Para salvar a liberdade através da solidariedade

Propaganda
DANIEL VIEIRA SARAPU
Para salvar a liberdade através da solidariedade:
a justiça como real-liberdade-para-todos proposta por Philippe Van
Parijs
Dissertação apresentada ao Programa de pósgraduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre na Área de Concentração de Teoria do
Direito.
Orientador: Marcelo Campos Galuppo
BELO HORIZONTE
MAIO - 2007
1
Dissertação apresentada por Daniel Vieira Sarapu ao Programa de pós-graduação
em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais para obtenção do
título de mestre em Direito, intitulada “Para salvar a liberdade através da
solidariedade: a justiça como real-liberdade-para-todos proposta por Phillippe Van
Parijs”, e ______________________________ com nota _________ em data de
______ de ____________________ de 2007, perante banca composta pelos
professores:
_______________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Campos Galuppo
(orientador)
_______________________________________________
_______________________________________________
2
“You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will live as one”
John Lennon
3
RESUMO
O presente trabalho propõe-se a investigar como a liberdade é definida e realizada segundo as
teorias da justiça concebidas no século XX. A hipótese central de trabalho é que a liberdade
concebida durante a modernidade possui quatro dimensões ou facetas e que uma aparente
contradição entre liberdade e justiça que algumas dessas teorias sustentaram ocorre em função
de uma compreensão parcial do significado do conceito de liberdade. Por sua vez, uma teoria
da justiça que consiga elaborar um conceito de liberdade que articule essas quatro dimensões
conseguirá prover um critério de realização da justiça que implique também na realização da
liberdade. O fundamento teórico de elaboração da hipótese encontra-se na teoria de John
Rawls sobre a possibilidade de conjugação harmônica entre justiça e liberdade, por meio dos
princípios de justiça obtidos segundo os procedimentos metodológicos definidos pela justiça
como imparcialidade. No entanto, também a coerência e a consistência dos resultados práticos
dessa teoria serão investigados segundo seus próprios critérios, permitindo-se, assim, a sua
reformulação nos pontos em que as instituições sociais colocam justiça e liberdade em
choque. Essa específica discussão será realizada por Phillippe Van Parijs. Segundo a sua
teoria da real-liberdade-para-todos, serão fornecidos os critérios que permitem articular justiça
e liberdade de modo íntimo, tomando-se como idéia central o conceito de conjunto de
oportunidades (opportunity set) e sua distribuição segundo o critério leximin. Os
desdobramentos da aplicação de sua teoria implicarão a concepção de um arranjo institucional
que atribua uma Renda Básica Universal aos membros da sociedade, como mecanismo
privilegiado de realização da articulação entre liberdade e justiça, em comprovação, assim, à
hipótese de trabalho acima definida.
4
ABSTRACT
The following paper intends to research how freedom is defined and achieved according to
twentieth century’s theories of justice. The main hypothesis is that on modern times the
concept of freedom has four dimensions, or shapes, and that the apparent contradiction
between freedom and justice that some of those theories sustained only happens because of an
one-dimensional understanding of freedom’s meaning. One the other hand, a theory that is
able to develop a concept of freedom that fits those four dimensions together will provide a
criterion where the justice’s achievement means the freedom’s achievement. The hypothesis’
theoretical grounds can be found on John Rawls’ theory about the possibility of harmonic
teamwork between justice and freedom, through the two principles of justice found in the
justice as fairness. Nevertheless, also the coherence and the consistence of this theory’s
practice outcomes will be investigated, according to its own criterion, allowing, thus, its
restatement on those topics where institutional set leads to a conflict between freedom and
justice. This specific discussion will be done by Phillippe Van Parijs. According to his realfreedom-for-all theory, the criterion that allows us to put together freedom and justice in a
closer way will be provided by the idea of opportunity set and its distribution according to a
leximin fashion. The consequences of the application of such theory will lead to an
institutional set that implies an Universal Basic Income to all society’s members, as a special
way to put together freedom and justice in a coherent system, confirming, thus the hypothesis
of this paper.
5
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
.08
2 AS DIMENSÕES DA LIBERDADE MODERNA
2.1 Os sentidos do termo liberdade
2.2 A liberdade para os antigos
2.2.1 Aristóteles e a liberdade como eudaimonia
2.2.2 Epicuro e a descoberta da liberdade interior
2.2.3 O arbítrio de Santo Agostinho
2.3 A liberdade para os modernos
2.3.1 A fundação do sujeito moderno por René Descartes
2.3.2 Thomas Hobbes e a mecânica da liberdade
2.3.3 A inauguração do liberalismo por John Locke
2.3.4 Liberdade e autonomia segundo Rousseau
2.3.5 A vontade livre segundo Imannuel Kant
2.4 A polissemia da liberdade moderna
.13
.13
.20
.22
.23
.25
.30
.32
.35
.43
.50
.59
.71
3 ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS DE TEORIA DA JUSTIÇA
3.1 Quatro modos de se responder à mesma pergunta
3.2 O utilitarismo
3.2.1 Origens e caracterização do utilitarismo
3.2.2 O utilitarismo enquanto teoria da justiça
3.2.3 Utilitarismo, direitos e liberdades
3.3 O marxismo
3.3.1 Materialismo histórico, materialismo dialético e liberdade em Marx
3.3.2 O fim da exploração e da alienação no projeto comunista
3.3.3 Características de uma teoria da justiça de cunho marxista
3.4 O libertarianismo
3.4.1 Os argumentos em favor de uma defesa séria da liberdade ou por que
o Estado deve ser reduzido a uma dimensão mínima
3.4.2 Liberdade, direitos individuais e propriedade
3.4.3 Como o libertarianismo lida com a desigualdade?
3.5 O liberal-igualitarismo de John Rawls
3.5.1 O construtivismo kantiano e o construtivismo político na base do
pensamento de Rawls
3.5.2 O arcabouço teórico da teoria da justiça de Rawls
3.5.3 A crítica comunitarista
3.6 Sobre a relação entre liberdade e justiça nas teorias
contemporâneas
.75
.75
.78
.80
.87
.94
.96
.100
.108
.111
.114
.118
.127
.134
.138
.140
.156
.166
.173
6
4 A PROPOSTA DE UMA REAL-LIBERDADE-PARA-TODOS
4.1 Questionamentos iniciai
4.2 O que é a real-liberdade?
4.3 Com Rawls, contra Rawls
4.3.1 Os vários princípios da diferença
4.3.2 Os surfistas de Malibu
4.4 Uma proposta audaciosa
4.4.1 A Renda Básica Universal no Brasil
4.5 Sobre a relação entre justiça e liberdade, ou ainda, como distribuir
justiça distribuindo liberdade
.181
.181
.185
.191
.193
.201
.207
.217
5 CONCLUSÃO
.224
BIBLIOGRAFIA
.232
ANEXO A
.249
.220
7
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho propõe-se a investigar como a liberdade é definida e
realizada segundo as teorias da justiça concebidas no século XX. A hipótese central de
trabalho é que a liberdade concebida durante a modernidade possui quatro dimensões
ou facetas e que uma aparente contradição entre liberdade e justiça que algumas dessas
teorias sustentaram ocorre em função de uma compreensão parcial do significado do
conceito de liberdade. Por sua vez, uma teoria da justiça que consiga elaborar um
conceito de liberdade que articule essas quatro dimensões conseguirá prover um
critério de realização da justiça que implique também na realização da liberdade.
O fundamento teórico de elaboração da hipótese encontra-se na teoria de
John Rawls sobre a possibilidade de conjugação harmônica entre justiça e liberdade,
por meio dos princípios de justiça obtidos segundo os procedimentos metodológicos
definidos pela justiça como imparcialidade (2000, 2000b, 2002, 2003). No entanto,
também a coerência e a consistência dos resultados práticos dessa teoria serão
investigados segundo seus próprios critérios, permitindo-se, assim, a sua reformulação
nos pontos em que as instituições sociais colocam justiça e liberdade em choque.
Essa específica discussão será realizada por Phillippe Van Parijs (1995,
1997). Segundo a sua teoria da real-liberdade-para-todos, serão fornecidos os critérios
que permitem articular justiça e liberdade de modo íntimo, tomando-se como idéia
central o conceito de conjunto de oportunidades (opportunity set) e sua distribuição
segundo o critério leximin. Os desdobramentos da aplicação de sua teoria implicarão a
concepção de um arranjo institucional que atribua uma Renda Básica Universal aos
membros da sociedade, como mecanismo privilegiado de realização de articulação
8
entre liberdade e justiça, em comprovação, assim, à hipótese de trabalho acima
definida.
Assim, o segundo capítulo do trabalho se inicia com a apresentação do
debate sobre a questão da liberdade no pensamento político contemporâneo. Serão
delimitadas as fronteiras conceituais que definem, em primeiro lugar, como a
liberdade moderna se distingue da liberdade concebida na antiguidade, e, em seguida,
como o pensamento moderno fragmentou a liberdade em quatro distintas dimensões
ou facetas. Após, tratar-se-á do itinerário que vai da compreensão antiga à elaboração
moderna do conceito de liberdade.
O conceito de liberdade na antiguidade será explicitado em duas etapas
distintas, quais sejam a do pensamento filosófico grego e do pensamento filosóficoteológico cristão. Serão apresentadas as condições culturais que permitiram a reflexão
filosófica sobre a liberdade entre os gregos e, em seguida, como Aristóteles vinculou-a
ao conceito de eudaimonia ou felicidade por meio da contribuição à pólis. Na
seqüência, mostrar-se-á a reflexão de Epicuro relativa à descoberta da felicidade no
espaço interior do homem como modo individual de realização dessa liberdade,
indicando, assim, um deslocamento que será fundamental na posterior compreensão
moderna acerca da liberdade. O encerramento da concepção antiga de liberdade será
realizado por meio da exposição do pensamento de Santo Agostinho, que descobre no
livre-arbítrio o meio privilegiado de realização da liberdade, identificando, assim, a
liberdade ao exercício da vontade.
O segundo capítulo segue com a exposição dos eventos histórico-culturais
que levaram ao advento da modernidade, apresentando também como René Descartes
capta o significado dessa nova condição na elaboração filosófica do conceito de sujeito
capaz de conhecer e querer. A seqüência do texto mostra quais foram os principais
9
contornos que o pensamento moderno deu ao conceito de liberdade, tomando-se por
marco as reflexões de Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e
Immanuel Kant. Cada uma das quatro dimensões ou facetas do pensamento moderno
acerca da liberdade será associada à respectiva obra desses autores. Assim, o
mecanicismo da filosofia hobbesiana definirá a dimensão material da liberdade,
enquanto em Locke a preservação da individualidade natural contra a ação do Estado é
a marca da liberdade negativa. Já em Rousseau, verifica-se a dimensão positiva da
liberdade, com a vontade geral que restabelece a igualdade política entre os homens,
enquanto Kant fornece os fundamentos da dimensão formal da liberdade, como
ausência de constrangimentos exteriores ao exercício da vontade, pondo-se fim, desse
modo, à primeira etapa do trabalho.
O terceiro capítulo irá mostrar como as diferentes facetas da liberdade
serão privilegiadas em cada uma das teorias de justiça contemporâneas. Será
salientado como a consagração de apenas alguns dos aspectos da liberdade em
detrimento dos demais foi responsável pelas aparentes contradições entre justiça e
liberdade que o pensamento político sustentou ao longo dos séculos XIX e XX. Assim,
serão apresentados e discutidos o utilitarismo, o marxismo e o libertarianismo,
concepções de justiça que privilegiam apenas uma ou algumas das dimensões da
liberdade. Respectivamente, será demonstrado como o utilitarismo se vincula à
dimensão material da liberdade, o marxismo à dimensão positiva da liberdade e o
libertarianismo às dimensões formal e negativa da liberdade.
O capítulo se encerra com a apresentação do pensamento liberaligualitarista de John Rawls, que representa a primeira tentativa de firmar um
compromisso entre liberdade e justiça na teoria política contemporânea. Serão
demonstrados os fundamentos e os recursos metodológicos da justiça como eqüidade,
10
bem como as críticas que se levantaram contra ela, em especial por parte de autores
que se posicionam contra uma visão liberal da justiça, a denominada corrente
comunitarista.
O último capítulo se destina a testar a plausibilidade da teoria de Rawls
para fornecer o critério mais adequado da relação entre justiça e liberdade no quadro
das sociedades contemporâneas. Serão apontados os pontos em que tal teoria é
vulnerável em relação a esse compromisso, por deixar de empregar todos os recursos
que lhe estão disponíveis no fornecimento de um critério de justiça que esteja em
conformidade com juízos morais refletidos. O parâmetro dos questionamentos será
definido pela real-liberdade-para-todos, ou real-libertarianismo, tal como defendida
por Phillippe Van Parijs, e implicará tanto numa revisão do caráter ambíguo do
princípio da diferença, bem como no reconhecimento de que a atribuição de uma
Renda Básica Universal afigura-se como mecanismo institucional indispensável para
uma realização mais íntima do compromisso entre justiça e liberdade nas sociedades
contemporâneas.
O capítulo será finalizado com a apresentação da Renda Básica Universal,
segundo defendida por Phillippe Van Parijs, em seus aspectos teóricos e práticos e
com uma exposição da fundamentação política e jurídica da proposta de
implementação dessa medida no Brasil, em especial a partir do trabalho do economista
e Senador da República Eduardo Suplicy acerca do tema.
Após esse percurso, será possível reunir fundamentos para se retornar à
discussão levantada pela hipótese de trabalho, acerca da possibilidade de articulação
entre justiça e liberdade no pensamento contemporâneo, e concluir pela possibilidade
de tal compromisso, condicionado, no entanto, a um engajamento das instituições
sociais em promover a atribuição da Renda Básica Universal aos seus cidadãos como
11
forma de se qualificar como justas as desigualdades sociais existentes nas sociedades
atuais.
12
2 AS DIMENSÕES DA LIBERDADE MODERNA
2.1 Sentidos do termo liberdade
John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, na década
de 1960, produziram um repertório de letras musicais que encantaram o mundo. Seus
versos expressavam os anseios de uma geração que buscava “liberdade”1. Era o auge
da “Guerra Fria” e o mundo convivia com duas únicas opções político-econômicas:
permitir a presença do modo de produção capitalista, submetido, todavia, a uma forte
disciplina estatal; ou encampar a aventura de uma revolução de cunho socialista cuja
conseqüência seria a transferência da titularidade dos meios de produção para o
Estado.
1
A título de exemplo, podem ser lembradas as canções “Paperback writer”, “Taxman”, “She´s leaving home”.
Em “Paperback writer” (Escritor de folhetim) há a alusão ao fato de que uma boa remuneração, a estabilidade ou
o prestígio não superam o desejo de realização pessoal na escolha da profissão de cada um: ‘It's the dirty story of
a dirty man / And his clinging wife doesn't understand. / His son is working for the Daily Mail, / It's a steady job
but he wants to be a paperback writer’ (‘É uma história imunda de um ser imundo / E sua esposa pegajosa que
não compreende / Sua filho trabalha para o Correio Diário, / É um emprego firme mas ele quer ser um escritor de
folhetins’). “Taxman” (O Fiscal) captura, sob linguagem poética, como a arrecadação fiscal do Estado se faz
presente em todas as dimensões da vida das pessoas: ‘Let me tell you how it will be; / There's one for you,
nineteen for me. / 'Cause I’m the taxman, / Yeah, I’m the taxman. / Should five per cent appear too small, / Be
thankful I don't take it all. / 'Cause I’m the taxman, / Yeah, I’m the taxman. / if you drive a car - I’ll tax the
street; / if you try to sit - I’ll tax your seat; /if you get too cold - I’ll tax the heat; / if you take a walk - I'll tax
your feet.’ (‘Deixe-me te dizer como vai ser / É um para você, dezenove para mim / Porque eu sou o fiscal /
Yeah o fiscal / Se cinco por cento parece pouco, / fique grato que eu não levo tudo / Porque eu sou o fiscal /
Yeah o fiscal / se você dirige um carro - eu vou confiscar a rua / se você tentar sentar - eu vou confiscar o
assento / se você ficar com frio – eu vou confiscar o calor / se você for caminhar – eu vou confiscar seus pés’).
“She is leaving home” (Ela está indo embora de casa) retrata a situação dos jovens que não suportam a rigidez
dos padrões morais vivida no ambiente familiar e decidem fugir de casa. “She (we gave her most of our lives) / is
leaving (sacrificed most of our lives) / home (we gave her everything money could buy) / She's leaving home
after living alone for / so many years (bye bye) (…) She (what did we do that was wrong) / is having (we didn't
know it was wrong) / fun (fun is the one thing that money can't buy) / Something inside that was always denied
for / so many years (bye bye) / She's leaving home (bye bye) (‘Ela (nós dedicamos toda nossa vida a ela) / está
indo embora (sacrificamos toda nossa vida) / de casa (nós demos a ela tudo o que o dinheiro poderia comprar) /
Ela está indo embora de casa após viver sozinha por / tantos anos (tchau tchau) (…) Ela (o que nós fizemos de
errado) / está (nós não sabíamos que estávamos errados) / se divertindo (diversão é uma coisa que o dinheiro não
pode comprar) / Algo dentro dela que foi sempre negado por / tantos anos (tchau tchau) / Ela está indo embora
de casa (tchau tchau)’)
13
Cada uma a seu modo, as duas alternativas representavam concepções de
justiça que se realizariam por meio de uma intensa intervenção do Estado na economia
e, em especial, na vida dos indivíduos. Seja para proporcionar o maior nível de bemestar possível à população, seja para manter as condições materiais de todos os
indivíduos em níveis equivalentes, as exigências da justiça implicavam um grande
sacrifício das liberdades individuais. Nesse contexto, o quarteto de Liverpool
encontrava a inspiração para suas canções: a busca de um mundo em que fosse
possível a cada pessoa levar a sua vida como bem entendesse, sem que seu destino
fosse inteiramente determinado por pressões da coletividade ou do Estado.
Após os percalços do Estado de Bem-Estar Social2 e o colapso do
Socialismo Real3, um arranjo político e econômico contrário às formas de dirigismo e
2
O Estado de Bem-Estar social aparece na literatura sob diversas nomenclaturas, tais como Estado-providência,
Welfare State, Estado assistencialista, etc... Todas elas se referem a uma proposta de configuração para o Estado
em que a tarefa de recolher, administrar e distribuir os recursos produzidos pela sociedade, visando a crescente
realização de uma justiça material entre os cidadãos, ganha destaque. Para tanto, o Estado de Bem-Estar Social
conterá as seguintes características: 1) enfoque na realização direta pelo Estado de funções consideradas
indispensáveis para a garantia de uma justiça social, tais como saúde, educação, habitação, saneamento básico,
transportes, energia e telecomunicações, etc...; 2) grande carga tributária, a fim de que haja um aporte de
massivos recursos para a realização das políticas sociais; 3) forte intervenção do Estado na economia, de modo a
controlar os possíveis efeitos negativos decorrentes das oscilações cíclicas produzidas pelo sistema de livre
mercado; 4) crescimento da burocracia e da estrutura do Estado, pois os programas sociais exigem um maior
número de funcionários e de órgãos no desempenho das funções assumidas; 5) atenuação dos conflitos políticos
entre as classes sociais. O declínio do Estado Social decorre de um esgotamento desse modelo, seja no que diz
respeito ao seu cabimento, seja no que tange à sua viabilidade econômica. De um lado, tem-se o reconhecimento
generalizado de que a sociedade de massas que acompanha o Estado Social é responsável por um processo de
aniquilamento da subjetividade; de outro, verificou-se que a manutenção do aparato Estatal responsável por
financiar as propostas do Estado Social não era sustentável economicamente, levando os diversos Estados
nacionais a graves crises nessa esfera. Para uma melhor caracterização do Estado Social sua ascensão e declínio
conferir Santos (1994, 2000), Offe (1994), Hobsbawn (1996).
3
O Socialismo Real foi o sistema político introduzido nos países que passaram por revoluções de cunho político
socialista cujos preceitos se inspiram na obra de Marx, continuada por Lênin, mas que de fato se adaptaram às
contingências históricas e culturais próprias do momento revolucionário. Suas principais características são: 1) a
ascensão de regimes políticos autoritários que exerciam a liderança política e determinavam os rumos
econômicos do Estado; 2) a planificação econômica a partir de um modelo centralizado; 3)a transferência da
titularidade dos bens de produção para o Estado; 4)o isolamento político e econômico em relação aos países que
adotavam economia de mercado. As experiências históricas ocorridas no século XX de Estados que adotaram o
sistema político-econômico socialista têm início com a Revolução Russa de 1917. O sucesso do golpe político e,
posteriormente, dos resultados econômicos e sociais imediatos obtidos nas primeiras décadas de governo,
inspirou diversas outras movimentações de cunho socialista ao redor do mundo. Durante e após a segunda guerra
mundial, revoluções socialistas eclodiram em todos os continentes, em especial Leste Europeu, Ásia, África e
América Latina, constituindo-se um verdadeiro bloco de países socialistas. Entretanto, a incapacidade das
economias planificadas fazerem frente ao desenvolvimento econômico e tecnológico dos países de sistema de
livre mercado, bem como a permanência ad eternum da supressão das liberdades e garantias individuais em
nome do ‘sucesso’ da Revolução face ao ‘inimigo’ capitalista, tornaram a sustentação desse modelo inviável. Ao
14
de ingerência do Estado no mercado e na esfera individual ganhou força durante os
anos 1980 e 1990. Nesse período, os países industrializados – agora adotando cânones
liberais para seus sistemas político-econômicos – obtiveram altos índices de
crescimento econômico, proporcionados por intenso desenvolvimento tecnológico e
por abundância de mão-de-obra decorrente dos movimentos migratórios. No entanto, o
crescimento da produção ocorreu sem um respectivo aumento na oferta de emprego,
gerando maior concorrência no mercado de trabalho. Isso trouxe o denominado
desemprego estrutural4 aos países desenvolvidos (OFFE, 1994).
Em contrapartida, os orçamentos dos Estados deixaram cada vez mais de
contar com recursos destinados a serviços e benefícios públicos ligados à proteção do
emprego e à assistência social para a população (OFFE, 1994). Assim, ao final do
século XX e início do século XXI, mesmo os países ricos vieram a assistir ao
reaparecimento da miséria em suas sociedades (SANTOS, 1994; HOBSBAWN,
1996).
Apesar dessas conseqüências, a fonte que inspirou e permitiu a adoção
generalizada de um capitalismo radical no mundo industrializado é a mesma que se
encontra nas letras dos Beatles: a afirmação de que o homem, em sua esfera
individual, deve ter garantido o direito de exercer sua vontade livremente, segundo
aquilo que ele entenda ser o melhor para si. Em virtude dos excessos da presença
final do século XX, alguns eventos marcaram a falência do sistema socialista: 1) o fim do regime socialista na
Alemanha Oriental e a reunificação dos dois países separados pelo ‘Muro de Berlim’; 2) A ascensão do líder
Mikhail Gorbachev e a instituição das políticas da glasnost e da perestroika, que representaram o fim do
isolamento do bloco comunista em relação aos países capitalistas. A abertura ao intercâmbio com o mundo
capitalista expôs as deficiências do sistema socialista soviético e, poucos anos depois, assistiu-se o
esfacelamento da U.R.S.S.; 3) A adoção de práticas e políticas ligadas à abertura de mercado para o investimento
externo, de caráter notadamente capitalista, por parte da China. Ao promover reformas de incentivo ao livre
comércio, a China quebrou os cânones ortodoxos do socialismo científico, ao ponto de desfigurar seu sistema
como tal. A história Socialismo Real no século XX encontra-se mais bem detalhada em Hobsbawn (1996).
4
O desemprego estrutural ou estruturado caracteriza-se quando o desenvolvimento de inovações tecnológicas
permite que haja a manutenção ou a ampliação da taxa de crescimento econômico sem que haja a conseqüente
absorção dessa população em empregos formais, face à possibilidade de eliminação de tarefas outrora realizadas
por homens e agora desempenhadas por máquinas.
15
coletiva na vida individual, busca-se agora a defesa da dimensão privada que se perdeu
nos anos anteriores. E, assim, a liberdade de cada um passou a ser uma barreira que o
Estado não mais poderia transpor sem justificativas, tornando-se condição da justiça
por meio de um sistema de direitos chamados “fundamentais” ou “individuais”5.
(BOBBIO, 1992)
Ao se verificar qual o papel assumido pelo Estado em cada um desses
sistemas políticos, bem como os efeitos sociais correspondentes a cada um dos modos
de produção econômicos predominantes, os contornos do que se tornou a “liberdade
liberal” passaram a ser questionados. Pois, se a “liberdade” para cada um escolher os
rumos e caminhos de sua vida implicaria a adoção de um capitalismo ortodoxo e
radical, incapaz de garantir a todos (inclusive à maioria) os meios necessários à
expressão dessa vontade, surgiu a pergunta: que liberdade é essa que permite ao
homem tudo fazer, mas que o priva de toda e qualquer possibilidade de dar vazão às
suas vontades por não lhe assegurar as condições materiais mínimas de existência
(VAN PARIJS, 1995)? Seria a liberdade incompatível, portanto, com a justiça?
Philippe Van Parijs (1993, 1995, 1996, 1997, 2003) propõe-se a analisar o
que gira em torno dessas perguntas, bem como das relações entre as matrizes de teoria
da justiça e as respectivas concepções de liberdade. Na introdução de um de seus mais
importantes trabalhos – What (if anything can) justify capitalism (1995) – assim
expressa essa preocupação:
Freedom is of a paramount importance: we want – or at any rate many of us want –
our society to be a free society. But can, or even must such a society be a capitalist
5
A noção de direitos “fundamentais” ou “individuais” remonta ao jusnaturalismo iluminista do século XVIII. A
crença na existência e no valor filosófico da existência desses direitos foi abalada durante o século XIX e parte
do século XX por força da afirmação da metodologia jurídica positivista, da crítica utilitarista e da crítica
marxista. Contudo, após a segunda guerra mundial, a literatura filosófica confere a esse tema amplo destaque nas
discussões relativas à fundamentação da moral e do direito.
16
society? Or can, or even must, such a society be a socialist society6 (tradução nossa)
(VAN PARIJS, 1995, p.5)
Com o exemplo da “liberdade de coçar o nariz”7, Van Parijs (1995)
esclarece as condições fundamentais para se ter uma sociedade livre. Segundo o autor,
para que haja uma sociedade livre, as ações que dizem respeito à individualidade de
cada um não podem estar submetidas a decisões tomadas pela coletividade ou pela
comunidade
política,
mesmo
que
essas
regras
tenham
sido
produzidas
democraticamente. Uma sociedade em que os rumos da vida privada dos indivíduos
decorrem de escolhas da coletividade é o extremo oposto de uma sociedade livre. Isso
porque, em uma concepção coletivista, as vontades pessoais seriam alienadas e
entregues ao ente político.
Portanto, um primeiro requisito para que se tenha uma sociedade livre é a
condição de que cada um dos indivíduos tenha o poder de decidir sobre os rumos de
sua própria vida sem que venha a sofrer coerções externas da sociedade – condição
denominada por Van Parijs (1995) “propriedade-de-si”. Desse modo, uma sociedade
livre exige que cada uma das individualidades que a compõem deva ter garantido um
campo de ação em que possa exercer livremente sua autonomia individual.
Entretanto, esse sentido atribuído à liberdade é fruto de uma particular
concepção de justiça que surge com a idade moderna (VAZ, 1991; VAN PARIJS,
6
“Liberdade é de suma importância: nós queremos – ou em algum nível, muitos de nós queremos – que nossa
sociedade seja uma sociedade livre. Mas tal sociedade pode, ou mesmo deve, ser uma sociedade capitalista? Ou
tal sociedade pode, ou mesmo deve, ser uma sociedade socialista?”
7
“In situation A, each of us can decide for herself whether to scratch her nose. In situation B, we decide
together, in perfectly democratic fashion, whether nose-scratching is permissible. Assuming (plausibly) that
variations in nose size can be deemed irrelevant, it can be said that in both situations the weight of each person
in decision-making is identical. But surely the freedom to scratch (or not to scratch) one’s nose is not. Each of us
enjoys this freedom in situation A. But there is no such freedom in situation B, where scratching is subjected to
collective approval.” (VAN PARIJS, 1995, p.8) (“Na situação A, cada um de nós decide por si próprio se coça
seu nariz. Na situação B, nós decidimos em conjunto, de modo perfeitamente democrático, se o ato de coçar o
nariz é permitido. Assumindo (plausivelmente) que variações no tamanho dos narizes podem ser consideradas
irrelevantes, pode-se dizer que em ambas situações o peso de cada pessoa no processo de tomada de decisão é
idêntico. Mas certamente a liberdade de coçar (ou não coçar) seu nariz não o é. Cada um de nós desfruta dessa
liberdade na situação A. Mas não há tal liberdade na situação B, em que o coçar é submetido à aprovação
coletiva.” - tradução nossa)
17
1995; GALUPPO, 2001; FARAGO, 2005). Farago (2005) mostra que não foi sempre
que os indivíduos serviram de medida para verificação da liberdade:
A preocupação fundamental dos Antigos era saber qual é o desejável supremo, o
Soberano Bem que cada um poderia desejar para si mesmo a fim de atingir a
eudaïmonia, a felicidade, a plenitude da realização. O agathon grego e o bonum
latino estão no âmago da ética antiga e medieval, bem como a filosofia política está
estreitamente ligada a ela. Os Modernos, em compensação, realizaram um
deslocamento da questão do bem em direção à questão do justo. Pode-se dizer que a
afirmação da prioridade de um sobre o outro traça uma linha divisória entre os
pensamentos morais e políticos dos Antigos e dos Modernos. Os Modernos não se
colocam mais a questão de saber como devo agir para ser, eu, feliz, para atingir o
meu bem, mas a de saber quais são as condições que tornam possível, em geral, a
busca da felicidade pessoal. O deslocamento foi feito abandonando-se as
concepções substanciais do bem para voltar a atenção às noções de autonomia
moral e de liberdade individual. Esta nova problemática da questão moral envolve
uma novidade radical em relação à Antigüidade, a saber, uma distinção entre a
moral pessoal e a esfera do político. (FARAGO, 2004, p.233)
A história do conceito moderno de liberdade desenvolve-se, portanto, em
íntima relação com o pensamento genericamente batizado de “liberal”8. O pensamento
de Van Parijs (1995, 1996, 1997) filia-se explicitamente a essa tradição –
principalmente por sustentar a propriedade-de-si como uma das condições essenciais
para a realização da justiça. No entanto, ainda segundo o autor, essa liberdade que é
definida e apresentada pela concepção liberal não é uma condição suficiente, pois
sobre ela paira o questionamento de não ser justa. Assim, a investigação que se
desenrola, neste primeiro capítulo, busca apresentar como a questão da liberdade – tal
como entendida pelo liberalismo – coloca-se no discurso filosófico, desde a trajetória
que levou a seu surgimento até suas principais formulações no período moderno. Esse
resgate permitirá que sejam apresentadas as quatro diferentes facetas da liberdade
assumidas por esse conceito – formal9, material10, negativa11 e positiva12 – assim como
8
Em linhas gerais, o liberalismo aduz que não há uma concepção prévia ou superior do que seja uma “vida boa”,
devendo-se, portanto, adotar uma postura de igual respeito em relação a todas as crenças e escolhas pessoais dos
indivíduos (RAWLS, 2000).
9
A liberdade formal está ligada à garantia do exercício autônomo da vontade, sem que haja uma interferência
externa direta na manifestação da subjetividade de cada um.
18
os dois conflitos a que os respectivos antagonismos dão origem: liberdade formal x
material e liberdade negativa x liberdade positiva.
Assim, neste primeiro capítulo serão trilhados os caminhos que criaram as
condições para se compreender a liberdade moderna – como autonomia do indivíduo –
em substituição ao modo antigo de se conceber a liberdade – como soberania do ente
coletivo. Será mostrado também de que modo a liberdade moderna pôde ser
compreendida tanto por meio da capacidade formal de exercício da vontade (liberdade
formal), quanto como um poder de ter as condições, sejam meios materiais ou
oportunidades, de se concretizar o que se quer.
Para realizar a primeira etapa, serão traçadas as marcas que definem a
liberdade para os antigos, tal como formuladas pelo pensamento grego clássico; em
seguida, será analisada a concepção da escola epicurista que identifica liberdade com
uma capacidade de ação interior que leva à felicidade; no mundo cristão, será
abordada a filosofia de Agostinho e a relação estabelecida entre vontade, arbítrio e
liberdade na ação interior do homem, gerando o embrião do pensamento moderno
sobre a questão da autonomia. Em seguida, serão apresentados os pensamentos que,
em linhas gerais, ilustram e consolidam as facetas modernas da liberdade: o
surgimento do individualismo em Descartes; a contribuição de Thomas Hobbes para a
percepção da dimensão material da liberdade; a construção, por John Locke, da
dimensão privada da liberdade como espaço privilegiado de seu exercício; por fim, a
formulação da noção de liberdade como autonomia, segundo as concepções de
Rousseau e Kant.
10
A liberdade material consiste em ter acesso a meios que possibilitam que o exercício da vontade não seja
constrangido pelas circunstâncias concretas.
11
Liberdade negativa consiste em não estar sujeito à interferência da coletividade quando da definição dos
rumos a serem tomados pelo indivíduo em sua vida privada.
12
Liberdade positiva consiste em realizar a liberdade por meio da participação ativa na definição dos rumos
tomados pela coletividade.
19
2.2 A liberdade para os antigos
Chauí (1992) entende que a compreensão da liberdade para os antigos
esbarrava em um horizonte pré-estabelecido pela religião. Havia a crença de que o
homem e o mundo encontravam-se inseridos em um universo (kosmos) racionalmente
ordenado segundo um princípio que lhe proporcionaria unidade. Manter essa unidade
dependeria da capacidade de compreensão e adequação à ordem física e religiosa. A
medida (métron) da liberdade para o homem surgia da resignação à pretensão de
colocar-se em pé de igualdade com os deuses, evitando-se, assim, romper a unidade do
kosmos.
Bornheim (2002), em consonância com Chauí (1992), sustenta que quanto
mais se retrocede em direção à presença do elemento religioso no desenvolvimento
cultural humano, tanto menos ocupa a liberdade espaço nas considerações e reflexões
do homem. Isso porque, a liberdade seria prerrogativa da divindade, já que esta seria a
força imbuída do exclusivo poder de criação da ordem do mundo. O homem, enquanto
criatura e parte integrante da ordem divina, não partilharia desse atributo próprio da
entidade sobrenatural. Seu papel seria o de portar-se como um súdito zeloso do
equilíbrio divino, segundo as prescrições religiosas destinadas à conservação dessa
ordem. Daí que a religião atuava como princípio de unidade desse kosmos harmônico
por meio de prescrições que se confundiam com as do Direito e da Moral.
É sob esse prisma que tem lugar a existência do poder despótico entre os
povos primitivos (CHAUÍ, 1992). Os déspotas eram os indivíduos que encarnavam a
20
divindade em sua pessoa. Sua vontade era tomada como a própria manifestação do Ser
Supremo, o que lhes conferia uma prerrogativa de poder absoluto em relação a seus
súditos. A submissão à ordem religiosa e a convicção do caráter sobrenatural do chefe
espiritual e político encerram todos os homem em uma condição de sujeição ao
arbítrio dessa autoridade superior.
Ainda segundo Chauí (1992), a primeira manifestação histórica
sistematicamente organizada de manifestação da liberdade ocorre com os gregos, em
Atenas. A condição de liberdade é construída justamente com base na oposição ao
estado de sujeição a um arbítrio superior. Enquanto os demais são dependentes do
arbítrio do pai de família (despotês), os homens livres são aqueles que se reconhecem
como iguais na formação do corpo da cidade (pólis) e, portanto, não se submetem ao
arbítrio do déspota.
O pai de família, que permanece como líder espiritual e religioso, ainda
exerce a autoridade despótica em seu domínio, o oíkos. Na esfera privada, as relações
não são de liberdade, mas de sujeição (os familiares, os menores e os escravos).
No entanto, na esfera pública, no âmbito das relações travadas na pólis,
onde os indivíduos se reconhecem como iguais, a autoridade arbitrária desaparece,
pois não há relação de sujeição de um homem em relação a outro (dominus). Em seu
lugar, terão vez normas que estabelecem instituições políticas comuns a todos os que
são iguais. A liberdade nasce, portanto, como uma prerrogativa da cidadania, aquela
que é a dimensão política do homem. Nas palavras de Chauí:
A principal característica do déspota encontra-se no fato de ser ele o autor único e
exclusivo das normas e das regras que definem a vida familiar, isto é, o espaço
privado. Seu poder, escreve Aristóteles, é arbitrário, pois decorre exclusivamente de
sua vontade, de seu prazer, de suas necessidades. Os primeiros reis, lembra
Aristóteles, porque eram simples chefes de clãs e tribos ou conjunto de famílias,
eram déspotas, assim como são déspotas os governantes bárbaros do Oriente, mas
onde houver cidade e política, portanto, onde houver leis e cidadãos livres não pode
haver déspota. O déspota (o despotês; o pater familias) só domina os dependentes e
21
não os livres. Em outras palavras, onde houver espaço público e vida pública, onde
houver politéia, não pode haver despotéia, não se pode manter o princípio do poder
despótico, que pertence ao espaço privado e à vida privada. (grifos do autor)
(CHAUÍ, 1992, p. 357)
2.2.1 – Aristóteles e a liberdade como eudaimonia
Preservar a estrutura e a ordem política representa a conservação da própria
condição de liberdade do homem. Daí que as preocupações de filósofos como
Sócrates, Platão e Aristóteles ligavam-se ao desenvolvimento das virtudes do homem
enquanto cidadãos da pólis (GUSTIN, 1999).
