o estado democrático de direito e a dignidade da

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O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A COISA JULGADA
E A INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
THE DEMOCRATIC STATE LAW AND DIGNITY
OF THE HUMAN PERSON: CONSIDERATIONS
RES JUDICATA AND RESEARCH OF FATHERHOOD
Marisa F. Nogueira Rosa
[email protected]
Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pelo Complexo
Educacional Damásio de Jesus
Bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino
Estagiária do Ministério Público
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONSIDERAÇÕES...
RESUMO
Trata-se de estudo sobre a coisa julgada e a investigação de paternidade, vistas
sob o prisma do principio da dignidade da pessoa humana, fundamento da
República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito.
O enfoque do Estado Democrático de Direito e os fundamentos sobre os quais
se abaliza inicia o trabalho. Seguido pela exposição sucinta da coisa julgada,
incluindo a tese que admite sua relativização. Continua tratando de temas
como as provas e a investigação de paternidade, conduzindo a uma breve
análise do exame de DNA e as suas implicações na busca pela ascendência biológica paterna, tecendo considerações sobre a filiação. Nesse contexto
insere as alterações ocorridas na sociedade e sua repercussão no direito de
família, a busca pela identidade biológica, direito personalíssimo e elemento
primordial da formação da personalidade humana, albergados pelo princípio
da dignidade da pessoa humana, considerando, excepcionalmente, a admissão a flexibilização da coisa julgada.
Palavras-chave
Dignidade da pessoa humana. Coisa julgada. Investigação de paternidade.
ABSTRACT
It is res judicata on the study and investigation of paternity, seen through the
prism of the principle of human dignity, the basis of the Federative Republic of
Brazil, formed in a democratic state of law. The focus of the democratic rule
of law and the grounds on which they excel starts the job. Followed by brief
exposure of res judicata, including the theory that admits its relativization.
Still dealing with issues like paternity tests and research, leading to a brief
analysis of the DNA test and its implications in the search for biological
paternal ancestry, commenting on the affiliation. In this context incorporates
the changes in society and its impact on family law, the search for biological
identity, and very personal right essential element in the formation of human
personality, hosted by the principle of human dignity, given, exceptionally, to
allow the relativization of res judicata.
Keywords
Dignity of the human person. Res judicata. A paternity dispute.
SUMÁRIO
Introdução. 1. O Estado Democrático de Direito. 1.1. Princípios fundamentais.
1.2. O Princípio da dignidade humana. 2. Coisa julgada. 2.1. Coisa julgada
formal. 2.2. Coisa julgada material. 2.3. Meios de impugnação. 2.4. A relativização da coisa julgada. 3. Investigação de paternidade. 3.1. Legitimidade.
3.2. Provas científicas. 3.3. Exame de DNA. 3.4. Recusa em realizar o exame.
Conclusão. Referências.
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Marisa F. Nogueira Rosa
INTRODUÇÃO
O Estado Democrático de Direito, consubstanciado pela Constituição Federal de
1988, tem por um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana.
O mesmo diploma protegeu a coisa julgada, conferindo imutabilidade às decisões judiciais de modo que a segurança jurídica de tais pronunciamentos se tornasse
inabalável. Nesse contexto, surge a discussão de relevante matéria, considerando como
base princípios e garantias constitucionalmente estabelecidos em nosso ordenamento
jurídico: o princípio da dignidade da pessoa humana, visto aqui sob o prisma da busca
pela verdade sobre sua paternidade, um dos mais elementares direitos de personalidade
e todos os seus desdobramentos, e a garantia constitucional da coisa julgada, instituto
que confere segurança às relações jurídicas, impedindo que as decisões proferidas em
sentenças transitadas em julgado, das quais não caibam mais recursos, sejam revistas.
O embate dessas duas perspectivas de suma importância para todos os envolvidos nas ações de investigação de paternidade revela outro ponto que, na maioria das vezes, se procura esquecer, talvez, por sua obscuridade: todos os direitos que
nos são dados, por mais relevantes que sejam, não são absolutos.
As mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas atingiram sobremaneira
a família, considerada a base da sociedade. O direito, por sua vez, acompanha as alterações da realidade social, sob pena de não realizar sua finalidade de pacificação
social, albergando princípios, por exemplo, que proíbem qualquer designação discriminatória no tocante à pessoa dos filhos, sejam eles havidos de relacionamento
conjugal ou extraconjugal. Tal proibição tem por fundamento a dignidade da pessoa
humana. Sobrevieram leis que dispuseram sobre o reconhecimento da paternidade.
Paralelamente, ocorreu o desenvolvimento científico, inclusive o advento do
exame de DNA, capaz de aferir a paternidade de uma pessoa em relação à outra com
uma probabilidade de mais de 99% de acerto, traduzindo-se em uma importante prova pericial no tocante a tais investigações, trazendo uma aparência de que as questões
atinentes à investigação de paternidade estariam resolvidas sem maiores entraves.
Todavia, ações de investigação de paternidade houve, antes dessa verdadeira
revolução científica na genética, e foram decididas com base em provas, ainda que
periciais, incapazes de garantir tal certeza, caminhando, inclusive, para a formação
de coisa julgada.
Mesmo que decididas e protegidas pelo manto da imutabilidade, os avanços supracitados fizeram nascer nas pessoas a vontade pela busca da verdade real,
dissipando-se uma dúvida que o pronunciamento judicial, por vezes, não foi capaz
de dissolver.
Por outro lado, a coisa julgada, em seu “status” de garantir a segurança jurídica, se faz presente com toda a sua força e seu poder inflexível.
O presente trabalho pretende mostrar o desenvolvimento da discussão sobre
o tema, com o advento do exame de DNA, buscando de forma sintética esclarecer os
diversos pontos pelos quais passam os assuntos que lhe são atinentes, demonstrando
a relevância de todas as questões envolvidas. Apresentando, por meio de estudos, a
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garantia constitucional da coisa julgada e o princípio da dignidade humana, visto sob
o prisma da busca pela verdade real nas ações de investigação de paternidade, que
envolvem direitos personalíssimos, irrenunciáveis e imprescritíveis, o embate dessas
duas perspectivas e a salvaguarda de ambos pela Constituição Federal de 1988.
1. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A estrutura de um estado, sua forma de governo e os modos de aquisição do
poder de governar, bem como a distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos são disciplinados por sua Constituição, lei suprema e fundamental.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, caracterizou o estado brasileiro
como estado democrático de direito, regido por normas democráticas, com eleições
livres, periódicas e pelo povo, pelo respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, como forma de legitimar e limitar o poder. Relacionou como direitos
fundamentais a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político, identificando ainda os objetivos
da República, entre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a
promoção do bem de todos, considerados fundamentais. Proclamou que “todo o poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição”, entendido como princípio democrático. Ou seja, o respeito à
soberania de um povo está intimamente ligado a participação efetiva de cada um. Sendo
assim, demarcou o perfil constitucional do estado na busca do bem-estar social.
Não basta apenas ser o estado de direito, sob a égide de normas que o disciplinam. Mas configura-se como estado democrático de direito, regido por normas
democráticas, na busca de certos fins, guiados por certos valores, com a participação direta de seu povo, fundamento justificador da existência do próprio estado.
