MAVUTSINIM E O LABIRINTO DÉBORA BASTOS MEMBRO DO NÚCLEO DE ESTUDOS IBÉRICOS E IBERO-AMERICANOS DA UFJF. ALUNA DO CURSO DE HISTÓRIA DA UFJF. [email protected] O livro El Laberinto de la Soledad, do escritor mexicano Octavio Paz será a base deste trabalho, bem como o mito Mavutsinim, originário da cultura kamaiurá (das comunidades indígenas que habitam na região centro-oeste do Brasil). Paz, em seu livro, tenta fazer uma busca da identidade nacional mexicana. Tal livro foi publicado no ano de 1950, tendo sido escrito nos anos de 1948 e 1949, em Paris. Podemos dizer que pode ser comparado a alguns clássicos que tinham a intenção de discutir sobre a identidade nacional, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire; Radiografía de la Pampa, de Ezequiel Martinez ou até mesmo a obra de José Lezama Lima, La expresión Americana. Paz afirmou que sua intenção era ir em busca de auto-conhecimento, até porque a história da sociedade a que ele pertence se confunde com a sua própria história. Há quem acredite que a análise de Paz é idealista e niilista, o que revela o caráter conservador da crítica cultural do autor. O fato é que ele apresenta as tradições mexicanas e as diversas formas que esse povo busca para encontrar as suas singularidades. Paz frisa que o povo mexicano não tem autenticidade, pois sua história muitas vezes se confunde com a chegada dos europeus ao continente. Mas é importante lembrar que numa obra muito bonita como o livro O pensamento mestiço, de Serge Gruzinski, demonstra por várias vezes a mistura que se tornou a vida na América com o encontro entre os nativos e os europeus. Gruzinski acredita que os nativos muitas vezes eram obrigados a aceitar as imposições espanholas, mas estes conseguiam mecanismos de fuga. Os indígenas foram catequizados e aprenderam que deviam adorar a Nossa Senhora de Guadalupe e passaram a associá-la a deusas de sua cultura. Houve uma troca mútua, o que acontece comumente quando há um choque de culturas. O Prêmio Nobel mexicano, o poeta e ensaísta Octavio Paz (19141998), autor da obra El Laberinto de la soledad (1950). Mas tanto os indígenas quanto os próprios espanhóis assimilaram as novas culturas e transpuseram-nas para as suas vidas cotidianas¸ no seio de um movimento. Um bom exemplo deste hibridismo pode ser visto na visão criada em torno do culto a Guadalupe e com Maria. O culto a Guadalupe concentrava em si diferentes crenças: algumas vindas da tradição judaico-cristã e outras do politeísmo mexicano. A relação de Guadalupe com Maria, a mulher da revelação, tornou possível a associação com profecias atribuídas ao evangelista João. Uma delas via no culto mariano de Tepeyac o anúncio do fim dos tempos, ou pelo menos o fim da Igreja de Cristo, prestes a ser substituída pela igreja de Maria, a igreja dos últimos dias. Todorov, em seu livro A conquista da América, cita Duran, que incrivelmente fala que os indígenas também possuíam três divindades, assim como os europeus. Essas divindades eram a Santíssima Trindade, que tinha nomes diferentes, mas que queria dizer exatamente a mesma coisa. Ao meu ver, Paz trata da história mexicana de forma bastante negativa. Em outra obra clássica, Sor Juana Inés de La Cruz. Las trampas de la fe, o autor fala também da identidade mexicana. Aí ele demonstra duas versões para a história da Nova Espanha. Uma, que preserva a continuidade entre os astecas e o México atual; e outra, que é uma “metáfora biológica”, onde os germes estão no período préhispânico. A gestação, segundo o autor, ocorreu nos três séculos de domínio espanhol, tendo a independência marcado a maturidade da nação. Paz, em O labirinto da solidão, diz que o povo só passa a ter identidade com a Revolução Mexicana. Ele possui uma visão bastante pessimista, principalmente no capítulo IV, quando fala De los hijos de la Malinche. Neste capítulo ele considera que os europeus vêem o México como um país à margem da história