O conceito aristotélico de eudaimonia expressa como se realiza a
concepção antiga de liberdade pela primazia do coletivo sobre o individual.
Geralmente traduzida por “felicidade”, a eudaimonia é a retribuição que cada um
obtinha por contribuir para o bem da pólis (REALE, 1992). Essa contribuição ocorria
quando a ação do homem representava um sacrifício em prol da auto-suficiência
(autarkeia) da vida coletiva. Diz Aristóteles que, como essa ação representava uma
finalidade em si, ela seria o bem supremo que um homem poderia alcançar:
Considerado sob o ângulo da auto-suficiência, o raciocínio parece chegar ao
mesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como auto-suficiente. Ora,
por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para um homem só, para
aquele que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa, e
em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu para a
cidadania. (ARISTÓTELES, 1991, p. 82)
As ações que traziam prazer ou honrarias individuais seriam bens de valor
inferior, já que não eram finalidades em si mesmas, mas somente meios para se
alcançar outra finalidade. Logo, como a finalidade da ação humana (telos) era
proporcionar o vigor da Cidade-Estado, e era pelo exercício da cidadania que se
22
obtinha o supremo bem do homem, não houve o desenvolvimento do indivíduo entre
os gregos do período clássico. Desse modo, a concepção da liberdade se restringia à
liberdade do ente político, sendo virtuosa a ação humana que se prestava a contribuir
para a coletividade.
2.2.2 – Epicuro e a descoberta da felicidade interior
Com as escolas filosóficas do período helenístico terão lugar as primeiras
concepções de liberdade relacionadas à felicidade individual (PESSANHA, 1994;
REALE, 1992). Sobre o período em que floresceu a filosofia de Epicuro, José
Américo Motta Pessanha relata:
A Grécia de Epicuro (...) pertence ao período helenístico, inserida, desde a derrota
de Queronéia, no Império macedônio. Primeiro Filipe, depois seu filho Alexandre
(mais tarde os romanos) encerram a experiência política e cultural da Grécia
Clássica, marcada pelo senso de liberdade manifestado de múltiplas formas, mas
evidenciado sobretudo pela invenção da democracia. A dominação macedônia
impõe um quadro totalmente diferente: As poléis não decidem mais de seus destinos,
passando a integrar vasto império onde o poder está centralizado e no qual
convivem, subjugados, com outros povos, com outras tradições, outras formas de
vida, pensamento, religião. Fatalmente afrouxam-se as fronteiras culturais:
dominados pela Macedônia, gregos e “bárbaros”, helenos e orientais são forçados
a mais estreito contato e se interinfluenciam mais intensamente. (PESSANHA,
1994, p. 63-64)
A ausência da esfera política, que era responsável por fornecer a dimensão
da liberdade na Grécia do período Clássico, forçou o homem do período helenístico a
realizar um movimento em direção ao seu interior. A batalha pela busca da liberdade
passou a ser travada em outro campo, conforme mostra Reale (1992):
A ruptura da identificação entre homem e cidadão, além do aspecto
prioritariamente negativo apresentado, teve também um aspecto positivo: o homem,
não podendo mais pedir à Cidade, ao ethos do Estado e aos seus valores os
conteúdos da própria vida, foi coagido, pela força dos acontecimentos, a fechar-se
em si mesmo, a buscar no seu íntimo novas energias, novos conteúdos morais e
23
novas metas pelas quais viver. Assim, o homem descobriu-se indivíduo. [...] A
distinção entre o indivíduo e o cidadão, a atenuação e, em certos casos, o
desaparecimento do sentido cívico acarretaram, em filosofia, como os estudiosos
bem notaram, a radical distinção e a nítida separação entre ética e política. (grifos
do autor) (REALE, 1992, p. 7-8)
Todavia, o movimento em direção à interioridade do período helenístico
não representou um movimento de emancipação em relação à ordem cósmica que rege
o universo. Muito pelo contrário, a elaboração filosófica da escola epicurista, por
exemplo, visava restabelecer a harmonia entre o homem e a situação cultural de seu
tempo (PESSANHA, 1994). A física por ela desenvolvida salienta bem esse aspecto.
Epicuro resgata o atomismo de Demócrito. Mas segundo o epicurismo, os corpos não
estão sujeitos a uma queda inexorável, fatalista. Os átomos possuem o atributo do
clinamen, que é a possibilidade de desvio do movimento de contínua queda. Assim, a
physis de Epicuro tinha uma dimensão ética, levando Reale (1992) a ressaltar a
seguinte característica das filosofias do período helenístico:
A filosofia das escolas helenísticas quis essencialmente ser, e foi, efetivamente, uma
filosofia da vida, uma filosofia que queria ensinar a arte de viver, isto é, não uma
sophia em sentido aristotélico, mas uma phrónesis, uma sabedoria, um
conhecimento finalizado à atividade moral prática [...] Uma atenta análise de
estrutura das posições das várias escolas, como vimos amplamente, revela de fato
um predomínio da ética sobre a ontologia e sobre a lógica, não só de caráter
quantitativo, mas também qualitativo. Quantitativamente a ética predomina sobre a
física e sobre a lógica, porque constitui o objeto de maior interesse, enquanto,
qualitativamente, a ética predomina pela novidade, pela liberdade com relação às
próprias premissas lógico-ontológicas e pela genialidade. (grifos do autor)
(REALE, 1992, p. 472)
Como o espaço da pólis deixou de ser o lugar privilegiado de realização da
eudaimonia, os seguidores da doutrina epicurista – a comunidade dos amigos – se
recolheram ao espaço do “Jardim”. No Jardim (Kepos), a areté não é mais o fim da
ação do homem. Ela é substituída pela busca da philia, a verdadeira amizade entre os
homens. Com isso, a eudaimonia não se realiza mais com a pujança da polis
(autarkeia), como queria Aristóteles, mas é encontrada na comunidade dos amigos,
24
que se basta a si mesma: uma vez que no Jardim são proporcionadas as condições que
trazem a felicidade a cada uma das almas, o homem pode (e deve) abandonar as
turbulências da vida política para encontrar a sua harmonia na interioridade.
As escolas do período helenístico forneceram um novo elemento para a
concepção da liberdade: a partir delas, esta será pensada como uma capacidade de
ação que deixa de ser verificada nas condições da pólis e passa a ser investigada por
meio da felicidade do indivíduo, entendida como autarquia ou auto-suficiência. No
espaço da interioridade o homem estará habilitado a alcançar a sua realização pessoal
sob a forma de sua felicidade autárquica (PESSANHA, 1994).
2.2.3 – O arbítrio de Santo Agostinho
Apesar da significativa mudança cultural em relação ao mundo grego
ocorrida com a difusão do cristianismo, especialmente no que concerne à consolidação
do monoteísmo, do universalismo da religião cristã e da doutrina da salvação (soter)
(TILLICH, 1988), não há uma ruptura radical no modo como se estrutura a ação
humana nos dois respectivos períodos. Segundo Galuppo (2001), o traço que marca
essa unidade é a “[...] presença de um centro de toda a ação humana, fosse esse centro
a polis, fosse a Igreja [...]” (GALUPPO, 2001, p.195, grifos do autor). Prossegue o
autor:
A idéia de centro implicava, necessariamente, a idéia de uniformidade, de
identidade. A referência única oferecida pela pólis ou pela Igreja para a ação de
todos permitia uma lógica de organização social que foi chamada, por Weber e por
Tönnies, de comunidade: ao contrário da sociedade, essa essencialmente moderna,
a comunidade pressupõe um único projeto coletivo que aglutina e dá sentido à
existência humana. (GALUPPO, 2001, p.195)
25
Assim, ainda que a reflexão sobre a liberdade humana ganhe destaque no
pensamento cristão, o produto da elaboração filosófica sobre a liberdade ainda contará
com a forte presença dos pressupostos religiosos da concepção de mundo desse
período, como analisa Bornheim (2002):
Realmente, nas épocas em que vigia a chamada filosofia cristã, as discussões sobre
o livre-arbítrio se faziam extensas e sabiam fomentar as mais diversas doutrinas.
Mas, a rigor, para a liberdade pouco restava nessas elocubrações, apenas franjas,
em nada prejudiciais à prepotência divina; o grande tema, nesse passado, nunca
era e nem poderia ter sido a liberdade, visto que tudo se concentrava nas sapiências
e premonições daquela predestinação. E no caso, para que bem se perceba a
densidade do problema, nada melhor do que ligá-lo às malhas da radicalidade.
Pois, de fato, posto que Deus seja o todo poderoso, aquele que tudo pode e tudo
sabe, a determinar toda a realidade desde o início dos tempos, se tudo se verifica
nos acertamentos entre o ato criador originário e o juízo final, tudo neste vasto
interregno inscrever-se-ia iniludivelmente nos desígnios do próprio absoluto.
(BORNHEIM, 2002, p. 43)
É sob esse signo que terá lugar a filosofia de Santo Agostinho.
Considerado, segundo Arendt (2000), o responsável por inserir a questão da liberdade
humana na reflexão filosófica, juntamente com São Paulo, seu trabalho tentará
demonstrar que a liberdade pode ser decorrente de um atributo intrínseco à natureza
humana, a existência da vontade presente nessa singular criatura divina (NOVAES,
2002).
A reflexão sobre a liberdade surge em virtude do paradoxo da existência do
mal e da controvérsia com os maniqueístas. De modo a refutar a afirmação
maniqueísta da existência de um mal radical nas coisas – e, portanto, inerente ao corpo
humano – Agostinho sustenta que, por força da marca da perfeição na obra do criador,
o mal é algo impossível. Em um mundo onde tudo fosse criado por Deus, não haveria
espaço para a existência do mal, pois a perfeição divina não comporta a maldade
(NOVAES, 2002). As situações de sofrimento e de desvios do comportamento
26
humano seriam, em verdade, “graus relativos da perfeição”, um bem situado em uma
posição inferior da escala. Sobre o mal em Agostinho, explica Moacyr Novaes:
Sendo assim, o mal vem a ser explicado em razão da dessemelhança relativa ao bem
supremo: cada ser, à medida que não é integralmente idêntico ao Criador, não tem
todas as perfeições. Esta falta, esta ausência é um mal, ou finitude de cada criatura,
sua impossibilidade metafísica de ser plenamente (o que está reservado apenas ao
Criador). (NOVAES, 2002, p. 72)
No homem, essa finitude revela-se na dicotomia entre alma e corpo.
Ambos seriam componentes de sua natureza e reciprocamente dependentes. O corpo
representaria a matéria, uma entidade neutra que assemelha os homens aos seres
inanimados. Já a alma humana seria aquilo que lhe daria o impulso da vida. Sua
principal característica seria o atributo da vontade, poder que lhe conferiria a
capacidade de comandar e controlar o corpo. Para Agostinho, a vontade seria essa
característica exclusiva do homem que o tornaria o “reflexo” do Criador e que
colocaria a alma, portanto, em posição hierárquica relativamente superior em relação
ao corpo (NOVAES, 2002).
Como ser dotado de vontade, ele pode ordenar impulsos ao corpo segundo
o seu querer. Assim, a capacidade de se mover em uma direção ou outra faz com que o
homem possa se aproximar ou se afastar das prescrições que o colocam em harmonia
com o kosmos divino. Nesse sentido as palavras do próprio Agostinho:
Com efeito, não é pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade também para
pecar, que é preciso supor que Deus no-la tenha concedido nessa intenção. Há,
pois, uma razão suficiente para ter sido dada, já que sem ela o homem não poderia
viver retamente. (...) Por outro lado, se o homem carecesse do livre-arbítrio da
vontade, como poderia existir esse bem, que consiste em manifestar a justiça,
condenando os pecados e premiando as boas ações? Visto que a conduta desse
homem não seria pecado nem boa ação, caso não fosse voluntária. Igualmente o
castigo, como a recompensa, seria injusto, se o homem não fosse dotado de vontade
livre. (AGOSTINHO, 2004, p. 74-75)
27
Como se extrai da passagem transcrita, essa faculdade do homem de
escolher é denominada de livre-arbítrio. Por ela, é possível a medição qualitativa do
movimento realizado pelo homem, em função do conteúdo de sua ação:
Enquanto as demais criaturas se inscrevem necessariamente na ordem e
correspondem ao ‘movimento’ criador realizado por Deus, o livre-arbítrio tem a
possibilidade de se inscrever ou não, voluntariamente, isto é, de fazer ou não um
movimento que espelhe a bondade e sabedoria do Criador. (NOVAES, 2002, p.72)
A faculdade do livre-arbítrio, decorrente da presença do elemento da
vontade na constituição do homem, abre-lhe duas possibilidades: movimentar-se de
acordo com a ordem divina ou em descompasso com a mesma.
A ordem divina prescreveria a ordem naturalmente boa, para a qual o
homem convergiria caso viesse a acatar os mandamentos religiosos e reconhecesse a
posição de superioridade de Deus. Já a pretensão de arrogar-se a uma condição
equivalente à divina, ilustrada no pecado original do mito de Adão e Eva, representaria
um desvio da vontade de seu lugar natural na hierarquia do universo (NOVAES,
2002). Veja-se a análise de Tillich (1988?) sobre o pecado em Agostinho:
Pecado é, em primeiro lugar e basicamente, o poder de rejeitarmos Deus [...] A
imediata conseqüência da rejeição humana desse bem supremo é a sua perda. Essa
perda é a punição essencial do homem. [...] Se Deus é, na verdade, tudo o que se
pode chamar de positivo, o bem supremo, ou o poder de superar o não-ser, a única
pena real possível tem de ser intrínseca, isto é, a perda desse poder de ser, com
incapacidade de participar no bem supremo. (TILLICH, 1988?, p. 125)
A esse movimento corrompido da vontade, Agostinho dá o nome de
soberba. Esta é definida como “a vontade perversa de suprimir de um só golpe a
distância entre o homem e o bem supremo” (NOVAES, 2002, p.72). Se a soberba
marca o afastamento do homem de seu lugar natural junto a Deus por um exercício
corrompido da vontade, a partir da reconciliação dessa vontade com o sagrado, o
28
homem poderá trilhar seu caminho de retorno ao paraíso perdido. Submetendo-se às
prescrições de Deus, o homem corrige sua vontade e faz, do seu livre-arbítrio,
liberdade. Ao tratar do orgulho humano como busca da satisfação exclusiva de si
próprio, diz Agostinho:
Visto que o demônio apresentou-se ao homem como exemplo de orgulho, o Senhor
se apresentou a nós como exemplo de humildade e com a promessa de vida eterna.
Em seu amor infinito, Deus quis que resgatados pelo sangue de Cristo, derramados
após trabalhos e sofrimentos inexprimíveis, nós nos uníssemos a nosso Libertador,
com uma caridade ardente, para deixar-nos arrebatar até ele, por luzes tão
brilhantes, que a vista de realidade interior alguma possa nos afastar da
contemplação do Bem supremo. (AGOSTINHO, 2004, p. 240)
Para Agostinho, a liberdade ocorrerá, portanto, com o efetivo caminho
trilhado pelo homem ao deixar sua vontade ser guiada por Deus, fazendo-a ir ao
encontro de Seus mandamentos. É o que se verifica do seguinte comentário de Vaz
(1991) sobre a filosofia agostiniana:
O pensamento filosófico-teológico de Agostinho é um pensamento inquisitivo na sua
essência, e essa inquisição da mente que é necessariamente uma busca de Deus –
um quaerere Deum que arrasta o homem todo simbolizado na inquietude do coração
– não é senão a transcrição intelectual do itinerário da vida; o itinerário da
vontade, cujo ponto de partida é o livre-arbítrio na condição do homem pecador e
que, sob a ação da graça, caminha para a libertas verdadeira que é a deleitação na
justiça. (VAZ, 1991, p.66)
No mesmo sentido, é a conclusão de Novaes (2002) ao dizer que a sujeição
à ordem divina não representaria um modo de ser dominado ou escravo, mas a
realização dos próprios propósitos da condição humana, em virtude da qualidade
intrínseca ao conteúdo das prescrições religiosas.
A principal contribuição das doutrinas cristãs, e em especial a de
Agostinho, para a compreensão da liberdade refere-se à possibilidade de a ela se
aceder pelo exclusivo exercício da vontade interior. Por conseqüência, na era cristã, a
29
liberdade será confinada ao espaço definido de cada individualidade em sua relação
com o divino, como conclui Chauí (1992), em referência a Arendt:
O cristianismo, porém, religião da salvação nascida fora do campo político e contra
o Estado, desloca a liberdade para o interior de cada humano, articula liberdade e
vontade e apresenta esta última como essencialmente dividida entre o bem e o mal.
A liberdade surge como uma divisão interior entre mim e mim mesma, entre meu
querer bem e querer mal, tornando-se livre-arbítrio. O cristianismo despolitiza a
liberdade e, ao interiorizá-la, moraliza-a. (CHAUÍ, 1992, p. 349)
Desse modo, a partir do pensamento cristão, a liberdade passa a ser uma
prerrogativa de cada indivíduo, consubstanciada em uma capacidade interior de
direcionar sua vontade. Entretanto, no que se refere ao conteúdo das ações do homem,
a presença do elemento religioso não deixará margem de escolha para o efetivo
direcionamento da vontade:
Em suma, a famosa dicotomia entre liberdade e necessidade é trazida pela teologia
cristã e se transforma num paradoxo insolúvel para a ética dos cristãos, sobretudo
porque a vontade divina se exprime por mandamentos e decretos anteriores e
superiores aos homens, de sorte que ser livre é obedecer à exterioridade do
comando divino. O vínculo entre virtude e obediência, virtude e obrigação, virtude e
dever apaga a idéia da liberdade como esfera humana do humano e, portanto, como
autonomia. (CHAUÍ, 1992, p. 349-350)
Bornheim (2002) ilustra essa condição do homem medieval a partir do
termo “servo arbítrio”, cunhado por Lutero. No entanto, o elo que submete o homem a
Deus é rompido pelo processo histórico que culmina na modernidade. E, na ausência
de um caminho para a liberdade fornecido por Deus, o homem será levado a procurar,
em si próprio, os rumos que o levarão a sua emancipação.
2.3 A liberdade para os modernos
30
Como visto, para os antigos, o conteúdo da ação “livre” deveria ser préestabelecido por uma ordem divina. Em função da natureza dogmática13 do
catolicismo nos assuntos ligados à salvação humana, mesmo o reconhecimento de um
espaço interior no homem – que lhe abre um campo para o exercício de sua vontade –
não é suficiente para permitir a diversidade nas formas de expressão moral e cultural.
Somente um padrão de condutas tornava o homem livre: aquele que estivesse em
conformidade com os mandamentos divinos, pois as prescrições morais que se
originavam dessa ordem revestiam-se de caráter sagrado. Por essa razão, no
pensamento antigo, incluindo-se aí a filosofia cristã da era medieval, não havia espaço
para a tolerância nos assuntos ligados aos modos de realização da liberdade
(BORHEIM, 2002).
Para que a referência dos comportamentos morais deixasse de ser a
autoridade de Deus, seria necessária uma mudança cultural que retirasse da religião a
importância de antes. O enfraquecimento da influência religiosa permitiria ao homem
enxergar formas diferentes de explicar e compreender o mundo. Galuppo (2002)
chama de “descentramento radical” esse processo histórico que levou à ruptura com a
visão de mundo unitária da Antiguidade. Em referência a Arendt, o autor destaca três
eventos históricos como marcos que o ilustram:
Se a Antigüidade e a Idade Média se caracterizavam pela existência de um único
centro aglutinador do pensamento e da ação, a Modernidade se caracteriza pela
explosão desse centro. Seguindo uma pista de Hannah Arendt na Condição humana,
podemos dizer que três processos estão ligados a esse descentramento. O primeiro
deles foi a Revolução Científica: ao investigar o céu, deslocando seu olhar o homem
descobre que o Sol, e não a Terra, é o centro do sistema que habita e nós não
estávamos mais no centro do universo. O segundo processo foi as Grandes
Navegações: ao realizar a circunavegação, o europeu descobre que a Europa não
era o centro da esfera terrestre. O terceiro e último processo foi a Reforma
13
Dogma é aqui entendido no sentido de não questionamento dos pontos de partida de uma série argumentativa,
consoante exposição de Ferraz Júnior (2003).
31
Protestante: ao refletir sobre uma Europa dividida em religiões distintas, o homem
descobre que a Igreja Católica Apostólica Romana não era mais o centro cultural
da civilização ocidental. (GALUPPO, 2002, p. 196, grifos do autor)
Esse processo de ‘explosão’ dos centros tradicionais de referência da ação
humana fez com que a visão teocêntrica do mundo antigo fosse substituída por uma
concepção antropocêntrica cuja marca é o pluralismo cultural e o subjetivismo radical
dos valores. Vaz (1991) resume suas características:
Na medida em que os fios da história se entrelaçam numa complexidade sempre
maior e em que a civilização ocidental amplia suas bases materiais e efetivamente
se universaliza, as concepções do homem, sobretudo na sua expressão filosófica que
aqui nos ocupará, tornam-se também mais complexas e passam a enfrentar o difícil
problema da chamada ‘pluralidade antropológica’, quando a unidade cultural
(como na Grécia) ou religiosa (como na Idade Média) da imagem do homem é
desfeita pela descoberta da imensa diversidade das culturas e dos tipos humanos e
pelo próprio avançar das ciências do homem que submetem o seu objeto à análise
minuciosa e, aparentemente desagregadora de sua unidade. (VAZ, 1991, p. 77)
2.3.1 – A fundação do sujeito moderno por René Descartes
Diante da incerteza causada por diferentes visões culturais e religiosas de
mundo, o homem moderno precisou de um novo “porto seguro” dos critérios de
verdade e correção de sua experiência científica, cultural e moral. Esse novo centro
será o indivíduo. O pensamento de René Descartes reflete o surgimento do indivíduo
como experiência absoluta das medidas humanas no período moderno, como se
depreende da análise de Bornheim (1992):
E coube a Descartes a tarefa de estruturar, em seu ponto de partida, o
funcionamento da mente humana de um modo profundamente inovador. Sabe-se do
radicalismo com que o filósofo francês aplica a dúvida metódica. Seu racionalismo
atinge principalmente a própria natureza do conhecimento sensível, já por não
apresentar nenhum critério intrínseco de autojustificação; (BORNHEIM, 1992, p.
250)
32
A dúvida metódica é a ferramenta utilizada por Descartes para sustentar
sua filosofia. Ela consiste em “submeter todos os dados passíveis de serem conhecidos
a um procedimento de análise, de tal maneira que todo o observável seja reduzido aos
seus elementos mais simples” (BORNHEIM, 1992, p. 251). Essa dúvida radical
permite a constituição do sujeito como algo independente de qualquer objeto sensível
ou de alguma entidade divina. Veja-se como o próprio Descartes expressa a dúvida
metódica que funda a experiência subjetiva absoluta:
Mas que sei eu, se não existe outra coisa diferente das que acabo de considerar
incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não existirá algum Deus, ou
alguma outra potência, que me infunda tais pensamentos no espírito? Isso não é
necessário, pois talvez eu tenha a capacidade de produzi-los por mim mesmo. Eu,
então, ao menos, não serei alguma coisa? Mas já neguei que possuísse qualquer
sentido ou qualquer corpo. Contudo, titubeio, pois o que resulta daí? Serei de tal
maneira dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu
me convenci de que nada existia no mundo, que não havia céu algum, terra alguma,
espíritos alguns, nem corpos alguns; logo, não me convenci também que eu não
existia? Com certeza, não; sem dúvida eu existia, se é que me convenci ou só pensei
alguma coisa. Mas existe alguém, não sei quem, enganador muito poderoso e
astucioso, que dedica todo o seu empenho em enganar-me sempre. Não há então,
dúvida alguma de que existo, se ele me engana; e, por mais que me engane, nunca
poderá fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa.
(DESCARTES, 1999, p. 258)
Descartes separa radicalmente a dimensão subjetiva do espírito (cogito)
daquilo que lhe é oposição e que constitui seu exterior, o corpo (res extensa). O corpo
apresenta-se como matéria que se oferece ao conhecimento. A vontade de conhecer do
ser pensante define e estabelece os limites daquilo que será conhecido – constituindo o
objeto do conhecimento – e passa a ser a exclusiva condutora do processo de
conhecimento
(BORNHEIM,
1992).
Descartes
conseguirá,
portanto,
situar
exclusivamente no indivíduo a responsabilidade pela definição dos critérios de
verdade e correção de sua ação. Se o sujeito possui autonomia para conhecer e, por
conseqüência, para agir, ele é capaz de criar a sua própria regra moral, que não mais
virá de Deus ou da Natureza. Essa condição é a marca do indivíduo moderno.
33
Submeter-se ao que vem de fora, seja ele Deus ou Natureza, é fonte de incerteza e
dúvida, pois o conhecimento seguro é aquele que se alcança pelo exercício da razão.
Assim, com Descartes, a autonomia deixa de ser um desvalor – como o era a soberba
para Agostinho – para se tornar, ao contrário, a principal característica da liberdade:
Realmente, no caso, pode-se traçar um estreito paralelo entre a análise do
conhecimento e a da liberdade. Com Descartes, pelo conhecimento, o homem passa
a ser senhor do objeto. Tal concepção é, digamos, complementada pela nova
acepção da liberdade. Superando as interpretações antigas da liberdade, a grega e
a medieval, Descartes comete o feito de restringir a liberdade ao livre-arbítrio. Não
se trata mais de vencer o jugo dos tiranos e manter a plenitude da condição grega
do cidadão, nem de dominar essa outra tirania, a da carne na acepção paulina, e
sim de afirmar que o homem, pelo livre-arbítrio, promove-se à condição de senhor –
senhor da sua escolha. (BORNHEIM, 1992, p. 251)
No pensamento cristão, a liberdade exigia um vínculo entre o exercício da
vontade e seu direcionamento a um conteúdo prévio de condutas consideradas como
“boas” pela tradição cultural e religiosa. As conclusões do pensamento cartesiano
serviram de fundamento para que o homem pudesse abandonar com segurança o
mundo comunitário a que se encontrava preso por força da tradição cultural e religiosa
e reconstruí-lo a seu modo, imagem e semelhança:
Quando Descartes demonstra a possibilidade de recriarmos e fundamentarmos a
realidade a partir do sujeito racional, instaura-se a possibilidade de se pensar
também o Indivíduo. Se não há mais um centro comum orientador da ação, é
preciso que cada homem converta-se em centro orientador de sua própria ação. E
se cada um é convertido em centro, então cada um será responsável pela
formulação de um projeto sobre o que seja a vida boa para si. Não raramente, estes
projetos, que não estão mais integrados a priori, serão radicalmente opostos.
Eventualmente, por motivos puramente subjetivos-racionais, os homens se unirão
em projetos comuns, mas já não é mais a identidade e a unidade que constituem a
vida social, mas a diferença e a diversidade. Não há mais lugar, nas sociedades
modernas, para a homogeneidade, pois cada um estipula para si o que é a vida boa
e como atingi-la. (GALUPPO, 2001, p. 50, grifos do autor)
É o conhecimento seguro e preciso, obtido pelo método científico, que
passou a imperar nas ciências naturais. Em substituição à religião, ele será o novo
critério de correção e verdade para a ação do homem moderno (SANTOS, 2000). Por
34
sua vez, também toda a racionalidade do pensamento filosófico – inclusive a política,
moral e jurídica – submeter-se-á aos cânones epistemológicos do mecanicismo
inaugurado na modernidade.
2.3.2 – Thomas Hobbes e a mecânica da liberdade
Exemplo marcante de como a concepção de liberdade passa a decorrer de
uma visão naturalista e mecanicista do mundo pode ser encontrado na filosofia de
Thomas Hobbes. Tomando por base o modelo matemático da ciência moderna, em
especial a geometria de Euclides (VAZ, 1991), Hobbes explicará o universo natural –
dentro do qual se encontra o homem – a partir da noção de ‘corpo’:
Hobbes empreende, de forma rigorosa e conseqüente, a aplicação do racionalismo
mecanicista à compreensão do homem e da sociedade. Com efeito, toda a sua obra
gira em torno do problema de se encontrar uma expressão racional rigorosa e
obediente aos cânones do mecanicismo para a idéia de corpo, que se apresenta
como categoria fundamental para pensarmos a natureza, o homem e a sociedade.
(...) Só o corpo, ocupando espaço, existe, e Deus mesmo é corporal, sendo
compreendido no universo cuja totalidade e unicidade abrange todas as ordens do
existente. (VAZ, 1991, p. 86, grifos do autor)
Hobbes define corpo como “tudo o que é concebível e tudo o que pode ser
objeto de ciência. ‘Corpos naturais’ e corpos ‘políticos’ resumem assim todo o
domínio do saber” (MATHIOT, 1993, p. 38). Os seres corpóreos estão sujeitos a
determinados princípios físicos de movimento. Nos seres animados eles são os
seguintes:
Há nos animais dois tipos de movimento que lhe são peculiares: um chamado vital,
iniciado na geração e continuado sem interrupção durante toda a vida; (...) o outro
é o movimento animal também chamado movimento voluntário, como andar falar
mover qualquer dos nossos membros, da maneira como anteriormente foi
fantasiado em nossas mentes (HOBBES, 2005, p. 32)
35
Hobbes abandona a concepção cartesiana que via a vontade como uma
instância isolada do corpo do indivíduo (HECK, 2004), concebendo-a como o
elemento por meio do qual se realiza a conexão necessária entre uma sensação interior
e a conseqüente resposta do organismo.
A vontade, portanto, é o último apetite na deliberação. Embora na linguagem
comum se diga que um homem teve uma vontade de fazer uma coisa, que não
obstante evitou fazer, isto é propriamente apenas uma inclinação, que não constitui
uma ação voluntária; pois a ação não depende dela e sim da última inclinação ou
apetite. (HOBBES, 2005, p. 38-39, grifos do autor)
Se, nas palavras do próprio Hobbes, “O homem foge do mal por um
impulso natural, tão certamente quanto uma pedra cai” (HOBBES, 2004, p. 34), a
vontade seria justamente esse impulso que antecede a ação concreta. Ela se efetiva por
meio da resposta do corpo ao estímulo exterior recebido.
Segundo Hobbes (2005), há um princípio geral da razão que diz que todo
corpo animal tende a retribuir com uma reação volitiva quando provocado por uma
sensação exterior que impulsiona seu movimento. Isso só não ocorrerá se o corpo
estiver sujeito a interferências externas. Se estas vierem a impedir a conexão entre o
que se quer (apetites) e o que se faz, criando incapacidades, não haverá o
prosseguimento do movimento – isto é, da ação. É com esse raciocínio que Hobbes
constrói sua definição de liberdade como “ausência de (...) impedimentos externos do
movimento” (HOBBES, 2005, p.124):
Pois o que quer que esteja amarrado, ou envolvido, de modo a não poder-se mover
senão dentro de um certo espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de
um movimento externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além (...)
Costumamos dizer que não têm liberdade de se mover da maneira que fariam se não
fossem esses impedimentos externos. Mas quando o que impede o movimento faz
parte da constituição da própria coisa, não costumamos dizer que ela não tem
liberdade, mas que lhe falta o poder de se mover, como quando uma pedra está
parada, ou um homem se encontra amarrado ao leito pela doença. (...) Conforme
esse significado próprio e geralmente aceito da palavra, um homem livre é aquele,
36
naquelas coisas que por sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de
fazer o que tem vontade de fazer. (HOBBES, 2005, p. 124-125, grifos do autor)
Conforme Heck (2004), a liberdade para Hobbes concretiza-se pelo gozo
da sensação de prazer emanada por um objeto do desejo humano, pois isso indica a
ocorrência do movimento livre. Para tanto, é preciso que a inclinação causada pela
sensação se transmita a um efetivo movimento vital, o que se dá pelo conatus14:
Ao rejeitar a posição cartesiana, Hobbes assume o conatus como um movimento
imperceptível na origem do modo de conceber o objeto das ações e do movimento
corporal, isto é, o conatus faz com que percepção e paixão sejam, como efeito que
são, cogitatio de um único e mesmo movimento. (HECK, 2004, p. 84, grifos do
autor)
Em Hobbes, pois, a condição corpórea de cada ser faz com que ele próprio
seja o critério de verificação do seu movimento livre. Todos os corpos, enquanto
unidades isoladas, têm igualmente essa propriedade de se mover livremente. Assim,
segundo as leis mecânicas da natureza, todos os homens podem ser livres, uma vez
que são também ‘corpos’. Logo, ao serem deixados aos desígnios de uma condição
natural, todos os homens são capazes de promover a ‘liberdade’ de seu próprio
movimento, já que cada um tem a capacidade de agir em resposta aos estímulos
sensoriais que recebe do ambiente externo. Desse modo, conclui Lago (2003):
A liberdade é uma situação física que só pode ocorrer em entidades físicas, os
corpos. Todo movimento precisa de um conjunto de causas suficientes para
determiná-lo e uma situação ambiental favorável, a ausência de oposição e
impedimento. (...) Toda ação do homem natural obedece a determinações causais. O
mais sofisticado dos movimentos, o voluntário, responde às mesmas leis do mais
simples, apesar de induzir facilmente o observador ao erro de considerá-lo livre. Ao
arbítrio ou vontade a liberdade se atribui de forma imprópria, porque, enquanto
poder de ação, é determinado necessariamente por objetos. Nesse sentido Hobbes
defende a compatibilidade entre necessidade e liberdade no campo da ação humana
natural. (LAGO, 2003, p. 138)
14
Conatus é geralmente traduzido por esforço, e, na linguagem hobbesiana significa o esforço que os corpos
realizam no sentido de permanecerem no movimento em que se encontram, cumprindo, assim, o princípio da
inércia. Para uma simples e precisa explicação sobre a dimensão mecânica da filosofia hobbesiana, veja-se
Bernardes (2002).
37
Essa possibilidade absoluta do movimento, de acordo com a inclinação das
paixões, é o “estado de natureza” – propriamente denominado “condição geral de toda
a humanidade”, como salienta Macpherson (1979)15. Sendo a liberdade uma condição
natural dada aos corpos, na condição geral de toda a humanidade subsistiriam direitos
e leis da natureza, assim definidos por Hobbes:
O direito de natureza, a que os autores chamam jus naturale, é a liberdade que cada
homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a
preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua própria vida e
conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe
indiquem como meios adequados a esse fim. (...) Um lei da natureza, lex naturalis, é
um preceito, ou regra geral, estabelecido pela razão, pelo qual um homem é
proibido de fazer o que seja destrutivo para sua vida, ou que o prive dos meios
necessários para a preservar, e de omitir aquilo que pense ser melhor para
preservá-la (HOBBES, 2005, p. 78, grifos do autor)
Como mostra Polin (1992b) tal “direito natural” deve ser concebido como
uma faculdade (facultas) que cada um possui pelo simples fato de ser homem. Hobbes
(2005) denomina direito de todos sobre todas as coisas: em sua condição natural, o
homem tem o direito a dar vazão a toda sorte de impulsos que lhe chegam pela via dos
estímulos sensoriais. Noções como as de propriedade, justiça e moralidade não
existiriam, já que seriam produto do estabelecimento de regras criadas artificialmente
para o convívio social.
A expressão “lei” também não deve ser entendida no sentido de submissão
a um comando emanado (sentido que é dado ao termo lei pelo próprio Hobbes (2004)).
Na condição geral de toda a humanidade não há qualquer autoridade que tenha poder
para emitir um comando de um homem sobre outro. Esse tipo de lei também será fruto
15
Macpherson (1979) opta por substituir a expressão “estado de natureza” por “condição geral de toda
humanidade” argumentando que utilizar o conceito de estado de natureza para denominar essa condição que é
intrínseca à natureza humana seria equivocado, uma vez que tal condição não desaparece no denominado estado
civil. O que haveria, portanto, seria a presença permanente da condição geral de toda humanidade que, caso não
domada pelo Leviatã, recairia naquilo que se convencionou denominar estado de natureza.
38
de convenções sociais, somente possíveis na condição civil. Segundo David Gauthier
(2001), a expressão “lei da natureza” deve ser entendida como um teorema
(imperativo) da razão. Tal teorema diz que a conclusão a que o homem chega, pelo
exercício de suas faculdades racionais, torna-se uma ação que ele deve realizar.
Tanto o poder dado a cada um de agir conforme o exercício de sua razão
natural quanto a imposição ditada pela razão para agir com vistas à preservação de sua
própria liberdade fazem com que a permanência da condição natural de cada um se
torne um empecilho à viabilidade do convívio coletivo:
Tudo se passa como se o que assegura a formação do indivíduo exercesse, ao
mesmo tempo, sobre ele, uma ameaça não menos eficazmente destruidora, como se
a afirmação do indivíduo fosse acompanhada de sua negação. Hobbes constata nos
fatos tanto uma ameaça quanto outra. Essas duas constatações opostas são
correlativas, mas elas podem se desenvolver concomitantemente sem nenhum
absurdo; (POLIN, 1992a, p. 107)
A ameaça de destruição do indivíduo decorre de sua liberdade natural, pois
a permanência dessa condição tem o potencial de levar os indivíduos a uma guerra de
todos contra todos, em virtude da igualdade radical que a natureza impõe a todos os
homens.
O conflito decorreria do fato de que todos os homens se assemelham em
força e habilidade, ao ponto de possuírem praticamente as mesmas capacidades de se
ferirem uns aos outros (HOBBES, 2004, 2005). Em uma eventual disputa por
interesses comuns a dois homens (disputa por objetos que produziriam reações
necessárias16 em ambos) cada qual tem uma possível chance de vencer o outro.