1.1. Princípios fundamentais
Os fundamentos da República Federativa do Brasil, entendidos como primeiros valores do estado, que o embasam, cuja consideração deve ser sempre observada, relacionados no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, inserida no Título 1
– Dos Princípios Fundamentais são a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político,
conceituados, segundo Moraes, (2009, p.21-22) como:
• Soberania é a capacidade de editar suas próprias normas, sua própria ordem jurídica (a começar pela Lei Magna), de tal modo que qualquer regra
heterônoma só possa valer nos casos e nos termos admitidos pela própria
Constituição. A Constituição traz a forma de exercício da soberania popular
no artigo 14;
• Cidadania: representa um status e apresenta-se simultaneamente como objeto e direito fundamental das pessoas;
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• A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerentes às personalidade humanas. Esse fundamento afasta
a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em
detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral
inerente à pessoa, que se manifesta na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas
limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos;
• Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa: é através do trabalho
que o homem garante sua subsistência e o crescimento do país, prevendo a
Constituição, em diversas passagens, a liberdade, o respeito e a dignidade
ao trabalhador (por exemplo: CF, arts. 5º, XIII; 6º; 7º; 194-204). Como salienta Paolo Barile, a garantia de proteção ao trabalho não engloba somente
o trabalhador subordinado, mas também aquele autônomo e o empregador,
enquanto empreendedor do crescimento do país;
• Pluralismo político: demonstra a preocupação do legislador constituinte em
afirmar-se a ampla e livre participação popular nos destinos políticos do
país, garantindo a liberdade de convicção filosófica e política e, também, a
possibilidade de organização e participação em partidos políticos.
1.2. O princípio da dignidade humana
Dentre os fundamentos acima relacionados, destaca-se a dignidade da pessoa humana, objeto de estudo do presente trabalho.
A dignidade, elemento indissociável à personalidade humana, traduzida em
valor espiritual e moral, pode ser entendida como a consciência do próprio valor,
honra; devendo ser respeitada tanto nas relações interpessoais, quanto nas relações
com o estado, sendo um dos elementos limitadores do exercício de seu poder. Ao considerarmos a Constituição “como produto máximo do Direito Constitucional, elaborada para exercer dupla função: garantia do existente e programa ou linha de direção
para o futuro” (CANOTILHO, 1994, p. 151 apud MORAES, 1998, p. 17) tem-se que a
dignidade deve ser mantida e buscada, não somente por cada indivíduo tão somente,
mas também ser entendida como dupla função da Constituição brasileira.
Denota-se, então, que a pessoa humana não é o meio que o estado possui
para a busca de seus fins, e sim, fim último do Estado e da sociedade, na pretensão
de conferir-lhe uma vida digna.
O direito à identidade biológica, caracterizado como sendo o direito ao conhecimento da ascendência genética paterna, afigura-se dentre as múltiplas faces do
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, direito fundamental à luz
da Constituição Federal de 1988.
A individualidade de cada pessoa, resultado da soma de diversos fatores,
entre eles os sociais e culturais, está intimamente ligada ao conhecimento da origem
biológica de cada um, considerando que a formação de um ser humano decorre,
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primeiramente, de fatores de ordem genética ou biológica. Da transferência dos caracteres genéticos dos progenitores forma-se um novo ser, único, com características
próprias, diferenciado de todos os outros.
Conjugando-se as premissas de dignidade da pessoa humana e direito à identidade biológica temos o direito fundamental da pessoa em conhecer sua identidade
pessoal, suas origens biológicas, sua ascendência genética, dados que o auxiliam na
formação de sua personalidade.
2. COISA JULGADA
O instituto da coisa julgada, garantia constitucional prevista no artigo 5º,
inciso XXXVI, da Constituição Federal, que confere segurança jurídica às decisões
judiciais é elemento do estado democrático de direito, fundamento da República.
O ordenamento jurídico brasileiro permite que as decisões proferidas em determinado processo sejam revistas através dos recursos cabíveis. Todavia, a revisão das decisões possui caráter limitado, sob pena de se eternizarem as discussões, ante a insatisfação de uma das partes com o que lhe é desfavorável. As decisões proferidas podem ser
revistas até que se utilizem todos os recursos cabíveis, ou seja, até que já não haja mais
recursos a serem interpostos naquele caso concreto, ou porque se esgotou a utilização
dos recursos admissíveis, ou pelo decurso do prazo sem que fossem interpostos, tornando irrecorríveis as decisões judiciais, operando-se o trânsito em julgado da sentença e a
formação da coisa julgada, definida na Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo
6º, § 3º, como “[...] a decisão judicial de que já não caiba recurso”. Tem-se, então, uma
decisão irrecorrível, imutável e indiscutível, albergando a preservação da segurança jurídica, elemento indissociável do próprio direito, enquanto objetivo de pacificação social.
Revela-se em dois aspectos: coisa julgada material e coisa julgada formal, sendo
que a coisa julgada formal é pressuposto para formação da coisa julgada material. Pode
surtir apenas efeitos internos do processo, nos casos em que põe fim a demanda sem julgamento de mérito, alcançando, nesse caso, uma imutabilidade processual, permitindo
a repropositura da demanda ou, ainda, emanar seus efeitos externamente, atingindo a
vida das pessoas litigantes que são protegidas pela segurança jurídica que recai sobre a
discussão levada a juízo e decidida, fixando os direitos e deveres entre aquelas partes.
2.1. Coisa Julgada Formal
Coisa julgada formal associa-se à ideia de fim do processo, sentença, entendida em sentido amplo como a própria sentença ou acórdão proferido pelos tribunais, seja ela terminativa ou definitiva, resolvendo ou não o mérito da causa, pondo
termo àquele processo, impedindo que se reabra a discussão no mesmo feito, não
comportando mais recursos relativos a esse processo.
A mera ocorrência de coisa julgada formal não impede a reabertura da discussão em outro processo, posto que produziu efeitos de técnica processual e não
decidiu o mérito da causa.
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Diz-se que ocorreu a preclusão máxima, impedindo que se reabra a discussão sobre aquela causa.
2.2. Coisa Julgada Material
As sentenças definitivas, que resolvem o mérito da causa, além de formarem
a coisa julgada formal, alcançam a coisa julgada material, impossibilitando que a
mesma matéria seja discutida, nesse ou em qualquer outro processo, funcionando
como impedimento processual, ou seja, a verificação da coisa julgada material impede que o juiz aprecie o mérito da causa, devendo este novo processo ser extinto
sem resolução de mérito, nos termos do artigo 267, V, do Código de Processo Civil.
Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:
[...]
V – quando o juiz acolher a alegação de perempção, litispendência ou de
coisa julgada.
Nada impede, todavia, que mesmo formada a coisa julgada material, surja
um novo processo, no qual a questão decidida naquele primeiro seja antecedente
lógico deste, por exemplo, a sentença proferida em um processo, declarando a existência de vínculo de paternidade entre as partes, sobre a qual paira a coisa julgada
material, não impede a propositura de outro processo, no qual uma das partes pede
ou oferece alimentos à outra.
A coisa julgada material impõe limites ao juiz, que não pode reapreciar
matéria decidida em que não caiba mais recurso; ao legislador, não podendo ser
prejudicada por nova lei e a qualquer ente estatal, sob pena de se desestabilizar a
segurança jurídica.
Importa considerar, ainda, a existência de certas matérias sobre as quais não
pairam a coisa julgada material. O processo de execução, por exemplo, busca tão
somente a satisfação dos direitos, conferidos através de decisão proferida em processo de conhecimento que reconheceu a existência de tais direitos. O processo
cautelar, por sua vez, pretende assegurar um resultado útil e eficaz do processo principal, e baseia-se em prova de mera plausibilidade do direito invocado e, por fim, os
processos de jurisdição voluntária, admitem a modificação dos efeitos das sentenças
ante circunstâncias supervenientes.
A cláusula ‘rebus sic stantibus’, utilizada para designar o principio da imprevisão, que admite alteração das condições contratuais caso sobrevenha fato imprevisto e imprevisível após a celebração do contrato, constituindo instrumento que
possibilita o equilíbrio contratual, é considerada como pressuposto da revisão judicial, maneira de permitir a readaptação das condições estipuladas à nova realidade.
No direito de família, mencionada cláusula acaba por incidir indiretamente,
como é o caso dos alimentos, sobre os quais também não recai a autoridade da coisa julgada material, permitindo, na hipótese de alteração das condições financeiras
de quem os supre ou de quem os recebe, a alteração do anteriormente estipulado.