universal, e que tudo que se encontra fora do centro (Europa) desta sociedade parece estranho ou impenetrável. Cita como exemplo os camponeses que são arcaicos, tanto na fala como nas vestimentas, destaca que eles não valorizam suas próprias vidas e ficam fascinados com a cidade. Outro ser que, para ele, está sempre à margem da sociedade, é a mulher. Segundo Paz, esta é, ainda, uma figura enigmática. Da mesma forma que é vista como um ser que traz a fecundidade e enseja a vida, também é vista como uma forma de destruição. Paz indaga: “¿Esconde la muerte o la vida? ¿En qué piensa?, ¿Piensa acaso?, ¿Siente de veras?, ¿Es igual a nosotros?” Interessante perceber como a mulher causa estranheza aos pensamentos masculinos. Luís Cernuda diz que a mulher sempre tem algo a revelar e afirma, ainda, que em Eva e Cipri (duas figuras arquetípicas) se concentra o mistério do coração do mundo. Para o poeta nicaragüense Rubén Darío, a mulher não é somente um instrumento do conhecimento do mundo em geral, mas ela proporciona ao homem, também, o conhecimento de si próprio. Mesmo que muitas vezes as mulheres sejam deixadas à margem, elas incitam a curiosidade masculina e, além disso, o homem é extremamente dependente da mulher. É essa a realidade que nos mostra o mito kamaiurá de Mavutsinim, o primeiro homem, que não foi citado por Octávio Paz, mas que demonstra, de forma bem clara, o sentimento, a necessidade do homem em relação à mulher. “Mavutsinim”, óleo sobre tela da artista plástica Gio, pertencente à coleção “Extrasensoriais”. Diz o citado mito que no principio só existia Mavutsinim. Ele morava sozinho, na região de Morená. Ele não tinha nem família nem parentes, possuía apenas o paraíso todo para si próprio. Em meio à sua solidão, usou seus poderes sobrenaturais, transformou uma concha da lagoa numa linda mulher e casou-se com ela. Algum tempo depois, nasceu seu filho e Mavutsinim, sem nada explicar, levou a criança à mata e nunca mais retornou de lá. A mãe, desolada, voltou para a lagoa de onde saiu e transformou-se novamente em concha. Apesar de ninguém ter visto a criança, os índios acreditam que foi do filho de Mavutsinim que se originaram todos os povos indígenas. Foi também ele que criou, de um tronco de árvore, a mãe dos gêmeos Sol-Kuát e LuaIaê. Esta lenda do tronco da árvore se assemelha ao mito chinês de Pan Gou (o Homem Primordial), segundo o qual, dessa origem surgiram Yin e Yan. Os gêmeos responsáveis por do mito vários kamaiurá, Sol-Kuát acontecimentos e Lua-Iaê importantes na foram vida da comunidade, antes de se tornarem astros. Este mito pode ser considerado cosmogônico, porquanto se refere à organização primeira do universo e, além disso, este relato é caracterizado por possuir uma estrutura triádica. Mavutsinim é um mito cosmogônico porque, além de falar da origem dos astros e dos povos indígenas, possui várias decorrências triádicas, como iremos mostrar mais adiante. O mito cosmogônico parte de um ponto de partida unitário e original, onde emergem dois princípios que se contrapõem, sendo um deles masculino e ativo e o outro feminino e passivo. No caso da mitologia judaico-cristã, este fator masculino e feminino nos remete a Adão e Eva. Nesta tradição não deixa de haver uma tríade integrada pelos seguintes fatores: o Senhor, que criou o homem, que por sua vez se sentia solitário e pediu ao Senhor que criasse a mulher. O Senhor cria a mulher da costela do homem e já, nesse momento, ela começa a dever ao homem, pois foi da costela arrancada dele que ela surge. Assim como nos mostra Paz, a mulher, no mito de criação ocidental, tem seus mistérios e pode ocasionar a destruição, já que foi por ela que os primeiros humanos comeram a maçã do pecado. A contraposição desses elementos secundários repete-se em todos os seres do cosmo, sendo que todos eles tendem à busca da unidade perdida. Analisando o mito ameríndio, vemos que a mulher que Mavutsinim fez aparecer