Portanto, a igual capacidade de condições traz desconfiança e medo em relação ao
movimento do outro. Afinal, o inimigo também está no exercício de seu direito natural
16
A reação necessária seria decorrência da presença de sensações vindas do exterior responsáveis por gerar
estímulos no indivíduo que guiariam a sua deliberação volitiva. O aroma de um fruto, que desperta a fome no
homem, levá-lo-ia à ação de colhê-lo para alimentar-se, contra todos os obstáculos que se interpusessem à
concretização desse ato, inclusive a presença de outros homens guiados pela mesma reação volitiva.
39
e, por óbvio, também articula modos de aumentar suas chances de não ser derrotado.
Logo, a reação instintiva do homem é a da antecipação:
E devido a esta desconfiança de uns em relação aos outros nenhuma maneira de se
garantir é tão razoável como a antecipação, isto é, pela força ou pela astúcia
subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário
para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente
grande o ameaçar, e isto não é mais do que a sua própria conservação exige,
conforme é geralmente admitido. (HOBBES, 2005 p. 75)
No entanto, não há modo de se solucionar permanentemente essa situação
de desconfiança e medo – em especial de medo da morte – pelo exercício casuístico da
força. Pois sempre haverá a possibilidade de um outro homem ou grupo de homens
superar em força aquele domínio que, antes, garantia provisoriamente a paz. Sendo
assim, uma resposta racional, que contorne esse sentimento generalizado de temor da
violência, necessitaria eliminar por completo o medo recíproco entre os homens. Para
se alcançar esse objetivo, todos os homens devem abrir mão de seu direito e de sua
liberdade natural em favor de um terceiro ente que será superior a todos eles, o Estado:
A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de os defender das
invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma
segurança suficiente para que pela própria indústria e pelos frutos da terra possam
alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou
assembléia de homens, que possa reduzir as suas diversas vontades, por uma
pluralidade de votos, a uma só vontade: o que equivale dizer, designar um homem
ou uma assembléia de homens como representantes das suas pessoas,
considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que
aquele que representa a sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo que disser
respeito à paz e à segurança comuns. Isto é mais do que consentimento, ou
concórdia: é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa,
realizada por um acordo de cada homem com todos os homens, de um modo que é
como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro o meu direito de me
governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a
condição de transferires para ele o teu direito, autorizando de maneira semelhante
todas as suas ações (HOBBES, 2005 p. 013, grifos do autor)
Por meio do mecanismo do contrato social, Hobbes concebe uma liberdade
civil cujo fundamento assenta-se no próprio homem. A razão de existência do poder
40
político e a fonte das regras de convívio social não são mais os mandamentos
religiosos, mas sim o conjunto das liberdades naturais alienadas por cada homem em
favor do soberano. Isso põe fim à tradição antiga de concepção da liberdade, como
analisa Polin (1992a):
O homem de Aristóteles e Cícero é o cidadão e não o homem natural. (...) As teorias
políticas clássicas chamam de natural o que Hobbes coloca entre os artifícios, e
talvez essa seja a maior contribuição do teórico político inglês. Se Aristóteles
considerava natural a pólis e suas liberdades, os outros sendo bárbaros, isto é
menos humanos, Hobbes, artificializando toda e qualquer construção política,
iguala a natureza dos Estados, assim como os indivíduos são iguais no estado de
natureza (POLIN, 1992a, p. 108)
Ainda que a solução hobbesiana seja um paradoxo – de um lado, um ente
soberano com poderes ilimitados na criação das regras do convívio social e cuja marca
é a arbitrariedade (MADANES, 1997); e, de outro, a constatação de que esse ente
político origina-se em um acordo para a salvação dos homens de sua ruína – o filósofo
inglês inaugura a tradição que define o indivíduo como o centro das preocupações que
envolvem as questões políticas:
Não é o indivíduo enquanto tal, muito pessoalmente, o fundador originário desse
Estado? O contrato social é um pacto de cada um com cada um. (...) Cada um
testemunha individualmente que se obriga a não resistir à vontade do Soberano; ela
cedeu-lhe seu poder seus bens em virtude de um cálculo racional: ao aceitar o
contrato, ao renunciar, por um ato arbitrário, isto é, não natural, ao exercício
natural das forças naturais, cada homem cumpriu seu primeiro ato de indivíduo
humano autêntico, ele se fez propriamente homem. O Estado não existiria sem essa
decisão individual fundamental: ele é a emanação e a obra dos indivíduos (POLIN,
1992a, p. 108)
Enquanto reflexo dos indivíduos que o criam, o Estado guarda, em relação
a eles, uma identidade indissociável. Criador e criatura compartilham, desse modo, de
uma mesma finalidade (BERNARDES, 2002). Mas note-se que não são os indivíduos
isoladamente que dão origem ao Estado, mas o conjunto das liberdades alienadas que
foram trocadas pela possibilidade de ampliação da preservação do movimento vital,
41
consagrada na paz e na segurança. Assim, o Estado deve fazer tudo quanto possível
para a consecução dessa finalidade, a começar pela promoção da paz e da ordem
social. Mas não é só. Ainda que esse tema seja obscuro na própria obra de Hobbes17, é
inegável que o Estado também assumiria a função de promover o bem-estar dos
cidadãos enquanto meio para a realização da liberdade no sentido estabelecido pelo
próprio Hobbes.
No entanto, a premissa de Hobbes, de que os indivíduos são incapazes de
estabelecer valores comuns antecedentes ao Estado, gera um relativismo moral no que
tange aos poderes transmitidos ao Estado. Uma vez que cada um poderia ser o detentor
da verdade – inclusive da verdade moral – não haveria um fundamento pré-político
das leis, mas somente a vontade do Soberano. Em nome da preservação da vida
coletiva, o Estado poderia tudo. Pois, à exceção das liberdades extremas que o
indivíduo conserva após o pacto, como, por exemplo, a de não ser obrigado a retirar a
sua própria vida, o que quer que o soberano decida como lei deve ser cumprido, já que
destinado a ampliar o movimento vital da coletividade. Não haveria, assim, qualquer
obrigação que vinculasse o soberano e os súditos:
Por definição, o poder soberano é desprovido de limites. Os cidadãos estabelecem
um contrato entre eles, numa renúncia recíproca aos direitos que detinham por sua
força natural. Mas, o Soberano recebe a totalidade das forças assim abandonadas
sem comprometer-se com ninguém. Ele não estabelece contrato com nenhum dos
cidadãos em particular, e tampouco com o conjunto dos cidadãos vistos na sua
totalidade. Ele não recebe deles nenhuma missão. (POLIN, 1992a, p. 99)
17
Polin (1992a) apresenta a questão de que em De homine e em De Cive Hobbes teria colocado explicitamente a
questão da promoção do bem-estar como tarefa do Estado, e que teria suprimido em sua obra final, o Leviatã,
sustentando que a única explícita função do Estado seria a garantia da paz e da ordem social. Isto possivelmente
indicaria que o Estado teria somente a função de garantia da ordem e da paz social, inexistindo, portanto
qualquer outra obrigação a que o soberano estivesse vinculado. Segundo o comentador, Hobbes teria articulado
essa mudança para que não se formasse nenhuma outra obrigação existente entre o soberano e o súdito que não a
garantia da paz. No entanto, tal interpretação não estaria em consonância com o conjunto do pensamento
hobbesiano, segundo o qual a ampliação do movimento vital incluiria, de modo inequívoco, o alcance cada vez
maior do bem-estar dos cidadãos. Segundo o princípio da inércia, que se aplica a todos os corpos, inclusive ao
Estado, também o ente político se movimentaria no sentido de adquirir bens materiais que lhe trazem riqueza e
segurança, difundindo-as entre seus cidadãos.
42
A consagrada máxima que se extrai do pensamento de Hobbes, que afirma
ser qualquer autoridade moral superior à ausência de autoridade, acaba por tornar seu
contrato social unfair – expressão inglesa que significa ao mesmo tempo injusto, mas
também desproporcional, não eqüitativo. Isso porque os indivíduos acordariam entre si
criar um ente sobre o qual deixariam de possuir qualquer controle e que dominaria de
modo absoluto seus criadores em nome da coletividade. Que garantias esses
indivíduos conservam de que esse Leviatã não se voltará contra eles próprios?
Nesse ponto, a teoria política sofreu uma profunda reformulação pelo
filósofo inglês John Locke. Ao se valer de diferentes fundamentos para definir como
se constitui o contrato social, seu ponto de vista implicou, por conseguinte, em novo
modo de se compreender a liberdade.
2.3.3 – A inauguração do liberalismo por John Locke
Locke construiu seus argumentos sobre a natureza do poder político a partir
da refutação da teoria da monarquia patriarcal, que justificava o direito divino dos reis
absolutistas de sua época. Suas críticas são dirigidas, em especial, ao livro “O
Patriarca”, do também inglês Robert Filmer. Nessa obra, Locke critica a
fundamentação do direito do monarca à chefia do poder político por uma determinação
divina. O foco de seus ataques se dirige ao denominado princípio da paternidade. Por
tal princípio, Deus, ao criar o mundo, concedeu a Adão e aos demais patriarcas por
sucessão hereditária, autoridade absoluta para disporem, conforme seu arbítrio, de
tudo aquilo que foi obra do Senhor, inclusive os homens. Os monarcas europeus
seriam os sucessores dos patriarcas, pois também são os legítimos representantes
divinos na Terra. Isso lhes conferiria a condição de proprietários dos homens e das
43
demais criaturas de Deus. Seguindo o mesmo raciocínio, o princípio da paternidade
instituiria o dever de honra dos filhos em relação aos pais, fazendo com que os súditos
fossem obrigados a prestar obediência completa em relação aos desígnios de seu Rei.
Por minuciosa exegese do texto bíblico, Locke (2001) demonstra, em seu
Primeiro Tratado sobre o Governo Civil, de 1764, que os fundamentos de Robert
Filmer para justificar o poder absoluto dos reis seriam inconsistentes e que, em
verdade, Deus não teria colocado nenhum homem em situação de submissão a outro.
Ele mostra que nem Adão, nem qualquer outro homem, recebeu o mundo de Deus para
exercer um domínio privado. Pelo contrário, o ato divino da criação foi feito para toda
a humanidade em comum:
O que quer que Deus tenha outorgado através das palavras dessa concessão (Gn 1,
28) não o outorgou para Adão em particular, à exclusão de todos os demais
homens: qualquer que tenha sido o domínio que o outorgou mediante tal concessão,
não se tratava de um domínio privado, mas um domínio comum com o restante da
humanidade (LOCKE, 2001, p. 231, grifos do autor)
A refutação da autoridade absoluta das monarquias divinas culmina na
constatação de que há uma igualdade radical entre todos os homens no que tange à
capacidade do exercício o poder político (KUNTZ, 1998). Segundo Locke (2001), essa
seria a condição do denominado estado de natureza:
(...) o estado em que todos os homens naturalmente estão, o qual é um estado de
perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do
modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir
licença ou depender da vontade de qualquer outro homem. Um estado também de
igualdade, em que é recíproco todo o poder e jurisdição, não tendo ninguém, mais
que outro qualquer – sendo absolutamente evidente que criaturas da mesma espécie
e posição, promiscuamente nascidas para todas as mesmas vantagens da natureza e
para o uso das mesmas faculdades, devam ser também iguais umas às outras, sem
subordinação ou sujeição (...) (LOCKE, 2001, p. 381-382, grifos do autor)
Diniz (2001) afirma que o estado de natureza proposto por Locke
apresentaria as condições ideais para a convivência recíproca entre os homens, pois
44
nesse estado, seu agir moral estaria determinado por uma lei natural. Otacílio
Rodrigues da Silva (2005) descreve do seguinte modo a origem e o fundamento da lei
da natureza descrita por Locke:
A existência da lei natural é deduzida do caráter teleológico de todos os seres: as
plantas, os animais e o homem vivem segundo leis imutáveis que operam conforme a
natureza de cada ser, pois ‘existe uma natureza divina que governa o mundo’. Deus
ordenou, segundo a sua vontade e sabedoria, as coisas a um fim proporcional a
cada espécie. No universo existe uma lei natural criada por Deus que serve de
norma diretiva para a vida do homem. Isto possibilita que a razão humana
reconheça a virtude ou o vício das ações do homem. A ‘reta razão’ e a ‘lei da
natureza’ são expressões empregadas por Locke como sinônimas para exprimir o
fundamento do dever do agir moral. E este dever consiste em viver conforme a
própria natureza. A lei natural é uma ‘disposição da vontade divina, cognoscível
por meio da luz natural do intelecto’. À medida que o homem age em conformidade
ou desconformidade com a natureza racional, a lei natural expressa uma ordem ou
uma proibição. (SILVA, 2005, p. 409, grifos do autor)
Locke concebe que todos os homens são capazes de conhecer as regras da
vida social – deduzidas da lei natural – por uma intuição moral. É a racionalidade
humana que lhes permite esse poder:
A luz da razão seria a própria lei fundamental a governar todos os homens na
condição natural. A razão, segundo Locke, seria o liame subjetivo comum a todos os
indivíduos porventura nela existentes. É, precisamente, quando os homens se
afastam da razão, cedendo a seus apetites bestiais e perversos, que eles saem do
estado de natureza e passam a uma outra condição. Uma vez comportando-se
contrariamente aos ditames da lei natural da razão, fundamento do estado de
natureza, esses homens se colocam fora-da-lei e, como decorrência, deverão ser
punidos e não mais usufruirão dos direitos subjetivos garantidos pela ratio na
proporção da violação cometida. (DINIZ, 2001, p. 156, grifos do autor)
Hobbes havia eliminado toda e qualquer possibilidade de se atribuir um
valor à lei natural, pois a reduziu ao mero instinto animal de auto-preservação
(KUNTZ, 1998). Em Locke, ao contrário, a lei da natureza ganha conteúdo normativo
preciso e um valor positivo: são prescrições cujo conteúdo é amplamente cognoscível
e que devem ser necessariamente observadas por todos os homens para que possam
45
conviver em harmonia social. Veja-se como o próprio Locke (2001) apresenta suas
proposições acerca da lei natural:
Mas embora esse seja um estado de liberdade, não é um estado de licenciosidade;
embora o homem nesse estado tenha uma liberdade incontrolável para dispor de
sua pessoa ou posses, não tem liberdade para destruir-se ou a qualquer criatura em
sua posse, a menos que em um uso mais nobre que a mera conservação deste o
exija. O estado de natureza tem para governá-lo uma lei da natureza, que a todos
obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem
que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em
sua vida, liberdade ou posses. (LOCKE, 2001, p. 384, grifos do autor)
Segue-se que também o homem concebido por Locke é diferente daquele
concebido por Hobbes. No pensamento deste autor, a faculdade da razão leva cada
indivíduo a desconfiar de seu próximo e a desencadear a guerra de todos contra todos.
Em Locke, ocorre o contrário: a capacidade de ser racional é justamente o que dá ao
homem a possibilidade de conhecer e respeitar prescrições comuns que permitem o
convívio social (POLIN, 1992b). Portanto, o ser humano concebido por Locke é
naturalmente um ser social. Essa sociabilidade é construída a partir de cada
individualidade, pois é a racionalidade individual que leva cada um dos homens a
conhecer e a praticar a lei natural. Por esse motivo, a capacidade racional é a base que
constitui o individualismo de Locke, como conclui Polin (1992b) ao analisar a tradição
nominalista de sua filosofia:
A identidade de um ser racional é função da consciência que acompanha todo
pensamento. É a consciência que assegura a identidade da pessoa e que faz com
que cada um seja um eu individual e se reconheça como tal. Poder-se-ia dizer que a
liberdade efetua a individualização que a consciência reconhece e estabelece, se a
liberdade já não fosse, ela própria, uma função do pensamento racional e,
conseqüentemente, da consciência. A liberdade da pessoa não pode ser senão
aquela de um ser dotado de razão. (POLIN, 1992b, p. 134)
A condição de indivíduo racional confere ao homem também o poder de
dispor e agir livremente sobre seu corpo. Uma vez que, no estado de natureza, o
46
homem não está subordinado a outra vontade que não a sua própria, ele não se
encontra constrangido pelos demais a realizar os seus atos morais. Assim, cada um é
responsável por determinar aquilo que é o seu dever. Somente sua vontade diz o que
ele fará com seu corpo. Isso cria a noção de pessoa individual, sujeito de direitos e de
obrigações enquanto ser natural:
Esta liberdade natural que é, para o indivíduo, o princípio da propriedade de si
mesmo, é, então, por muitas razões, um direito igual em todo homem. Cada homem
nasceu, com efeito, com um duplo direito: o direito à liberdade de sua pessoa, o
direito à propriedade de seus bens. Ora, são precisamente estes direitos naturais
que, para Locke definem o indivíduo, que são reconhecidos tradicionalmente como
os critérios do individualismo. E mesmo que o termo inalienável não figure no
vocabulário de Locke, não é menos verdadeiro, apesar de certos sarcasmos
contemporâneos, que efetivamente o são. O homem, com efeito, não é o senhor de
dar ou de recusar a si próprio estes direitos que lhe são conferidos pela lei natural;
visto que eles definem a natureza humana, sua essência real, eles são inalienáveis
(POLIN, 1992b, p. 135)
Sendo o homem já sujeito de direitos e deveres em relação à lei natural,
Locke poderá, por exemplo, sustentar que se adquire a propriedade de bens antes
mesmo da constituição da sociedade civil. Isto é, ainda no estado de natureza. Pois,
por seu trabalho, o homem imprime uma marca pessoal naquilo que foi deixado pela
natureza em estado bruto. Nesse processo de transformação da natureza o homem
estabelece um vínculo com o objeto trabalhado, conferindo-lhe o direito de
assenhorear-se da coisa e, assim, constituí-la como sua propriedade. Veja-se a
descrição desse processo pelas palavras do próprio Locke:
Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens,
cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem
direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos,
pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa então que ele retire do estado
com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe
algo que é seu, transformando-a em sua propriedade. Sendo por ele retirada do
estado comum em que a natureza a deixou, a ela agregou, com esse trabalho, algo
que a exclui do direito comum dos demais. Por ser esse trabalho propriedade
inquestionável do trabalhador, homem nenhum além dele pode ter direito àquilo
que a esse trabalho foi agregado, pelo menos enquanto houver bastante e de igual
qualidade deixada em comum para os demais. (LOCKE, 2001, p. 407-409)
47
Aqui, se marca outra diferença em relação a Thomas Hobbes: em Hobbes,
a propriedade é fruto da constituição das leis civis (KUNTZ, 1998). Antes do contrato
social, existiria apenas a posse provisória dos objetos, assegurada pela força. Locke
argumentará que a presença do trabalho humano, no ato de apropriação original dos
objetos encontrados no estado natural, cria a propriedade. O trabalho imprimiria uma
marca individual em cada coisa natural, submetendo-a, assim, ao domínio do
trabalhador.
No estado de natureza, portanto, os direitos à vida, à liberdade e à
propriedade são frutos da ordem emanada pela lei natural. E são também os principais
valores a serem preservados pelos homens para que tenham o melhor convívio social.
Desse modo, faz-se necessário que os homens garantam o cumprimento da lei natural
por todos, para lhes assegurar os respectivos direitos naturais. Portanto, eles devem
entrar em um acordo pelo qual se obrigam a constituir um governo civil, dando origem
ao Contrato Social que institui o poder político.
O pacto social de Locke implica na renúncia, por parte de cada um, ao
exercício da denominada jurisdição recíproca (KUNST, 1998), que é a capacidade de
atuar como próprio juiz e executor da lei natural. Os homens transfeririam esse poder a
um ente político isento – o Estado – que se encarregaria de duas missões principais:
elaborar as leis civis que melhor refletem o conteúdo da lei natural e ser o árbitro nas
controvérsias surgidas entre os homens quanto à interpretação das regras de
convivência em sociedade (FRANÇA, 2000).
No entanto, renunciar ao exercício da jurisdição da lei natural não significa
abrir mãos dos direitos que o homem possui no estado de natureza. Muito pelo
contrário, o governo civil está estritamente vinculado aos limites criados pelos direitos
48
individuais que cada um possui e conserva dentro da sociedade política. Assim, a
atuação do Estado encontra-se delimitada por fronteiras que ele não pode transpor:
O indivíduo só abandonou estritamente o direito natural de interpretar a lei natural
e o poder de fazê-la executar na medida em que é capaz. Ele aceitou de uma vez por
todas que as leis gerais definam suas relações com os homens em cuja companhia
vive. Mas conserva todos os outros direitos e todos os outros poderes que lhe
confere a lei natural, pois esta não desaparece no estado civil; ele conserva o
direito à integridade de sua pessoa e de seus bens. A natureza da propriedade é tal
que, em nenhum caso, nenhum poder, ainda que fosse o poder supremo e mesmo
que fosse por uma lei, não pode sofrer um ataque legítimo. Seria absurdo se fosse
de outra maneira: a salvaguarda da propriedade não é o objetivo para o qual um
governo foi instituído? (POLIN, 1992b, p. 150)
Desse modo, com Locke, o itinerário da liberdade moderna finalmente
atinge o ponto em que o fundamento da vida em sociedade depende tanto da
preservação contra intervenções arbitrárias por estranhos na esfera dos indivíduos,
quanto da preservação de sua capacidade formal de agir de acordo com uma vontade
pessoal autêntica. Sua doutrina é um dos importantes marcos do Liberalismo, pois
permite identificar, no conceito de liberdade, ao mesmo tempo: o princípio da
propriedade-de-si; e a necessidade de preservação da propriedade dos bens que
constituem a individualidade contra a intervenção de terceiros e do Estado por meio de
um rígido sistema de direitos individuais.
Contudo, o desenvolvimento do conceito de liberdade não se encerraria
com a mera capacidade formal de aquisição de direitos e com um dever geral de nãointervenção da coletividade nos desígnios das vontades dos indivíduos. O advento do
capitalismo e dos sistemas representativos de governo – monárquicos ou
republicanos– indicará para o homem, de modo cada vez mais claro, que ser livre é
também ter a capacidade de efetivamente satisfazer necessidades e aspirações. Isso
inaugurará novo aspecto da liberdade moderna que colidirá com tudo aquilo que até
então estava colocado.
49
2.3.4 – Liberdade e autonomia segundo Rousseau
Jean-Jacques Rousseau é um autor que não segue o marco liberal
inaugurado por John Locke. Seu pensamento político e filosófico rejeitava a idéia de
que os interesses individuais de cada um pudessem construir rumos sadios para as
instituições políticas. Não obstante, todo seu raciocínio desenvolve-se tendo em vista a
liberdade humana. Essa conciliação é possível porque a genialidade de Rousseau
consistiu em acrescentar, ao conceito de liberdade, algo que lhe era essencial, mas que
não havia sido abordado seriamente pelos pensadores liberais que o antecederam: a
autonomia.
Em sua análise sobre a questão da liberdade, Rousseau parte da afirmação
de que o progresso cultural não trouxe ao homem um poder de emancipação. Muito
pelo contrário, o bem-estar e as comodidades conquistadas pela civilização tornaram o
homem um ser dependente de necessidades culturais, já que, para poder usufruir de
tais bens, o homem perdeu a capacidade de ser auto-suficiente, ou seja, de bastar-se a
si mesmo. Rousseau entendia que o poder de se satisfazer com os recursos oferecidos
pela própria natureza, de acordo com necessidades também exclusivamente naturais,
representava um valor positivo que o homem possuía em um estágio pré-social
denominado estado de natureza (SAHD, 2005). Segundo ele, a realização da completa
liberdade humana tem sua referência nesse estágio. No Discurso sobre a Origem da
Desigualdade entre os Homens, de 1753, Rousseau descreve as características dessa
condição natural:
Despindo esse ser assim constituído de todos os dons sobrenaturais que pode
receber e de todas as faculdades artificiais que pode adquirir somente por longos
progressos; considerando-o, em uma palavra, tal como deveria ter saído das mãos
50
da natureza, vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas,
afinal de contas, organizado mais vantajosamente do que todos; vejo-o saciando-se
debaixo de um carvalho, matando a sede no primeiro regato, encontrando o seu
leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto; e eis satisfeitas as suas
necessidades. (ROUSSEAU, 2001, p. 14)
No estado de natureza, o homem somente se submeteria às exigências das
necessidades naturais. Para satisfazer essas necessidades, o homem desenvolveria um
conjunto de deveres ligados ao agir denominado de “lei natural”. Essa lei natural
imporia obrigações ao homem, diferenciando-se, todavia, do instinto animal. Em
contraposição aos animais, o homem possui a capacidade de não obedecer às ordens
da natureza que lhe chegam pelos sentidos e pelo instinto:
Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza deu
sentidos para prover-se ela mesma, e para se preservar, até certo ponto, de tudo o
que tende a destruí-la ou perturbá-la. Percebo precisamente as mesmas coisas na
máquina humana, com a diferença de que só a natureza faz tudo nas operações do
animal, ao passo que o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre.
Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com
que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe
fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem dela se afaste freqüentemente em seu
prejuízo. (...) Não é, pois, tanto o entendimento que estabelece entre os animais a
distinção específica do homem como sua qualidade de agente livre. A natureza
manda em todo animal, e a besta obedece. O homem experimenta a mesma
impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou resistir; e é sobretudo na
consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma; porque a
física explica de certa maneira o mecanismo dos sentidos e a formação de idéias;
mas, no poder de querer, ou melhor, de escolher, e no sentimento desse poder, só se
encontram atos puramente espirituais , dos quais nada se pode explicar pelas leis
da mecânica. (ROUSSEAU, 2001, p. 18)
Rousseau afirma que não é a razão que permite o acesso do homem ao
conhecimento das regras contidas na lei natural, mas sim os sentimentos (SAHD,
2005; SANTIAGO, 2004). Como os sentimentos se apresentariam de maneira
imediata ao homem, eles seriam anteriores às faculdades intelectuais e às do
entendimento. Dentre os sentimentos do homem, dois se destacam como fundamentais
para a capacidade de formulação das regras de direito natural: o amor de si e a piedade
(JORGE FILHO, 1994). O amor de si expressa-se pelo princípio da auto-conservação:
51
Só, ocioso, e sempre vizinho do perigo, o homem selvagem deve gostar de dormir, e
ter o sono leve, como os animais, que pensando pouco, dormem, por assim dizer,
durante todo o tempo que não pensam. Constituindo a sua própria conservação
quase, o seu único cuidado, as suas faculdades mais exercitadas devem ser as que
têm por objeto principal o ataque e a defesa, seja para subjugar a presa, seja para
se preservarem de ser a de outro animal. (...) Tal é o estado animal em geral, e é
também, segundo as narrativas dos viajantes, o estado da maior parte dos povos
selvagens. (ROUSSEAU, 2001, p. 17)
O sentimento de piedade, por sua vez, daria origem ao princípio da
bondade. Rousseau argumenta que a bondade é inerente a toda forma animal,
exemplificando que até mesmo um cavalo em disparada evita ferir outro ser vivo por
repugnância ao mal que possa causar (ROUSSEAU, 2001). De modo semelhante, o
homem possuiria um sentimento de piedade que lhe imporia a obrigação de ajudar seu
próximo em toda a ocasião em que se encontrasse em dificuldade:
Vê-se, com prazer, o autor da Fábula das Abelhas, forçado a reconhecer o homem
como um ser compassível e sensível, sair, no exemplo que dá do seu estilo frio e
sutil, para nos oferecer a patética imagem de um homem fechado que percebe, fora,
uma besta feroz arrebatando uma criança do seio da mãe, quebrando com os dentes
assassinos os seus frágeis membros e despedaçando com as unhas as entranhas
palpitantes dessa criança. Que horrível agitação experimenta a testemunha de um
acontecimento no qual não tem nenhum interesse pessoal! Que angústia não sofre
ao ver tal coisa, sem poder socorrer a mãe desfalecida ou a criança em agonia.
(ROUSSEAU, 2001, p. 17)
Assim, as relações entre os sentimentos de amor de si e de piedade são
constitutivas da lei natural para o homem:
É pois, bem certo que a piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada
indivíduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de
toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos
sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude,
com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer a sua doce voz; é ela que
impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho
enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder
encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça
raciocinada, Faze a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens
esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez
do que a precedente: Faze o teu bem como menor mal possível a outrem. Em uma
palavra, e nesse sentimento natural, mais do que em argumentos sutis, que é preciso
52
buscar a causa da repugnância que todo homem experimentaria em fazer mal,
mesmo independentemente das máximas da educação. (ROUSSEAU, 2001, p. 17)
A partir desses dois princípios, Rousseau refutará o argumento hobbesiano
de que o homem, no estado de natureza, age de acordo com cálculos racionais visando
à satisfação de interesses pessoais. Muito pelo contrário, ele sustenta que o homem
natural é bom, e não mau ou egoísta. Segundo seu argumento, Thomas Hobbes – e
toda a tradição contratualista – haveriam se equivocado ao atribuir ao homem natural a
primazia da faculdade intelectual sobre a sentimental. Isso porque o sentimento da
bondade antecede à razão que calcula e julga prazeres. Sendo assim, em virtude dessa
piedade que lhe é intrínseca e que concorre para elaborar as regras que o guiam
enquanto ser natural, o homem pré-social jamais viria a travar uma “guerra” contra seu
semelhante.
Logo, os apetites que levariam o homem a entrar em conflito com os
demais (tais como descritos por Hobbes, por exemplo18) seriam desconhecidos do
homem natural e, assim, não haveria qualquer impulso que gerasse reações egoístas
nele. O homem pré-social estaria circunscrito às necessidades que lhe foram
conferidas pela natureza e ele teria condições de satisfazê-las por conta própria
(SAHD, 2005). Desse modo, uma disputa por objetos exteriores que despertam desejos
no homem somente poderia ocorrer ao preço da perda da liberdade natural. Essa seria
a hipótese em que a vontade do homem submeter-se-ia aos apelos vindos das
sensações de prazer e de bem-estar, não mais se originando em si próprio. Nesse caso,
a vontade humana deixaria de tomar a si própria e as suas necessidades naturais como
única referência para a ação prática. Essa ação prática passaria a ser realizada em
função das exigências necessárias à aquisição dos objetos externos – o que, para
18
Remete-se o leitor ao capítulo X do Leviatã (HOBBES, 2005).
53
Rousseau, significava que o homem teria passado a viver como escravo de seus
desejos.
No entanto, o destino da condição natural do homem seria o
desaparecimento. O fim do paraíso perdido rousseauniano ocorreria porque a espécie
humana possuiria um poder de aperfeiçoamento que lhe desenvolveu o sentimento do
amor de si próprio. Ao conhecer o mundo ao seu redor, o homem descobriu formas de
garantir que sua conservação fosse cada vez menos ameaçada. Ele aprendeu técnicas
que lhe proporcionaram o conhecimento de novas sensações de prazer, em especial
quando uniu esforços com seus semelhantes (ROUSSEAU, 2001). Para perpetuar esse
bem-estar rudimentar que a condição natural não lhe permitia, ele estabeleceu certas
regras e modos de convívio. Assim, buscou assegurar sua experiência passada, criando
hábitos19. Por meio desse processo, o homem foi se tornando dependente dos objetos
que lhe traziam conforto, necessitando cada vez mais dos vínculos sociais que havia
estabelecido com seus semelhantes.
A igualdade entre os homens, no estágio pré-social, decorria do fato de que
todos eram capazes de satisfazer as suas necessidades naturais por conta própria. As
diferenças de aptidões e habilidades não eram suficientes para pôr fim a esse poder
comum. No novo estágio de convívio social em que o desempenho de tarefas
específicas para se alcançar finalidades sociais depende de habilidades e capacidades
pessoais, as desigualdades naturais entre os homens ganharam destaque. É nesse
sentido que se pode compreender a afirmação de Rousseau de que a civilização do
homem corrompeu o gênero humano, pois:
19
É interessante notar que, enquanto, para a tradição aristotélica de reflexão filosófica, o hábito possui um valor
positivo por retirar o homem da escravidão dos sentidos ao lhe proporcionar uma “segunda” natureza cultural,
para Rousseau é justamente por meio do hábito e dos costumes que se tornam “naturais” comportamentos que
seriam responsáveis por conferir-lhe uma condição de escravo e de ser dependente.
54
(...) em uma palavra, enquanto se aplicaram exclusivamente a obras que um só
podia fazer, e a artes que não necessitavam do concurso de muitas mãos, viveram
livres, sãos, bons e felizes, tanto quanto podiam ser pela sua natureza, e
continuaram a gozar entre si das doçuras de uma convivência independente. Mas,
desde o instante que um homem teve a necessidade do socorro de outro; desde que
perceberam que era útil a um só ter provisões para dois, a igualdade desapareceu,
a propriedade se introduziu, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se
transformaram em campos risonhos que foi preciso regar com o suor dos homens, e
nos quais, em breve, se viram germinar a escravidão e a miséria, a crescer com as
colheitas. (ROUSSEAU, 2001, p. 34)
Rousseau (2001) demonstra como o trabalho sedentário e coletivo deu
origem à propriedade, pois havia a necessidade de se distribuírem os bens produzidos
coletivamente. Além do mais, para cultivar a terra e minerar os metais, o homem
necessitou empregar sua força de trabalho com maior intensidade. As diferenças
relativas à capacidade de trabalho, à intensidade do consumo, à oferta e à procura de
recursos repercutiram diretamente nos destinos individuais. Trabalhando e
consumindo de modo desigual, em virtude das diferenças de capacidade dadas pela
natureza, o homem passou a ter maior ou menor propriedade daquilo que era fruto do
trabalho comum. Portanto, conclui Rousseau, são as regras e hábitos estabelecidos
pela cultura, por meio do convívio em sociedade, e não a natureza, os responsáveis por
criar as desigualdades entre os homens. Isso porque as regras que definem a
apropriação e a conservação dos bens seriam, para utilizar uma imagem do próprio
Rousseau, os grilhões que mantêm o homem em sua condição de escravo dos objetos
materiais. E a desigualdade entre os títulos de propriedade, fruto da desigualdade das
aptidões, trouxe, por sua vez, as diferenças relativas à riqueza e ao poder entre os
homens.
Como seria possível ao homem restabelecer a sua condição de ser livre?
Teria ele como resgatar sua liberdade natural? Como visto, o estado natural é um
“paraíso perdido”, pois não há formas de se retornar à condição primitiva, já que o
homem não possui meios de apagar os hábitos adquiridos por sua experiência cultural.
55
Sua dependência do bem-estar e dos objetos exteriores já está consolidada e é parte de
sua realidade cultural e histórica. Assim, ele precisa buscar outro tipo de liberdade,
que seja condigno com sua condição de ser civilizado.
A liberdade natural foi concebida por Rousseau como não-submissão da
vontade particular a outras vontades. Uma vez que o homem perdeu a liberdade
natural pela imposição de vontades particulares umas sobre as outras, a solução
encontrada para se repelir essas dominações será a fusão das diversas vontades em
uma só que possa representar, ao mesmo tempo, todas elas. Desse modo, as diferenças
de posição social decorrentes do processo de civilização poderiam ser neutralizadas, já
que essa convergência de vontades criaria um poder comum, do qual todos fazem
parte e ninguém é titular exclusivo:
Submetendo-se cada um a todos, não se submete a ninguém em particular, e como
não há um associado sobre o qual se adquira o mesmo direito que se cede sobre si
próprio, ganha-se a equivalência de tudo o que se perde e maior força para
conservar a que se possui.(...) Naquele instante, no lugar da pessoa particular de
cada contratante, este ato de associação produz um corpo moral e coletivo,
composto de tantos membros quanto a assembléia de votantes, o qual recebe deste
mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. (ROUSSEAU,
1969, p. 49)
O contrato social cria o Estado por meio da alienação de cada uma das
liberdades naturais ao ente coletivo. As diversas vontades particulares são todas
fundidas para dar origem a uma só vontade coletiva que passa a representar o interesse
dos componentes enquanto uma unidade. Uma vez que cada um concorre somente
com sua vontade singular para a criação da vontade geral e que nenhuma das vontades
é superior à outra, todos contribuem na mesma medida para a construção das regras de
convívio em sociedade. Há, assim, uma reconquista da igualdade, pois as eventuais
diferenças de poder e de capacidade econômica são neutralizadas. Por força da
participação de cada individualidade no processo de construção da vontade geral, tem56
se a reconquista da liberdade humana na condição política, uma vez que obedecer
regras que foram construídas em comunhão com o corpo social significa, em última
instância, uma obediência a si próprio. Essa é a proposta do contrato social de
Rousseau:
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de
cada associação, de qualquer força comum, e pela qual, cada um, unido-se a todos,
não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim tão livre como dantes
(ROUSSEAU, 1969, p. 48)
A liberdade a ser perseguida pelo homem, no estágio da vida civil, não é
mais aquela de ser individualmente capaz de bastar-se a si mesmo. Sua liberdade agora
será realizada pelo convívio em comunidade (NASCIMENTO, 1998). Para o homem
pré-social, a liberdade consistia em obedecer somente ao apelo das necessidades
naturais para a definição das regras que conduziriam seu agir. Já o homem civil obterá
sua liberdade cumprindo as regras definidas por todos para a vida coletiva.
“Submetendo-se cada um a todos, não se submete a ninguém em particular”
(ROUSSEAU, 1969, p. 49) diz Rousseau, aludindo ao fato de que a autonomia
individual dá lugar à autonomia coletiva na verificação da liberdade.