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2.3. Meios de impugnação
O Código de Processo Civil, em seus artigos 485 a 495, disciplina a ação
rescisória, meio de impugnação das sentenças transitadas em julgado, utilizada em
casos excepcionais, em decorrência do princípio da proporcionalidade e dada a
gravidade dos casos em que é permitida a sua utilização, enumerados no artigo 485,
do Código de Processo Civil.
A excepcionalidade da medida somente acaba por reafirmar a importância e
a necessidade de que haja um termo nas discussões levadas a juízo, resguardando-se
a confiabilidade das decisões proferidas e a imprescindibilidade da coisa julgada.
O artigo 485, inciso VII, do Código de Processo Civil, dispõe sobre a possibilidade de rescisão da sentença de mérito, transitada em julgado, quando sobrevier
documento novo capaz de, por si só, assegurar pronunciamento favorável, desconhecido pelo autor ou que dele não pôde fazer uso.
Nas ações de investigação de paternidade, ainda que o laudo de DNA não
seja propriamente um documento, pode ser equiparado a “documento novo”, capaz
de influir no pronunciamento favorável, considerando que a intenção do legislador
foi a de possibilitar a rescisão da sentença ante um meio de prova que não pôde ser
utilizado e que levará a um julgamento diverso. Tendo sido admitido pelo Superior
Tribunal de Justiça, com votação unânime de seus ministros, em acórdão relatado
pelo ministro Humberto Gomes de Barros (apud MARINONI, 2008, p. 194):
Ação rescisória – investigação de paternidade – Exame de DNA após o trânsito
em julgado – Possibilidade – Flexibilização do conceito de documento novo
nesses casos. Solução pró verdadeiro ‘status pater’. O laudo de exame de DNA,
mesmo posterior ao exercício da ação de investigação de paternidade, considera-se ‘documento novo’ para aparelhar ação rescisória (CPC, art. 485, VII). É
que tal exame revela prova já existente, mas desconhecida até então. A prova
de parentesco existe no interior da célula. Sua obtenção é que apenas se tornou
possível quando a evolução científica concebeu o exame intracitológico. (STJ,
2ª Seção, REsp 300.084, rel. min. Humberto Gomes de Barros, DJ 6.9.2004).
Há que se ressaltar o exíguo prazo de dois anos, contados do trânsito em
julgado da decisão, em que é possível a proposição da ação rescisória, nos termos
do artigo 495, do Código de Processo Civil.
Art. 495. O direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos,
contados do trânsito em julgado da decisão.
Infere-se que o legislador, ao estipular o biênio para que as decisões judiciais transitadas em julgado fossem revistas, procurou estabilizar as decisões proferidas em curto espaço de tempo, assegurando a segurança jurídica, ainda que, em
sacrifício da Justiça.
A doutrina aponta diferenciação entre os casos em que o exame pericial foi
produzido antes do ajuizamento da ação rescisória, ou seja, a ação foi proposta com
base em exame pericial já produzido e os casos em que o exame é produzido no
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curso da ação rescisória ou após o decurso do prazo de dois anos para sua propositura. (WAMBIER; MEDINA, 2003, passim).
Na primeira hipótese, na qual a ação rescisória é ajuizada com base em exame pericial já produzido, tem-se admitido, como acima mencionado, a equiparação
da prova pericial a documento novo, previsto no artigo 485, VII, fazendo-se uma
comparação entre a prova pericial conclusiva e a prova documental, conferindo
maior segurança à prova pericial.
Afirma Costa (apud WAMBIER; MEDINA, 2003, p. 202):
Por isso, parece-nos, data vênia, de orientação contrária, que, se é admissível a ação rescisória com fundamento em documento novo, com muito mais
razão deve-se admitir o ajuizamento da ação rescisória com fundamento em
exame pericial novo.
Faz-se ressalva nos casos em que o requerido se recusou injustificadamente
a submeter-se ao exame de DNA, sobrevindo o julgamento da lide e o seu trânsito
em julgado, não se admitindo que se utilize da ação rescisória porque pretende fazer
uso do referido exame.
No caso de possibilidade de realização do exame pericial no curso da ação
rescisória, entende-se inadmissível a propositura desta, exceto nos casos em que se
alegue a falsidade do exame pericial já produzido, afirmando-se que a presunção
relativa atribuída àquele que se recusou a realizar o exame injustificadamente não é
supedâneo para o ajuizamento de referida ação.
Por fim, alude-se, na terceira hipótese supracitada, que após o trânsito em
julgado da sentença que julga improcedente a ação de investigação de paternidade,
o autor descobre que é filho do requerido, poderia se considerar a equivalência da
sentença de improcedência à sentença que reconhece a falta de legitimidade do
autor, extinguindo o processo sem resolução de mérito, na qual não há formação de
coisa julgada material, admitindo-se a repropositura da ação, independentemente
da ação rescisória. Para isso, sustenta-se que, em caso inverso, no qual sobreveio
o reconhecimento da paternidade sem que houvesse verdadeiramente a relação de
filiação, ocorre uma semelhança com a hipótese de sentença de mérito proferida
ainda que ausente uma condição da ação, qual seja, a legitimidade da parte, verificando-se apenas, nesse caso, o exercício do direito de petição e não o verdadeiro
direito de ação, configurando processo juridicamente inexistente, sentença inexistente e, consequentemente, a não formação da coisa julgada.
Para melhor elucidar, transcreve-se o trecho que trata do assunto (WAMBIER;
MEDINA, 2003, p. 203):
[...] ainda que até agora [...] estejamos abordando a possibilidade de rescisão
da sentença que julga improcedente pedido formulado em ação de investigação de paternidade, quando em posterior exame de DNA se obtenha o
resultado positivo, que, teoricamente é ainda concebível uma outra solução.
[...] pode-se considerar que a sentença de improcedência equivaleria, de certo
modo e em certa medida, à sentença que desse pela falta de legitimidade do
autor e que, portanto, não transitaria em julgado. Este raciocínio se apoia fun192 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONSIDERAÇÕES...
damentalmente sobre a constatação no sentido de que legitimidade e mérito
praticamente se sobrepõem em ação de investigação de paternidade, segundo
voz corrente na doutrina. Trata-se, de fato, de hipótese em que é extremamente difícil traçar-se uma linha divisória nítida entre condição da ação e mérito.
Referem-se os autores (WAMBIER; MEDINA, 2003, passim), ainda, que o
prazo para a propositura da ação rescisória deveria começar a correr a partir da
obtenção do documento novo, especificamente no caso da ação de investigação
de paternidade, a partir da obtenção da prova pericial, sustentando que o exíguo
biênio, previsto no artigo 495, do Código de Processo Civil, dificulta o manejo da
referida ação, considerando que, muitas vezes, seria impossível a obtenção da prova
pericial nesse prazo. Afirmam que não se pode considerar extinto um direito que
sequer tenha nascido, e os requisitos exigidos para o exercício de um direito não
devem impossibilitá-lo, sob pena de violação do previsto no artigo 5º, XXXV, da
Constituição Federal.
Art. 5º. [...]
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça
a direito;
Continua (WAMBIER; MEDINA, 2003, p. 208-209):
[...] A tutela dos direitos indisponíveis normalmente merece tratamento diferenciado do ordenamento jurídico processual e seria conveniente que algo semelhante fosse realizado com as ações relacionadas à paternidade. Pensamos
que o instituto da coisa julgada, objeto do presente estudo, não deveria ser
simplesmente afastado, mas apenas para que: a) fosse explicitado, no art. 485,
inc. VII, que além de “documento novo”, fosse admitida a ação rescisória com
base em prova pericial nova; b) que o prazo para o ajuizamento da ação rescisória pudesse ser contado a partir da descoberta do documento ou da realização do documento pericial novo, e não do trânsito em julgado da sentença.