era antes uma concha e a concha é um símbolo feminino de fertilidade. Assim como dissemos a cima, não só os espanhóis possuíam uma tríade, os nativos americanos também a possuíam e neste mito podemos também perceber tríades, como: Mavutsinim (pai), lagoa (primordial) e a concha. O historiador francês Serge Gruzinski, autor da obra O Pensamento Mestiço. Outra tríade pode ser vista assim: Mavutsinim, tronco, árvore; Mavutsinim, sol e lua. Uma última tríade: Mavutsinim, floresta e mãe concha. Podemos perceber que sempre a figura soberana de Mavutsinim está presente, ele é o pai. E os outros componentes da tríade são seus filhos ou foram criados por ele. A lagoa é o símbolo feminino, é dela que nasce, que brota a vida. Mavutsinim precisou da concha para vencer a solidão e para gerar seu filho. Assim como indaga Paz, a mulher é deixada à margem, mas causa curiosidade e é necessária. Assim como Deus precisou de Maria para conceber Jesus Cristo, o Salvador, Mavutsinim precisou transformar a concha em mulher para que com o concurso dela fosse concebido o seu filho. O que difere nesta história é o fim, pois Maria não se sente desamparada, Deus sempre esteve ao seu lado e, além disso, lhe deu José para ampará-la. No mito de Mavutsinim, a concha é deixada para trás e sem seu filho. O que a deixa desolada. Enquanto isso, Mavutsinim leva seu filho para a floresta assim como fez Abraão, que pegou seu filho Isaac para sacrificá-lo. Paz se mostra um apaixonado pelas mulheres e, mesmo sabendo que muitas vezes elas são deixadas à margem, elas terminam por se impor. Além de ele atinar para a curiosidade masculina em relação à mulher, se mostra um apaixonado por uma figura feminina muito importante para a história e memória mexicana, que foi Sor Juana Inês de la Cruz, que foi uma mulher que ficou órfã de pequena e que se tornou freira. Mas não exerceu a sua escolha como manda a clausura, escrevia contos eróticos e os seus retratos possuem geralmente como pano de fundo a sua biblioteca. Ela foi uma figura solitária tal qual o povo mexicano se sente, mas seu silêncio está povoado de vozes e sua vida rompeu com a mesmice colonial, segundo a análise que Paz realiza acerca da obra de Sor Juana. O escritor búlgaro Tzvetan Todorov, autor da conhecida obra intitulada A conquista da América, Podemos perceber que mito e realidade se confundem, tanto na obra de Paz, como no próprio mito Mavutsinim. O mito é uma explicação do atual por um acontecimento primordial, que transparece através de uma ligação, mediante o rito, entre o atual e o primordial. O mito tenta explicar de forma sagrada o que às vezes não tem explicação na forma humana, ele é uma referência para toda atividade. Mitos e realidades se misturaram neste trabalho. Além disso, pudemos perceber que nos mais distintos lugares existem mitos que são semelhantes. Ninguém sabia, no México olmeca, maia ou asteca, ou no Brasil pré-colombiano, antes da chegada dos conquistadores, da existência de Abraão, Isaac, Maria ou mesmo Jesus Cristo. Mas acreditamos neles assim como os povos indígenas acreditavam em seus múltiplos deuses como Mavutsinim. “Adão e Eva”, óleo sobre tela da artista plástica polonesa Tâmara Lempicka (1898-1980). BIBLIOGRAFIA GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. (Tradução de Rosa Freire d’ Aguiar). São Paulo: Companhia das letras, 2001. PAZ, Octavio. El laberinto de la soledad. 3º Edição. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992. PAZ, Octavio. Sor Juana Inés de la Cruz. Las trampas de la fe. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América a questão do outro. (Tradução de Beatriz Perrone Moisés). São Paulo: Martins Fontes, 1999. VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo (organizador). Seminário sobre a filosofia dos mitos indígenas – Apostila. (Introdução de R. VélezRodríguez). Juiz Americanos, 2004. de Fora: Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-