Ao sustentar que a liberdade é conquistada pelo respeito às cláusulas do
contrato social, Rousseau lança as bases de um pensamento acerca da liberdade
completamente distinto daquele articulado por Locke. Em Locke, a liberdade do
homem é encontrada naquele âmbito de exercício da vontade não restringido pelas
regras sociais ou por terceiros20. É, portanto, o espaço da privacidade que expressa a
subjetividade de cada um. Para Rousseau, esses “poderes” conferidos à vontade
particular são apenas resquícios da condição natural. Eles somente perpetuam a
20
Em linhas gerais, a liberdade em Locke é a representação daquilo que acima foi denominado de liberdade
negativa.
57
desigualdade entre os homens após o processo de socialização. Logo, essa “pseudo”
liberdade não poderia servir de modelo para a vida em sociedade. A liberdade
autêntica, própria à condição social do homem, deverá privilegiar o espaço público e é
alcançada pelo exercício das virtudes morais e cidadãs21. As duas concepções são
contrastantes22:
O homem civil não pode, portanto, reivindicar o direito à liberdade natural, sem,
com isso, estar pondo em risco a própria comunidade política. Ele só pode
reivindicar a parte que lhe cabe na associação, isto é, sua liberdade convencional e
moral, que já não depende exclusivamente da sua vontade, mas que se define pela
vontade do conjunto dos membros da associação. (NASCIMENTO, 1998, p. 34)
Segundo Rousseau, o que dá expressão ao exercício da liberdade é a
submissão aos deveres criados pelo corpo coletivo. Agindo-se em cumprimento aos
deveres elaborados por todos por meio do mecanismo do contrato social, há o
restabelece-se a autonomia:
Para que, pois, o pacto social não seja uma fórmula vã, deve encerrar tacitamente
esta obrigação: só ele pode dar força aos outros, sendo aquele que recusar
obedecer à vontade geral compelido a isso por todos, o que não significa outra
coisa senão que se lhe obrigará a ser livre, porque tal é a condição que, oferecendo
cada cidadão à pátria, esta o garante de toda dependência pessoal, natureza que
constitui o artifício da máquina política e que legitima as relações civis, as quais
sem elas seriam absurdas, tirânicas e sujeitas aos maiores abusos.(...) Poder-se-á,
sobre o que precede, acrescentar ao que se adquire com o estado civil, a liberdade
moral, que faz o homem verdadeiramente dono de si próprio, porque o impulso dos
apetites é a escravidão, e a obediência à lei que a cada um de nós se prescreve
constitui a liberdade. (ROUSSEAU, 1969, p. 53-54)
Ser livre é justamente obedecer às regras estabelecidas pelo pacto social, já
que essas regras reiteram a expressão da vontade geral e promovem o fortalecimento
do ente político que representa a todos. Quando sustenta que o “termômetro” de
verificação da liberdade humana é a realização dos papéis que o homem assume como
21
Rousseau resgata a noção antiga de liberdade, ao defini-la como liberdade positiva, ou seja, aquela que se
realiza pela contribuição para o vigor da comunidade.
22
Não é por acaso que Rawls (2002) associará as duas distintas tradições do pensamento político moderno a
Locke e a Rousseau.
58
membro de um corpo social, Rousseau inaugura um modo de compreensão daquele
conceito que ganhará destaque na história da filosofia política. Até mesmo o
pensamento liberal clássico que privilegiava a liberdade exercida “em face” do
Estado23 será reformulado por Immanuel Kant, de modo a conferir à autonomia a
chave para a compreensão moderna da liberdade moderna.
2.3.5 – A vontade livre segundo Immanuel Kant
O processo de “descentramento radical” inaugurado na modernidade
encontrará no iluminismo24, ou esclarecimento, o seu apogeu. O racionalismo radical
virá em socorro do iluminismo em seu projeto de banir do mundo moral toda ordem
que encontra na autoridade religiosa seu fundamento. O novo abrigo da moral é a
Razão. Com isso, ela passa a se submeter aos princípios que orientam a cognição do
homem. Assim, afastados os rígidos padrões de comportamento moral que a Religião
sustentava, as dimensões natural e sentimental do homem, que foram reprimidas por
tanto tempo pela dominação religiosa, ganham espaço.
O indivíduo que percebe, testa, experimenta, desenvolvendo paixões,
sentimentos e inclinações – senhor de si em todo esse processo – será o modelo de
homem desse período. No campo moral, esse naturalismo materialista levará a um
23
A expressão é Norberto Bobbio (1991).
“Na sua significação mais ampla, a Ilustração (ou iluminismo) compreende o movimento de idéias que
dominou o século XVIII europeu (cronologicamente a idade da Ilustração estende-se de 1680 a 1780, datas
convencionais propostas, por exemplo, por Pierre Chaunu), e sua repercussão nos campos político, religioso,
filosófico, científico, literário e artístico, definindo um ‘espírito’ (Geist) que marcou toda uma época e conferiu
fisionomia própria a toda uma civilização, designada exatamente como civilização da Ilustração.” (VAZ, 1991,
p.91) No que tange às peculiaridades das dimensões filosófica e científica, tem-se a seguinte descrição:
“Experiência e análise: eis os dois termos-chave da linguagem filosófico-científica da Ilustração. Eles definem
os constitutivos essenciais de uma idéia da Razão que se considera una e universal e que reconhece o seu
‘discurso do método’ na Regulae philosophandi que abrem os Principia de Newton. A ambição dessa Razão, seu
intento de conquistar todos os domínios do saber humano e de tornar-se a norma de uma pedagogia que deve
estender-se a toda a humanidade, universalizando a libido sciendi: eis o vetor fundamental que atravessa o
espaço mental da Ilustração. Dessa sorte, a linha de evolução segundo a qual Ilustração lê a história humana é
traçada segundo os progressos da Razão.” (VAZ, 1991, p.92)
24
59
relativismo moral centrado na subjetividade humana. A literatura libertina25 do séc.
XVIII e, em especial, do Marquês de Sade retratam esse momento de emancipação do
homem do jugo dos tabus religiosos (TROUSSON, 1996).
Entremeada por descrições de cenas de práticas sexuais que transgridem a
moralidade comum e, em especial, a religiosa, a obra de Sade tem em seus
personagens a expressão dessa moralidade naturalista e materialista que o iluminismo
inaugurou. Em Justine: ou os infortúnios da virtude, Sade descreve a história de duas
jovens que, durante a adolescência, perdem os pais e terão que trilhar seus rumos na
hostil sociedade burguesa nascente. Juliette, aquela que desde nova compreende e
aceita o caráter egoísta dos homens e da sociedade e age com indiferença às regras
morais e em preocupação com sua própria sorte, tem sucesso em sua trajetória de vida.
Sua dignidade vilipendiada nada significa diante dos frutos materiais colhidos. Justine,
a irmã que se apega aos valores consagrados pela virtude religiosa, sofre sucessivos
reveses em sua trajetória de vida, todos eles causados pelas ações decorrentes de sua
perseverança e obstinação moral.
O cenário e os personagens que interagem com Justine são todos produtos
dessa sociedade burguesa altamente individualista, egoísta e materialista. A seqüência
em que aparecem serve para mostrar a Juliette que o mundo da moral religiosa que ela
preza não mais existe.
Afirmou: este pão que aqui vede é a minha carne; como tal havereis de o digerir;
ora eu sou Deus e, portanto, Deus será digerido por vós, o Criador do Céu e da
Terra, tornar-se-á, porque eu o disse, na mais vil matéria que o corpo do homem
pode exalar, e o homem comerá Deus porque Deus é bom e todo-poderoso. E
entretanto estas inépcias vão-se espalhando; o seu crescimento é atribuído a sua
25
Raymond Trousson (1996) diz que a origem do termo libertino está ligada à denominação dada por Calvino a
seitas protestantes dissidentes que viveram no norte da França, que se caracterizavam por uma prática religiosa e
de costumes marcada por um anarquismo moral. No sentido em que se aplica à literatura do séc. XVIII, o termo
apresenta dois aspectos: o primeiro ligado a uma dimensão ideológica, que busca de liberdade de expressão nos
escritos contrários à moral sexual e o segundo ligado a uma ‘arte da existência’ em que o erotismo e a
sensualidade são componentes de um peculiar modo de vida.
60
realidade, grandeza e sublimidade, bem como ao poder de quem as inventou, ao
mesmo tempo que algumas causas simples duplicam a sua existência e que o
crédito, sempre dado ao erro, encontra eco nos patifes e nos imbecis. Não tardará
que esta infame religião suba ao trono e é um imperador fraco, cruel, ignorante e
fanático que, envolvendo-a no manto real, suja com ela o mundo inteiro. Que peso
poderão ter todas estas razões, Teresa, sobre um espírito reflectido e
filósofo?Poderá o sábio ver nesta colecção de fábulas espantosas algo mais do que
um produto da impostura de certos homens e da credulidade da multidão? Se fosse
vontade de Deus que nós tivéssemos uma religião, se ele fosse de facto omnipotente
ou, para dizermos tudo, se realmente houvesse Deus, seria por meios tão absurdos
que ele comunicaria suas ordens? Seria por intermédio dum desgraçado bandido
que ele mostraria como devemos servi-lo? (...) escolher como seguidor o povo mais
pérfido e mais visionário; como substituto o mais vil, o mais absurdo o mais velhaco
dos artesãos; embrulhar a doutrina de tal modo que se torna impossível
compreendê-la; limitar o conhecimento da mesma doutrina a um pequeno número
de indivíduos; deixar os outros no erro e castigá-los por isso... Não, Teresa, não!
Nenhuma dessas atrocidades serve para me guiar; preferia morrer mil vezes a
acreditar nelas. (SADE, 2001, p. 79-81)
Em oposição à moral religiosa entra em cena o hedonismo dos sentidos. A
orientação moral dada pela experiência sensível do prazer, do gozo e da satisfação,
abre campo para um completo relativismo de valores.
Ora, se podemos afirmar que o gozo dos sentidos está sempre dependente da
imaginação, é sempre regulado pela mesma imaginação, nada terão de espantoso
as numerosas variações que a imaginação sugerir nesses gozos, nada terá de
espantoso o número infinito de gostos e de paixões que os muitos desvios da
imaginação criarem. Estes gostos, por muito luxuriosos que sejam, não deverão
impressionar mais do que impressionam outros dum gênero mais simples; não há
motivo algum para se achar mais extraordinária uma fantasia de cama do que uma
fantasia de mesa; num como noutro gênero, não é mais espantoso idolatrar uma
coisa que o homem comum acha detestável de que gostar-se duma que é geralmente
reconhecida por todos como boa. A unanimidade é uma excelente prova da boa
conformação dos órgãos, mas nada prova em favor da coisa amada. Três quartos
do universo podem achar delicioso o cheiro duma rosa, mas isso não provará que
se possa condenar o outro quarto, o que o detesta, nem sequer demonstrará que tal
cheiro é verdadeiramente agradável.
Se há, portanto, no mundo seres cujos gostos vão contra todos os preconceitos, não
só não devemos espantar-nos e muito menos censurá-los ou puni-los, como devemos
servi-los, satisfazê-los, aniquilar todos os freios que os molestam e dar-lhes, se
quisermos ser justos, todos os meios de os satisfazerem sem risco. Eles são tão
responsáveis por terem esse gosto estranho como o são os que nasceram
inteligentes ou estúpidos, perfeitos de corpo ou corcundas. (SADE, 2001, p. 177)
A referência do prazer, que se impõe como medida da moral, encontra-se
na satisfação individual, criando condições para a introdução de um naturalismo
biológico em que imperaria o cálculo da felicidade individual e a lei do mais forte
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985) nas relações sociais:
61
Como vos atreveis, de resto, a dizer – prosseguiu a horrível criatura – que duzentos
luíses não valem três mortes? Devemos calcular as coisas pela relação que elas
tenham com os nossos interesses. A cessão da existência de cada um dos seres
sacrificados é, para nós, de nulo valor. É evidente que nenhum de nós daria
dinheiro para que tais indivíduos continuassem vivos ou fossem enterrados; se,
portanto, um caso semelhante pode reverter em benefício nosso, é nosso dever
determiná-lo de preferência em nosso favor; porque, tratando-se de alguma coisa
totalmente indiferente, temos a obrigação, se formos espertos e senhores do que
fazemos, de virar claramente para o lado que mais proveito nos traga, abstraindo
completamente do prejuízo que daí advenha par o adversário; porque não há
qualquer proporção razoável entre o que nos toca e o que toca aos outros; aquilo
sentimo-lo fisicamente, enquanto isto só o sentimos moralmente e todas as
sensações morais são enganosas; só nas sensações físicas há verdade. (SADE,
2001, p. 51)
Ou como se verifica nesse outro trecho:
Os homens nasceram todos isolados, invejosos, cruéis e déspotas; almejam possuir
tudo e nada ceder, lutam incessantemente para manter ora a ambição ora os
direitos que possuem; chega o legislador e diz: não combatais dessa maneira; se
cederdes um pouco de parte a parte, a tranqüilidade há-de voltar... Não censuro a
posição deste pacto, afirmo tão-somente que há duas espécies de indivíduos que
nunca o aceitaram; os que se sentem mais fortes não precisam ceder para serem
felizes; os mais fracos teriam sempre de ceder infinitamente mais do que lhes era
concedido. Mas a sociedade é, efectivamente, composta de seres fortes e de seres
fracos; se o referido pacto tivesse de agradar a uns e a outros, nem por sombras
seria doa grado da sociedade e o anterior estado de guerra passaria a ser
preferível, pois concederia a cada um o livre exercício de suas forças e da sua
astúcia, exercício de que fora privado pelo injusto pacto duma sociedade, que
sempre roubava sempre muito a um, nunca dando o suficiente ao outro.
Verdadeiramente sensato é, portanto, aquele que, com risco de voltar ao estado de
guerra anterior ao pacto, viola-o como pode, certo de que o ganho de tais lesões
há-de ser sempre preferível a tudo quanto possa perder no caso de ser o mais fraco;
porque fraco não deixaria de o ser, se respeitasse o pacto; violando-o, tem
possibilidades de vir a ser o mais forte; e se as leis o forçarem a regressar à classe
de ele desejava sair, a única coisa que poderá perder é a vida, desgraça
infinitamente menor do que uma existência humilhada e miserável. (SADE, 2001, p.
54-55)
Seguindo o espírito iluminista, Sade (2001) mostrou que a filosofia moral
de sua sociedade emprega a racionalidade de uma maneira cega em relação aos fins
concretos a que se destina. Segundo Adorno & Horkheimer (1985) toda a filosofia
moral iluminista compartilharia com Sade essa mesma característica de pregar uma
razão desvinculada de seu substrato. Mesmo o extremo oposto do anarquismo moral
62
de Sade, que se encontra na ética do dever de Immanuel Kant, por exemplo, guardaria
semelhante característica. Ambas seriam faces distintas de uma mesma moeda.
A questão central que orienta o pensamento de Kant acerca da liberdade é:
de que modo o homem é capaz, ele próprio, de elaborar uma lei moral racional que
pautará sua conduta de vida, sem que essa lei dependa de fatores sociais externos ou
de contingências particulares? John Rawls (2002) responde o que significa tal questão
para Kant:
Kant acreditava, julgo eu, que uma pessoa age de modo autônomo quando os
princípios que norteiam suas ações são escolhidos por ela como a expressão mais
adequada possível de sua natureza de ser racional igual e livre. Os princípios que
norteiam suas ações não são adotados por causa de sua posição social ou de seus
dotes naturais, ou em vista do tipo particular de sociedade em que ela vive ou das
coisas específicas que venha a querer. Agir com base em tais princípios é agir de
modo heterônomo. (RAWLS, 2002, p. 276)
Assim, Kant (1974a) buscava um fundamento para as regras morais que
não tomasse o prazer ou o bem como última referência. Segundo ele, a experiência de
prazer e de dor, que dá origem aos bens particulares de cada um, apenas produziriam
um conhecimento de tipo contingente cuja validade restringir-se-ia à situação
vivenciada. Portanto, esse critério não serviria para tratar a liberdade como um tema
científico, pois lhe faltaria o rigor exigido para essa forma de saber. Para que a
liberdade fosse encarada de um ponto de vista científico, seria necessário que fosse
concebida como um conceito puro, ou seja, como produto exclusivo da atividade da
razão (1974b). Somente assim ganharia status de um conhecimento de validade
universal e, portanto, aplicável a todas as situações de convivência humana.
Segundo Kant (1974b), um conhecimento somente pode ser tratado como
puro quando é produto exclusivo da atividade da razão. Assim, é preciso que as
assertivas construídas na elaboração desse conhecimento sejam independentes de
63
qualquer fonte empírica. Se isso ocorre, os juízos produzidos podem ser denominados
de juízos a priori, já que são produzidos antes de qualquer experiência sensível que os
comprove. Eles se contrapõem aos juízos a posteriori, que são formulados após a
percepção de um evento do mundo empírico pela sensibilidade e organizados pelo
entendimento26. Assim, como Kant pergunta-se pela possibilidade de a liberdade ser
um conceito puro, a primeira questão que se empenha a responder é: como é possível
que a liberdade seja pensada sob a forma de um juízo sintético a priori27?
Ao fazer uma análise dos limites do conhecimento humano, denominado
de razão teórica28, Kant constata que nem todos os movimentos se submetem ao
princípio da causalidade29 que rege a natureza. Haveria movimentos originários, isto
é, movimentos que não são efeitos de uma causa anterior que os determina. Como
esses movimentos originários não são regidos pela determinação causal, não poderiam
ser explicados pelo entendimento nem pela sensibilidade, pois essas duas categorias
transcendentais30 lidam apenas com a apreensão e a organização da experiência
26
Os axiomas e teoremas matemáticos, assim como os princípios da física, são bons exemplos de juízos a priori.
Na assertiva todo corpo tem massa não há a necessidade de qualquer referência à experiência para se comprovar
a veracidade da afirmação. Por outro lado, todos os juízos que são construídos em referência a uma experiência
ocorrida podem ser qualificados de juízos a posteriori, como, por exemplo, quando se afirma que a parede é
branca ou o ferro está quente. Para a formulação desse tipo de juízo são imprescindíveis a sensibilidade e o
entendimento, responsáveis por captar e organizar o conhecimento empírico que o homem adquire sobre o
mundo.
27
Enquanto os juízos sintéticos a posteriori retiram a sua validade da experiência sensível, os juízos sintéticos a
priori são aqueles que acrescentam um predicado ao sujeito com exclusivo recurso à razão.
28
Kant analisa separadamente a atividade da razão humana, criando-se assim a distinção entre razão pura (ou
teórica) e razão prática. No entanto, essa distinção se faz tão somente em função da diferença dos objetos com as
quais cada uma delas trabalha, conforme explica Otfried Höffe(2005): “A razão prática não é nenhuma outra
que a razão teórica; só há uma razão, que é exercida ou prática ou teoricamente. De modo geral, a razão
significa a capacidade de ultrapassar o âmbito dos sentidos, da natureza. A ultrapassagem dos sentidos pelo
conhecimento é o uso teórico, na ação é o uso prático da razão.” (HÖFFE, 2005, p.187-188)
29
O princípio da causalidade aqui referido é aquele cuja formulação original se remete à filosofia empirista de
origem anglo-saxônica. Sua formulação mais célebre foi dada pelo filósofo David Hume (1973). Por tal princípio
se aduz que todo o nosso raciocínio sobre questões de fato se baseia em encontrar relações de causa e efeito nas
experiências que o aparelho cognitivo humano percebe. Kant não faz reparos à formulação do princípio da
causalidade “O princípio diz que uma sucessão temporal só pode ser conhecida como mudança de um objeto e,
portanto, como objetivamente válida se a sucessão não depende do arbítrio do percipiente, mas é verificada
como caso de uma regra de causa-efeito e por isso – relativamente à sucessão dos fenômenos – como não
reversível.” (HOFFE, 2005, p. 132)
30
O conceito de transcendental em Kant possui um caráter peculiar de sua filosofia, pois se refere a tudo aquilo
que se apresenta como uma condição a priori para o conhecimento. São categorias transcendentais, portanto,
64
ocorrida no mundo sensível (LANDIM, 1996). Logo, porque no mundo dos
fenômenos não há uma antecedente ao movimento originário, o entendimento fica
impossibilitado de formular juízos a posteriori acerca desse movimento.
Desse modo, os movimentos originários devem ser explicados sem que se
faça referência à experiência sensível. Assim, o conhecimento que se constrói acerca
deles só poderá ser um produto exclusivo da reflexão racional e, por tal motivo, é
expresso sob a forma de juízos a priori.
Qual seria o fundamento dos movimentos originários, que não pode ser
apreendido pela sensibilidade que capta os fenômenos empíricos? A vontade31,
responde Kant (1974a). A vontade é uma idéia elaborada pela razão pura para explicar
o movimento espontâneo. É pela presença desse elemento na constituição do
movimento originário tornando-o independente das determinações naturais que, para
Kant, tem-se a liberdade como uma possibilidade.
Assim, Kant conseguiu responder de que modo a liberdade pode ser
pensada por meio de juízos a priori, pois a liberdade é explicada por referência ao
conceito de vontade cuja elaboração é produto exclusivo da razão.
No entanto, a razão pura somente pode dizer acerca da liberdade que, para
que seja um conceito puro, não pode ser fundamentada em nenhum aspecto empírico,
mas sim na própria atividade da razão. Exceto isso, a razão pura cala-se sobre como
deverá ser constituída a vontade que dá origem à liberdade. Para que o conceito de
liberdade se concretize, é preciso que entre em cena a razão prática, responsável por
aquelas integram a razão pura e que se encontram expostas na Analítica, Dialética, Estética , Lógica, etc...
Transcendental, para Kant não se identifica com transcendente. O transcendente é associado a tudo aquilo que
ultrapassa a experiência possível (BINI, 2003).
31
Nas palavras de Kant, a vontade se define como “A faculdade do desejo cujo fundamento determinante (...) se
encontra na razão do sujeito (...)” (KANT, 2003, p. 62-63) ou ainda “(...) a vontade é a faculdade de escolher só
aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer,
como bom.” (KANT, 1974a, p.217)
65
analisar como são elaboradas as ações determinadas pela vontade – a razão que
responde à pergunta “como devo agir?”.
Como visto, a razão teórica constatou que os movimentos não
determinados pela natureza necessitam da vontade para serem gerados. O movimento
somente será autônomo quando aquilo que o determina é a vontade e não reações a
estímulos que vêm do exterior (inclinações). Assim, a liberdade residirá em uma
vontade que se determina pela atividade da razão e não por estímulos vindos da
sensibilidade, das sensações de prazer e de dor, do agradável ou do desagradável. A
constituição da moralidade decorre dessa capacidade de colocar de lado as influências
sensíveis e agir em conformidade com um dever que decorre exclusivamente da
vontade racional.
Assim, para que a razão prática tenha origem na vontade, e somente nela, é
preciso que as ações humanas não tenham origem nos apelos dos móbeis sensíveis ou
da experiência, pois, nesse caso, elas seriam determinadas pela causalidade natural,
fazendo com que o fundamento dessa ação se encontrasse em algo externo ao homem.
É somente por meio da causalidade espontânea que se verifica a liberdade. Do mesmo
modo, as ações determinadas por móbeis sensíveis seriam contingentes e, assim, não
poderiam ser universalizadas para toda ação humana.
Portanto, para alcançar a liberdade, o homem deverá abandonar a
experiência como fundamento de suas ações. Em seu lugar, deverá adotar leis
racionais que ele próprio constrói e que representam a sua vontade, não influenciada
por qualquer inclinação dos sentidos.
Somente quando a ação do homem se fundamenta em leis, ela adquire o
atributo da necessidade e da universalidade. Como a vontade cria tais leis que servirão
66
de guia para o agir? Ela deverá elaborar máximas32 que tornem possível a
universalização da conduta moral. Máximas são universalizadas se transformadas em
dever somente se preencherem o requisito contido naquilo que Kant (1974b) chama de
imperativo33 categórico34. Ao construir máximas para o agir que atendam às
exigências do imperativo categórico, a vontade humana conquista sua autonomia, pois
a conduta moral, agora universalizável, terá condições de ser fruto de uma lei que o
homem prescreve a si próprio35. O agir em conformidade com a sensibilidade
possuiria o atributo da heteronomia, o que implicaria a submissão da vontade a um
elemento externo à razão, quando da formulação das máximas do agir. Com isso, a
moralidade e por conseguinte a liberdade humana estariam condenadas:
Porque a moralidade é incondicional e válida de modo estritamente universal, mas
a felicidade, como contentamento com o todo da existência, depende da
constituição (individual, social e genérica) do sujeito, de suas inclinações, de seus
instintos e necessidades, de seus interesses, nostalgias e esperanças, bem como das
possibilidades que os mundos natural e social oferecem, em uma palavra: porque a
felicidade pelo seu conteúdo é variavelmente condicionada empiricamente, não
se presta para a lei universal e não pode fornecer o fundamento determinante da
moralidade. (HÖFFE, 2005, p. 218) (grifos nossos)
A estrutura metodológica construída por Kant para garantir a liberdade do
indivíduo por meio da ação moral será transposta para o Direito, de modo a que essa
32
“Máximas são condutas fundamentais que dão a uma multiplicidade, e também a uma variedade de objetivos
concretos e de ações, sua direção comum. Segue uma máxima quem vive segundo o propósito de ser respeitoso
ou irreverente, de responder a ofensas respeitosa ou magnanimamente, de portar-se solícita ou indiferentemente
em situações de necessidade.” (HÖFFE, 2005, p.204)
33
Um imperativo é a expressão (sob a forma de um dever) de um mandamento objetivo elaborado pela razão sob
a forma de uma representação. Os imperativos constituem uma obrigação para a vontade, caso ela queira que sua
ação prática seja necessária.
34
Um imperativo categórico contém um mandamento que deve ser cumprido por tal ordem representar uma
finalidade encerrada em si mesma, ou seja, que retira sua validade exclusivamente do cumprimento da própria
ação. O imperativo categórico se diferencia do imperativo hipotético, pois neste o mandamento apresenta-se
como o meio necessário para se atingir outra finalidade que não se encontra no cumprimento da própria ação.
“Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a
necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer coisa que se quer (ou que é possível
que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente
necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade.” (KANT, 1974a, p.218-219)
35
Uma das formulações do imperativo categórico moral é a seguinte: “Age apenas segundo uma máxima tal que
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1974a, p.223)
67
mesma liberdade possa existir na convivência das pessoas em sociedade (HÖFFE,
2005). Assim, para que uma sociedade seja livre, seu Direito deverá ser elaborado
como uma categoria a priori, isto é, criado a partir de regras que prescindam da
experiência concreta e da busca da felicidade em sua fundamentação.
Diferentemente da ação moral, o Direito destina-se à liberdade dos
comportamentos externos dos indivíduos em sociedade. Preocupa-se com o conteúdo
do agir externo de sujeitos capazes, responsáveis por suas ações (KANT, 2003). Do
mesmo modo como o imperativo categórico moral se presta a avaliar as máximas que
regem as condutas individuais para a aferição de sua liberdade – pela existência de
uma vontade autônoma – há também um imperativo categórico que prescreve como se
deve avaliar a conduta jurídica para que ela torne passível de universalização e institua
a liberdade externa dos indivíduos:
Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo
com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um
puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal. (KANT,
2003, p. 76-77)
Para que essas ações sejam livres, é preciso, assim, que o Direito seja capaz
de garantir sua coexistência com as demais, sob o comando de uma lei universal. Em
outras palavras, para Kant, a liberdade do indivíduo encontra seus limites na
possibilidade de ofensa à liberdade dos demais. Assim, a liberdade jurídica nunca será
entendida como a possibilidade de se fazer tudo aquilo que o arbítrio determinar.
Muito pelo contrário, a coercibilidade é a característica fundamental do Direito. É
somente pela possibilidade do recurso à força que o Direito encontra um modo de
garantir o cumprimento de seus preceitos aplicáveis a todos os cidadãos. A liberdade
jurídica é justamente a submissão às regras do Direito, já que são essas regras que
68
garantem que os comportamentos necessários ao convívio em sociedade sejam
universalizáveis36.
Portanto, Kant (2002) criticará duramente Hobbes e toda a tradição do
pensamento político que vê como função do Estado a promoção do bem-estar como
forma de se proporcionar a liberdade da sociedade. Inserir a busca da felicidade entre
as finalidades do Direito significaria condicioná-lo à particularidade e à contingência
de uma determinada situação histórico-cultural. Suas regras deixariam de ser fruto de
um conhecimento a priori e, portanto, não contariam com o atributo da universalidade
própria da atividade racional. As regras de direito também não seriam a expressão
livre dessa sociedade, pois, condicionadas por circunstâncias contingentes colocadas
pelo ambiente exterior, não atenderiam à condição de serem regras oriundas de uma
vontade racional que representa leis a si mesma.
De acordo com Kant, Hobbes tratara a sociedade como uma associação que
consideraria tão-somente os fins que cada um dos homens de fato têm (egoísticos), e
não aqueles fins que eles deveriam ter – quais sejam, os de tomarem a si próprios
como finalidades em si mesmos (KANT, 2002). Por esse motivo, cada um daria
primazia a sua felicidade em detrimento da liberdade de todos, já que essa associação
hobbesiana se destinaria a que cada um, inclusive o Estado, perseguisse seu próprio
objetivo empírico.
Em uma sociedade em que o Estado e o Direito se propõem a perseguir fins
empíricos (bens), que são contingentes e particulares, as regras do Direito seriam
sempre imperativos hipotéticos, pois serviriam apenas de meio para se alcançar algum
desses fins particulares. Todavia, bens são sempre particulares e contingentes – pois
aquilo que traz o bem a cada indivíduo é algo peculiar à experiência de cada um.
36
É interessante notar que, a partir dessa argumentação, Kant consegue conciliar a dimensão da liberdade com o
poder de coerção do Estado, o que era uma dificuldade para a tradição contratualista liberal, que tratava a
liberdade como simples expressão volitiva do indivíduo.
69
Assim, a instituição de regras gerais para a consecução de tais fins empíricos, como
objetivos a serem alcançados pela sociedade, implicaria que o fenômeno do Direito
seria sempre a submissão de uma particularidade a outra (seja essa particularidade um
grupo ou indivíduo).
Desse modo, o que importaria para a realização da liberdade em sociedade,
segundo Kant, não seria a realização de um bem, por mais superior que esse pudesse
ser, já que, de todo modo, seria sempre a expressão de uma particularidade. Seria
preciso que se preservasse, por meio do Direito, as condições que permitissem cada
indivíduo a perseguição de seus próprios bens particulares, definidos por cada um
deles de acordo com o que sua experiência pessoal lhes diz ser a felicidade:
Ninguém me pode constranger a ser feliz à sua maneira (como ele concebe o bemestar dos outros homens), mas a cada um é permitido buscar a felicidade pela via
que lhe parecer boa, contanto que não cause dano à liberdade de os outros (isto é,
ao direito de outrem) aspirarem a um fim semelhante, e que pode coexistir com a
liberdade de cada um, segundo uma lei universal possível. (KANT, 2002, p. 75)
Kant conceberá de modo mais aprimorado o princípio liberal que prescreve
a prioridade do justo sobre o bem. Seus antecessores justificaram a necessidade da
proteção à liberdade por meio de um sistema de direitos por ser o modo mais justo,
dentre todos37, de se conviver em sociedade (como fez Locke, por exemplo). Com
Kant38, a proteção à individualidade, realizada pelo Direito, torna-se a condição
37
Em John Locke a defesa do liberalismo apela para a superioridade moral de valores do governo que consagra
os Direitos Naturais (SANDEL, 2000). Como os ditames da lei natural determinam o modo mais racional de
convívio entre os homens, o governo mais justo é aquele que os consagra.
38
Essa discussão sobre a natureza do liberalismo proposto por Kant é apresentada por Sandel (2000), ao dizer
que, a partir de Kant, estabelece-se o que se denomina de “liberalismo deontológico”. A perspectiva
deontológica marcaria uma justificativa especial do liberalismo, por priorizar o justo sobre o bem, não somente
porque aquele possuiria uma qualidade superior a este, mas sim pelo fato de que essa prioridade decorre do fato
de que essa seria a única possibilidade de se estabelecer uma lei moral para o homem. No entanto, para
fundamentar essa prioridade do justo sobre o bem como condição para a lei moral, o liberalismo deontológico de
Kant exigiria que o sujeito que cria essa lei moral fosse transcendental, ou seja, que ele fosse anterior aos objetos
sobre o qual se debruça (a moral) e independente dos constrangimentos decorrentes das condições pessoais e
70
exclusiva da justiça. O sistema de direitos fundamentais garantiria a cada um dos
membros da sociedade a capacidade de ser livre para perseguir seus próprios fins
pessoais. E não haveria nada mais a se acrescentar à noção de justiça além dessa
garantia da possibilidade de livre expressão da vontade dos indivíduos.
2.4 A polissemia da liberdade moderna
A partir dessa reconstrução da história do conceito de liberdade, foi
possível compreender suas diversas facetas, tal como expresso na tradição filosófica
do pensamento político moderno. Do mesmo modo, foi possível identificar o que essas
proposições sobre a liberdade viriam a representar em termos políticos e práticos.
Como visto, para os antigos, a liberdade era concebida como o exercício
das liberdades políticas e da vida pública e a verificação da liberdade poderia ser
auferida pela soberania do ente coletivo e da participação dos cidadãos na construção
dessa soberania. O conceito antigo de liberdade, em sua formulação aristotélica, não
levava em consideração a dimensão individual, para se preocupar com a eudaimonia
da pólis. A tendência a se radicar a liberdade na dimensão individual do homem não
fará desaparecer a presença do conceito antigo de liberdade na especulação filosófica.
Muito pelo contrário, a formulação de Rousseau sobre a liberdade será justamente uma
tentativa de reconciliar a individualidade e o papel da vontade com a necessidade de se
pensar a liberdade em termos de participação política. Sendo assim, tem-se que a
liberdade moderna não é incompatível com sua faceta “positiva”. Essa dimensão da
sociais que geram as inclinações. Este debate está na base da controvérsia contemporânea entre liberais e
comunitaristas e será abordada mais adiante nesse trabalho.
71
liberdade influenciará, como se verá adiante, as teorias da justiça que pretendem, pela
abolição de toda e qualquer forma de exploração do homem sobre o homem, a
realização de sua liberdade e, assim, da justiça.
No entanto, é incontestável que o conceito de liberdade passa por um
processo de deslocamento da esfera coletiva para a individual. Passará cada vez mais a
se identificar com o exercício da vontade de cada um. A doutrina epicurista contribui
muito para esse processo, já que situa a medida de verificação da liberdade na
felicidade individual, encontrada nas sensações de prazer e de dor experimentadas por
cada um. Também a análise de Santo Agostinho sobre o livre-arbítrio dos homens irá
mostrar que o exercício da vontade individual não é incompatível com, e é mesmo
pressuposta pela liberdade prescrita pela ordem divina. Esses autores mostram o
percurso trilhado pelo conceito de liberdade para alcançar a sua configuração
moderna.
O traço que distingue o conceito moderno do conceito antigo de liberdade é
o privilégio dado ao espaço da individualidade e do exercício da vontade na
caracterização do exercício da liberdade39.
Na modernidade, cada vez mais, os direitos individuais, garantidos sob a
égide do Estado de Direito, serão a expressão da liberdade moderna. Entretanto,
mesmo o conceito moderno de liberdade não apresenta uma expressão unívoca.
Hobbes, por exemplo, concederá destaque à dimensão material da liberdade, ao
sustentar que o aperfeiçoamento do exercício da liberdade exige a concretização da
ação que satisfaz o impulso volitivo, isto é, que somente há liberdade quando o
conteúdo da vontade se traduz em atos que a ela correspondam. A primazia da faceta
39
Mesmo um autor como Rousseau, que entende que a expressão da liberdade se caracteriza com a participação
política dos cidadãos em comunidade, fundamenta a conquista da liberdade no exercício da vontade do homem.
Participar da constituição da vontade geral é o modo que o homem civilizado possui de reconquistar sua
liberdade. As virtudes que promovem a liberdade são definidas pela coletividade, mas a adesão às regras que
realizam a liberdade é individual.
72
material da liberdade na elaboração de teorias contemporâneas sobre justiça
representará uma bifurcação no caminho comum que trilhavam direitos individuais e
justiça. Como a liberdade e a justiça se realizariam pelo efetivo acesso a meios que
permitem ao homem concretizar a sua vontade, os direitos individuais somente devem
ter lugar na medida em que auxiliam a promoção de tais meios. No entanto, caso as
circunstâncias da justiça40 apontem que os direitos individuais se colocam como
óbices à implementação dos meios que realizam a liberdade material, deverá
prevalecer a justiça material em relação aos direitos materiais.
Em contrapartida, pensamentos como o de Locke e o de Kant sustentam
que a justiça exige simplesmente que a manifestação da vontade humana, no convívio
em sociedade, seja autêntica e não sofra qualquer tipo de interferência ou de
intervenção, identificando-a com as dimensões formal e negativa da liberdade. Nesses
autores, ao contrário de Hobbes, o que garante a justiça é justamente o
estabelecimento de um sistema de direitos que venha a garantir a liberdade. Assim,
tem-se por conseqüência que as teorias da justiça que tomam esses dois autores por
referência darão primazia ao cânone do pensamento liberal que determina que se deva
garantir – por meio de um conjunto de direitos – a propriedade-de-si e do fruto do
trabalho de cada um. São essas as condições que permitem a cada um encontrar a sua
própria felicidade.
Como visto, a fundamentação do liberalismo difere de Locke para Kant.