[...] Às conclusões a que chegamos podem em nosso sentir, ser extraídas
do próprio sistema hoje existente. Todavia, ante a relevância do tema, ideal
seria que o legislador as incorporasse, já que são inteiramente harmônicas
com o sistema e com as aspirações que levaram ao “movimento” da “relativização” da coisa julgada.
Segundo Nery (2007, p. 778), em seus comentários ao artigo 485, do diploma processual, as hipóteses descritas no referido artigo são consideradas ‘numerus
clausus’, dado o seu caráter de excepcionalidade, tratando-se de rol taxativo, não
admitindo ampliação por interpretação analógica ou extensiva.
Todavia, ao admitir uma interpretação menos restritiva, o que acaba por conduzir à relativização da coisa julgada, sustenta-se não haver risco à segurança jurídica,
justificado no exemplo de que seria um mal maior manter a intangibilidade da coisa
julgada em ação de investigação de paternidade, quando um exame de DNA posterior
conclua em sentido contrário a sentença transita em julgado, se comparado à admissão do cabimento da ação rescisória (THEODORO JÚNIOR; FARIA, 2008, p. 173).
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2.4. A relativização da coisa julgada
A possibilidade excepcional de rediscussão de matéria acobertada pela coisa
julgada, independentemente da ação rescisória, recebe a denominação de relativização da coisa julgada. Tema polêmico, considerando que a coisa julgada é prevista
constitucionalmente, asseguradora da segurança jurídica e da estabilidade, sem as
quais seria impossível a pacificação social.
Todavia, considera-se para tanto, a existência de uma sentença, acobertada pela
coisa julgada, mas que ofenda à própria Constituição Federal, tida como ‘coisa julgada
inconstitucional’ ou que se constitua em uma decisão injusta, dissociada da verdade,
perfazendo situações díspares entre o que está nos autos e a realidade concreta.
Trata-se de “casos especiais em que a perenidade do julgado não serve ao direito, mas para contrariá-lo” (SANTOS, 2008, p. 21). O embate da coisa julgada e outros
princípios fundamentais previstos constitucionalmente trouxe à tona a discussão da matéria atinente a mitigação da autoridade da coisa julgada, a importância do sopesar de
valores e a observância do binômio justiça-segurança, a utilização do processo como
um meio para a solução dos conflitos levados a juízo e, não, como um fim em si mesmo.
A relativização da coisa julgada traz consigo a ideia de que o seu valor absoluto, capaz de fazer do preto branco, do quadrado redondo, cunhando relações
de parentesco que de fato não existem, não pode subsistir, criando uma realidade
dissociada da verdade.
Sustenta-se a aplicação da regra da proporcionalidade, ou princípio da proporcionalidade, com seus subprincípios da adequação, da necessidade ou restrição
menor possível e da proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação propriamente dita, que se resumem segundo Talamini (apud WAMBIER, 2008, p. 573-574):
- Adequação: a medida tem que ser suscetível de atingir o fim escolhido;
- Necessidade ou restrição menor possível: deve-se escolher o meio mais
brando possível para a consecução do fim eleito e que não exceda os limites
indispensáveis para tanto;
- Proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação propriamente dita: o
ônus imposto ao valor sacrificado deve ser menor do que os benefícios ao
valor prevalente.
Visto como o princípio dos princípios, o princípio da proporcionalidade,
muitas vezes, orienta as situações em que há o embate entre outros princípios
(WAMBIER; MEDINA, 2003, p. 177).
Na lição de Talamini (2005, p. 402-403 apud DELGADO, 2008, p. 115):
É necessária a consideração dos valores constitucionais envolvidos. Mas é
também preciso identificar critérios para tanto. A proporcionalidade não é um
fundamento adicional, um argumento de reforço, em favor da relativização da
coisa julgada. Antes, é o único caminho para o legítimo exame da questão. [...].
Em consonância, Dinamarco (apud DELGADO):
[...] a autoridade da coisa julgada está sempre condicionada aos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, sem cuja presença a segurança jurídica
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imposta pela coisa julgada “não é o tipo de segurança posto na Constituição
Federal” [...] (grifos do autor)
As ações de investigação de paternidade julgadas improcedentes, acobertadas
pela coisa julgada, e as procedentes, ainda que decididas com base em provas periciais,
mas incapazes de garantir a certeza proveniente do exame de DNA, verdadeira revolução genética, tem fomentado a discussão da questão da relativização da coisa julgada.
De um lado, toda a relevância da coisa julgada, elemento estruturador do estado democrático de direito, a imutabilidade das decisões, sob pena de se destruir a segurança
jurídica e a estabilidade das relações em sociedade; de outro, a busca pela verdadeira
origem, elemento indissociável da pessoa e do princípio da dignidade humana.
Em tais casos, o questionamento não incide sobre a lei aplicada ao caso concreto, mas sim sobre a matéria fática, a existência de uma prova capaz de garantir
um resultado idôneo, na busca pela verdade real, dissipando-se uma dúvida que o
pronunciamento judicial, por vezes, não foi capaz de dissolver.
O questionamento incide sobre a possibilidade de propositura de nova ação
de investigação de paternidade fundamentada no surgimento de prova técnica, inexistente quando do julgamento e trânsito em julgado da primeira ação.
Todavia, há afirmações no sentido que nem mesmo o direito à identidade
biológica pode ser colocado no mesmo patamar que a coisa julgada, posto que
aquele é um direito definido pela jurisdição, enquanto a última é uma condição para
o próprio discurso jurídico e elemento do próprio estado democrático de direito.
(MARINONI, 2008, passim).
Ao se referir sobre o tema, Nery (2009, passim) afirma que a relativização
da coisa julgada constitui negação do estado democrático de direito, fundamento
da República.
Sustenta que, na hipótese de se considerar a relativização da coisa julgada
como pretendem os que o autor denomina de ‘desconsideracionistas’ em virtude do
surgimento de novas técnicas de perícia genética, o exame de DNA, fundamentado
no princípio da dignidade da pessoa humana, deve haver coerência, permitindo-se não só a repropositura de ação de investigação de paternidade pelo filho, mas
também, para aquele que foi declarado como pai, ainda que sem o exame de DNA,
admitindo a interposição de ação negatória de paternidade, uma vez que o principio
da dignidade da pessoa humana aplica-se tanto ao pai quanto ao filho.
Continua, aduzindo que, nesse caso, se instalaria verdadeiro caos e total insegurança jurídica, admitindo-se a repropositura de milhares de ações no Brasil de
pessoas, tanto pais quanto filhos, que intentam rediscutir suas relações de parentesco.
E conclui o autor, afirmando: A solução de eventual impasse deve ser buscada no sistema, vale dizer, por
procedimento de afirmação positiva do sistema e, não, pela negação do sistema, como pretendem os desconsideracionistas. [...] Existindo casos específicos identificados pela doutrina, que mereçam tratamento diferenciado no que
pertine à coisa julgada – por exemplo, investigação de paternidade ‘secundum
195 REVISTA JURÍDICA ESMP-SP, V.3, 2013: 183-210
Marisa F. Nogueira Rosa
eventum probationis’ –, somente com a modificação da lei, nela incluindo a
hipótese de exceção, é que poderão ser abrandados os rigores da coisa julgada. Sem expressa disposição de lei, regulamentando a situação, não se poderá
desconsiderar a coisa julgada.
Insta esclarecer que a expressão ‘secundum eventum probationis’, pontuada
pelo autor, quer dizer ‘conforme o resultado da prova’, referindo-se àqueles que
sustentam a tese da ocorrência da coisa julgada conforme o resultado da prova,
nos casos de sentenças proferidas em ação de investigação de paternidade julgada
improcedente por deficiência ou falta de provas, antes dos avanços da ciência, permitindo-se a repropositura da ação tendo em vista o surgimento do exame de DNA.
