperação com o qual temos vastas
afinidades, tendente ao reforço de parcerias estratégicas em matérias de interesse
comum, que oferece mais uma tribuna à diplomacia portuguesa.
Estou convencido da grande justeza das decisões que foram tomadas no sentido
de levar o nosso país a participar nestas várias organizações, instituições e
conferências. Estivemos à altura do desafio em termos negociais e em cada uma, do
meu ponto de vista, soubemos ir encontrando a correcta visibilidade política que
contribuísse para a nossa segurança, para o nosso desenvolvimento económico e
social e para a afirmação da nossa identidade histórica, cultural e política. Foi-nos
assim possível, nesse contexto externo e em larga e feliz medida, juntar ao plano da
negociação multilateral a actividade, igualmente persistente, da negociação bilateral.
Parafraseando Mazzarino, podemos dizer que na diplomacia – ele dizia na
política – a constância consistiu, não em fazer sempre a mesma coisa, mas em
querer sempre a mesma coisa.NE
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