Neste último, tem-se a elaboração mais aprimorada do sentido moderno do conceito de
liberdade, porque essa liberdade é justamente o que possibilita a expressão da
moralidade do homem. A constituição racional e apriorística da liberdade, feita por
40
O termo é de David Hume e significa o “conjunto das condições que obrigam as sociedades humanas a
estabelecer as regras de justiça, ou seja, por um lado, as condições objetivas de igualdade e de relativa escassez
de recursos e, por outro lado, as condições subjetivas constituídas pelos conflitos de interesse” (AUDARD In:
RAWLS, 2000, p. 375).
73
Kant, terá como conseqüência o fato de que é somente pelo Direito que o homem tem
condição de ser livre. Logo, ele possui uma superioridade de fundamento que o torna
inviolável em nome de qualquer outro fim que se possa estabelecer. Sendo assim,
considerações sobre o bem-estar, a felicidade ou mesmo a igualdade material e política
dos indivíduos em sociedade devem ser subordinadas à estrutura que garante os
direitos individuais de exercício da liberdade.
Contudo, em pouco tempo de vivência cultural da sociedade industrial, as
questões relativas ao bem-estar e à desigualdade de acesso a bens materiais, em suma,
à distribuição de recursos no seio de uma sociedade, ganharam destaque, já que o
sistema capitalista de produção tende a uma grande concentração de bens nas mãos
daqueles que detêm os meios de produção. Assim, o problema da justiça,
compreendido como a distribuição de recursos em condições de escassez, dissocia-se,
em princípio, das questões que se ligam às dimensões negativa e formal da liberdade,
dando origem às diversas teorias contemporâneas da justiça. A análise de como essas
teorias da justiça tratam os diversos aspectos da liberdade moderna será o objeto do
capítulo seguinte.
74
3 ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS DE TEORIA DA JUSTIÇA
3.1 Quatro modos de se responder à mesma pergunta
No capítulo anterior foi mostrado como o discurso filosófico deu contorno
às diversas facetas do conceito de liberdade. Foi analisado também como o conceito de
liberdade presente no liberalismo clássico de Locke e Kant não abrange o conjunto de
todas as facetas assumidas pela liberdade nas diversas formulações realizadas pelo
pensamento moderno, ou seja, o conteúdo daquilo que significa “liberdade” para a
cultura e o pensamento modernos é mais extenso do que a moldura proposta pelo
liberalismo clássico. As colocações de Hobbes e Rousseau mostram que a liberdade
não se restringiria somente às suas dimensões formal e negativa, mas que também as
dimensões material e positiva fariam parte dessa idéia.
No entanto, a formulação do liberalismo clássico ocorreu ainda no
momento de nascimento da era moderna, em especial durante os séculos XVII, XVIII
e início do século XIX. Durante esse período, as questões relacionadas à liberdade das
pessoas e dos povos se referiam muito mais a aspectos políticos do que econômicos. A
indagação acerca do que seria uma sociedade livre ligava-se ao modo como esta
sociedade deveria organizar e distribuir o poder político de modo legítimo, extraindose daí o critério e a medida da justiça. Esse questionamento orientou a produção
intelectual dos filósofos e políticos que discorreram sobre a liberdade. As questões
ligadas à importância da atuação política na estrutura econômica não se colocavam de
75
modo latente, mas apenas acessório à pergunta sobre qual a forma política do governo
mais justo.
Com o advento do século XIX, as condições sociais, culturais e econômicas
da era moderna sofreram grande e rápida modificação em sua estrutura, por força da
consolidação do capitalismo enquanto modo de produção41 dominante na sociedade.
Esse momento pode ser identificado, cronologicamente, com o advento da Revolução
Industrial42. A partir da Revolução Industrial, o Direito e as liberdades jurídicas, que
garantiam a estrutura do livre mercado inclusive para contratação e alocação da força
de trabalho operária, serviram como alicerce de sustentação das desigualdades sociais
que o sistema capitalista trouxe consigo. Dessa maneira, o discurso da “liberdade”
passou a representar o discurso da desigualdade quanto às condições econômicas,
sendo, portanto, a nova fonte da injustiça, já que uma grande disparidade se colocava
entre pessoas de diferentes classes no que tange ao acesso a bens materiais e
oportunidades de vida.
41
Adota-se o conceito do materialismo histórico para definir modo de produção. O materialismo histórico pode
ser resumidamente descrito do seguinte modo: “(...) a tese nuclear do materialismo histórico – embora rejeitada
por alguns marxistas – é a de que as diferentes organizações socioeconômicas da produção que caracterizam a
história humana surgem e desaparecem segundo venham a impedir a expansão da capacidade produtiva da
sociedade. (...) As relações de produção, que devem corresponder ao nível produtivo da sociedade, ligam as
forças produtivas e os seres humanos no processo de produção. Essas relações são de dois tipos gerais: de um
lado, há as relações técnicas necessárias ao funcionamento do processo prático de produção; do outro, as
relações de controle econômico (cuja forma jurídica é a propriedade) que regulam o acesso às forças
produtivas e aos produtos. (...) Os diferentes tipos de estrutura econômica são diferenciados pelas relações de
produção sociais neles existentes.” (BOTTOMORE, 2001, p.260). Por conseguinte, Marx caracteriza o modo de
produção como se segue: “Na produção social da sua existência, os homens estabelecem determinadas,
necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de
desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura
econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o
desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral” (MARX, 2003, p.5)
42
A Revolução Industrial é um processo de transformação econômica no setor industrial, agrícola e de
transportes que tem origem na Inglaterra e posteriormente se expande para os demais países do continente
europeu e algumas nações industrializadas como os Estados Unidos, o Japão e a Rússia. Caracteriza-se por
descobertas científicas e tecnológicas que levam à adoção de intensa mecanização do processo de produção, em
detrimento do sistema manufatureiro antes existente. Assim, no que concerne à principal fonte responsável pela
produção industrial, há paulatina substituição da força motriz humana pelo emprego de maquinário movido a
combustíveis fósseis diversos. Isso implica também na reorganização do ambiente produtivo, que passa a se dar
no ambiente fabril, segundo um acentuado processo de divisão do trabalho (BROWNE, 1973)
76
Assim, as considerações sobre a justiça deveriam necessariamente envolver
a distribuição dos bens sociais na sociedade, já que a garantia da liberdade “liberal”,
por si só, seria incapaz de preencher os requisitos da justiça. Os direitos individuais,
que antes representavam exclusivamente a “liberdade”, passaram a ser apenas um
dentre os bens sociais a ser distribuídos para se alcançar a justiça. E diversas foram as
teorias formuladas sobre o melhor modo de organizar as instituições sociais de modo a
se obter a mais justa distribuição desses bens.
A ênfase que cada escola de pensamento dá aos aspectos da liberdade e,
portanto, ao modo como os bens sociais devem ser distribuídos em uma sociedade de
modo justo, dará origem às abordagens contemporâneas da teoria da justiça43 (VAN
PARIJS, 1997). A teoria da justiça compõe-se de conjuntos de respostas, sistemáticas
e orientadas por um princípio unificador, à pergunta “O que as instituições sociais e
jurídicas de uma sociedade devem levar em conta para se obter uma sociedade justa?”.
Van Parijs (1997, 2003) divide as correntes que se candidatam a fornecer os elementos
de uma sociedade justa no pensamento contemporâneo em quatro: o utilitarismo, o
marxismo, o libertarianismo e o liberal-igualitarismo44.
Este capítulo dedica-se a analisar o conteúdo de cada uma dessas doutrinas
e quais os seus argumentos em favor dos critérios que elegem como responsáveis por
realizar a justiça em uma sociedade. Ao final do capítulo será feito um balanço do
43
As teorias da justiça que se opõem ao liberalismo, como o marxismo e o utilitarismo, também o fazem porque
têm em vista a distribuição justa da liberdade. No entanto, o que eles defendem é um conceito de liberdade
distinto daquele sustentado pelos liberais, que não se restringe apenas às dimensões formal e negativa, mas que,
ao contrário, privilegia suas dimensões material e positiva. (VAN PARIJS, 1997; ARNSPENGER; VAN
PARIJS, 2003)
44
Para Arnspenger e Van Parijs (2003) somente essas quatro escolas teriam o condão de responder à pergunta
acerca dos critérios de justiça para uma sociedade dentro do marco da modernidade. Esse marco se define por
conceber a justiça sem o recurso a uma concepção particular de bem, isto é, sem recorrer a uma concepção
específica de “vida boa”. Logo, ele não discutirá as abordadas colocadas pelas teorias éticas de inspiração cristã
tradicional ou o comunitarismo, exceto nos pontos em que as críticas eventualmente colocadas por tais as teorias
venham a questionar a própria viabilidade de se pensar a teoria da justiça moderna. Exclui-se da discussão
também as denominadas posturas ideológicas, tais como o “feminismo”, “os ecologistas”, “a social-democracia”
ou o “neoliberalismo”. Segundo os mesmos autores (2003) tais posturas ideológicas são matizes interpretativos
ou reinterpretativos de posturas éticas fundamentais já consolidadas nas quatro correntes acima expostas.
77
potencial de cada uma delas para fornecer os critérios de justiça de nossas sociedades
contemporâneas.
3.2 O utilitarismo
O iluminismo45 surgiu com a proposta de banir das formas do
conhecimento científico toda e qualquer explicação para fenômenos da realidade que
fosse baseada em saberes decorrentes da superstição humana46. No bojo desse grande
movimento, ganhou destaque a vertente empirista47 anglo-saxônica que sustentava que
as explicações que não fossem fruto de experiências positivas – aquelas denominadas
de “metafísicas” – não deveriam servir de critério de verdade para a ciência (VAZ,
2002). O utilitarismo é um dos desdobramentos dessa visão de mundo que busca
atribuir fundamentos empíricos para justificar a ação prática e os deveres humanos. Ao
invés de buscar os fundamentos dos fenômenos morais, dos deveres e direitos e da
solidariedade pelo recurso a expedientes metafísicos tais como “direitos naturais”,
“leis naturais”, “essência do homem”, dentre outros, o utilitarismo apresenta os
45
Para a caracterização do iluminismo como movimento de idéias culturais e científicas, remete-se o leitor ao
tópico 2.3.5, nota 24.
46
Adorno e Horkheirmer (1985) aduzem que o intento do iluminismo, ou esclarecimento é uma apologia ao
potencial de dominação do homem sobre a natureza e sobre os demais homens e sobre si próprio. “No sentido
mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os
homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o
signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta
era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. (...) Apesar de seu alheamento à matemática, Bacon
capturou bem a mentalidade da ciência que se fez depois dele. O casamento feliz entre o entendimento humano e
a natureza das coisas que ele tem em mente é patriarcal: o entendimento que vence a superstição deve imperar
sobre a natureza desencantada. O saber que é poder não conhece barreira alguma, nem na escravização da
criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.17-18)
47
O empirismo anglo-saxônico encontra origem no nominalismo de Guilherme de Ockham (TILLICH, 1988?),
tem como precursor moderno Francis Bacon (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) e encontra sua maior
expressão nos autores George Berkeley, Thomas Hobbes, John Locke, Francis Hutcheson e David Hume.
(RAWLS, 2005; VAZ, 1991, 2002)
78
critérios concretos pelos quais a ação moral deve ser avaliada: a constituição biológica
do homo sapiens e sua capacidade de sentir prazer e dor (VAN PARIJS, 1997).
No entanto, ao se falar do utilitarismo, é necessário de deixar claro que suas
proposições tomam a forma de uma concepção moral geral e abrangente.48 Assim,
ainda que intimamente relacionada a essa doutrina moral, a teoria da justiça utilitarista
é algo que se distingue da filosofia moral utilitarista49. Portanto, a primeira tarefa da
seção será a de circunscrever com nitidez o que é próprio a cada uma das respectivas
dimensões política e moral do utilitarismo, pois os objetos a que se referem são
diferentes.
Além do mais, o utilitarismo é uma doutrina em permanente evolução que
ganha reformulações e retoques a cada tentativa de superação das críticas que lhe são
constantemente desferidas. Assim, esta apresentação da teoria utilitarista pretende
também esclarecer quais seriam as espécies de utilitarismo (moral ou político)
existentes e suas diferenças internas. Isso facilitará a compreensão da amplitude da
proposta utilitarista, bem como permitirá afastar os preconceitos de julgamento ou
avaliação que, via de regra, acompanham as análises do tema.
Desde seu nascimento no início do século XIX até os anos 70 do século
XX, o utilitarismo buscou sempre fornecer critérios e princípios voltados para o
desenvolvimento de uma teoria da justiça50. O principal foco da teoria utilitarista da
justiça é a constituição de instituições sociais voltadas à promoção do bem-estar social
48
Adotando a terminologia de John Rawls, pode-se definir esse tipo concepção moral do seguinte modo:
“Considero que uma concepção moral é geral quando se aplica a uma ampla variedade de temas de apreciação
(em última análise, a todos os temas possíveis) e que ela é abrangente quando compreende concepções daquilo
que constitui o valor da vida humana, ideais da virtude pessoal e do caráter e de tudo o que pertence a essa
ordem, que deve nos informar sobre a nossa conduta (em última análise, sobre a nossa vida em seu conjunto).”
(RAWLS, 2000, p. 250, nota)
49
A teoria moral utilitarista aponta como o indivíduo conhece e formula as regras morais de comportamento que
ele cria para si próprio, enquanto que a teoria da justiça utilitarista se presta a identificar e a formular as regras de
comportamento que devem governar uma sociedade. (BENTHAM, 1970)
50
Pode-se relacionar como autores utilitaristas que se dedicaram à investigação acerca da teoria da justiça
Jeremy Bentham, James Stuart Mill, John Stuart Mill, Henry Sidgwick, G.E. Moore e, mais recentemente,
Amartya Sen.
79
(VAN PARIJS, 1997; ARNSPENGER; VAN PARIJS, 2003). Em função da
influência da teoria utilitarista durante esse período, o desenvolvimento do Direito dos
Estados contemporâneos encontra-se fortemente marcado por essa concepção. Nem
mesmo quando a hegemonia do utilitarismo foi colocada em xeque pelo recente
renascimento das doutrinas liberais, suas teses fundamentais foram deixadas de lado.
Pelo contrário, são justamente elas que permanecem como o principal contraponto ao
liberalismo revigorado do século XX, pois a questão do bem-estar aponta para o cerne
do problema da justiça na distribuição dos bens e recursos de uma sociedade.
Esse tópico abordará: as origens do utilitarismo e suas principais
características; a proposta utilitarista acerca da teoria da justiça e como pretendem
servir de critério de orientação para as decisões políticas sobre a justiça de uma
sociedade; as objeções lançadas à proposta utilitarista para que ela se firme como uma
teoria da justiça adequada às sociedades contemporâneas.
3.2.1 – Origens e caracterização do utilitarismo
O utilitarismo é um dos desdobramentos da proposta empirista de abolir as
explicações metafísicas do conhecimento e da moral humana. A filosofia moral do
século XVII e XVIII encontrava-se impregnada de fundamentos e conceitos
metafísicos para justificar o agir humano. Seja pela referência a uma instância divina,
seja pelo discurso jusnaturalista, as regras para se definir o certo e o errado e, portanto,
o devido e o proibido, necessariamente faziam referência a uma instância suprasensível que viesse a fornecer o conteúdo de tais regras. Essa estrutura só foi abalada
80
com o advento da teoria moral do filósofo David Hume, que leva às últimas
conseqüências o modelo epistemológico empirista51.
David Hume (1973) concebe a mente humana e, portanto, todo o aparelho
cognitivo do homem, como um grande “feixe de percepções”. Pelo do uso dos
sentidos, o homem apreende e processa as sensações vindas do exterior. O registro
dessas sensações daria origem às impressões, que são memórias de sensações passadas
vindas à tona. Quando tais impressões são associadas entre si pelo raciocínio, dá-se
origem às idéias e conceitos. Desse modo, todo o conhecimento do homem decorre,
em última instância e exclusivamente, dos dados empíricos fornecidos pelo ambiente
externo, pois ele seria a origem das sensações e, conseqüentemente, das impressões e
idéias.
Para David Hume, também a moralidade humana seria elaborada como
uma idéia da mente. Sua origem deveria decorrer de impressões passadas registradas
pela experiência sensível do homem (TASSET, 1998). Segundo Hume, tais sensações
que criam as idéias morais são os sentimentos de prazer e de dor. Essas sensações, e
somente elas, alimentariam o homem de informações a partir das quais ele formularia
os conceitos de correto e incorreto, de certo e errado. As ações práticas teriam como
referência a busca do prazer e o afastamento da dor, tornando, assim, o conhecimento
moral independente de fundamentos transcendentais.
Adotando esse postulado acerca da psicologia cognitiva humana, o
utilitarismo clássico de Jeremy Bentham (1970) converte tais proposições em uma
teoria moral e ética acerca do comportamento humano. Segundo Bentham, o mesmo
51
Ao tempo de David Hume, a epistemologia se dividia em um debate acirrado sobre a origem e a fonte do
conhecimento humano. De um lado, situavam-se dogmáticos e racionalistas que apostavam na Razão como fonte
exclusiva do conhecimento e sustentavam a natureza inata das idéias. A filosofia racionalista desenvolve-se nos
países do continente europeu, sendo de origem francesa e germânica. De outro, encontrava-se a corrente
empirista que afirmava que a origem do conhecimento decorria da sensibilidade e sua única fonte seria a
experiência. A corrente empirista tem grande influência nos países anglo-saxônicos. David Hume (1711-1776),
filósofo escocês, foi um de seus maiores expoentes.
81
critério utilizado para descrever como o homem se comporta em relação a fatos morais
serve também para formular as prescrições do comportamento moral. Esse critério é a
utilidade. Por meio dela, o homem pode, ao mesmo tempo, guiar e avaliar a sua ação
moral. Bentham (1970) define a utilidade nos seguintes termos:
By utility is meant that property in any object, whereby it tends to produce benefit,
advantage, pleasure, good, or happiness, (all this in the present case comes to the
same thing) or (what comes again to the same thing) to prevent the happening of
mischief, pain, evil, or unhappiness to the party whose interest is considered52
(BENTHAM, 1970, p.2)
Assim, para o utilitarismo, a avaliação ética e moral do comportamento
humano tem como fundamento o princípio da utilidade, formulado por Bentham do
seguinte modo:
By principle of utility is meant that principle which approves or disapproves of
every action whatsoever, according to the tendency which it appears to have
augment or diminish the happiness of the party whose interest is in question: or,
what is the same thing in other words, to promote or to oppose that happiness.53
(BENTHAM, 1970, p.2)
Bentham estatui que esse princípio de avaliação da conduta moral não se
restringe ao indivíduo, mas se presta também à análise das ações que tomam a
sociedade como um todo. O termo “unidade” (party) mencionado nas duas definições
acima pode ser tanto a pessoa individual, quanto a coletividade:
if that party be the community in general, then the happiness of the community: if a
particular individual, then the happiness of that individual. (…) The interest of
52
“Por utilidade, quer-se dizer aquela propriedade contida em qualquer objeto pela qual ele tende a produzir
benefício, vantagem, prazer, bem, ou felicidade (tudo isso no presente caso se refere à mesma coisa) ou (o que,
de novo, se refere à mesma coisa) de evitar a ocorrência de dano, sofrimento, maldade ou infelicidade daquela
unidade cujo interesse está em questão (...)”(tradução nossa)
53
“Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer conduta, de
acordo com a tendência que esta possui de aumentar ou diminuir a felicidade da unidade cujo interesse está em
questão: ou, o que dá no mesmo, de promover ou de ser uma objeção a sua felicidade.” (tradução nossa)
82
community then is, what? – the sum of the interests of the several members who
compose it.54 (BENTHAM, 1970, p.2-3)
Mesmo sendo a formulação de Bentham a primeira exposição sobre a
doutrina utilitarista, ela já contém as principais características dessa proposta de
ciência moral. Dentre elas merecem destaque o caráter conseqüencialista da doutrina
utilitarista, a justificação positiva da moral e da ética e a referência ao princípio da
utilidade.
Ao sustentar que o critério de avaliação moral dos atos humanos decorre da
capacidade que esses atos possuem de produzir determinados estados de felicidade ou
bem-estar, o utilitarismo sustenta que a “qualidade moral de nossas ações depende da
qualidade de suas conseqüências” (CARVALHO, 2003, p.192). Logo, não existem
ações boas em si mesmas ou deveres que se impõem categoricamente, como apontava
Kant. Todo dever moral surge da capacidade de a ação produzir um resultado que seja
utilitariamente superior a outro que lhe seja comparável. Uma ação deve ser realizada,
portanto, após uma avaliação dos resultados úteis que ela é capaz de produzir.
Em função do caráter conseqüencialista da ética utilitarista, segue-se que
todas as ações morais dependem de uma avaliação racional da situação empírica
concreta. A avaliação fornecerá ao homem os elementos a partir dos quais ele pode
julgar com precisão os efeitos de sua ação no mundo:
O projeto ético de Bentham é supostamente construído de forma a obedecer a
exigência de objetividade e exatidão. Sua preocupação mais relevante parece ter
sido a de instrumentalizar o moralista e o legislador com ferramentas capazes de
fazer deles instrumentos da racionalidade humana a serviço do bem-estar. Nesse
sentido, a tarefa do moralista e legislador consistia em realizar a contabilidade
moral. Isto é, avaliar o custo-benefício, em termos de prazer ou dor, das regras
morais e das políticas públicas (PELUSO, 1998, p.22)
54
“(...) se aquele ente interessado for a comunidade em geral, então se trata da felicidade da comunidade; se for
um indivíduo particular, então se trata da felicidade daquele indivíduo. (...) O que seria o interesse da
comunidade? – a soma dos interesses dos diversos membros que a compõem.” (tradução nossa)
83
E o que orienta a avaliação racional da conduta moral será, para as
doutrinas utilitaristas, sempre alguma variação do princípio da utilidade, segundo os
contornos dados a tal princípio por cada uma delas (CARVALHO, 2003).
Este princípio é o axioma do qual derivam todas as demais proposições da
doutrina utilitarista. Por ser um “princípio primeiro”, ele se encontra no alicerce da
doutrina, não sendo suscetível de prova direta, mas apenas verificado a partir de outros
indicativos, como, por exemplo, o fato de que toda refutação ao próprio princípio da
utilidade se faz porque há, nesse ato, uma utilidade envolvida (BRITO, 1998). Assim,
as diversas vertentes de utilitarismo irão diferenciar-se entre si em função das
modificações realizadas no critério estabelecido para se definir a utilidade, esse
“estado final” que ação racional visa alcançar.
John Stuart Mill (2000) avança o pensamento utilitarista lançado por
Bentham ao dissociar da idéia de utilidade a exclusiva referência aos prazeres
sensíveis. A crítica que se lançou contra o utilitarismo em seu tempo pecava por
reduzir a idéia de felicidade às sensações internas de prazer que as pessoas vivenciam
por meio dos sentidos:
Ora essa teoria da vida suscita em muitos espíritos, alguns dos quais possuem os
mais estimáveis sentimentos e propósitos, uma aversão inveterada. Admitir que a
vida – para empregar suas expressões – não tenha nenhuma finalidade mais
elevada que o prazer, nenhum objeto de desejo e de busca melhor e mais nobre, é,
conforme dizem, inteiramente vil e abjeto; cuida-se de uma doutrina digna apenas
dos suínos, aos quais os seguidores de Epicuro estavam, desde o início,
insolentemente igualados; e os partidários modernos da doutrina estão às vezes
sujeitos a comparações igualmente polidas por parte dos críticos alemães, franceses
e ingleses. (MILL, 2000, p.187)
No entanto, Mill mostra que o equívoco dessa crítica decorre de uma
incompreensão daquilo que o utilitarismo entende por felicidade e por prazer:
84
O credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como a
fundamentação moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem
a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da
felicidade. Por felicidade se entende prazer e a ausência de dor; por infelicidade,
dor e privação do prazer. Para dar uma idéia clara do padrão moral estabelecido
pela teoria, é preciso dizer muito mais; trata-se de saber, em particular, o que está
incluído nas idéias de dor e prazer e em que medida esse debate é uma questão
aberta. (MILL, 2000, p.187)
Assim, Mill irá rebater as críticas que se fazem ao utilitarismo recorrendo
ao caráter aberto da expressão “prazer”, bem como aos infinitos modos existentes de
se realizar a felicidade humana55. Isso levará Mill a elaborar uma teoria acerca da
diferenciação qualitativa da experiência do prazer humano:
É perfeitamente compatível com o princípio da utilidade reconhecer o fato de que
algumas espécies de prazer são mais desejáveis e mais valiosas do que outras.
Enquanto na avaliação de todas as outras coisas a qualidade é tão levada em conta
quanto a utilidade, seria absurdo supor que a avaliação dos prazeres dependesse
unicamente da quantidade.
Se me perguntarem o que quero dizer com diferença de qualidade entre os prazeres,
ou o que torna um prazer mais valioso do que o outro – entendido como mero
prazer -, exceto ser maior em quantidade, só me caberá dar uma resposta possível.
De dois prazeres, se houver um que seja claramente preferido por todos ou quase
todos os que experimentaram um e outro, independentemente de qualquer
sentimento ou obrigação moral a preferi-lo, este será o prazer mais desejável. Se os
que estão familiarizados com esses dois prazeres e têm competência para julgá-los
colocam um deles tão acima do outro que chegam a preferi-lo, muito embora
saibam que dele se segue um grande volume de descontentamento, e se não aceitam
renunciar a ele por mais que sua natureza seja suscetível de experimentar uma
grande quantidade do outro prazer, temos razão em atribuir ao deleite escolhido
uma superioridade qualitativa, pois a quantidade foi de tal modo subestimada que,
em comparação, tornou-se de pequena importância. (grifos do autor) (MILL, 2000,
p.187)
Em atenção a esse critério, Mill optará por enfatizar os prazeres que
realizam o que ele denomina de faculdades superiores do homem, ou também de senso
de dignidade. Enquanto os prazeres relacionados às faculdades superiores são aqueles
que realizam a felicidade, os prazeres sensíveis têm em vista apenas o contentamento
do homem, marcando-se nítida distinção entre ambos:
55
Mill (2000) reconhece, no entanto, que a doutrina utilitarista produzida até então peca por dar ênfase à análise
dos prazeres da sensação em detrimento dos prazeres intelectuais. Essa é a marca que diferencia sua proposta
utilitarista da sustentada por J. Bentham. (VAN PARIJS, 1997)
85
Para aqueles em quem o senso de dignidade é intenso, representa uma parte tão
essencial da felicidade, que nada que se oponha a ele poderia, a seus olhos, ser algo
distinto de um objeto momentâneo de desejo; Supor que essa preferência se dê em
sacrifício da felicidade, que o ser superior – em circunstâncias equivalentes – não
seja mais feliz que o inferior, é confundir duas ideais bastante diferentes, a saber,
de felicidade e contentamento. É incontestável que o ser cujas capacidades de
deleite sejam de grau inferior tenha maiores chances de vê-las plenamente
satisfeitas, enquanto um ser dotado de capacidades superiores sempre sentirá como
imperfeita a felicidade que lhe é possível buscar no mundo como existente. (...) É
melhor ser uma criatura humana satisfeita do que um porco satisfeito; é melhor ser
Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo ou o porco têm opinião
diversa, é porque conhecem apenas um lado da questão: o seu. A outra parte, em
compensação, conhece os dois lados. (MILL, 2000, p.191)
Farago (2004) mostra como essa distinção se presta a reconciliar a
preocupação consigo mesmo e a preocupação com o outro numa única fórmula que
consagre os modos mais elevados da realização humana:
Se ele (Mill) mantém o princípio de utilidade de Bentham, ele dá à palavra ‘útil’ um
outro sentido distinto ao do seu antecessor, distinguindo o ‘útil’ do ‘conveniente’.É
útil tudo o que possa contribuir para a felicidade geral. É conveniente tudo o que
permite realizar um fim imediato, banal ou simplesmente pessoal (FARAGO, 2004,
p.189)
Com base na distinção entre prazeres meramente corpóreos e prazeres
superiores, ou entre o útil e conveniente, e como cada um deles tem sua respectiva
capacidade de realizar a felicidade do homem, é possível a Mill dar um novo
acabamento ao princípio da utilidade, ou princípio da maior felicidade:
Segundo o Princípio da Maior Felicidade, como se explicou acima, o fim último,
com referência ao qual e por causa do qual todas as outras coisas são desejáveis
(quer estejamos considerando nosso próprio bem ou o de outras pessoas), é uma
existência isenta tanto quanto possível da dor, e tão rica quanto possível em
deleites, seja do ponto de vista da quantidade como da qualidade. O teste de
qualidade, a regra que permite mensurá-la em oposição à quantidade, é a
preferência manifestada pelos que, em razão das oportunidades proporcionadas por
sua experiência, em razão também de terem o hábito de tomarem consciência de si e
de praticar a introspecção, detêm os melhores meios de comparação. Sendo esta, de
acordo com a opinião utilitarista, a finalidade da ação humana, é necessariamente
também o padrão da moralidade. Assim, é possível definir a moralidade como as
regras e os preceitos da conduta humana, cuja observação permitiria que uma
existência tal como a descrita fosse assegurada, na maior medida possível, a todos
os homens; (MILL, 2000, p.194)
86
3.2.2 – O utilitarismo enquanto teoria da justiça
O utilitarismo é uma doutrina moral abrangente, que se coloca como
critério de conduta para todo o espectro de ações práticas do indivíduo. No entanto,
desde o seu nascimento, com o trabalho de Jeremy Bentham (1970), o utilitarismo
delimitou como suas propostas se aplicam de modo diferenciado ao campo da moral
em sentido estrito, também denominada ética privada, e do Direito.
Bentham (1970) irá delimitar as fronteiras de atuação dos princípios
utilitaristas em cada um desses campos a partir da análise dos propósitos da Ética, em
um sentido mais abrangente. A Ética pretende ser a arte de direcionar a ação dos
homens no sentido de produzir a maior felicidade possível para aqueles cujo interesse
coloca-se em mira. Se tais ações forem as do próprio homem que as cria, tem-se o
campo da ética privada. Contudo, caso se trate de dirigir a ação de outros homens,
tem-se o campo da arte do governo ou, em outras palavras, do Direito.
Ambas, ética privada e Direito, direcionarão as condutas dos homens de
acordo com o princípio da utilidade. Elas criam os deveres para que o homem atinja a
felicidade. No entanto, elas diferem quanto ao seu objeto:
Private ethics teaches how each man may dispose himself to pursue the course most
conducive to his own happiness, by means of such motives as offer to themselves:
the art of legislation (which may be considered as one branch of the science of
jurisprudence) teaches how a multitude of men, composing a community, may be
disposed to pursue that course which upon the whole is most conducive to the
happiness of the whole community, by means of motives to be applied by the
legislator.56. (BENTHAM, 1970, p.323)
56
“A ética privada ensina como cada homem deve ele próprio se conduzir para perseguir o rumo mais propício
para alcançar sua própria felicidade, por meio das razões que concernem a eles próprios: a arte da legislação
(que pode ser considerada um dos ramos da ciência do Direito) ensina como uma multidão de homens, que
compõe uma comunidade, deve se dispor para perseguir aquele rumo que, tomando-se o todo, é mais propício à
felicidade de toda a comunidade, por meio das razões a serem aplicadas pelo legislador” (tradução nossa)
87
Portanto, o Direito e o Estado estruturados sob a perspectiva da teoria da
justiça utilitarista terão suas instituições sociais voltadas à finalidade de se alcançar a
mais ampla distribuição de bem-estar, com a maior eficiência possível (VAN PARIJS,
1997; ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). Desse modo atingir-se-á o propósito de
proporcionar a maior felicidade possível para o maior número de indivíduos na
sociedade. Sendo assim, a tendência desse Direito e desse Estado é a de intervir
positivamente na realidade política, econômica e social de modo a realizar os seus
propósitos (FARAGO, 2004). Dessa maneira, o utilitarismo tende a colocar os direitos
e as instituições sociais a serviço da promoção da felicidade (VAN PARIJS, 1997;
ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003).
É preciso esclarecer o que significa afirmar que aquilo que torna uma
sociedade justa é a promoção, por meio do bem-estar, da felicidade no seio desta. Isso
se faz pelas respostas a dois questionamentos: o que traz o bem-estar a uma
sociedade?; e o que é a felicidade da sociedade?
As distintas compreensões formuladas para o conceito de “utilidade”, ou
seja, aquilo que promove o bem-estar do homem e, portanto, se constitui como a
finalidade a ser alcançada pela ação racional, determinam os três tipos de utilitarismo
existentes: o utilitarismo de estados mentais de felicidade, o utilitarismo de
preferências reais e o utilitarismo de preferências refinadas, ou objetivas.
(CARVALHO, 2003; FARRELL, 1998)
Para determinados autores utilitaristas, aquilo que promove o bem-estar do
homem e, portanto, se constitui na meta da ação moral, é um estado mental que
corresponde ao que se designa por felicidade ou prazer (CARVALHO, 2003;
FARRELL, 1998). Segundo essa forma de utilitarismo, também qualificado de
hedonista (MILL, 2000), a ação moral deve promover, com maior intensidade e
88
durante o maior período de tempo possível, estados de felicidade das pessoas. Essa
felicidade deve ser compreendida como um sentimento processado pela mente
humana. Não é sem razão que o próprio Bentham (1970), em revisão posterior aos
seus escritos, comenta em nota que o princípio da utilidade deveria até mesmo ser
renomeado princípio da maior felicidade57 (BRITO, 1998).
Farrell (1998) nota que os utilitaristas clássicos, incluindo o próprio
Bentham, não formularam uma noção explícita daquilo que promove a felicidade,
apenas fazendo remissão ao sentido intuitivo que se pode extrair dessa idéia. O mesmo
autor salienta que o utilitarismo de estados mentais torna-se altamente fragilizado
enquanto teoria moral, por prescindir de um nexo com a realidade concreta, já que dá
importância somente aos sentimentos mentais:
Quaisquer que sejam estas características, o bom é o estado mental, e o correto,
então, é produzir este estado sem que importe a forma pelo qual se chega a ele. Se o
bom é o estado mental de felicidade que eu tenho ao acreditar que ganhei um
prêmio, é igualmente correto fazer-me de fato ganhar o prêmio, ou fazer-me
acreditar que o ganhei, sempre que ambas as coisas tenham a mesma conseqüência,
isto é, o mesmo estado mental. O utilitarismo de estados mentais não considera que
a conexão com a realidade seja condição necessária da bondade destes estados, e
esta característica afeta todas as possíveis maneiras de considerar os estados em
questão. (grifos do autor) (FARRELL, 1998, p.191-192)
Como forma de superar as objeções58 a essa formulação rudimentar do
conceito de utilidade, o pensamento utilitarista reformulou seu princípio capital de
modo a que o critério da utilidade não mais fosse determinado por estados mentais,
57
Para uma melhor compreensão dos sentidos expressos pelo princípio da utilidade conferir a minuciosa exegese
de Brito (1998) sobre os textos de Bentham que tratam do tema.
58
Uma das mais contundentes objeções ao utilitarismo de estados mentais é sintetizada pela referência à
“máquina da felicidade”. Tal argumento encontra-se formulado por Robert Nozick (1991) e aduz a seguinte
hipótese: “Suponhamos que houvesse uma máquina de experiências que daria a você qualquer experiência que
desejasse. Neuropsicólogos fora-de-série poderiam estimular-lhe o cérebro de modo que você pensasse e
sentisse que estava escrevendo uma grande novela, fazendo um amigo ou lendo um livro interessante. Durante
todo o tempo você estaria flutuando em um tanque com eletrodos ligados ao cérebro. Deveria você conectar-se
com essa máquina por toda a vida, programando as experiências enquanto vivesse? (...) Claro, enquanto estiver
no tanque não saberá onde se encontra. Pensará que tudo aquilo está realmente acontecendo. Outros podem
conectar-se também para ter as experiências que quiserem, de modo que você não tem que permanecer
desligados para que eles possam ser servidos. Você se ligaria? O que mais pode nos importar, a não ser como a
vida nos parece a partir da dimensão interna?” (NOZICK, 1991, p.58-59)
89
mas sim pelas preferências reais (desejos) do interessado (indivíduo ou grupo). A
utilidade seria verificada pela capacidade de uma ação para promover a satisfação das
preferências (desejos) das pessoas (CARVALHO, 2003; FARRELL, 1998). Por meio
da elaboração de uma lista em ordem de prioridades do que uma pessoa almeja para si,
o utilitarismo de preferências reais assevera que o seu bem-estar advém da capacidade
de se maximizar a realização desses desejos (VAN PARIJS, 1997).
Desse modo, com o recurso às preferências reais dos indivíduos, o
utilitarismo consegue introduzir, em suas considerações sobre o que é bom, situações
que não necessariamente envolvem a sensação de gozo ou prazer, como, por exemplo,
o aprendizado de uma língua ou a realização profissional (CARVALHO, 2003). Com
isso, o utilitarismo evita a armadilha de se tornar uma teoria cujo fundamento reside
apenas nos confins psicológicos das pessoas, sem conexão com o mundo concreto em
que vivem (FARRELL, 1998).
No entanto, ao relegar às preferências reais o critério da utilidade, o
utilitarismo perde muito do seu apelo enquanto fundamento da ação moral das
pessoas. Em primeiro lugar, lança-se a objeção acerca da impossibilidade de se
elaborar uma lista contendo o que seria responsável por trazer o bem-estar a toda uma
sociedade (VAN PARIJS, 1997). Primeiro, porque os indivíduos divergem entre si
sobre tais questões. Segundo porque, ainda que concordem em alguns pontos comuns,
fazem-no em distintas intensidades, não existindo um critério que possa unificar as
preferências em uma lista59.