Afirma que a admissão de que a coisa julgada em ação de investigação de
paternidade ocorra conforme o resultado da prova – ‘secundum eventum probationis’, depende de lei a ser criada, mencionando os casos em que a lei brasileira,
excepcionalmente, admite a coisa julgada nesse sentido: Lei nº 4.717/65 – Ação
Popular, em seu artigo 18; Lei nº 7.347/85 – Ação Civil Pública, em seu artigo 16
e a Lei nº 8. 078/90 – Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 103, I a III.
Desse contexto, extrai-se que o sistema processual, em tais casos peculiares,
no intuito de resguardar direitos ante sua função social, permitiu uma flexibilização da
coisa julgada ao possibilitar sua formação conforme o resultado do processo, admitindo
a repropositura da ação em decorrência do surgimento de prova nova, nos casos em
que o pedido foi julgado improcedente por insuficiência de provas acima relacionados.
Posicionamento semelhante ao do processualista Nery, acima citado, encontra respaldo na obra de Wambier e Medina (2003, passim) ao afirmarem que a coisa
julgada é “princípio geral da segurança jurídica”, “sem o qual o estado democrático
de direito não pode ser compreendido”, sendo tanto a coisa julgada quanto o direito
ao reconhecimento da paternidade albergados constitucionalmente e, por isso mesmo, o ordenamento jurídico deve buscar a realização de ambos os valores, sem o
sacrifício da coisa julgada ou a sua imposição como um tabu absoluto.
Afirmam que ainda que se considerasse a formação de coisa julgada ‘secundum eventum probationis’, o que necessitaria de expressa previsão legal, há que se
considerar a proteção à segurança jurídica nas relações familiares, que já se encontram tão fragilizadas e que seriam atingidas pelo uso sucessivo de ações investigatórias de paternidade, seria imprescindível a delimitação precisa dos critérios a serem
observados nesse caso, não se permitindo a repropositura da ação por “qualquer
arremedo de prova”.
A defesa da possibilidade de rediscussão da matéria atinente à investigação
de paternidade, independentemente do trânsito em julgado, em decorrência do surgimento do exame de DNA, sustenta que a evolução dos conhecimentos científicos
seria elemento questionador da sentença anterior, consolidada em métodos científicos já superados (SILVA apud ARMELIN, 2008, p. 229).
Nesse sentido, transcreve-se o afirmado pelo ministro Sálvio de Figueiredo
Teixeira, relator no Resp n. 226.436/PR, j. 28.6.2001, citado por Delgado (2008,
p. 145-146):
196 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONSIDERAÇÕES...
I - Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação
de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência
de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e
considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame de DNA
ainda não era disponível nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação de investigação de paternidade, ainda que tenha sido aforada
um ano anterior com sentença julgando improcedente o pedido.
[...]
III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso da
investigação de paternidade, deve ser interpretada ‘modus in rebus’. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo
justo, a coisa julgada existe como uma criação necessária à segurança prática
das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem que estar acima da segurança, porque sem
Justiça não há liberdade [...]
Denota-se que as ações de estado, como é o caso das ações de investigação
de paternidade, trazem em seu contexto os direitos de personalidade, que conjugados com o princípio da dignidade da pessoa, ensejam a busca pela verdade real, em
uma contraposição a verdade formal, sempre admitida no processo civil.
Ainda que haja relutância a respeito do assunto, encontra-se na jurisprudência, como acima citada, bem como na doutrina, a admissão da relativização da
coisa julgada, que está paulatinamente sofrendo uma reestruturação e, não, uma negação, dada a sua inegável importância. Esse fenômeno implica consequentemente,
em reestruturar também o conceito de segurança jurídica, como mencionado na
lição de Santos (2008, p. 39):
[...] a coisa julgada foi ganhando uma nova roupagem, uma moeda de dois
lados, na qual a segurança jurídica não é somente a sua imutabilidade. Segurança jurídica é um termo que vem adaptando-se, sem temor por juristas de
renome, como um primado da modernidade que vem surgindo no processo
civil brasileiro, onde se busca a justiça num plano prático e a verdade formal
dá espaço ao mais próximo da verdade real.
Para Dias (2009, p. 360): “desarrazoado que, em nome da intangibilidade da
coisa julgada, seja criado ou mantido vínculo de paternidade inexistente, encobrindo-se de forma injustificada a verdade real”.
Outros propósitos, como a constitucionalidade, a moralidade, a justiça a dignidade da pessoa humana e a cidadania, que também devem ser almejados, estão
sendo mencionados como fundamento de adequação da intangibilidade da coisa
julgada (DELGADO, 2008, p. 130).
Afirma-se, igualmente, que a medida excepcional de se relativizar a coisa julgada, é justificável, quando o vício que apresenta é capaz de prejudicar sua própria
razão de ser, ou seja, a segurança jurídica que ela representa fica maculada por não
coincidir com a verdade real, resvalando, inclusive, seu escopo de pacificação social.
197 REVISTA JURÍDICA ESMP-SP, V.3, 2013: 183-210
Marisa F. Nogueira Rosa
É o propugnado por Madaleno (2007):
Em realidade, a propolada fundamentação política da tranquilidade social não
encontra conformação pessoal em ações de investigação das conexões parentais biológicas desconectadas da perícia de DNA, eis que sempre persistiria
a dúvida daquele que perdeu a ação, pois viveria eternamente atormentado
pelo sinete judicial de ser filho ou ascendente da coisa julgada.
Nesse sentido, refere Oliveira (apud MADALENO, 2007):
São pais e filhos da intrigante coisa julgada, porque, no campo subjetivo da busca
eterna dos vínculos biológicos desconhecidos, nada é mais angustiante do que
viver o sentimento eterno de dúvida. Havendo instrumentos humanos que remodelam a pesquisa da verdade biológica, a doutrina moderna precisa desprezar
desfocados conceitos de necessária estabilidade em homenagem à segurança jurídica. De nada serve a declaração judicial vacilante ou equivocada da presumida
paternidade jurídica e cobrir esta decisão com o manto sepulcro da autoridade
da coisa julgada, se permanece na alma dos protagonistas diretos do processo –
investigado e investigante – o inconsolável sentimento de que o processo foi mal
julgado, por pessoas que não ignoram os avanços científicos capazes de fazer até
caducar a velha máxima latina sobre a incerteza da paternidade.
Pelo exposto, verifica-se que a oposição a relativização da coisa julgada
fundamenta-se na segurança jurídica, elemento de pacificação social, na medida
em que impossibilita que as lides sejam eternas. O inconformismo daquele que saiu
vencido, característica peculiar do ser humano, deverá curvar-se sob a autoridade da
coisa julgada, sob pena de rediscussão infinita da mesma matéria. Ao mesmo tempo,
traduz-se na garantia do bem da vida, obtido através do pronunciamento judicial
favorável a uma das partes.
Em contrapartida, a defesa da relativização da coisa julgada, sustenta a observância de outros princípios e garantias, de igual ou maior relevância, sem negar
a importância da coisa julgada, elemento de segurança jurídica e pacificação social,
propõe que em casos excepcionais a serem analisados concretamente em seu contexto, a coisa julgada cedesse espaço a outros igualmente consagrados pela Constituição
Federal, tanto mais, aqueles tão intrínsecos à formação da identidade humana.
Parafraseando o prof. Brina (apud Costa):
Penso que numa ação dessa natureza, e com essas características, todos os
problemas de técnica processual devem ficar adstritos ao seu aspecto meramente instrumental e ceder lugar a alguns valores mais altos, reconhecidos
pelo direito natural, implícitos no ordenamento jurídico. [...] A Constituição
Federal brasileira, invocando princípios da dignidade da pessoa humana a da
paternidade responsável (art. 226, § 1º) assegura à criança o direito à dignidade e ao respeito (art. 227). Saber a verdade sobre sua paternidade é um legítimo interesse da criança. Um direito humano que nenhuma lei e nenhuma
corte pode frustrar. A dignidade de uma criança fundamenta-se no amor, no
respeito e no carinho a ela dedicados. E esses fatores não podem sobreviver
quando ela é considerada uma farsa, fruto de outra farsa.
198 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONSIDERAÇÕES...
3. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
A ação de investigação de paternidade, disciplinada pela Lei nº 8.560/92, é o
meio processual utilizado para o reconhecimento da paternidade, ou seja, o estado
de filiação, quando não realizado de maneira espontânea, dá-se de forma judicial,
através de sentença que declarará o estado de filho, posto que o vínculo biológico
é anteriormente existente.
Trata-se de ação de estado, uma vez que reconhece a filiação, portanto, direito indisponível, imprescritível e irrenunciável, podendo ser exercido a qualquer
tempo. É o disposto na Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – em
seu artigo 27.
Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus
herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça.
Os efeitos da sentença declaratória de paternidade são ‘ex tunc’, retroagindo
a data do nascimento, ou até mesmo da concepção, se o caso.
3.1. Legitimidade
A legitimidade ativa para propor a ação de investigação de paternidade é do
suposto filho, podendo ser exercida por seus herdeiros caso sobrevenha seu falecimento no curso da demanda, ou falecendo menor e incapaz, nos termos do artigo
1.606, do Código Civil.
Art. 1606. A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz.
Parágrafo único. Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo.
A Lei 8.560/92, alterada pela Lei 12.004/09, em seu artigo 2º, prevê o procedimento denominado ‘averiguação oficiosa de paternidade’, conferindo legitimidade extraordinária ao representante do Ministério Público, caso o suposto pai, indicado pela genitora no momento da lavratura do registro de nascimento do menor,
permaneça inerte no prazo legal concedido para manifestar-se ou, manifestando-se,
negue a alegada paternidade.
Art. 2º. Em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome
e prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser
averiguada oficiosamente a procedência da alegação.
§ 1º. O juiz, sempre que possível, ouvirá a mãe sobre a paternidade alegada
e mandará, em qualquer caso, notificar o suposto pai, independente de seu
estado civil, para que se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída.
§ 2º. O juiz, quando entender necessário, determinará que a diligência seja
realizada em segredo de justiça.
199 REVISTA JURÍDICA ESMP-SP, V.3, 2013: 183-210
Marisa F. Nogueira Rosa
§ 3º. No caso do suposto pai confirmar expressamente a paternidade, será
lavrado termo de reconhecimento e remetida certidão ao oficial de registro,
para a devida averbação.
§ 4º. Se o suposto pai não atender no prazo de 30 (trinta) dias a notificação
judicial, ou negar a alegada paternidade, o juiz remeterá os autos ao representante do Ministério Público para que intente, havendo elementos suficientes, a
ação de investigação de paternidade.
§ 5º. Nas hipóteses previstas no § 4º deste artigo, é dispensável o ajuizamento
de ação de investigação de paternidade pelo Ministério Público se, após o não
comparecimento ou a recusa do suposto pai em assumir a paternidade a ele
atribuída, a criança for encaminhada para adoção.
§ 6º. A iniciativa conferida ao Ministério Público não impede a quem tenha
legitimo interesse de intentar a investigação, visando a obter o pretendido
reconhecimento de paternidade.
[...]
É de se mencionar que a Lei nº 12.010/09, que trouxe alterações à Lei nº
8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, nas questões atinentes à adoção,
ao disciplinar sobre a regularização do registro civil da criança, apontando os casos
em que se faz necessária a investigação de paternidade, dispensa a propositura da
ação pelo órgão ministerial, em consonância com o acima referido, nos casos em
que a criança for encaminhada para adoção.
Art. 102. As medidas de proteção de que trata este capítulo serão acompanhadas da regularização do registro civil.
[...]
§ 3º. Caso ainda não definida a paternidade, será deflagrado procedimento
específico destinado à sua averiguação, conforme previsto na Lei nº 8.560 de
29 de dezembro de 1992.
§ 4º. Nas hipóteses previstas no § 3º deste artigo, é dispensável o ajuizamento
de ação de investigação de paternidade pelo Ministério Público se, após o não
comparecimento ou a recusa do suposto pai em assumir a paternidade a ele
atribuída, a criança for encaminhada para adoção.
O nascituro, ser concebido, mas não nascido, também possui legitimidade
ativa, posto que a lei, ainda que atribua a personalidade civil a partir do nascimento
com vida, protege seus direitos desde a concepção, conferindo à genitora, a atribuição de zelar por seus interesses.
O legitimado passivo será o suposto pai e, caso falecido, seus herdeiros legítimos e testamentários, admitindo-se a formação de litisconsórcio passivo se houver
mais de um investigado.
Caso o filho seja registrado e intente a ação de investigação de paternidade
face outra pessoa, crendo ser seu pai biológico, aquele que figura no registro também será chamado a participar do processo, em litisconsórcio passivo, uma vez que
a sentença, se procedente, importará em cancelamento do registro de nascimento,
para que se possa inserir o nome do pai biológico.
200 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONSIDERAÇÕES...
3.2. Provas científicas
A título de ilustração, apenas, convém mencionar os diversos exames utilizados na determinação dos vínculos biológicos, quais sejam, exame prosopográfico; exame comparativo das papilas digitais; exame determinativo da cor dos olhos;
exame das proporções físicas; exame do pavilhão auricular; exame da cor da pele;
exame dos redemoinhos do cabelo e os exames de sangue com base nos sistemas
sanguíneos, os sistemas séricos; os antígenos leucocitários e os exames de cariótipo
humano com formação de bandas (AHMAD, 2009, p. 49).
Tais exames, com exceção dos sanguíneos, não tem o condão de atribuir a
paternidade a alguém, são baseados em comparações físicas, qualidade e quantidade de traços, elementos visuais que não podem determinar liames genéticos.
As perícias sanguíneas consistiram uma grande evolução para as ações de investigação de paternidade. Os exames que levam em consideração o tipo sanguíneo
prestam-se a excluir a paternidade, não podendo concluir pelo vínculo apenas pelo
fato de pertencerem ao mesmo grupo sanguíneo que embora transmitido hereditariamente, é idêntico entre milhões de pessoas.
Entre os exames sanguíneos, destacam-se os realizados pelos métodos ABO e HLA.
Pelo sistema HLA, ou sistema do antígeno leucocitário humano, não apenas
se permite excluir a paternidade, o que constituiu maior credibilidade científica,
sendo aceito pela Organização Mundial de Saúde como meio de comprovação de
paternidade desde 1972 (AHMAD, 2009, p. 54).
Sem qualquer pretensão de adentrar em questões de biologia, tais considerações somente foram feitas no intuito de demonstrar a falibilidade dos exames,
mesmo os sanguíneos, na determinação da paternidade.
3.3. Exame de DNA
O avanço da medicina e da engenharia genética trouxe maior credibilidade
aos exames até então utilizados na identificação da paternidade.
Segundo Albano (apud BONACCORSO, 2005, p. 26):
Atualmente definida como um ramo da biologia que estuda as leis da transmissão dos caracteres hereditários nos indivíduos e as propriedades das partículas que asseguram essa transmissão, a genética pode ser sinteticamente
entendida como o estudo do processo pelo qual as características individuais
são passadas dos genitores para a prole, de modo que todos os seres vivos se
assemelham aos seus ancestrais.
Nesse sentido, o exame de DNA constituiu-se um divisor, fruto do aperfeiçoamento de diversas pesquisas.
Mencionam-se, a seguir, apenas para citar alguns dos muitos pesquisadores
que se dedicaram a tais pesquisas, alguns nomes de grande importância, a começar
por Gregor Mendel, que em 1865 publicou trabalho referindo sobre a transmissão
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por unidades das características hereditárias – lei de Mendel, através de estudos
realizados com ervilhas. (AHMAD, 2009, p. 55).