59
Para solucionar tal questão, o utilitarismo recorre à noção de Pareto-otimalidade, explicada por Van Parijs
(1997) na seguinte passagem: “Diremos que a opção A é Pareto-superior à noção B se e somente se nenhum dos
indivíduos (na coletividade considerada) prefere B a A enquanto que pelo menos um dentre eles prefere A a
B”(VAN PARIJS, 1997, p.32-33). Assim, caso uma preferência preencha a condição de ser Pareto-superior a
outra que se lhe possa opor, ela passa a integrar a da lista de prioridades dos indivíduos, evitando-se, assim
indagar pelas intensidades das preferências: “Sem nenhuma referência à medida de intensidade das preferências
nem à comparação interpessoal, o utilitarismo pode ainda exigir que a opção escolhida seja Pareto-ótima.”
(VAN PARIJS, 1997, p.33)
90
Outra objeção ao utilitarismo de preferências reais se liga à questão de que
a relação entre desejo e bem-estar nem sempre é congruente:
Nem sempre a satisfação de nossas preferências contribui para nosso bem-estar,
pois podemos estar equivocados, desejando ou preferindo algo que nos faça mal. O
que é bom para um indivíduo não precisa coincidir com suas preferências. A rigor,
queremos aquilo que é digno de ser obtido. Nossas preferências atuais refletem
nosso conhecimento, sempre limitado e falível, não protegido contra o erro. O
Utilitarismo da satisfação de preferências parece inverter a ordem das coisas. O
fato de se desejar ou preferir algo não o torna por isso valioso, mas o ser é que
constitui uma boa razão para o preferirmos. Isso posto, somente a satisfação de
minhas preferências por aquilo que é bom e que não estão fundadas em crenças
falsas pode trazer bem-estar duradouro. Por outro lado, uma coisa pode ser boa
para uma pessoa, sem que ela tenha o desejo de possuí-la. (CARVALHO, 2003,
p.198)
Como forma de superar os dilemas colocados ao utilitarismo de
preferências reais, alguns autores utilitaristas como John Stuart Mill (2000) buscaram
modificar o conceito de utilidade proveniente das preferências reais para fazê-lo
coincidir com as aspirações que as pessoas teriam, caso dispusessem de uma
racionalidade completa e de pleno conhecimento das conseqüências associadas às
possíveis escolhas. Elas surgem, nas palavras de Farrell (1998), de modo
“contrafactual”, sem que haja, necessariamente um vínculo com a realidade que se
coloca aos diversos indivíduos.
Desse modo, o utilitarismo de preferências refinadas retira do sujeito
concreto a capacidade de ser o responsável por escolher as preferências que lhe trarão
bem-estar (CARVALHO, 2003). Com isso há a abertura para uma espécie de
‘paternalismo’ na teoria moral, como se instâncias superiores ao indivíduo fossem
capazes de formular melhor do que ele próprio o que seria seu bem-estar. Essa noção
proposta pelo utilitarismo de preferências refinadas divergiria, assim, em muito,
daquela pregada pelo utilitarismo hedonista. Ademais, qual seria o critério para definir
91
algo intrinsecamente bom, que traria o bem-estar a todas as pessoas? Qual instância
seria a detentora de tal autoridade?
“John Stuart Mill apela para os juízes competentes – um colegiado de pessoas
experimentadas que estariam em condições ótimas para decidir o que deve contar
como desejável. Trata-se de uma perspectiva que avalia algumas coisas como
intrinsecamente boas, independentemente do que uma pessoa deseje ou valorize
para si. O risco de uma abordagem como esta perder o vínculo com a noção de
bem-estar não pode ser minimizado: concepções que se orientam por valores
intrínsecos tendem a endossar tacitamente alguma idéia de excelência humana, a
qual não está ao alcance de muitas pessoas e mesmo quando alcançada será ela
garantia da felicidade?” (CARVALHO, 2003, p.202)
Como aponta Carvalho (2003), apesar de os diversos tipos de utilitarismo
apresentarem diferenças significativas quanto à caracterização, eles guardam em
comum a preocupação de perseguir, cada um a seu modo, a busca pela promoção do
bem-estar em três distintos momentos: o da experiência, o do desejo e o do ideal.
Já com relação à segunda pergunta, acerca do que significa a maior
felicidade da sociedade, duas foram as respostas que a tradição utilitarista formulou.
Segundo a teoria de Bentham, a maior felicidade possível do maior número
seria verificada a partir da constatação de qual ação ou medida irá promover a maior
felicidade da sociedade. O critério adotado seria, portanto, o somatório simples das
felicidades individuais (VAN PARIJS, 1997). Uma medida ou ação seria aplicada na
medida em que implementasse a maior soma total de felicidade agregada, já que seria
a mais justa dentro de um grupo social.
The community is a fictitious body, composed of the individuals persons who are
considered as constituting as it were its members. The interest of the community
then is, what? – the sum of the interests of the several members who compose it. (…)
A thing is said to promote the interest, or to be for the interest, of an individual,
when it tends to add to the sum total of his pleasures (…) A measure of government
(which is but a particular kind of action, performed by a particular person or
persons) may be said to be conformable to or dictated by the principle of utility,
92
when in like manner the tendency which it has to augment the happiness of the
community is greater than any which it has to diminish it.60 (BENTHAM, 1970, p.3)
Sendo assim, para o utilitarismo clássico de Bentham, que aponta para uma
maximização da felicidade total da sociedade, o que importa é a elevação da
quantidade total de bem-estar, não havendo que se falar em verificação quanto à
distribuição do quanto cada um irá usufruir desse bem-estar (VAN PARIJS, 1997;
ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003).
Uma primeira correção a esse modelo foi realizada por John Stuart Mill
(VAN PARIJS, 1997), pela adoção do utilitarismo de preferências. Isso porque é
possível que seja estabelecida como uma preferência racional a ausência de
desigualdades sociais abismais entre seus membros, determinando-se que tal restrição
promoveria o bem-estar da sociedade. Porém, o raciocínio permanece intocado quanto
à proposta inicial: o conseqüencialismo deverá levar em consideração o total de bemestar promovido com a medida.
No entanto, há outro critério para se determinar o que traz a maior
felicidade possível para a sociedade. Ele leva em conta a capacidade de uma medida
elevar o bem-estar médio, a partir de uma regra de proporção ponderada a ser extraída
com base em quanto cada indivíduo incrementou seu bem-estar com a medida (VAN
PARIJS, 1997; ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). Para essa versão do
utilitarismo, as medidas consideradas como portadoras de maior utilidade (isto é, que
trazem maior bem-estar) são aquelas que tornam mais elevado o nível médio de bemestar usufruído pelas pessoas.
60
“A comunidade é um corpo fictício, composto das pessoas individuais que são considerados como seus
constituintes, tal como se fossem seus membros. O que é, então, o interesse da comunidade? – A soma do
interesse dos diversos membros que a compõem. (...) Pode-se dizer que algo promove o interesse, ou está a favor
do interesse, de um indivíduo, quando possui a tendência de aumentar a soma total de seus prazeres (...) Uma
medida de governo (o que não nada mais do que uma espécie particular de ação, realizada por uma pessoa
particular ou por um grupo de pessoas) pode ser dita em conformidade com ou ditada pelo princípio da
utilidade, quando de alguma maneira a tendência que ela possui para aumentar a felicidade da comunidade é
maior do que qualquer uma outra teria para diminuir.” (tradução nossa)
93
Segundo Van Parijs (1997), nenhum dos dois critérios é isento de
problemas. Enquanto o utilitarismo clássico tende a descurar por uma distribuição do
bem-estar entre os indivíduos, o utilitarismo médio apelará para uma redução do
número de pessoas envolvidas na distribuição para que haja uma maior maximização
do produto total por cabeça.
3.2.3 – Utilitarismo, direitos e liberdades
A experiência histórica da aplicação da doutrina utilitarista da justiça levou
ao desenvolvimento da economia normativa (welfare economics) e do Estado de BemEstar Social61. Juntas, as duas concepções serviram para promover uma ampla reforma
das instituições sociais concebidas pelo pensamento liberal clássico, modificando
profundamente a noção de justiça até então existente. O explícito escopo em se
promover a distribuição de bens sociais de modo a atender o propósito social de se
proporcionar a maior felicidade possível para os membros da sociedade, como forma
de se realizar a justiça, permitiu que fossem conferidas prerrogativas ao Estado para
intervir positivamente em diversos setores da sociedade que antes eram objeto de
exploração pela iniciativa privada. Ao se determinar que questões ligadas à saúde,
educação,
saneamento
básico,
habitação,
transportes,
recursos
energéticos,
telecomunicações, dentre outras, deveriam ser providas para que se alcançasse a
felicidade por meio de um bem-estar social, o Estado ganhou destaque como agente
promotor da justiça na sociedade (SANTOS, 1994). No entanto, para atuar em todos
61
Ao se verificar as conseqüências da aplicação da teoria utilitarista às regras morais que devem governar uma
sociedade, constata-se que seu conteúdo privilegia a generalização da noção de que a felicidade se realiza através
do bem-estar e que este, por sua vez, se concretiza através do acesso a bens materiais e a serviços. Assim, a
conseqüência prática da transposição das reflexões teóricas acerca do utilitarismo para o plano das ações
políticas que dele se deriva é que se torna função e dever do Estado promover o bem-estar de todos os seus
cidadãos, através de prestações positivas de benefícios materiais. E a teoria que analisa a gestão econômica dos
recursos e incentivos que o Estado tem a sua disposição para efetivar essa nova função é a economia normativa.
(VAN PARIJS, 1997)
94
esses setores que trariam a distribuição de benefícios generalizados à sociedade, foi
preciso que houvesse o sacrifício, ao menos parcialmente, dos interesses privados de
seus membros, já que: a fonte de recurso do Estado, por excelência, é a tributação e a
arrecadação; os riscos e conseqüências da economia de mercado deveriam ser
atenuados; por força da relevância atribuída a tais questões, interesses individuais
tenderiam a ceder caso contrastassem com interesses coletivos.
Em todas as três exemplificações de sacrifícios62, verifica-se que a
promoção do bem-estar social implica em interferências na dimensão negativa da
liberdade. Por isso, nem sequer um autor como John Stuart Mill, árduo defensor da
liberdade tal como compreendida em seu sentido negativo, lançou argumentos de
prioridade desta sobre a felicidade (VAN PARIJS, 1997). Ao contrário, a defesa da
liberdade negativa seria feita ao argumento de que sua existência é o que
proporcionará a maior felicidade de uma sociedade, submetendo hierarquicamente esta
a aquela:
Tomemos, por exemplo, o ‘princípio de liberdade’ de Mill, que confere a cada
indivíduo o direito de fazer o que bem entende no domínio que só diz respeito a si
mesmo. Na maior parte de Sobre a liberdade, Mill recorre implicitamente a essa
primeira estratégia esforçando-se para mostrar que o respeito estrito a esse
princípio maximiza (ao longo do tempo) o bem-estar coletivo, mesmo se acontece
algumas vezes que sua infração seja ótima do ponto de vista de um utilitarismo de
atos. De uma tal perspectiva, o princípio de liberdade não tem nenhuma força
própria, independentemente do princípio de utilidade a que serve. (VAN PARIJS,
1997, p.51)
62
O sacrifício contido no primeiro exemplo está ligado ao fato de que quanto mais intensa a carga tributária,
mais horas de trabalho de cada pessoa são necessárias para que ela obtenha o mesmo rendimento caso não
houvesse a tributação, subtraindo-lhes tempo e força de trabalho. Essa idéia é bastante explorada por Nozick
(1991). O segundo tipo de sacrifício está ligado a uma restrição da livre-iniciativa que as pessoas e empresas
teriam para praticar o comércio e a atividade industrial, por força de uma disciplina rigorosa das regras de
mercado, a fim de evitar ou amenizar as crises e efeitos do sistema capitalista na economia. O assunto é tratado
em profundidade por Hayek (1990). O terceiro sacrifício faz referência a uma impossibilidade de exercício pleno
de direitos e prerrogativas individuais caso eles sejam confrontados com interesse coletivos, retirando do
indivíduo parcela de sua liberdade e de sua autonomia, tal como mostrado por Rawls (2002).
95
Assim, percebe-se que o utilitarismo busca corrigir as deficiências que o
liberalismo havia dado à dimensão material da liberdade ao preço de uma exortação
irrestrita desta, colocando as demais facetas da liberdade a ela subordinadas. Dentro da
teoria da justiça utilitarista, a autonomia, a propriedade de si e a propriedade privada
estariam constantemente à mercê das decisões coletivas.
3.3 O Marxismo
Por mais que a teoria da justiça utilitarista assuma como sua função o
emprego de medidas que promovam uma efetiva redistribuição de bens entre os
membros da sociedade, em função de sua premissa fundamental sustentar que a justiça
exige que se eleve ao máximo possível o bem-estar dos indivíduos, tal perspectiva não
exige que se introduzam considerações relativas ao caráter ético de tais distribuições.
Desde que se promova (ou não se ofenda) o princípio da maximização do bem-estar,
eventuais desigualdades na distribuição dos bens sociais são aceitáveis, ou mesmo
bem-vindas. Desse modo, distorções radicais e desigualdades sociais permanecem
justificadas dentro do quadro referencial teórico utilitarista, sob o argumento de que há
melhora no conjunto total do bem-estar atribuído à totalidade dos membros da
sociedade.
O que a teoria da justiça de matriz marxista sustenta é que não haverá
justiça em uma sociedade se as instituições sociais não vierem a promover a pretensão
de se distribuir os bens sociais de modo igualitário. Desse modo, é o potencial de
promoção da igualdade, e não o bem-estar propriamente dito, o que a teoria marxista
96
sustenta ser o critério responsável por se verificar a justiça das instituições sociais
(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003).
A teoria marxista da justiça é algo distinto daquilo que se extrai, de uma
leitura apressada, do que se pode chamar de uma proposta política levantada por Karl
Marx e Friederich Engels. Também não é a doutrina política ou os programas de
governo adotados pelos partidos socialistas que ascenderam ao poder pela via
revolucionária e instituíram as Ditaduras Proletárias e, em seguida, geraram o
“Socialismo Real” que se verificou no século passado (LYRA FILHO, 1983). A teoria
marxista da justiça funda-se a partir da tradição iniciada por Karl Marx63 e continuada
por seus intérpretes64 em se pensar uma sociedade que colocaria fim à exploração de
um homem sobre outro, de caráter igualitário, não marcada por profundas diferenças
63
A reconstrução do Direito e da Justiça no pensamento de Marx realizada por Lyra Filho (1983) o leva a
afirmar que a negação do Direito burguês não se presta a banir a existência de todo o Direito, mas apenas aquele
que pode ser identificado como instrumento de dominação de classe. Na sociedade comunista, o direito burguês
seria substituído por princípios normativos de caráter jurídico: “Ao ser ultrapassado, porém, naquela sociedade
(comunista) o direito (burguês) admite Marx um princípio jurídico (a que, entretanto, não dá qualificação)
consistente na preceituação: ‘de cada um, segundo as suas aptidões; a cada um, conforme as próprias
necessidades’ – o que, incidentemente só numa abordagem dialética pode ser conciliado com ‘direitos e deveres
iguais’, após a proclamação da desigualdade visceral do Direito, e perante o brocardo (jurídico também) do
comunismo: ‘o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos’ –
pressupondo, de resto, uma limitação (jurídica) da liberdade, pois tantas liberdades particulares (de cada um)
atropelariam a liberdade geral.” (LYRA FILHO, 1983, p. 83)
64
Destaca-se aqui o trabalho de Stucka (1974) em atribuir ao Direito um caráter revolucionário, a partir de sua
natureza de fenômeno de classe: “¿Cómo podía explicar de outro modo el dualismo objetivo entre el ‘derecho
positivo’ vigente de la clase de los opresores y la consciencia de la clase hoy oprimida, ‘revolucionaria y
negativa’? Únicamente al adoptar el punto de vista revolucionario y clasista nos colocamos en un terreno
realista y objetivo respecto del derecho futuro, o sea, respecto de esa justicia de la que se ocuparon en el pasado
los filósofos del derecho. Y solamente con esta condición conseguimos comprender la naturaleza de todo
derecho nuevo como factor revolucionario. Pues a pesar de toda nuestra antipatia hacia la institución de la
propiedad privada y de nuestra lucha inflexible contra la clase de los capitalistas, incluso contra la de los
propietarios feudales, hemos de admitir que la institución de la propiedad privada em general y en particular la
institución de la propiedad feudal y capitalista fueron revoluciones históricamente necesarias. Por último, con
nuestra concepción de la lucha de clases, según la cual la clase de los capitalistas está interesada, a pesar de
todo, en la existencia del proletariado, y ni siquiera puede desear su aniquilación completa, mientras que el
proletariado, por su parte, lleva y debe llevar a cabo una lucha dirigida a la aniquilación completa de la clase
de los capitalistas y de los propietarios de la tierra, conseguimos aferrar la naturaleza misma del derecho
burgués: su dualismo interno, su hipocresia, sus ilusiones y su contradictoriedad. Y solamente en estas
condiciones podremos, en general, hablar del derecho como de una ciencia. Lo cual es necesario en vista del
gran papel que corresponde al derecho en todas as épocas de transición como ‘locomotora de la historia’.
Captamos así los elementos que identifican el proceso mismo del desarollo con el proceso del derecho, pero no
de manera conciliadora, sino en el sentido positivamente revolucionario (o por el contrario, temporalmente,
contrarrevolucionario). Dentro de estos límites y en este sentido podemos hablar de un derecho-revolución.”
(STUCKA, 1974, p.126-127)
97
sociais e, por fim, em que as reais necessidades de todos os homens possam ser
satisfeitas. (VAN PARIJS, 1993, 1997; ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003)
Assim, a teoria da justiça marxista apresenta-se como uma teoria que
pretende realizar desafios éticos superiores, exigindo das instituições sociais que se
proponham a um papel emancipatório, libertando o homem das condições que o
tornam um ser alienado do seu mundo:
Certamente as condições da vida do proletariado constituem as premissas para o
desenvolvimento de uma nova forma, superior e mais harmoniosa, de relações entre
o indivíduo e a coletividade. Numerosos fatos, que exprimem a solidariedade da
classe proletária, testemunham-no. Mas, ao lado deste novo, continua a subsistir o
antigo. Ao lado do homem social do futuro, que deixa fundir o seu Eu na
coletividade, que encontra a grande satisfação e o verdadeiro sentido de sua vida,
continua igualmente a existir o homem moral que carrega sobre seus ombros o
fardo de um futuro mais ou menos abstrato. A vitória da primeira forma equivale à
libertação completa do homem de todas as sobrevivências das relações jurídicas
privadas e à transformação definitiva da humanidade na direção do comunismo.
Certamente, tal tarefa não é apenas uma tarefa puramente ideológica ou
pedagógica. O novo tipo de relações humanas necessita da criação e da
consolidação de uma nova base material econômica (PASUKANIS, 1989, p.51)
Nesse sentido, a teoria marxista da justiça andará sempre de mãos dadas
com um compromisso político, exigindo uma intervenção positiva na realidade com o
fito de alterar tudo aquilo é nocivo à condição humana. Seria, portanto, utópica, ao
vislumbrar outro lugar possível para além dos horizontes limitadores do real
(SANTOS, 1994, 2002). Trabalha com a idéia de que o potencial de criação e de
emancipação do homem é capaz de modificar o mundo que se encontra ao seu redor
em direção à construção de uma morada que lhe seja melhor.
A referência à obra de Marx, como principal idealizador desse projeto na
era Moderna, é indispensável. Nela se encontra o alicerce da teoria marxista. Mas,
para que se preservem os princípios ali contidos, é preciso se apreender o espírito da
obra de Marx e se reinterpretar o seu trabalho até mesmo, se necessário, contra
literalidades explicitadas em seus escritos, bem como contra doutrinas oficiais, que
98
durante muito tempo arvoraram-se como as únicas miragens possíveis para o
marxismo.
No marxismo clássico há um misto de filosofia, ciências econômicas e
sociais e ideal político. Não se encontra em Marx uma teorização completa sobre o
Direito e sobre a Justiça, mas apenas comentários dispersos e parciais ao longo de toda
sua extensa obra. Segundo Lyra Filho (1983), esse estranhamento de Marx em relação
ao Direito pode ser atribuído a alguns fatores, destacando-se dois dentre eles:
a rejeição dum primitivo entusiasmo pelo Direito Natural racionalista e uma revolta
implacável perante o ‘direito positivo’ das classes dominantes; a procura dum
modelo comunista em que se extinguissem as visões idealistas da Justiça as
estruturas jurídicas de puro controle social e estatal – o que acaba confundindo a
morte da Justiça ideológica e do Direito burguês com o desaparecimento da Justiça
e do Direito (cujo inevitável retorno, em novas visões da justiça e estruturas do
Direito se faz, ou com omissão dos nomes – Justiça e Direito – ou admissão meio
encabulada de ambos, para vestir o clamor jurídico dos espoliados e oprimidos e
desalterar-lhes a sede de Justiça)” (LYRA FILHO, 1983, p. 70)
Durante o período em que a revolução comunista obteve êxito no plano
político, o pensamento marxista acerca do Direito procurou identificá-lo às premissas
do projeto revolucionário, como se verifica em Stucka (1974) e Pasukanis (1989), por
exemplo. A retomada da reflexão sobre esses temas surgiu justamente com a
derrocada do “Socialismo Real”. A queda do regime soviético deixou saliente que a
ausência de uma reflexão sobre o governo e as instituições jurídicas transformara o
projeto revolucionário em exercício de pura força, que se perpetuava sobre uma crença
metafísica no “sucesso” da Revolução. Dessa maneira, muito longe de estar fadado ao
desaparecimento com a queda do Muro de Berlim e da Cortina de Ferro, foi após o
desenrolar de tais eventos históricos que o marxismo pôde se dissociar desses
descaminhos e restabelecer seu rumo em servir de diretriz à construção de uma
sociedade mais justa e igualitária, resgatando, assim, seu potencial emancipatório.
(VAN PARIJS, 1993) Contudo, tais adaptações não são isentas de dificuldades e
99
implicam um trabalho interpretativo do que significa, nos dias atuais, compreender o
alcance e o significado da obra de Marx.
3.3.1 – Materialismo histórico, Materialismo dialético e liberdade em Marx
Para se compreenderem os fundamentos de uma teoria da justiça de origem
marxista é preciso apresentar, ainda que de modo sucinto, os pilares em que se
sustenta o pensamento de Karl Marx. Sua a obra é, originalmente, uma pesquisa
filosófica, com forte derivação para a análise histórica, econômica e social e que
culmina em uma proposta política para a humanidade (MORAIS, 2004).
Marx escreve no tempo em que a filosofia encontra-se às voltas com a obra
filosófica de G. F. W. Hegel. Hegel revolucionara o pensamento filosófico de sua
época, ao reabilitar a lógica dialética como lógica do real, como movimento da Razão,
sendo a única possibilidade de explicar a totalidade do Ser. A dialética hegeliana pode
ser definida como um método e um sistema lógico-filosófico que explora as
contradições entre as determinações do singular e do particular, fazendo-as reconciliar
num terceiro momento denominado de universal65 (COELHO, 2003). Isso ocorre por
meio do processo da Aufhebung66. Hegel se vale desse método para mostrar como o
65
“Para Hegel a dialética consiste numa aplicação científica do princípio, inerente ao pensamento em si
mesmo, de sua conformidade às leis do seu próprio desenvolvimento e do desenvolvimento do ser em geral.
Essas leis se manifestam como um processo de tese, antítese e síntese, o qual revela o tornar-se ou o vir a ser.
Cada coisa, cada ente, é, ao mesmo tempo, uma síntese da tese e antítese anteriores e também sua contradição,
que se superam em outra síntese superior, afirmada como nova tese a engendrar a sua própria e nova antítese,
numa transformação contínua a ascendente. À mesma lei estão sujeitas as transformações do espírito, as quais
engendram as da matéria. O mundo não é um conjunto de unidades autônomas, pois a única coisa
completamente independente é o todo, que, para Hegel, equivale ao ser absoluto, o qual é igualmente
dinâmico.” (COELHO, 2003, p.34)
66
O termo Aufhebung não encontra correspondente imediato em língua portuguesa e é traduzido na literatura
especializada pelo neologismo ‘suprassunção’. O termo se relaciona a três significados: 1) levantar, sustentar,
erguer; 2) anular, abolir, cancelar, revogar; 3) conservar, poupar preservar (INWOOD, 1997). “Em suas
descrições explícitas de aufheben, Hegel refere-se unicamente aos sentidos (2) e (3), uma vez que, em sua
opinião, é de grande interesse para o pensamento especulativo que aufheben tenha sentidos opostos. Ambos os
sentidos, argumenta ele, estão implícitos em (3), porquanto preservar algo envolve removê-lo da imediatidade e
de sua exposição a influências externas (...) Aufhebung é semelhante à negação determinada que tem um
100
“espírito”67 se manifesta na História68. Ele consegue, com essa renovada compreensão
da dialética, forjar uma identidade entre o real e o racional, fornecendo, assim, a
expressão mais acabada ao movimento filosófico denominado “idealismo”69.
Marx (2006b) reconhece a importância da dialética como método filosófico
que aponta a estrutura na qual se move toda a evolução cultural e histórica do homem,
no entanto, rejeita veementemente a perspectiva idealista70. Segundo ele, a primazia
resultado positivo. O que resulta da suprassunção de algo, por exemplo, o todo em que ele e seu oposto
sobrevivem como momentos, é invariavelmente superior ao item, ou à verdade do item suprassumido”
(INWOOD, 1997, p. 303)
67
Em sua acepção mais abrangente Espírito (Geist) “denota a mente humana e seus produtos, em contraste com
a natureza e também com a idéia lógica” (INWOOD, 1997, p.118). Já em sentido filosófico estrito, o conceito
de Espírito “inclui os aspectos mais intelectuais da psique, dede a intuição até o pensamento e a vontade, mas
excluindo e contrastando com a alma, o sentimento, etc... A ‘fenomenologia de Geist’ cobre o mesmo terreno,
mas com destaque para a consciência de objetos por parte do espírito” (INWOOD, 1997, p.118). Por fim, cabe
ainda dizer que em Hegel o conceito de Espírito adquire algumas determinações precisas, por serem expressão
de manifestações específicas. Assim, Espírito Subjetivo é o produto da psique humana, em sua dimensão volitiva
e do pensamento. Espírito Objetivo se relaciona aos costumes, leis e instituições jurídicas de um determinado
povo, que moldam seu caráter e sua consciência segundo tais valores. Espírito Absoluto se relaciona às
dimensões da arte, da religião e da filosofia, segundo os valores mais superiores que o Espírito em geral se
espelha em sua atividade. (INWOOD, 1997)
68
“A dialética, do ponto de vista de Hegel, explica todo o movimento e toda a mudança, tanto no mundo quanto
em nossos pensamentos sobre ele. Também explica por que as coisas, assim como os nossos pensamentos
apresentam uma coesão sistemática entre si. Mas a transitoriedade das coisas finitas e a elevação (Erhebung)
acima do finito efetuada pelo pensamento dialético também têm para ele uma significação religiosa, e está
inclinado a assimilar a dialética no sentido negativo ao poder (Macht) de Deus.” (INWOOD, 1997, p. 101)
69
Idealismo em sentido mais amplo “é a doutrina segundo a qual as idéias ou o ideal são, ontológica e/ou
epistemologicamente, anteriores às coisas ou ao real. Mas o idealismo varia de acordo com (entre outras
coisas) os sentido atribuídos a “idéia” e “ideal”, e com o tipo de prioridade que lhes é prescrito” (INWOOD,
1997, p.165). O idealismo encontra-se presente na filosofia desde seus primórdios entre os gregos, sendo Platão
um de seus maiores representantes naquele período. Nos séculos XVII e XVIII há um movimento filosófico de
retomada do idealismo, em especial entre os filósofos de origem germânica, denominado de “crítico” ou
“transcendental”, que aparece inicialmente na filosofia kantiana e tem seqüência com a obra de J.G. Fichte. A
perspectiva desses dois filósofos seria a de um idealismo subjetivista, em que haveria um Eu absoluto metafísico
responsável por produzir o mundo e fornecer as categorias necessárias à possibilidade de conhecimento. Atento
às críticas do filósofo Friedrich Schelling, que constatou a relação necessária entre o mundo ideal e o mundo
real, que os conduz em direção uma unidade absoluta, Hegel rejeita o idealismo subjetivo. Sua filosofia é o que
se pode qualificar de idealismo absoluto, pois para que qualquer categoria do pensamento se torne compreensível
é necessária a referência a uma instância superior que lhe forneça sentido e expressão. Em sua relação com o
todo, tais categorias aparecem sob uma perspectiva ideal, enquanto um produto do pensamento, segundo o
processo de suprassunção dialética acima explicado. (INWOOD, 1997)
70
Sobre a passagem do idealismo para o materialismo em Marx, a partir da crítica a Ludwig Feuerbach
Quintaneiro, Barbosa e Oliveira (2002) explicam: “Na passagem do idealismo para o materialismo dialético,
Ludwig Feuerbach (1804-1872), hegeliano de esquerda, foi uma figura chave. Feuerbach sustentava que a
alienação fundamental tem suas raízes no fenômeno religioso, que cinde a natureza humana, fazendo com que
os homens se submetam a forças divinas, as quais, embora criadas por eles próprios, são percebidas como
autônomas e superiores. O mundo religioso é concebido por Feuerbach como uma projeção fantástica da mente
humana, por isso alienadas. A supressão desse mundo, por meio da crítica religiosa faria desaparecer a própria
alienação, promovendo a liberação da consciência.
Embora inicialmente seduzidos pelas teses de Feuerbach, logo Marx e Engels rebateram-nas vigorosamente por
considerarem tal crítica religiosa uma simples ‘luta contra frases’. É nesse ponto que a teoria marxista articula
a dialética e o materialismo sob uma perspectiva histórica, negando, assim, tanto o idealismo hegeliano quanto
101
ontológica do “espírito” sobre a realidade concreta significaria uma abstração que não
leva em consideração o homem feito de carne e osso, aquele que nasce e morre, que
constrói sua cultura pelo trabalho. Para que se conheçam e se desvelem as estruturas
do mundo real, é preciso que se adote uma perspectiva materialista, que compreenda
que toda a realidade cultural humana tem como referência as relações práticas que o
homem estabelece no mundo concreto (BOTTOMORE, 2001). A aplicação do método
dialético sob o enfoque materialista leva Marx a concluir que o objeto do pensamento
e da ação humana é a práxis transformadora e a atividade revolucionária
(QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002), a partir da tomada de uma postura
crítica:
Na Alemanha, nenhum tipo de servidão será abolido, se toda a servidão não for
destruída. A Alemanha, que é profunda, não pode fazer uma revolução sem
revolucionar a partir do fundamento. A emancipação do alemão é a emancipação do
homem. A filosofia é a cabeça desta emancipação e o proletariado o seu coração. A
filosofia não pode realizar-se sem a exaltação do proletariado, o proletariado não
pode exaltar-se sem a realização da filosofia (MARX, 2006b, p.59)
Especificamente no marxismo, o materialismo se revestirá em duas
distintas teorias: o materialismo dialético e o materialismo histórico. Arnsperger e Van
Parijs (2003) resumem bem como se caracterizam esses dois métodos:
O materialismo dialético, de um lado, é uma teoria metafísica que atribui um papel
central ao conceito de ‘contradição’, em sua interpretação da natureza profunda da
realidade. O materialismo histórico, de outro, é uma teoria geral da história cuja
tese central afirma que a natureza das relações de produção – feudal, capitalista ou
socialista, por exemplo – se ajusta ao desenvolvimento das ‘forças produtivas’, isto
é, ao crescimento da produtividade do trabalho, exercendo ao mesmo tempo sobre
esse desenvolvimento influência decisiva.(grifos do autor) (ARNSPERGER; VAN
PARIJS, 2003, p.54-55)
o materialismo dos neo-hegelianos. Isto resultou na reformulação não só da dialética como da concepção dos
fundamentos da alienação” (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002, p. 29)
102
A análise marxista da realidade tem como foco central as contradições
existentes na dimensão da produção econômica e sua categoria principal será o
processo de trabalho inerente a ela. Marx (1999) descreve o processo de trabalho:
Antes de tudo trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza,
processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e
controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza
como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo –
braços e pernas, cabeça e mãos – a fim de apropriar-se dos recursos da natureza,
imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa
e modificando-a, ao mesmo tempo modifica a sua própria natureza. Desenvolve as
potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças
naturais. (MARX, 1999, p.211)
Por meio do trabalho, o homem transforma a realidade e modifica-se ao
mesmo tempo também a si próprio. Isso denota, para Marx, que o processo cultural
não possui um caráter especulativo, estando ligado à dimensão da práxis, ou seja, do
agir humano (ENGELS; MARX, 1998). É somente quando dá vazão a essa dimensão
que intervém na realidade, modificando-a, que o homem trabalha e, assim, adquire
cultura, vindo ele mesmo a evoluir.
Ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui é da terra que
se sobe ao céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem,
imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento,
na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de
carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu
processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e
das repercussões ideológicas desse processo vital. E mesmo as fantasmagorias
existentes no cérebro humano são sublimações resultantes necessariamente do
processo de sua vida material, que podemos constatar empiricamente e que repousa
em bases materiais. Assim, a moral, a religião, a metafísica e todo o restante da
ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, perdem logo
toda a aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; ao
contrário, são homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações
materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e
também os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida,
mas sim a vida que determina a consciência. (ENGELS; MARX, 1998, p.19-20)
Salienta-se aqui um importante aspecto da teoria marxista: a de que aquilo
que se encontra na realidade enquanto forma de resistência à evolução do homem deve
103
ser objeto de uma intervenção transformadora. Para usar palavras que poderiam ser
qualificadas como herança do marxismo, “o socialismo não será nunca mais do que
uma qualidade ausente. Isto é, será um princípio que regula a transformação
emancipatória do que existe, sem, contudo, nunca se transformar em algo existente.”
(SANTOS, 1994, p. 277). Segundo Engels e Marx (1998), há no homem um poder de
criação que o leva a superar as adversidades impostas pela realidade, e esse poder
constitui a essência de sua natureza – tal como descreve o materialismo dialético.
A superação dos obstáculos que a realidade coloca ao homem constitui a
sua capacidade de emancipação. Para Marx (2006a), a liberdade está intimamente
vinculada à ação política que transforma a realidade. Diferentemente da liberdade
burguesa, responsável por isolar o indivíduo de sua comunidade, sua concepção de
liberdade pode ser relacionada à dimensão positiva desse conceito. Ela se liga a uma
capacidade de intervir de modo ativo nos caminhos tomados pela coletividade na qual
se insere, constituindo-se como uma capacidade de emancipação:
Portanto, esta comunidade real que possibilitará a liberdade real, este reino da
liberdade, é algo a ser conquistado, será fruto de uma ação, de uma atividade
transformadora, de um querer, de uma vontade. Será fruto da práxis, da
subjetividade ativa. O reino da liberdade será fruto do exercício da liberdade. A
comunidade real, dentro da qual e só por meio da qual a liberdade individual é
possível, terá como base a natureza dominada e humanizada. (REIS, 1987, p.122)
No tempo de Marx, e segundo seu diagnóstico (1999, 2003), a
emancipação do homem encontrava-se obstaculizada pelo modo de produção
capitalista, bem como por seus efeitos sobre o homem. Por essa razão há, em toda a
sua obra, uma crítica mordaz aos postulados desse sistema produtivo. Isso porque as
bases do capitalismo se assentam sobre a exploração radical de uma classe sobre outra,
de modo a que uns poucos se beneficiem do produto social, enquanto a grande maioria
fica à mingua de parcas migalhas distribuídas tão-somente para a perpetuação do
104
sistema. Além da desigualdade atinente ao acesso aos recursos materiais, a lógica
capitalista seria responsável também por acentuar de modo vertiginoso o processo de
alienação71 do homem, fruto do intenso processo de divisão do trabalho72.
A principal conseqüência do processo de divisão do trabalho é a
constituição da propriedade privada (ENGELS; MARX, 1998). No sistema capitalista,
a complexidade da divisão social do trabalho faz com que a propriedade dos meios de
produção permaneça exclusivamente com uma classe distinta daquela que realiza o
processo de trabalho. Essas duas classes são, respectivamente, a burguesia e o
proletariado. O processo de produção de riqueza no sistema capitalista assenta-se na
extração da mais-valia (MARX, 1999, 2003). Como o burguês produz para vender, ele
emprega o capital para a produção de mercadorias. Investe em maquinário, matériaprima, compra a força de trabalho que opera a máquina e organiza a produção. No
processo de transformação da matéria prima em mercadoria, há um acréscimo de seu
valor, oriundo do processo de trabalho. Para que o sistema capitalista possa se
perpetuar, o valor que o burguês obtém em mercadorias produzidas pelo trabalho
71
A alienação é caracterizada por Marx como um efeito da atividade humana prática que se desenvolve por meio
do processo de trabalho. Segundo explicam Quintaneiro, Barbosa e Oliveira (2002) esse efeito aparece como um
estranhamento entre o trabalho realizado e o seu produto, em função do fato de que o trabalhador não se
reconhece em sua obra, mas sim aquele que o explora. No caso do capitalismo, o burguês detém os meios de
produção e determina tudo o que se relaciona a ela a fim de se produzir a mercadoria. O trabalho proletário
encontra-se, portanto, a serviço de um interesse particular que não é o seu. “Marx sublinha três aspectos da
alienação: 1) o trabalhador relaciona-se com o produto do seu trabalho como algo alheio a ele, que o domina e
lhe é adverso, e relaciona-se da mesma forma com os objetos naturais do mundo externo; o trabalhador é
alienado em relação às coisas; 2) a atividade do trabalhador tampouco está sob seu domínio, ele a percebe
como estranha a si próprio, assim como sua vida pessoal e sua energia física e espiritual, sentidas como
atividades que não lhe pertencem; o trabalhador é alienado em relação a si mesmo; 3) a vida genérica ou
produtiva do ser humano torna-se apenas meio de vida para o trabalhador, ou seja, seu trabalho – que é a sua
atividade vital consciente e que o distingue dos animais – deixa de ser livre e passa a ser unicamente meio para
que sobreviva.” (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002)
72
A divisão do trabalho é o processo de segmentar as etapas da produção em conformidade com as diferentes
aptidões dos membros que fazem parte de um grupo social. Esse processo surge inicialmente no ato sexual e
depois se expande para a família e para a comunidade em função das diferentes disposições naturais de cada
indivíduo (ENGELS; MARX, 1998). Isso implica em uma repartição quantitativa e qualitativamente
diferenciada de trabalho entre os indivíduos. Conseqüentemente, haverá também uma distribuição diferenciada
dos instrumentos e dos gêneros de produção entre eles, fazendo com que sejam fixados e agrupados de acordo
com as atividades que desempenham. Isso dá origem às classes e os respectivos interesses próprios a cada uma
delas. Quando a sociedade inteira estrutura seus processos produtivos de modo a segmentar sua produção
material em setores mais abrangentes, como campo e cidade, burocracia e trabalho manufaturado, há a chamada
divisão social do trabalho (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002)
105
operário deve ser superior àquele custeado por ele no pagamento dos salários. Essa
diferença entre o que a força de trabalho é capaz de produzir e o valor que o burguês
paga por ela, é denominado por Marx de mais-valia, ou sobre-valia. Pela extração da
mais-valia desse trabalho excedente que o trabalhador realiza em sua jornada fixa, o
capitalista aufere seus ganhos e rendimentos73.
Como a sociedade pós-Revolução Industrial tem nas fábricas a principal
fonte de emprego para a grande maioria da população, a extração da mais-valia tornase um meio generalizado de exploração do trabalho operário e de sustentação de todo
o sistema produtivo da sociedade. Associada a isso, há a possibilidade de o burguês
estabelecer as condições de trabalho, tais como jornada, salários, salubridade e
segurança do ambiente de trabalho, emprego de mulheres e crianças, dentre outras
formas de exploração, por força das prerrogativas asseguradas ao livre-arbítrio pela
liberdade burguesa. Estabelece-se assim, o que Engels e Marx (1998) denominaram de
conflito entre classes, ou luta de classes. Em virtude de uma lógica acumulativa
inerente ao capital, os burgueses extrairiam da classe operária cada vez mais a maisvalia74 pelo agravamento das condições de trabalho. Os trabalhadores, por sua vez,
desenvolveriam uma resistência a esse processo por meio da mobilização social e da
organização política, reivindicando condições que limitariam a livre expansão do
capital, tais como jornadas reduzidas, salários dignos, ambientes de trabalho seguros e
salubres, seguridade social, dentre outras (ENGELS; MARX, 1999).
73
Não cabe aqui realizar uma minuciosa explicação do processo de produção e reprodução do capital,
remetendo-se o leitor para as obras do próprio Marx (1999, 2003) que explicam detalhadamente tal processo.
74
Cabe aqui a distinção entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa (MARX, 1999). A mais-valia absoluta é o
valor de troca excedente que a mercadoria possui em relação ao conjunto dos valores encontrados no meio de
produção e na força de trabalho. Já a mais-valia relativa é aquela decorrente do aumento da produtividade que se
obtém do trabalho, a partir do emprego de inovações técnicas no processo produtivo. “Chamo de mais-valia
absoluta a produzida pelo prolongamento do dia de trabalho, e de mais-valia relativa a decorrente da
contração de tempo de trabalho necessário e da correspondente alteração na relação quantitativa entre ambas
as partes componentes da jornada de trabalho.” (MARX, 1999, p. 366)
106
Com isso, o projeto emancipatório do marxismo converte-se em uma
proposta política de contraposição ao sistema capitalista e aos seus efeitos, pois seria
somente com a abolição desse modo de produção que o homem teria lugar para
desenvolver suas potencialidades (ENGELS; MARX, 1998). Nesse sentido, o
comunismo apareceria como o modo de produção que viria a se contrapor ao
capitalismo, a ser alcançado por meio de uma revolução política a ser levada a efeito
pela classe proletária (ENGELS; MARX, 1998). Somente assim ela teria condições de
alterar, pela força, a estrutura econômica na qual se assenta o sistema capitalista
(ENGELS; MARX, 1999). Em especial, a revolução buscaria abolir a detenção
privada dos meios de produção pela classe burguesa, transferindo-a para o Estado75.
Uma vez que o proletariado seria a classe que representaria todas as pessoas76, ou seja,
a classe universal, sob o governo comunista não haveria um interesse de classe a ser
defendido, pondo fim, assim, ao antagonismo de interesses existentes (ENGELS;
MARX, 1999). Sendo assim, as relações sociais de produção estariam assentadas em
um modo de produção coletivo voltado para a satisfação das necessidades pessoais,
em que sequer o Estado e o Direito seriam necessários.
Em linhas gerais, esse é o pensamento filosófico, econômico e político de
Marx. Suas propostas serviram de inspiração para diversos movimentos sociais que, ao
longo do século XX, buscaram implementar regimes políticos pela via revolucionária;
Tais movimentos revolucionários se basearam na abolição da propriedade privada dos
75
O conjunto de medidas empregadas no projeto revolucionário comunista com o objetivo de por fim à
dominação de classe exercida pela burguesia encontra-se em O manifesto comunista (1999) de Engels e Marx.
Interessante notar que ali se encontram as propostas práticas decorrentes da adoção de uma perspectiva marxista
de arrecadação e distribuição dos recursos sociais, tais como abolição de toda a forma de propriedade privada
dos meios de produção e sua transferência para o Estado, generalização dos serviços públicos de educação e
transporte, fim do direito de herança e impostos progressivos em conformidade com a riqueza de cada um.
76
“Mas na Alemanha, onde está a possibilidade positiva da emancipação? Aqui está a nossa resposta: na
constituição de uma classe que tenha esferas radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja somente
uma classe da sociedade civil, de uma classe que não seja a dissolução de todas as classes, de uma esfera que
possua caráter universal porque os seus sofrimentos são universais e que não exige uma reparação particular
porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral, que já não possa exigir o título
histórico, mas apenas o título humano;” (MARX, 2006b, p.58)
107
meios de produção, com sua transferência para o Estado. Alicerçados em uma
interpretação ortodoxa do materialismo histórico realizada por marxistas como Lênin e
Stalin, tais regimes caracterizaram-se por governos ditatoriais, com intensa
centralização política e planejamento econômico, constituindo-se o denominado
“Socialismo Real”77. O fracasso desses regimes e do modelo ortodoxo de interpretação
do pensamento de Marx realizado por meio das “doutrinas oficiais” (MORAES, 2003)
levou o marxismo a repensar os caminhos para se alcançar os objetivos da sociedade
comunista, em especial resgatando-se a noção de que o debate democrático impõe-se
como o princípio norteador e a prática socialista por excelência (SANTOS, 1994).
3.3.2 – O fim da exploração e da alienação no projeto comunista
A idéia-chave das propostas marxistas sobre a justiça liga-se à afirmação de
que todo processo de satisfação de necessidades possui um caráter social (ENGELS;
MARX, 1998). Dos núcleos mais simples aos mais complexos da produção material
de bens para a satisfação das necessidades, haverá sempre uma dimensão social. Esse
processo será mascarado em maior ou menor intensidade em virtude do nível de
desenvolvimento em que se encontra a divisão social do trabalho.
No capitalismo, a acentuada divisão social do trabalho, o estabelecimento
do sistema universal de trocas mediado pelo dinheiro e a transformação da força de
trabalho em mercadoria objetiva a ser negociada no mercado fornecem a ilusão de que
os indivíduos encontram-se “por natureza” isolados uns dos outros78, estabelecendo
77
Para a caracterização do “Socialismo real” e um breve relato de sua trajetória do século XX, veja-se o tópico
2.1, nota 3.
78
Isso dá pelo fato de que todas as três características mencionadas são dimensões da alienação (descrita na nota
71, tópico 3.3.1). Em virtude da alienação, os indivíduos estariam cegos para o fato de que os valores do
individualismo e da liberdade seriam artificiais e pregados pela burguesia apenas como modo de perpetuar o
sistema de produção capitalista (MARX, 2006a)
108
relações sociais por meio de “contratos” que os ligariam de modo casuístico e segundo
as contingências das relações sociais e produtivas. Nesse contexto, perdeu-se de vista
que o processo social de satisfação de necessidades refere-se ao conjunto dos membros
envolvidos em uma sociedade, passando a ser restrita à figura individual de cada um,
tomados de modo isolado nessa associação contratual da qual fariam parte. Sendo
assim, o conceito de liberdade formulado pelo pensamento liberal incorreria na
reprodução desse equívoco:
Conseqüentemente, a liberdade é o direito de fazer tudo o que não cause prejuízo
aos outros. São determinados pela lei os limites dentro dos quais cada um pode
atuar sem prejuízo aos outros, assim como o limite entre os dois campos é muito
bem determinado. Trata-se da liberdade do indivíduo como mônada isolada,
reservada para o interior de si mesma.(...) a liberdade como direito do homem não
se baseia na relação entre homem e homem, mas na separação do homem a respeito
do homem. É o direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado
em si mesmo. (MARX, 2006a, p. 31-32)
Desse modo, o que o sistema capitalista generaliza é que a lógica de
satisfação das necessidades individuais, responsável pelo estabelecimento do mercado,
não levaria em consideração o caráter social desse processo. Em resumo, dir-se-ia,
com Marx, que uma necessidade que não seja igualmente satisfeita em toda a
sociedade significa uma irreal satisfação dessa necessidade, pois:
A atividade e o espírito são sociais tanto no conteúdo quanto na origem; são
atividade social e espírito social. O significado humano da natureza só existe para o
homem social, porque só neste caso é que a natureza surge como laço com o
homem, como existência de si para os outros e dos outros para si, e ainda como
componente vital da realidade humana: só aqui se revela como fundamento da
própria experiência humana. Só neste caso é que a existência natural do homem se
tornou sua existência humana e a característica se tornou, para ele, humana.
(MARX, 2006c, p. 139-140)
A finalidade do estabelecimento do regime comunista é justamente a de
modificar a estrutura econômica para que um regime de abundância possa se
estabelecer. Sua finalidade seria a de proporcionar a todos os indivíduos da sociedade
109
os meios materiais exigidos para a satisfação de suas necessidades. Desse modo, seus
membros não estariam constrangidos pelas exigências da produção da vida material a
venderem sua força de trabalho em uma troca desigual. Isso poria fim à exploração,
assim como faria com que o trabalhador voltasse a se reconhecer no produto de seu
trabalho, já que:
É somente nesse estágio que a manifestação da vida individual coincide com a vida
material, o que corresponde à transformação dos indivíduos em indivíduos
completos e ao despojamento de todo o caráter imposto originariamente pela
natureza; a esse estágio correspondem a transformação do trabalho em atividade
livre e a transformação dos intercâmbios condicionados existentes num intercâmbio
dos indivíduos como tais. (ENGELS; MARX, 1998, p. 84)
No entanto, as experiências históricas de regimes políticos que buscaram a
abolição da propriedade privada dos meios de produção como meio de se alcançar os
objetivos do comunismo não obtiveram o êxito esperado. Uma das principais críticas
feitas ao chamado “Socialismo Real” está ligada ao fato de que simplesmente se
transferiu a titularidade do responsável pela exploração e pela alienação – se antes elas
eram realizadas pelo capitalista, após a Revolução, passaram a ser realizadas pelo
Estado. Porém, a derrocada desses regimes não significou que os propósitos do
comunismo tenham se esvaído juntamente com eles. Muito pelo contrário,
permanecem nas lúcidas colocações de Marx de que é somente com a efetivação dos
objetivos do comunismo que se alcançará, de fato, uma liberdade para todos:
É somente na comunidade [com outros que cada] indivíduo possui os meios de
desenvolver suas faculdades em todos os sentidos; é somente na comunidade que a
liberdade pessoal é possível. Nos sucedâneos de comunidades que até agora
existiram, no Estado etc., a liberdade pessoal só existia para os indivíduos que se
tinham desenvolvido na condição de classe dominante e só na medida em que eram
indivíduos dessa classe. A comunidade aparente, que os indivíduos tinham até então
constituído, tomou sempre uma existência em relação a eles e, ao mesmo tempo,
pelo fato de representar a união de uma classe em face de outra, ela representava
não somente uma comunidade completamente ilusória para a classe dominada, mas
também uma nova cadeia. Na comunidade real, os indivíduos adquirem sua
110
liberdade simultaneamente com sua associação, graças a essa associação e nela.
(ENGELS; MARX, 1998, p. 92-93)
3.3.3 – Características de uma teoria da justiça de cunho marxista
Como visto, a teoria marxista considera que uma sociedade justa se
constrói pela promoção da igualdade de acesso aos bens sociais. Isso implica,
portanto, que ela combata as formas de organização social que permitem a exploração
de uma classe sobre a outra, notadamente, a da classe detentora dos meios de produção
em relação à da classe que vende a sua força de trabalho. Isso significa que o
marxismo coloca-se contra as instituições sociais que dão suporte ao capitalismo, pois,
segundo a teoria do valor-trabalho79 exposta por Marx (1999, 2003), a exploração é
inerente ao capitalismo. Assim, em princípio, o marxismo seria completamente
incompatível com qualquer forma de capitalismo existente, não restando outra saída
para se implementar a sua teoria da justiça que não a abolição completa da propriedade
privada dos meios de produção.
79
Em síntese, a teoria do valor-trabalho sustenta que as mercadorias possuem “um duplo modo de existência:
real, enquanto valores de uso, e ideal, enquanto valores de troca” (MARX, 2003, p. 64). O valor de uso exprimese na necessidade que um produto adquire no processo de consumo. Às diferentes importâncias e grandezas entre
os produtos, atribui-se distintos valores. Eles são comparáveis entre si somente na medida em que possuem uma
utilidade para o consumo. Na medida em que a mercadoria integra uma relação econômica, é preciso que se
abstraia de seu valor de uso para que se lhe atribua um valor de troca. A realização desse processo depende de
um equivalente geral, uma unidade à qual todas as mercadorias possam ser reduzidas. Esta unidade é o trabalho,
pois toda mercadoria somente existe enquanto tal a partir de um trabalho que opera sobre a matéria bruta. Ela é,
pois, “tempo de trabalho coagulado” (MARX, 2003, p.15). O trabalho que produz a mercadoria é o trabalho
humano geral “que qualquer indivíduo de uma dada sociedade pode efetuar, é um determinado dispêndio
produtivo de músculos, nervos, cérebro, etc... humanos. É o trabalho simples para o qual pode se preparado
qualquer indivíduo médio, e que de uma maneira ou de outra tem de cumprir.” (MARX, 2003, p. 15-16). Assim,
segundo a teoria do valor-trabalho, todo o valor de uma mercadoria se realiza na quantidade de trabalho geral
necessário para a sua produção (MARX, 2003). Aqui, entra em cena a extração da mais-valia, pois a
remuneração do trabalho é sempre inferior à quantidade de trabalho materializada na mercadoria que entra em
circulação.
111
No entanto, ao se colocar em suspenso a teoria do valor-trabalho80 para se
avaliar a existência de exploração numa relação social produtiva, e se passar a
considerar a exploração a partir da verificação da existência de uma troca desigual
entre as partes, é possível vislumbrar novos contornos para a análise da exploração no
seio dos sistemas produtivos existentes, sejam eles capitalistas ou socialistas
(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). Segundo a análise de John Roemer (1989,
1994), a teoria do valor-trabalho, como critério para análise da existência da
exploração – ou da troca desigual – em uma relação social, seria posta de lado,
passando a se atentar para o resultado das dotações finais de cada uma das partes no
conjunto daquilo que recebem. Nos termos de um marxismo “rejuvenescido” a medida
da exploração capitalista seria “understood as the specific and positive impact on the
distribution of income, of an unequal distribution of property rights in the means of
production, or, for short, as asset-based inequality.81 (VAN PARIJS, 1993, p. 99)
Tal concepção possui a vantagem de identificar a existência da exploração
para além das relações entre capitalistas e proletários, permitindo-se identificar tal
conceito inclusive no seio das sociedades socialistas. Ainda segundo tal concepção
(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003), somente ao se alcançar um padrão igual de
distribuição de recursos é que se teria uma completa justiça, sendo esse o critério para
a verificação da maior ou menor presença da justiça nas medidas distributivas dos
recursos, bens e oportunidades no seio de uma sociedade. Mas a renovada teoria da
80
Segundo Van Parijs (1993), a teoria do valor-trabalho falharia no propósito de afirmar que a exploração seria
algo próprio do capitalismo, pois, a aplicação coerente de seus princípios faria com que houvesse exploração
também no socialismo. Pois em qualquer associação cooperativa para a produção, encontram-se também
presentes os requisitos da existência de exploração, pois há a prestação de trabalho de uma pessoa para outra (do
indivíduo para coletividade que detém os meios de produção), há um aproveitamento econômico desse trabalho
(pela coletividade) e há de alguma forma uma relação de poder envolvida (pois é somente a coletividade que
controla o acesso a tais meios).
81
“(...) entendida como o impacto positivo e específico na distribuição da renda a partir de uma desigual
distribuição dos direitos de propriedade dos meios de produção, ou, resumindo, de uma desigualdade baseada
nos recursos pessoais.” (tradução nossa)
112
exploração de John Roemer traz consigo algumas dificuldades de natureza
operacional:
De fato, em razão da cláusula ‘por outro lado, todas as coisas iguais’, não se
procura saber, de modo algum, de que nível de bem-estar uma pessoa gozaria
efetivamente, no caso em que todas recebessem dotação igual, levando em conta,
por exemplo, uma eventual influência negativa dessa igualização sobre a eficácia
do funcionamento da economia. Por esse motivo, a situação de referência à qual se
compara a situação real, para determinar se há exploração, é geralmente
irrealizável; (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 66)
Como visto, dentro de um quadro marxista completo de análise e
interpretação da realidade, a realização da justiça não se liga necessariamente à
distribuição dos recursos em uma sociedade de maneira a se atingir um grau ótimo de
bem-estar. Essa é uma questão que concerne ao utilitarista. Para a teoria marxista da
justiça, a igualdade nas condições de acesso a bens e oportunidades é uma exigência
superior ao eventual bem-estar usufruído por cada um dos membros da sociedade
(VAN PARIJS, 1997).
Outra questão levantada por esse modo “rejuvenescido” de se abordar a
exploração está ligada ao fato de que a exploração, definida como a participação final
no resultado da distribuição dos bens e recursos, impediria toda e qualquer
transferência voluntária entre particulares, pois significaria restabelecer a desigualdade
de condições para pessoas livres e capazes. Nesse caso, para se levar a cabo a proposta
de nivelamento completo dos padrões de bem-estar dos indivíduos, comprometer-se-ia
seriamente a pretensão de compatibilidade entre o marxismo e a liberdade, já que em
um contexto posterior ao fracasso do Socialismo Real:
Negar que nossa liberdade consiste em fazer o que desejamos tem todas as
possibilidades de suscitar o temor de que a liberdade logo seja interpretada como
consistindo em fazer o que a vanguarda revolucionária sabe o que é bom que
façamos ou que os planejadores socialistas decidiram que devíamos fazer. (VAN
PARIJS, 1997, p. 128)
113
Esse é o dilema que cerca qualquer teoria de matriz marxista. Ao propugnar
por uma pretensão de estabelecer a liberdade material para todos os membros da
sociedade como condição mesma da própria liberdade, ela exige que se faça uma
intervenção profunda na realidade para que os bens sociais sejam distribuídos segundo
o critério da perfeita igualdade. Desenvolve-se, nesse processo, uma tendência a se
descurar das dimensões formal e negativa da liberdade – que estão na raiz moderna
desse conceito – em função da vulnerabilidade em que vontade individual, propriedade
de si e propriedade privada passam a se encontrar nesse contexto. Esse é justamente o
ponto explorado pelos adversários do marxismo. Ao sustentar que a liberdade coletiva
por meio da igualdade plena é uma falácia ou, ao menos, algo irrealizável, os
chamados libertarianos chamam atenção para o compromisso visceral entre a justiça e
a liberdade. Seria possível falar de uma sem levar a sério a outra?
3.4 O libertarianismo
Como visto, as teorias da justiça utilitarista e marxista são fruto da
compreensão de que a liberdade em uma sociedade realiza-se por meio de um
privilégio ao aspecto material e positivo desse conceito. Sendo assim, ambas as teorias
propõem que a liberdade seja alcançada pela atuação política no sentido de garantir
que os bens sociais sejam redistribuídos entre os membros dessa sociedade – o que se
dá, é claro, em conformidade com os respectivos critérios de cada teoria. Dentro do
marco dessas duas teorias, a justiça está relacionada à adoção dos procedimentos que
114
levam à distribuição dos bens sociais, de maneira a produzir o resultado proposto por
cada uma delas (seja promover o maior bem-estar possível ou a igualdade). O ponto de
partida da crítica libertária é o questionamento de que a liberdade não se confunde
com a riqueza ou o poder (HAYEK, 1990) e que, portanto, os meios levados a efeito
para se redistribuir riqueza contribuem para inviabilizar a liberdade e não para
preservá-la.
No final do século XIX e em toda a primeira metade do século XX, as
doutrinas que pregavam a necessidade da planificação da economia e da sociedade
pelo Estado exerceram grande influência no cenário político. Com elas, o Estado foi
elevado à categoria de ente absoluto para dirigir os rumos econômicos e sociais. Sob a
forma do Estado Social82 – designação que abrange tanto o Estado de Bem-Estar
Social das sociedades capitalistas, quanto os Estados que adotaram o regime socialista
– as prerrogativas conferidas ao ente político para definir os rumos econômicos e
comportamentais da sociedade ganharam uma proporção não antes vista na idade
moderna. A versão extrema dessa forma política foi a experiência do “Estado Total”
ou Estado totalitário, no qual as individualidades são quase que inteiramente
absorvidas pela subjetividade nascida da coletividade. Contudo, para os libertarianos,
o aniquilamento da individualidade significa a destruição da liberdade, já que o
sentido desta se esvai por completo quando o indivíduo passa a se submeter cegamente
a um poder que lhe é externo.
A filosofia libertariana surge nesse contexto de oposição ao Estado Social
que se inicia após a segunda guerra mundial e ganha vigor na década de 1970. Em sua
versão contemporânea, seu marco inicial pode ser atribuído aos estudos econômicos de
Friedrich Von Hayek, mas é somente a partir do engajamento de filósofos e
82
Estado Social é a denominação abrangente utilizada para se referir tanto ao Estado de Bem-Estar Social quanto
aos Estados socialistas que se desenvolveram sob o sistema político do Socialismo Real (SANTOS, 1994, OFFE,
1994). Para a caracterização de ambos remete-se o leitor à seção 2.1, notas 2 e 3.
115
economistas norte-americanos que o libertarianismo ganha força para se constituir
como uma verdadeira proposta de teoria da justiça, em especial a partir da obra de
David Friedman, Murray Rothbard, Robert Nozick. (ARNSPERGER; VAN PARIJS,
2003) O termo libertarianismo83 é inclusive empregado por esses autores para afastar
entendimentos ambíguos que a expressão “liberalismo” poderia sugerir, em especial
pelas diferentes conotações que adquire na política norte-americana. (VAN PARIJS,
1997)
Sendo assim, a crítica libertariana dirige o foco de seu ataque contra a
figura do Estado (FARAGO, 2004). Para os libertarianos, todas as formas de exercício
de coerção e de força utilizadas pelo poder político, em especial quando destinadas a
promover intervenções nos destinos da organização econômica e social, implicariam
restrições à liberdade dos indivíduos, pois, não haveria outra liberdade que não fosse
aquela identificada com a capacidade de exercer o arbítrio pessoal nas questões ligadas
aos rumos da vida individual de cada um84 (VAN PARIJS, 1988). Logo, como a outra
83
São sugeridas três traduções do termo para o português: os neologismos libertarianismo e libertarismo e a
expressão já corrente em nossa língua filosofia libertária. As duas primeiras são encontradas em diferentes
traduções de trabalhos de Van Parijs, enquanto a terceira, via de regra, está presente em textos que se referem
aos autores que fazem parte dessa corrente. Em O que é uma sociedade justa? Introdução à prática da filosofia
política (VAN PARIJS, 1997) emprega-se o termo libertarianismo, enquanto em Ética econômica e social
(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003) utiliza-se a expressão libertarismo. Já o termo filosofia libertária é
encontrado, por exemplo, nas traduções de Rawls (2000), Borradori (2003) e Taylor (2000). Atribui-se como
causa provável dessa imprecisão o fato de que as expressões consagradas em língua estrangeira são
libertarianism (inglês) e libertarism (francês), bem como a inexistência em língua portuguesa de um termo
correspondente a essas duas expressões. Assim, alguns optariam por criar um neologismo derivado do termo em
inglês, outros do termo em francês, enquanto a tradução de textos que não lidam profundamente com o tema
optaria pela expressão filosofia libertária, pela consagração na língua portuguesa. Nesse trabalho será utilizado
termo libertarianismo e os respectivos adjetivos libertariano(a) para identificar e fazer referência à mencionada
corrente de pensamento pelas seguintes razões: o trabalho de maior divulgação de Philippe Van Parijs em língua
portuguesa é O que é uma sociedade justa? Introdução à prática da filosofia política (VAN PARIJS, 1997), em
que a tradução utiliza o termo libertarianismo; A tese central de Phillippe Van Parijs encontra-se exposta em
Real-freedom-for-all: What( if anything can) justify capitalism?, trabalho redigido em língua inglesa – que,
portanto, emprega o termo libertarianism – e cuja versão foi a efetivamente consultada; o termo filosofia
libertária é passível de sugerir interpretação ambígua, já que relacionada à filosofia que tem seu principal foco na
liberação dos costumes, a partir de uma tradição que se inicia com romance libertário do séc. XVIII e que tem
seu fundamento nas teorias psicanalíticas modernas e contemporâneas. As idéias centrais desse pensamento
podem ser consultadas em Libertinos e Libertários (1996), organizado por Adauto Novaes.
84
Hayek (1990) explica que a chamada liberdade econômica, expressa pelo acesso a bens tornariam o homem
independente das restrições decorrentes do sistema econômico, não passaria de uma confusão terminológica
entre liberdade e riqueza, ou poder. Esse assunto será tratado adiante.
116
liberdade a ser supostamente reconquistada após a atuação do Estado não passaria de
uma ilusão ou uma quimera, tem-se que a ação do ente político não passa de exercício
arbitrário de poder. E ainda, por se chocar com a liberdade que cada indivíduo possui
de conduzir a sua própria vida, ela representa uma violação a direitos, sendo, por
conseguinte, injusta (VAN PARIJS, 1988). Desse modo, a pergunta sobre o que é uma
sociedade justa é respondida prontamente pelos libertarianos: “uma sociedade justa é
uma sociedade livre.” (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 37).
O que significa a liberdade pretendida pelos libertarianos? Que conjunto de
direitos ela consagraria para se alcançar o que eles denominam de “justiça”? Ao
identificar a denominada “liberdade econômica” à noção de riqueza ou poder, os
libertarianos rechaçam que as dimensões positiva e material da liberdade façam parte
de seu conceito. Segundo eles, somente as dimensões negativa e formal cumpririam
esse papel, pois são as únicas que, segundo eles, dão a correta compreensão do que
realmente significa ser livre na civilização moderna (HAYEK, 1990). Assim, os
direitos das individualidades ganham destaque no quadro da teoria libertariana. É em
função dos direitos de cada um que deverá ocorrer a distribuição do produto dos bens
de uma sociedade. Para tanto, o direito por excelência é o direito de propriedade (VAN
PARIJS, 1988). É de acordo com o que cada um livremente faz desse direito que os
indivíduos terão acesso aos diversos benefícios sociais, a serem obtidos por um
generalizado sistema de trocas que as pessoas estabelecem entre si. Assim, a
distribuição dos bens sociais proposta pela teoria libertariana assenta-se basicamente
no sistema do mercado (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). De início, surgem
algumas indagações: Qual o papel do Estado nessa forma de se conceber a justiça?
Qual o fundamento e a extensão desse absoluto direito de propriedade, do qual deriva
toda a concepção de justiça? Quais os riscos e conseqüências assumidas pela
117
sociedade ao pretender que a distribuição dos bens sociais ocorra exclusivamente pelo
sistema de mercado?
3.4.1 – Os argumentos em favor de uma defesa séria da liberdade ou por
que o Estado deve ser reduzido a uma dimensão mínima
Os libertarianos elegeram o Estado distributivista como vilão responsável
pela subtração da liberdade que se verificou ao final do século XIX e ao longo de todo
o século XX. O processo de concentração de poder conferiu diversas prerrogativas ao
ente político e permitiu que o Estado pudesse organizar e planejar diversos aspectos da
vida das pessoas. Isto significou, para os libertarianos, a tomada de um caminho
inverso àquele que, até então, havia seguido a matriz moderna de nossa sociedade –
mudança de rumo esta que teria sido responsável por interromper o processo que
trouxe o desenvolvimento das maiores conquistas da humanidade (HAYEK, 1990).
Não por acaso, a argumentação teórica dos libertarianos volta-se, de início, a
demonstrar os efeitos negativos do fortalecimento Estado e o que isto representa para a
questão da liberdade (VAN PARIJS, 1988). As objeções trazidas contra o fenômeno
do fortalecimento do Estado e do desaparecimento da liberdade são sérias e merecem
uma investigação que se proponha a analisar a constituição de uma teoria da justiça
que também tome a questão da liberdade de modo sério.
A primeira investida libertariana contra a perspectiva distributivista
assumida pelo Estado é realizada por Friederich Von Hayek. Farago (2004) mostra
que esse economista austríaco analisa, dentre outras questões, em que medida a
ascensão das concepções coletivistas de sociedade retiraram o mundo ocidental da
118
trajetória que o levava a um pleno desenvolvimento da liberdade do homem contra
sistemas opressores de sua individualidade:
O mestre do modo de pensar desses neoliberais é o economista austríaco Hayek
para quem só existe uma alternativa: ou abandona-se toda reivindicação de
igualdade das condições materiais, deixando a liberdade de empreender e de troca
regular os fluxos sociais, ou então consente-se a uma sistema totalitário fundar as
tentativas de igualdade com as quais sacrifica as liberdades. (...) Para ele, as
reivindicações igualitárias no domínio social correm o risco de colocar em perigo
‘os valores de uma civilização em liberdade’, expondo-os a serem sacrificados em
benefício de um sistema cada vez mais totalitário, em todo caso, de um dirigismo
exponencial. Para ele, a justiça dita ‘social’ não tem sentido senão dentro de uma
economia dirigida, burocratizada ou comandada (é o caso de um exército, por
exemplo) em que os indivíduos se vêem comandados, naquilo que têm de fazer, por
um poder totalmente centralizado (FARAGO, 2004, p. 239)
Segundo Hayek (1990), a história da civilização ocidental moderna é a
história da libertação do homem e da sociedade contra as estruturas políticas
autoritárias que antes constrangiam a sua individualidade. Essa busca por maior
liberdade foi amplamente favorecida pelo desenvolvimento do comércio e da presença
de governos “liberais”, no período que compreende desde o Renascimento às
revoluções burgueses do séc. XVIII:
A transformação gradual de um sistema hierárquico organizado em moldes rígidos
num sistema em que os homens podiam pelo menos tentar dirigir a própria vida,
tendo a oportunidade de conhecer e escolher diferentes formas de existência, está
intimamente ligada ao desenvolvimento do comércio. (...)
Durante todo esse período moderno da história européia, a tendência geral do
desenvolvimento social era libertar o indivíduo das restrições que o mantinham
sujeito a padrões determinados pelo costume ou pela autoridade no que dizia
respeito a suas atividades ordinárias. A constatação e que os esforços empreendidos
pelos indivíduos de modo espontâneo e não dirigido pela autoridade eram capazes
de produzir uma complexa ordem de atividades econômicas só poderia ocorrer
depois que esse processo de desenvolvimento tivesse alcançado certo ponto. A
elaboração de uma tese coerente de defesa da liberdade econômica resultou do livre
desenvolvimento das atividades econômicas que tinham sido um subproduto
imprevisto e não planejado da liberdade política. (HAYEK, 1990, p. 41)
Mas conta Hayek (1990) que desde o final do séc XIX, tendências antiindividualistas surgiram como reação a determinados efeitos do capitalismo de
mercado, tais como a concentração de empresas e as desigualdades sociais. Suas
119
pretensões de “justiça” reclamavam maior igualdade na repartição dos recursos
sociais, pela intervenção de uma força política que pudesse alterar os efeitos daquilo
que as regras do livre mercado já haviam distribuído entre os membros da sociedade.
O argumento era de que isso se fazia necessário em nome da preservação da
“liberdade” econômica dos indivíduos. No entanto, essa “nova” liberdade em nada se
assemelha à liberdade conquistada pela civilização moderna ao longo dos séculos
XVI, XVII e XVIII:
O advento do socialismo seria um salto do reino da necessidade para o reino da
liberdade. Ele traria a ‘liberdade econômica’ sem a qual a liberdade política já
obtida ‘de nada serviria’.
É importante perceber a sutil alteração de sentido a que se submeteu a palavra
liberdade para tornar plausível este argumento. Para os grande apóstolos da
liberdade política,essa palavra significava que o indivíduo estaria livre da coerção
e do poder arbitrário de outros homens, livre das restrições que não lhe deixavam
outra alternativa senão obedecer às ordens do superior ao qual estava vinculado.
Na nova liberdade prometida, porém, o indivíduo se libertaria da necessidade, da
força das circunstâncias que limitam inevitavelmente o âmbito da efetiva
capacidade de escolha de todos nós, embora o de alguns muito mais do que o de
outros. Para que o homem pudesse ser verdadeiramente livre, o ‘ despotismo da
necessidade material’ deveria ser vencido, e atenuadas ‘as restrições decorrentes
do sistema econômico’.
Liberdade neste sentido não passa, é claro, de um sinônimo de poder ou riqueza
(HAYEK, 1990, p. 49)
Entretanto, para que essa “liberdade econômica” tivesse lugar, seria
necessário que a economia deixasse de ser fruto da iniciativa privada passasse a ser
gerida por uma autoridade central que estabelecesse, de modo planificado, os rumos da
produção e da distribuição dos recursos da sociedade. Nesse ponto reside, para Hayek
(1990), a interseção que leva a humanidade do caminho da liberdade para o caminho
da servidão. Para ele, as economias planificadas são fruto da “organização intencional
das atividades da sociedade em função de um objetivo social definido” (HAYEK,
1990, p. 74). Essa característica produz um conflito inevitável entre o que é próprio da
esfera individual e aquilo que é determinado pela coletividade, pois, ao planejador,
120
seria impossível coordenar uma ação que atendesse indiscriminadamente aos
interesses de todos os integrantes de uma sociedade:
A direção de todas as nossas atividades de acordo com um plano único pressupõe
que para cada uma de nossas necessidades se atribua uma posição numa ordem de
valores que deve ser bastante completa para tornar possível a escolha entre as
diferentes alternativas que o planejador tem diante de si. Pressupõe, em suma, a
existência de um código de ético completo, em que todos os diferentes valores
humanos estejam colocados no seu devido lugar.(...)