Todavia, seu trabalho não foi imediatamente reconhecido, a uma pela dificuldade de compreensão, a duas porque foi ofuscado por Charles Darwin e sua
teoria da evolução biológica, que instigava a todos, leigos e cientistas. Apenas em
1900 deu-se o reconhecimento de suas pesquisas, passando, a partir de então, ser
considerado como ‘o pai da genética’ (BROWN apud BONACCORSO, 2005, p. 26).
Nesse ínterim, o bioquímico suíço Friedrich Miescher, através de seus estudos em genética molecular que datam de 1869, isolou o DNA (ácido desoxirribonucleico). Em 1953, James Watson e Francis Crick adentraram tais estudos no campo
da investigação de paternidade ao desvendarem a constituição do DNA em dupla hélice, componente responsável pelos genes dos seres vivos. Mas, somente em
1985, com a descoberta de sondas moleculares radioativas, através das pesquisas
de Jeffreys, se tornou possível a eleição de padrões específicos de cada indivíduo,
consistindo na atual prova pericial do DNA (BLIKSTEIN, 2008, p. 133-134).
A técnica criada por Jeffreys permitiu, segundo Croce e Croce Junior (2007,
p. 708):
identificar marcadores genéticos tão específicos quanto às impressões digitais
que se obtém na datiloscopia, chamada ‘impressões digitais genética do DNA
– Fingerprinsts’.
O DNA (ácido desoxirribonucleico) contém todas as informações genéticas
de uma pessoa, com características únicas e próprias.
Ensina Mattos Filho (apud DINIZ, 2009, p.504):
O conjunto de moléculas do DNA compõe os cromossomos, que estão localizados nos núcleos das células e arranjados em pares. A espécie humana
possui 46 cromossomos, sendo uma metade de origem materna (23 cromossomos) e a outra metade de origem paterna. Como já exposto, cada cromossomo
é composto por moléculas de DNA colocadas em sequência única para cada
indivíduo. É possível, através deste método, selecionar regiões preferenciais da
molécula de DNA do indivíduo e verificar qual é a origem [...].
Prossegue Mattos Filho (apud DINIZ, 2009, p. 505), mencionando brevemente a maneira como é realizado o exame em questão:
O DNA do indivíduo é extraído de suas células (utilizando, por exemplo, células do sangue, da mucosa nasal, da boca, da raiz do cabelo, do material exumado, etc.), fragmentado em várias partes por enzimas de restrição, separadas de
acordo com suas cargas elétricas por eletroforese em gel de agarose, transferindo-se o material obtido para uma membrana de ‘nylon’ [...]. O passo seguinte,
e decisivo, é a colocação de sondas radioativas de DNA que se ligam às regiões
preferenciais, posteriormente reveladas através de filmes de raios X. O aspecto
final é o de uma sequência vertical de faixas (bandas), que compõe a Impressão
Digital do DNA (‘DNA Fingerprint), para cada individuo. Para averiguação de
paternidade, os materiais genéticos da mãe, filho e suposto pai são analisados.
202 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONSIDERAÇÕES...
Primeiramente, todas as faixas (bandas) da mãe, com correspondência no filho,
são identificadas e marcadas. As faixas (bandas) restantes, necessariamente, têm
de ter correspondência com as de origem paterna. No caso de haver a presença,
na criança, das bandas resultantes do material genético do suposto pai, considera-se este como seu verdadeiro pai biológico. A exclusão ocorrerá quando não
houver correspondência entre as bandas do filho e do suposto pai.
A técnica de comparação de genes, desde que os laboratórios do país estejam aparelhados para tanto e seus profissionais estejam habilitados à realização de
laudos de tamanha responsabilidade, dispensa os demais meios de identificação até
então utilizados, uma vez que a única e remota possibilidade de erro é o caso de
comparação das estruturas de gêmeos idênticos (JEFFREYS apud CROCE; CROCE
JUNIOR, 2007, p. 709).
Como no exemplo dado por Raskin (apud DINIZ, 2009, p. 506):
[...] a única situação excepcional em que não se poderia apontar a paternidade pelo DNA seria de irmãos gêmeos univitelinos que se relacionaram com a
mãe da criança na época da concepção.
Ainda que se considere, sob o ponto de vista científico, que os resultados do
exame do DNA, alcançam a probabilidade de 99,999% de certeza sobre a paternidade, ou sua exclusão, ou seja, uma quase certeza, o que não exclui o dever de
cautela do juiz, deve-se levar em consideração as demais provas obtidas no processo, tendo em vista a falibilidade humana. Havendo fundado questionamento sobre
o resultado obtido no exame, permitir, se o caso, a realização de uma contraprova,
em outro laboratório, de idoneidade reconhecida.
Sobre tal ponto, alude Blikstein (2008, p. 154):
Dessa forma, o resultado do exame de DNA, sem retirar o mérito o mérito da
tecnologia, apresenta evidências, probabilidades e não conclusões. Há necessidade de suprir o magistrado de todas as comprovações possíveis para a
procedência ou improcedência da demanda. A ação de investigação de paternidade, por ser ação de estado, necessita da busca da verdade real, com todas
as provas admitidas em nosso ordenamento jurídico, inclusive a pericial pelo
exame de DNA.
Continua Simas Filho (apud BLIKSTEIN, 2008, p. 156): “a técnica de análise
em DNA é infalível (metodologia), porém ela é feita por seres humanos – que faz
depender muito da moral e da ética de quem manuseia”.
São diversos os fatores em questão, tanto a possibilidade de erro técnico,
incluindo laboratórios e profissionais despreparados para a realização de múltiplos
procedimentos, ausência ou déficit de fiscalização e controle de qualidade, quanto
à ocorrência de fraudes ou adulteração do exame.
Menciona Langaro (2007):
Este culto ao resultado pericial não vem sendo compartilhado entre renomados peritos, como Anete Trachtenberg, ao afirmar a falibilidade do teste de
203 REVISTA JURÍDICA ESMP-SP, V.3, 2013: 183-210
Marisa F. Nogueira Rosa
DNA, pelo fato dos laboratórios carecerem de dados estatísticos tão caros e
próprios da população brasileira, composta por uma raça mista, de características singulares, divergentes dos levantamentos estatísticos realizados com os
povos dos Estados Unidos e o da população europeia.
Necessário se faz a normatização das referidas técnicas, o controle dos laboratórios e da capacitação e seriedade dos profissionais envolvidos nessa análise, por
constituir-se meio de prova de suma importância, uma vez que é capaz de chegar
a um índice de probabilidade jamais alcançado pelos demais exames já realizados.
3.4. Recusa em realizar o exame
Pode ocorrer de o suposto pai, sustentado também por dispositivos constitucionais, se recusar a realizar o exame de DNA, fundamentado inclusive, pelo
mesmo princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III,
da Constituição Federal, que alicerça o direito do filho à sua identidade biológica.
O artigo 5º, II, da Constituição Federal, impõe o princípio da legalidade, ao
prescrever:
Art. 5º. [...]
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei;
E prossegue o mencionado artigo, albergando outros direitos que podem ser
alegados pelo suposto pai para fundamentar sua recusa.
Art. 5º. [...]
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente
de sua violação;
Não há lei que obrigue o indigitado pai a se submeter ao exame, ou produzir
prova contra si. Há a proteção constitucional à intimidade e à vida privada, incluindo a intangibilidade do corpo humano.
Nesse sentido, polêmica decisão foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal (DIAS, 2009, p. 373), que concedeu ordem de habeas corpus ao paciente
ao qual se determinou a condução coercitiva para a realização de exame de DNA
ante a sua recusa em se submeter ao exame. As críticas ocorreram no sentido de
que o direito a intangibilidade do corpo humano do apontado pai deve ceder lugar
ao direito do filho. Todavia, o próprio sistema jurídico resolve a questão através da
Súmula 301, do Superior Tribunal de Justiça, não havendo que se falar em condução coercitiva do indigitado pai.
Investigação de paternidade. Exame de DNA. Condução do réu “debaixo de
vara”. Discrepa, a não mais poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas. Preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade
do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica de obrigação
204 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONSIDERAÇÕES...
de fazer. Provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório,
“debaixo de vara”, para a coleta do material indispensável à feitura do exame
de DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a
dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das
questões ligadas à prova dos fatos. (STF, Tribunal Pleno. HC 71373/RS, rel.
Francisco Rezek, rel. p/ ac. Min. Marco Aurélio, DJU 22.11.1996).
Estreme de dúvidas que, na maioria dos casos, a paternidade imputada a
alguém gera inúmeros dissabores na vida pessoal dessa pessoa, no âmbito conjugal,
familiar e, inclusive, financeiro, pois uma vez reconhecida a paternidade, decorrerão efeitos patrimoniais e sucessórios.
Contrapondo-se ao direito do suposto pai que se recusa a realizar o exame,
está o filho e o seu direito de identificação da ascendência paterna. A Constituição
Federal, 227, confere especial proteção às crianças e adolescentes, descrevendo
dentre os vários direitos que lhe devem ser assegurados, o direito à convivência
familiar e a dignidade, por sua vez, a Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do
Adolescente, em seu artigo 27 dispõe sobre o exercício do direito de reconhecimento do estado de filiação, mencionando, inclusive, a ausência de qualquer restrição.
Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus
herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça.
Considerada a relevância dos direitos em conflito, o indigitado pai que se
recusa em realizar o exame, injustificadamente, arcará com as consequências de sua
omissão, recaindo sobre si a presunção relativa da paternidade que lhe é atribuída
e os efeitos dela decorrentes.
É o disposto na Súmula 301, do Superior Tribunal de Justiça:
S. 301. Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção ‘juris tantum’ de paternidade.
A Lei 12.004 de 29 de julho de 2009 alterou recentemente a Lei 8.560/92, inserindo o artigo 2º-A e parágrafo único, autenticando referida Súmula, de modo a reafirmar
as consequências, para o indigitado pai, decorrente da recusa à submissão ao exame:
Art. 2º-A. Na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem
como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos.
Parágrafo único. A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético
– DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com
o contexto probatório.
De certa forma, corroborando o disposto no artigo 339, do Código de Processo Civil e no artigo 232, do Código Civil.
Art. 339. Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário
para o descobrimento da verdade.
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Marisa F. Nogueira Rosa
Art. 232. A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova
que se pretendia obter com o exame.
Insta salientar que não basta apenas a recusa de submissão ao exame para
que a paternidade seja presumida, faz-se necessário a consideração de todas as
demais provas produzidas na ação de investigação de paternidade, apontando para
o relacionamento sexual da mãe do investigante e do suposto pai à época da concepção e a honestidade da mulher, no sentido de que a mãe do suposto filho relacionava-se sexualmente apenas com o indigitado pai.
A prevalência do direito do filho justifica-se, como anteriormente mencionado, pela relevância dos direitos em conflito. A busca pela origem genética
constitui-se direito personalíssimo, intimamente relacionado com a formação da
própria história do indivíduo, a começar por saber quais foram as pessoas que
lhe trouxeram à vida, repercutindo no seu desenvolvimento enquanto pessoa, na
formação de sua individualidade.
CONCLUSÃO
O estado democrático de direito, delineado pela Constituição Federal de
1988, fundamenta-se em diversos princípios, cuja observância pressupõe a manutenção de sua existência e possibilita a persecução de seus fins.
Dentre os seus princípios fundamentais, irradiadores para todo o contexto
jurídico, está a dignidade da pessoa humana, valor espiritual e moral, que pode ser
entendida, como a consciência do próprio valor, a qual, tanto as demais pessoas
quanto o estado, deve respeito.
Desdobramento natural do princípio da dignidade da pessoa humana, a
identidade biológica, um dos mais primitivos direitos do ser humano, afigura-se
como o direito de conhecer a ascendência biológica, no presente estudo, a paterna.
A formação de um ser humano, em toda a sua complexidade, depende da
conjugação de fatores de diversas ordens, biológicos, culturais, sociais entre outros.
Essa multiplicidade de fatores não retira a importância dos caracteres biológicos que
foram herdados dos genitores, ainda que esses não sejam os únicos responsáveis
pela formação da individualidade de cada ser.
Pressuposto da existência do indivíduo é natural a busca pelo conhecimento
da origem biológica, um dos elementos que compõe o desenvolvimento da personalidade, protegida pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Ausente o reconhecimento voluntário de paternidade, ao indivíduo caberá
a busca pela ascendência biológica paterna através das ações de investigação de
paternidade, meio processual adequado pelo qual, através de todo o contexto probatório, se declara, ou não, os vínculos de parentesco entre as partes.
Paralelamente, verdadeira revolução da ciência biológica, o desenvolvimento da engenharia genética possibilitou o aperfeiçoamento da técnica de utilização
206 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONSIDERAÇÕES...
do exame de DNA, constituindo grande avanço na determinação da origem genética, capaz de obter resultado de quase certeza na aferição da paternidade, refletindo-se sobremaneira no direito de família.
Possibilitado, através do exame de DNA, um resultado jamais visto em qualquer pericia sanguínea até então utilizada, os questionamentos voltaram à tona, em
razão da improcedência da ação por falta de provas ou, se procedente, ante a precariedade das provas, encontrando a barreira intransponível da coisa julgada que se
perfez em tais ações, em sua autoridade alheia a toda a revolução genética.
Desse contexto, surgiu a tese de que a coisa julgada, em tais casos excepcionais, poderia ser relativizada, ante a grandeza de tal questionamento. Em oposição, a segurança jurídica indispensável para a vida em sociedade garantida pelo
instituto da coisa julgada.
Importa considerar que não há negação à coisa julgada, elemento imprescindível para o funcionamento e estruturação da sociedade, mas uma proposta de que
haja a consideração de outros valores, como a busca pela origem genética, lastreada
pelo principio da dignidade da pessoa humana.
Mesmo os opositores a relativização a coisa julgada, sugerem que, devido à excepcionalidade do caso e a relevância do questionamento, seja a matéria
cuidadosamente considerada pelos legisladores, compatibilizando-a com o sistema
vigente, minimizando os efeitos dela decorrentes.
Considerando que nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida,
pressuposto dos demais direitos, o ideal seria a harmonização dos princípios conflitantes, e não simplesmente o detrimento de um para que o outro permaneça intacto,
porque assim foi concebido.
O direito, enquanto ciência social, deve acompanhar as evoluções e alterações da sociedade. A Constituição Federal de 1988 constituiu um grande avanço
nesse sentido, especialmente nas questões relacionadas ao direito de família, tratadas no presente estudo. Todavia, a realidade mostra que há muito ainda por fazer,
posto que o direito, ao disciplinar às questões atinentes à vida em sociedade, às
relações interpessoais e às dos indivíduos com o estado, não pode permanecer estático, como uma obra pronta e acabada. Necessita ser edificado constantemente de
maneira a albergar as múltiplas situações que a vida impõe.
A evolução da ciência biológica acabou por incidir diretamente no direito de
família, não sendo possível, simplesmente, relegá-la ante a imponência das questões
jurídicas. O reconhecimento da importância de uma ciência por outra, não implica
desmerecimento de si própria, pelo contrário, demonstra a grandeza em admitir que,
diante de situações tão peculiares, como o direito à identidade biológica, intrínseca
a dignidade da pessoa humana, é imprescindível a compatibilização das ciências.
Nesse sentido, a reestruturação do sistema jurídico de modo a proteger tais anseios, não importa em negá-lo, mas sim em fortalecê-lo, possibilitando o pleno exercício
dos direitos de personalidade, sob pena de não alcançar o escopo de pacificação social,
permitindo ao individuo, razão da existência do próprio estado democrático de direito,
a busca pelo que lhe é primordial, sua origem biológica, o início de sua própria vida.
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Marisa F. Nogueira Rosa
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Submetido: 28/11/2012
Aceite: 7/2/2013
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