Além de não possuirmos uma escala que inclua todos os valores, seria impossível a
qualquer intelecto abarcar a infinita gama de necessidades diferentes de diferentes
indivíduos que competem entre si pela posse dos recursos disponíveis, e atribuir um
peso definido a cada uma delas. (HAYEK, 1990, p. 75-76)
A ausência de concordância quanto aos denominados “objetivos sociais” –
que, para Hayek (1990), converteram-se no nebuloso termo “bem-comum” – não seria
solucionada por um procedimento de escolha democrática. Pois uma decisão da
maioria não passaria da eleição de um fim ou valor dentre as infinitas opções
existentes, a ser imposta a toda a sociedade:
A essência do problema econômico está em que a elaboração de um plano envolve a
escolha entre finalidades conflitantes ou que competem entre si – diferentes
necessidades de pessoas diversas. Mas só aqueles que conhecem todos os fatos
saberão quais são os objetivos que realmente conflitam, e quais os que terão de ser
sacrificados em benefício de outros – em suma, entre quais alternativas é preciso
escolher. E apenas eles, os especialistas, estão em condições de decidir qual dos
diferentes objetivos terá de ser prioritário. É inevitável, assim, que eles imponham a
sua escala de preferências à comunidade para a qual planejam.” (HAYEK, 1990,
p. 80)
O que Hayek (1990) mostra é que não é a deliberação coletiva que preserva
a liberdade. Para que ela subsista, é necessária uma determinada postura do Estado
quanto às regras relativas à produção e à distribuição dos bens na sociedade. Ela se
liga ao estabelecimento dos limites e regras para a atuação dos particulares em um
sistema de mercado. Para tanto, faz-se necessária a constituição de um verdadeiro
121
Estado de Direito, em que os direitos atribuídos a cada uma das individualidades não
se submetam a quaisquer interesses de ordem coletiva:
A distinção que estabelecemos entre criação de uma estrutura permanente de leis no âmbito da qual a atividade produtiva é orientada por decisões individuais – e a
gestão das atividades econômicas por uma autoridade central caracteriza-se assim,
claramente, como um caso particular da distinção mais geral entre o Estado de
Direito e o governo arbitrário. (...) As normas do primeiro tipo podem ser
estabelecidas de antemão, como normas formais que não visam às necessidades e
desejos de pessoas determinadas. Destinam-se apenas a servir de meio a ser
empregado pelo indivíduos na consecução de seu vários objetivos. (...) O
planejamento econômico do tipo coletivista implica necessariamente o oposto do
que acabamos de dizer. A autoridade planejadora não pode se limitar a criar
oportunidades a serem utilizadas por pessoas conhecidas como lhes aprouver. Não
pode sujeitar-se de antemão a regras gerais e formais que impeçam a
arbitrariedade. Ela deve prover às necessidades reais das pessoas na medida em
que forem surgindo, e depois determinar quais delas são prioritárias. É obrigada a
tomar constantes decisões que não podem basear –se apenas em princípios formais
e, ao tomá-las, deve estabelecer distinções de mérito entre as necessidades de
diferentes pessoas. (...) Dependem inevitavelmente das circunstâncias ocasionais, e
ao tomar tais decisões será sempre necessário pesar os interesses de várias pessoas
e grupos. No final, a opinião de alguém determinará quais os interesses
preponderantes; e essa opinião passará a integrar a legislação do país, impondo ao
povo uma nova categoria social. (HAYEK, 1990, p. 86-87)
Assim, o processo de concentração do poder político nas mãos do Estado,
que lhe conferiu a prerrogativa de estabelecer normas substanciais no que tange à
esfera da produção e da distribuição dos recursos econômicos, representa a subversão
da imparcialidade do Estado de Direito (HAYEK, 1990), porque o planejamento
econômico implica a criação de estruturas que possuem a prerrogativa de distribuir
intencionalmente os recursos de uma sociedade de acordo com os interesses de uma
classe que se privilegiará com esse esquema econômico:
Mas sempre que são conhecidos os efeitos precisos da política governamental sobre
determinados indivíduos, sempre que o governo visa diretamente a determinados
resultados, ele não pode deixar de conhecê-los e portanto não pode ser imparcial.
Deve, assim, favorecer a uma das partes, impor suas preferências ao indivíduo e, ao
invés de auxiliá-lo na consecução de suas próprias finalidade, escolher essas
finalidade em seu lugar. Quando os resultados particulares são previstos na ocasião
em que se faz uma lei, esta perde o caráter de simples instrumento a ser empregado
pelo povo e converte-se num instrumento usado pelo legislador para controlar o
povo. (HAYEK, 1990, p. 89)
122
Para Hayek (1990), a presença desse elemento intencional que elege
interesses específicos de indivíduos ou classes a serem privilegiados pela atuação do
Estado significa o desmantelamento do Estado de Direito. Pois, uma vez que a
igualdade formal de todos ante as mesmas oportunidades é solapada, introduz-se a
arbitrariedade e o privilégio nas relações sociais a partir do status político dos
indivíduos. Assim, quanto mais o Estado deixa de utilizar normas formais que
estabelecem regras imparciais de estabelecimento de iguais oportunidades no campo
econômico e passa a atuar com normas substanciais que beneficiam certas classes ou
categoriais, tanto mais se colocará em risco o Estado de Direito, ainda que por uma via
democraticamente institucionalizada. Pois, segundo Hayek (1990), é intima a relação
entre a preservação das condições impessoais do sistema de mercado e a preservação
da liberdade, já que:
Quem controla toda a atividade econômica também controla os meios que
contribuirão para a realização de todos os nossos fins. Pois quem detém o controle
exclusivo dos meios também determinará a que fins nos dedicaremos, a que valores
atribuiremos maior ou menor importância – em suma, determinará aquilo em que
os homens deverão crer e por cuja obtenção deverão esforçar-se. Planejamento
central significa que o problema econômico será resolvido pela autoridade central e
não pelo indivíduo; isso, porém, implica que caberá à comunidade, ou melhor, aos
seus representantes, decidir sobre a importância relativa às diferentes necessidades.
(HAYEK, 1990, p. 100-101)
Assim, Farago (2004) explica quais as funções o Estado e o Direito
assumem na teoria de Hayek:
O Estado deve contentar-se em proteger as liberdades individuais. No Estado
liberal, os únicos direitos são as liberdades individuais. Da mesma forma, as
recriminações a propósito dos resultados do mercado, em termos de injustiças, não
passam de alucinações ou de fantasias. À pergunta ‘quem, então, foi injusto?’ não
há resposta. A ordem do mercado não tem sujeito. E querer manter, a qualquer
preço, a exigência de justiça social na ordem espontânea do mercado no qual a
organização das sociedades modernas renovam-se, é divinizar a sociedade, é
entregar-se a um antropomorfismo social que não pode impedir-se de transformá-la
em uma instância misteriosa à qual se poderia encaminhar queixas e reclamações.
(FARAGO, 2004, p. 241)
123
Robert Nozick (1991) tem argumento semelhante ao tratar das teorias da
justiça que apresentam alguma proposta que insinue a distribuição de bens sociais pela
intervenção estatal. Em sua defesa em favor de “um Estado mínimo, limitado às
funções estritas de proteção contra a força, o roubo, a fraude, de fiscalização do
cumprimento de contratos e assim por diante” (NOZICK, 1991, p.9), defende que as
propostas de justiça distributiva, que envolvem a intervenção estatal na repartição dos
bens sociais, somente se sustentam caso violem diretamente a liberdade de cada um
dos indivíduos em dispor de seus bens de acordo com a própria vontade individual.
Segundo Nozick (1991), os princípios de justiça que estabelecem a
distribuição de bens a partir de uma diretriz coletiva e não-histórica85 podem ser de
duas espécies: de resultado final (end-state) ou padronizados (pattern). Princípios de
resultado final estabelecem que uma redistribuição deva alcançar determinados
objetivos previamente estabelecidos, segundo os quais determinados patamares serão
conferidos a cada um dos indivíduos que compõem o grupo. Por exemplo, um
princípio que determina a igualdade absoluta entre todos os membros após a
distribuição dos recursos é um princípio de estado final. Também um princípio que
exige certos níveis de bem-estar a grupos representativos da população (menos
favorecidos, 10% mais pobres, classe trabalhadora, os desempregados, etc...) é um
princípio de estado final. Ambos estabelecem um certo patamar a ser alcançado pela
redistribuição dos bens sociais, de modo que cada um dos grupos termine com uma
85
Teorias históricas da justiça são aquelas que sustentam que a justiça de uma distribuição depende do modo
como ocorreu. Na terminologia de Nozick, elas contrastam com teorias da justiça que utilizam princípios na
repartição corrente. Estas aduzem que a “justiça de uma distribuição é determinada pela maneira como as coisas
são distribuídas (quem tem o quê), da forma julgada por algum princípio(s) estrutural(is) de distribuição justa.”
(NOZICK, 1991, p. 174). Segundo Nozick, o utilitarismo, o marxismo e a teoria da justiça de Rawls seriam
qualificadas como teorias da justiça de repartição corrente, em função do recurso a princípios que conferem o
critério de justiça às distribuições dos bens em uma sociedade. A caracterização do libertarianismo como uma
teoria histórica da justiça será feita mais adiante.
124
quantidade específica do produto social (seja ela uma quantia precisa ou um critério
aberto tal como a maior quantidade possível) (VAN PARIJS, 1997).
Já os princípios padronizados são aqueles que determinam a distribuição
dos recursos no seio de uma sociedade obedecendo a um sistema que ordena os
indivíduos em uma escala de prioridades, em função de algum critério de
merecimento. Essa lista é estabelecida a partir de propriedades intrínsecas ou de ações
desempenhadas por cada um. Via de regra, os princípios de justiça de tipo padronizado
contêm a estrutura “a cada um segundo X” onde X é o critério que permite estabelecer
a lista de prioridades. Esse critério pode ser: o mérito moral, a necessidade, o esforço e
o trabalho de cada um ou, ainda, uma combinação entre eles (VAN PARIJS, 1997).
Nozick (1991) aponta que as tentativas de se estruturar uma teoria da
justiça a partir dessas duas espécies de princípios estão fadadas ao fracasso. Pois,
como a justiça exigiria a permanência dos níveis em que as pessoas foram deixadas
seja pela distribuição de estado final seja pelo padrão estabelecido, a liberdade de as
pessoas realizarem transferências voluntárias daquilo que receberam ficaria
comprometida já que teria o condão de perturbar a distribuição justa. A primeira
objeção levantada por Nozick é apresentada sob a forma da parábola do jogador de
basquete Wilt Chamberlain86. Esse exercício de imaginação aponta para a questão de
86
“Não é claro como aqueles que defendem teses alternativas de justiça distributiva podem rejeitar a concepção
de justiça que confere direitos à propriedade. Suponhamos que a distribuição preferida por uma dessas
concepções é realizada. Vamos presumir ainda que é a que você mais gosta e chamemo-la de D1. Talvez todos
tenham parcela igual, talvez as parcelas variem de acordo com alguma dimensão a que você atribui grande
valor. Suponhamos agora que Wilt Chamberlain, sendo uma grande atração de bilheteria, é objeto de demanda
dos times de basquetebol (Vamos supor ainda que os contratos têm duração de apenas um ano e que, depois
disso, os jogadores têm passe livre). Ele assina com um dos times o seguinte tipo de contrato: por cada jogo
ganho, 25 centavos do preço de cada ingresso lhe caberá (...) Começa o campeonato e as pessoas alegremente
comparecem aos jogos de seu time. Compram os ingressos, em todas as ocasiões colocando 25 centavos
separados do preço de aquisição do bilhete em uma caixa especial com o nome de Chamberlain. Ficam
emocionadas ao vê-lo jogar e acham que o preço que pagam é justo. Vamos supor que, em uma temporada, um
milhão de pessoas comparecem aos jogos em que ele toma parte. Wilt Chamberlain termina o campeonato com
US$ 250,000, uma soma muito maior do que a renda média e maior mesmo do que qualquer pessoa aufere”
(NOZICK, 1991, p.181-182). Em síntese o argumento mostra que, qualquer que seja o princípio de distribuição
adotado por uma sociedade, seja ele padronizado ou de estado-final, a manutenção das condições determinadas
nesse processo somente consegue se manter no tempo ao custo da impossibilidade de livre exercício da vontade
125
como transferências voluntárias colocam-se como empecilhos à regulamentação
oriunda de princípios distributivos, uma vez que elas perturbam aquilo que é
estabelecido pelos critérios contidos nesses princípios:
O argumento geral ilustrado pelo exemplo Wilt Chamberlain (...) é que nenhum
princípio de estado final ou distributivo padronizado de justiça pode ser
continuamente implementado sem interferência contínua na vida das pessoas.
Qualquer padrão preferido seria transformado pelo princípio em outro não
favorecido, ou por pessoas que resolvessem agir de maneiras diferentes, como por
exemplo pessoas trocando bens e serviços com outras pessoas ou dando a estas
pessoas coisas a que elas tinham direito de acordo com o padrão distributivo
preferido. A fim de manter o padrão, teríamos que ou interferir continuamente para
impedir que pessoas transferissem recursos como quisessem ou continuamente
(periodicamente) interferir para tomar de algumas delas recursos que outras
decidiram por alguma razão transferir para elas. (NOZICK, 1991, p. 183)
Com seu argumento, Nozick (1991) aponta como é que princípios
distributivos de justiça ofendem os direitos das pessoas de dispor livremente de sua
propriedade adquirida de modo legítimo. Seja no que toca àquilo que desejam alienar,
seja no que toca ao que desejam conservar e não transferir a ninguém. Obrigar as
pessoas a agirem contra sua vontade no que tange ao que irão fazer com suas
propriedades viola seus direitos87. Seria o que ocorre com o sistema tributário. Ao ser
constituído como modo de financiamento do Estado para por em prática sua proposta
redistributiva, a tributação passaria a intervir diretamente na vida das pessoas,
obrigando-as a produzir trabalho excedente para promover o alcance dessa meta
das pessoas. Pois os talentos e habilidades excepcionais que se oferecem no mercado em troca de uma
contraprestação não poderiam ter lugar nessa sociedade, já que estabeleceriam indivíduos com remunerações
diferenciadas do padrão, ainda que voluntariamente transferidas. Isso somente se sustentaria a partir de uma
constrição dos gostos e desejos, bem como da proibição do exercício remunerado dos talentos individuais.
(ARNSPERGER;VAN PARIJS, 2003)
87
Tome-se, por exemplo, o argumento Wilt Chamberlain: o seu acréscimo patrimonial decorre de uma livre
transferência de recursos das pessoas que o assistem jogar. Por um lado, impedir que ele venha a cobrar
ingressos para suas exibições seria forçá-lo a trabalhar (jogar) gratuitamente. Seria também impedir que ele
explore economicamente um talento que possui, seja por um dom natural, seja porque o adquiriu por meio de um
dedicado treinamento. Essas proibições significam que Wilt Chamberlain não teria direito a usar e dispor de seu
corpo e seus talentos. Por sua vez, também os fãs de Wilt Chamberlain seriam impedidos de apreciar suas
exibições. Assim o seu direito de satisfazer os seus gostos e desejos como melhor entendem seria tolhido.
(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003)
126
(NOZICK, 1991). Tamanha seria a coerção e o poder desse sistema que ele inclusive
se constituiria em um direito da coletividade sobre o indivíduo:
Quando princípios de justiça distributiva de resultado final são incorporados à
estrutura judiciária de uma sociedade, eles (como acontece com a maioria desses
princípios) dão a todos os cidadãos um direito impositivo a alguma parte do
produto social total, isto é, a alguma parte da soma total dos produtos individual e
conjuntamente gerados. Esse produto social é gerado por indivíduos que trabalham,
utilizando meios de produção que outros pouparam para que existissem, e por
pessoas que organizam a produção e criam meios para produzir novas coisas ou
coisas antigas de nova maneira. Sobre esse conjunto de atividades individuais, os
princípios distributivos padronizados conferem a cada indivíduo um direito
impositivo. Todos eles têm um direito às atividades e produtos dos demais,
independentemente de se estes participam de relacionamentos particulares que dão
origem a esses direitos e sem levar em conta se eles assumem esses direitos por
caridade ou em troca de alguma coisa.
Seja isso feito através de tributação de salários, ou dos salários acima de certo
volume, ou de confisco de lucros ou ainda se há uma grande panela social, de modo
que não é claro o que vem de onde e para onde vai, os princípios padronizados
implicam a apropriação de atos de outras pessoas. Tomar os resultados do trabalho
de alguém equivale a tomar-lhe horas e dirigi-lo para que execute várias atividades.
Se pessoas o obrigam a realizar certo trabalho, ou trabalho não remunerado,
durante certo período de tempo, elas decidem o que você tem que fazer e a que
finalidades seu trabalho deve atender, à parte suas próprias decisões. Esse
processo, pelo qual lhe tomam essa decisão, transformam-nos em co-proprietários
de sua pessoa, dão-lhes um direito de propriedade sobre você, da mesma maneira
que ter esse controle e poder de decisão parcial, por direito, sobre um animal ou
objeto inanimado implicaria ter um direito de propriedade sobre eles. (NOZICK,
1991, p. 191-192)
Desse modo, segundo os libertarianos, onde quer que se proponha intervir
na realidade econômica e social para realizar uma proposta distributiva, o Estado
violaria direitos e, portanto, não se justificaria moralmente (VAN PARIJS, 1997).
Qual seria, então, o papel do Estado na teoria da justiça libertariana? Que tipo de
liberdade ela consagra?
3.4.2 – Liberdade, direitos individuais e propriedade
O libertarianismo muitas vezes se confunde com outra corrente de
pensamento que obteve grande influência nos anos 1960, 1970 e 1980 denominada
neoliberalismo em função do alvo comum de ambas: a crítica ao Estado Social e a
127
proposta da retirada completa da atuação política no cenário econômico, deixando que
as distribuições de bens sociais fiquem a cargo exclusivamente do sistema de mercado
(VAN PARIJS, 1997). Em verdade, alguns dos pensadores libertarianos são também
adeptos do neoliberalismo econômico88. O neoliberalismo aduz que o capitalismo
baseado em premissas liberais ortodoxas é superior a qualquer forma de Estado Social,
porque é capaz de proporcionar maior eficiência e maior bem-estar ao conjunto da
população do que as economias intervencionistas. É o que se infere das afirmações de
Hayek (1990) sobre a relação entre os progressos da civilização moderna e o processo
de crescente aquisição da liberdade individual:
O resultado mais importante da liberação das energias individuais foi talvez o
maravilhoso desenvolvimento da ciência que acompanhou o avanço da liberdade
individual da Itália à Inglaterra e mais além. (...) Só depois que a liberdade
industrial permitiu a livre utilização dos novos conhecimentos, depois que se tornou
possível qualquer experimentação – desde que alguém se dispusesse a financiá-la,
e, cumpre acrescentar, isto ocorria, na maioria das vezes, fora do âmbito das
autoridades oficialmente encarregadas do cultivo do saber – só então é que a
ciência deu os grandes passos que nos últimos cento e cinqüenta anos mudaram a
face do mundo. (HAYEK, 1990, p. 41-42)
Segundo Hayek (1990), o desenvolvimento tecnológico e científico,
proporcionado pela expansão industrial e comercial trazida pelo liberalismo,
ocasionou a vertiginosa melhoria das condições de vida do homem moderno. Hayek
(1990) mostra também que o progresso social decorre da preservação dessa estrutura
liberal. Ele defende a superioridade do capitalismo de mercado em face de qualquer
outra doutrina de caráter intervencionista que se justifique sobre a proposta de trazer
justiça social (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). No entanto, em seu argumento
há também a semente da fundamentação libertariana. Quando Hayek (1990) privilegia
88
O neoliberalismo é um conjunto de postulados e argumentos voltados para proposições econômicas e que
sustentam a prioridade do mercado como mecanismo de regulação e funcionamento da economia. Já o
libertarianismo se distingue do neoliberalismo porque o objeto de suas reflexões são as premissas éticas
fundamentais da convivência humana. Assim, o libertarianos não podem ser chamados de neoliberais, muito
embora muitas de suas conclusões se prestem a fundamentar a prioridade da economia de mercado defendida
pelos economistas neoliberais.
128
perspectiva individualista e aduz que nenhuma entidade coletiva poderá impor sua
escala de valores a cada um, o que está em jogo não é mais a superioridade de um
modelo econômico, mas o fato de se levar a sério a liberdade individual:
Este é o fato fundamental em que se baseia toda a filosofia do individualismo. Ela
não parte do pressuposto de que o homem seja egoísta ou deva sê-lo, como muitas
vezes se afirma. Parte apenas do fato incontestável de que os limites dos nossos
poderes de imaginação nos impedem de incluir em nossa escala de valores mais que
uma parcela das necessidades da sociedade inteira: e como, em sentido estrito, tal
escala só pode existir na mente de cada um, segue-se que só existem escalas
parciais de valores, as quais são inevitavelmente distintas entre si e mesmo
conflitantes. Daí, concluem os individualistas que se deve permitir ao indivíduo,
dentro de certos limites, seguir seus próprios valores e preferências em vez dos de
outrem; e que, nesse contexto, o sistema de objetivos do indivíduo deve ser
soberano, não estando sujeito a ditames alheios. É esse reconhecimento do
indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos, é a convicção de que suas
idéias deveriam governar-lhe tanto quanto possível a conduta, que constitui a
essência da visão individualista. (HAYEK, 1990, p. 76)
Nesse ponto reside a diferença que Van Parijs (1997) aponta entre
neoliberalismo instrumental (ou simplesmente neoliberalismo) e neoliberalismo
fundamental (ou libertarianismo). Enquanto o primeiro argumenta contra o Estado
Social e em favor do capitalismo liberal extremado, aduzindo que “o capitalismo do
Estado-providência não constitui em hipótese alguma o compromisso ótimo entre a
eficácia econômica e a justiça social” (VAN PARIJS, 1997, p. 188), o libertarianismo
irá além. Essa corrente sustenta que a estrutura intervencionista do Estado Social
atenta contra a liberdade dos indivíduos e, portanto, somente um sistema econômico
como o capitalismo seria justificável:
O que distingue o neoliberalismo fundamental do neoliberalismo instrumental não
são os alvos que o primeiro visa – o regime fiscal, as políticas keynesianas, a
rigidez resultante de regulamentações, etc. –, mas o fundamento último que
desenvolve: se essas tradições da economia mista são passíveis de crítica, não é
porque são contraprodutivos do ponto de vista de seus objetivos confessos de
eficiência e eqüidade, mas porque significam um atentado à liberdade. (VAN
PARIJS, 1997, p. 189-190)
129
Arnsperger e Van Parijs (2003) afirmam que as teorias libertarianas se
sustentam sobre três princípios: o princípio da propriedade de si; o princípio de justa
circulação e o princípio da apropriação original. O respeito a esses princípios, na
elaboração de uma teoria da justiça, dá origem à formulação de uma teoria da justiça
histórica e de caráter puramente procedimental, como se mostrará adiante.
O princípio da propriedade de si sustenta que cada indivíduo é o exclusivo
proprietário de seu corpo e de seus bens, sendo o exclusivo responsável por determinar
quais ações realizará com eles (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). O corpo e os
bens passam a se constituir em uma esfera inviolável que nenhum organismo coletivo
pode constranger ou ofender de modo legítimo. Somente ao indivíduo cabem as
decisões sobre o que fazer com seu corpo e sua propriedade privada. E como cada um
dos indivíduos é o exclusivo centro de produção dessa decisão, o consentimento e a
adesão voluntária a determinadas condutas ganham especial destaque na teoria da
justiça libertariana:
Um primeiro elemento central de toda a variante do libertarianismo consiste, por
conseguinte, em atribuir a cada um pleno direito de propriedade sobre si mesmo.
Sendo o pleno proprietário de seu corpo (e, apesar de distinta dele, de sua alma),
você tem ‘direito de veto’ sobre todo uso que poderia dele ser feito. Por isso mesmo,
você também tem o direito de alugar talentos, vender seus órgãos, estragar a saúde
e pôr fim a sua existência. Para um libertário, portanto,não se cogita de aceitar a
obrigação legal de fazer serviço militar, freqüentar escola, apertar o cinto de
segurança, fazer parte de um júri, e prestar socorro a uma pessoa em perigo.
Também não se cogita de proibir a eutanásia, a prostituição, a blasfêmia, o
negativismo, as perversões sexuais e o comércio de órgãos, sob a condição – é
claro – de que nenhuma coerção seja exercida para obter a participação de alguém.
(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 39)
Sendo assim, a teoria da justiça libertariana estrutura-se em um sistema de
direitos de propriedade que permite o convívio entre os diversos direitos que cada um
dos membros dessa sociedade possui (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). É dessa
130
maneira que a transgressão aos direitos de liberdade de um indivíduo se justifica em
nome da proteção ao direito de liberdade dos demais:
A esse direito de propriedade de cada um sobre si mesmo, só há três restrições, às
quais a maioria dos libertários está pronta a aderir, mesmo, às vezes, de maneira
não muito convincente. Em primeiro lugar, se cada um tem o direito de se destruir,
nem por isso tem o direito de se vender como escravo. O ideal de uma sociedade
livre é incompatível com a presença de homens e mulheres dominados por outros de
maneira irreversível, ainda que por efeito da própria liberdade. Depois, se os
libertários professam uma aversão inflexível a toda a forma de paternalismo para
com os adultos, não podem deixar de admitir que o paternalismo nem sempre é
inconveniente quando se trata de crianças. (...)Enfim, a partir do momento em que
eles pensam na eventualidade de infrações a seu princípio fundamental, os
libertários podem admitir a legitimidade que há em transgredir a propriedade de si
daqueles que ameaçam a dos outros: uma sociedade livre não pode ser uma
sociedade em que assassinos, violadores e pedófilos circulam e maltratam com toda
a impunidade. (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 39-40)
Já o princípio da justa circulação regulamenta o modo da aquisição legítima
de qualquer bem que se constitua como propriedade exterior do indivíduo (à exceção,
é óbvio, de seu próprio corpo cuja propriedade decorre do próprio nascimento). Para
que alguém seja legitimamente proprietário de algo, é necessário que lhe seja
transferido o bem por um intercâmbio voluntário entre pessoas razoavelmente
informadas, sem a ocorrência de qualquer vício na manifestação da vontade
responsável pelo ato (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). O libertarianismo dá
grande relevância à autonomia da vontade e à liberdade de manifestação do indivíduo
ao dispor de seus bens e propriedades:
O primeiro desses princípios rege a circulação dos direitos de propriedade. Ele
estipula que é possível tornar-se o legítimo proprietário de um bem seja adquirindoo por meio de uma transação voluntária com a pessoa que era antes sua legítima
proprietária, seja criando-o sem utilizar outra coisa além de si mesmo, a não ser
bens adquiridos dessa maneira. O que nos foi dado de presente ou como herança, o
que compramos ou alugamos, o que produzimos aplicando nossos talentos, o que
nos rende a venda de nossos produtos, tudo isso é suscetível de conferir uma
significação prática a uma propriedade de si mesmo, que, caso contrário, não daria
a liberdade de fazer o que quer que seja. (grifos do autor) (ARNSPERGER; VAN
PARIJS, 2003, p. 40-41)
131
Por fim, para aqueles bens que não são propriedade anterior de ninguém e
passarão a integrar o conjunto de bens de um indivíduo, o libertarianismo sustenta um
princípio da apropriação original (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). Entretanto,
os libertarianos divergem entre si quanto ao conteúdo do princípio (VAN PARIJS,
1988, 1997). Os mais radicais são a favor do princípio “o primeiro a chegar é o
primeiro a se servir”, ou seja, aquele que se apropriou de um bem em primeiro lugar,
tem o direito de explorá-lo economicamente a seu bel prazer, por força de sua
iniciativa empreendedora: o trabalho é, em si, o único fundamento da propriedade. Ele
não sofreria qualquer limitação nesse direito, mesmo na hipótese de recursos raros,
escassos ou indispensáveis à comunidade, como o alimento em uma pequena ilha, a
água no deserto ou o petróleo nas sociedades industriais modernas (VAN PARIJS,
1988, 1997). Outros libertarianos propõem que esse princípio seja atenuado e
introduzem uma cláusula compensatória. Seu ponto de partida encontra-se em John
Locke, a partir da colocação de que os frutos da terra foram dados à comunidade como
um todo e em quantidade suficiente para que todos se satisfaçam (VAN PARIJS,
1988, 1997). A teoria de Robert Nozick (1991), por exemplo, propõe que aquele que
se apropria de algo deve compensar os demais pela situação em que foram deixados
como não-proprietários, introduzindo-se a denominada “cláusula lockeana”:
Um processo que normalmente dá origem a um direito de propriedade permanece
permanente, transmissível por herança, em uma coisa não possuída previamente,
não o fará se por ele é piorada a situação de outros que não tem mais a liberdade
de usar tal coisa.(...) Alguém cuja apropriação de outra maneira violaria a
condição poderá ainda apropriar-se, contanto que compense os demais, de modo
que suas situações não se torne por esse ato piores. A menos que compense essas
pessoas, a apropriação que pratica violará a condição do princípio de justiça na
aquisição e será ilegítima. Uma teoria de apropriação que incorpore essa condição
lockeana tratará dos casos (objeções à teoria que careçam de tal condição) em que
alguém se apropria do suprimento total de alguma coisa necessária à vida
(NOZICK, 1991, p. 197-198)
132
Segundo Nozick (1991), com a presença dos três princípios, tem-se a
existência de uma teoria proprietarista (entitlement) da justiça. Ela levaria a sério os
direitos de propriedade, em oposição às teorias distributivas. A teoria proprietarista
sustenta que são justas somente as propriedades adquiridas ou originalmente de modo
legítimo ou por uma livre transação. As demais espécies de aquisição de propriedade
seriam ilegítimas, já que não respeitariam os direitos de propriedade dos demais
membros da sociedade (tal como se dá na hipótese da distribuição da propriedade
realizada pela taxação). Assim, é a partir da correção nas diversas transmissões entre
propriedades que se verifica a existência de uma propriedade legítima e, portanto,
justa:
Uma distribuição é justa se, por meios legítimos, surge de outra distribuição justa.
Os meios legítimos de passar de uma distribuição para outra são especificados pelo
princípio de justiça nas transferências. As primeiras ‘transferências’ legítimas são
especificadas pelo princípio de justiça na aquisição. O que quer que surja de uma
situação justa, através de etapas justas, é em si justo. Os meios de troca
especificados pelo princípio de justiça nas transferências preservam a justiça. (...)
que de uma situação justa poderia ter surgido, através de meios que preservam a
justiça não é suficiente para lhe demonstrar a justiça. O fato de que as vítimas de
um ladrão poderiam voluntariamente ter-lhe dado presentes não lhe dá o direitos
aos seus ganhos mal obtidos. A justiça na propriedade é histórica, depende do que
realmente aconteceu. (NOZICK, 1991, p. 172-173)
Salientam-se, assim, os aspectos89 procedimental e histórico da teoria de
Nozick. O procedimentalismo defendido é de tipo puro, isto é, não se atém a nenhuma
consideração quanto às conseqüências possivelmente alcançáveis para fins de
estruturação do processo (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003).
Os três princípios de justiça (na aquisição, transferência e retificação), que dão
base a esse processo que os tem como objeto de estudo, são em si princípios
processuais e não princípios de resultado final de justiça distributiva. Especificam
89
O procedimentalismo e o caráter histórico da teoria proprietarista de Nozick decorrem do fato de que ela
“estipula pontos de partida e processos de transformação” (NOZICK, 1991, p.224), aceitando os resultados
encontrados independentemente do seu conteúdo, ou seja, tudo o que a teoria “produz deve ser aceito por causa
de sua genealogia, de sua história”. (NOZICK, 1991, p.224).
133
um processo em andamento, sem estabelecer qual deve ser seu resultado, sem
prover um critério padronizado externo que tem que satisfazer. (NOZICK, 1991, p.
224)
A teoria proprietarista baseia-se também em um critério histórico. Ela
atenta para a questão de como as propriedades foram efetivamente distribuídas entre
os indivíduos. Isso se verifica por meio das apropriações e transações voluntárias,
excluindo-se da distribuição todo e qualquer padrão ou elemento ideal acerca do modo
como a distribuição deva ocorrer:
Para determinar se uma situação é justa ou injusta, é necessário e suficiente voltarse para o passado, investigar o seu pedigree, examinar se ela é o produto de um
procedimento correto e de um desenvolvimento histórico justo, isto é, de um
conjunto de ações e transações realizadas no pleno respeito dos direitos afirmados
pelos três princípios (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003, p. 47)
Ao eliminarem da perspectiva as metas ou os padrões meritórios ideais
(situações padronizadas ou de estado final), as teorias históricas acentuam que são
justamente as ações empreendidas pelos indivíduos (incluindo-se especialmente seus
atos de apropriação e manifestação de vontade) é que criam as condições para os
respectivos merecimentos aos bens que cada um possui.
3.4.3 – Como o libertarianismo lida com a desigualdade?
A teoria libertariana sustenta-se sobre o atrativo da promessa de uma
liberdade individual realmente levada a sério, que garanta a todos o viver em uma
sociedade em que a coletividade não intervirá nos destinos particulares de cada um,
respeitando os direitos de propriedade e o modo como cada um deseja conduzir sua
própria vida (VAN PARIJS, 1997).
134
O que a teoria libertariana, via de regra, não diz abertamente é que as
condições para se conduzir a própria vida deverão ser conquistadas por cada um dos
indivíduos em um sistema de mercado e que cada um deles utiliza a liberdade pessoal
para estabelecer condições para as trocas que beneficiem prioritariamente a sua
felicidade em prejuízo da felicidade dos demais (VAN PARIJS, 1997). A ambigüidade
do mercado se revela aqui com toda força: se, por um lado, esse sistema evita os
privilégios, por outro a ausência de qualquer controle intencional sobre seus processos
faz com que não haja, dentro do marco libertariano, qualquer controle sobre os seus
efeitos. E se o emprego da liberdade pessoal de uns ao estabelecer preços, salários,
condições de vida e de trabalho tiver por conseqüência o detrimento da situação de
muitos outros? Os libertarianos nada dizem respeito disso90 (VAN PARIJS, 1997).
Questões relativas à desigualdade entre os indivíduos na repartição dos
produtos sociais não são relevantes dentro do quadro da teoria libertariana
(ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). Muito pelo contrário, a diversidade entre as
pessoas, decorrente da distribuição fortuita dos bens e dotes naturais e responsável
pelos resultados da divisão desigual de bens entre as pessoas é aceita como natural
pelo libertarianos. Nenhuma correção aos frutos dessa divisão desigual de dotes se
justifica, pois representaria uma agressão à liberdade de cada um.
Desse modo, o preço da liberdade proposta pelos libertarianos é o convívio
com os efeitos do sistema de mercado irrestrito, sejam eles a miséria, a exploração, as
90
A mencionada questão é expressa na parábola da ilha “Sem que nenhum dos outros princípios libertaristas
tenha sido objeto de qualquer violação, uma ilha tornou-se propriedade exclusiva de um único de seus
habitantes. Cada um dos outros habitantes é pleno proprietário de si mesmo (...) No entanto, é perfeitamente
possível que nenhum deles tenha outra opção a não ser a de sofrer dezesseis horas por dia para o proprietário
da ilha, em troca da magra pitança que ele se digna a lhes conceder. Se, além disso, o proprietário resolver não
permitir que os trabalhadores trabalhem em suas terras a não ser que usem chapéu vermelho, assobiem A
Marselhesa e se abstenham de pronunciar a palavra ‘liberdade’, a perfeita conformidade aos princípios
libertaristas não fica de modo algum alterada. É claro que nada o autoriza a forçar os agricultores a trabalhar
e nem, aliás, a retê-los na ilha. Porém, se eles não têm meios de encontrar na ilha outra fonte de subsistência,
nem de construir um barco que lhes possibilite a fuga, não é problema seu, nem dos libertários: nem por isso, a
seu ver, a ilha deixa de permanecer um paradigma de sociedade livre!” (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003,
p. 51)
135
drásticas desigualdades ou a degradação moral. Em sua defesa, os libertarianos ora
argumentam no sentido de que o sistema de mercado trará os maiores benefícios
coletivos a longo prazo (neoliberalismo instrumental), ora argumentam que o valor da
liberdade é superior a tais considerações (neoliberalismo fundamental). Em Hayek
(1990) encontra-se o argumento para a defesa do primeiro tipo:
No sistema de mercado, a segurança só pode ser concedida a determinados grupos
mediante o gênero de planejamento conhecido como ‘restricionismo’ (no qual,
entretanto, está incluído quase todo o planejamento posto em prática nos nossos
dias). O ‘controle’, isto é, a limitação da produção de modo que os preços
assegurem um ganho ‘adequado’, é o único meio pelo qual se pode garantir um
certo rendimento aos produtores numa economia de mercado. Isso, porém, envolve
necessariamente uma redução de oportunidades para os demais. Para que o
produtor, seja ele dono de empresa ou operário, receba proteção contra a
concorrência de preços mis baixos, outros, em pior situação, serão impedidos de
participar da prosperidade relativamente maior das indústrias controladas.
Qualquer restrição à liberdade de ingresso numa profissão reduz a segurança de
todos que se acham fora dela. E, à medida que aumenta o número daqueles cujo
rendimento é assegurado dessa forma, restringe-se o campo das oportunidades
alternativas abertas aos que sofrem uma perda de rendimento – enquanto, para os
que são atingidos por qualquer mudança, diminui do mesmo modo a possibilidade
de evitar uma redução fatal de sua renda. E se, como vem acontecendo com
freqüência, em cada categoria em que ocorre uma melhora das condições permitese que seus membros excluam os demais para garantir a si mesmos o ganho integral
sob a forma salários ou lucros mais elevados, os que exercem profissões cuja
demanda diminuiu não têm para onde voltar, e a cada mudança produz-se grande
número de desempregados. Não há dúvida de que foi em grande parte devido a
busca de segurança por esses meios nas últimas décadas que aumentou a tal ponto
o desemprego e, por conseguinte, a insegurança para vastos setores da população
(HAYEK, 1990, p. 129-130)
Já a defesa relativa à neutralidade do Estado em relação às questões ligadas
à igualdade material entre os indivíduos encontra-se em Nozick (1991):
Com base na concepção de justiça de direito a coisas, não podemos chegar a uma
conclusão se o Estado tem que fazer alguma coisa para modificar a situação
meramente examinando o perfil distributivo (...) Isso depende de como ocorreu a
distribuição. Alguns processos que produzem esses resultados seriam legítimos, e as
várias partes teriam direito às suas respectivas propriedades. Se esses fatos
distributivos realmente surgiram através de um processo legítimo, eles são em si
legítimos. Isso naturalmente não implica dizer que não possam ser mudados,
contanto que tal coisa possa ser feita sem violar os direitos de pessoas.(...) A
concepção de justiça de direito a coisas não estabelece presunções em favor da
igualdade ou de qualquer estado final ou padronizações gerais. Não se pode
meramente supor que a igualdade tem que ser incluída em qualquer teoria de
justiça.” (grifos do autor) (NOZICK, 1991, p. 224)
136
E como o controle por parte da coletividade sobre as ações das pessoas tem
espectro muito reduzido, de modo a se evitarem violações a direitos individuais, o
Estado pouco pode fazer nessa seara (VAN PARIJS, 1997).
O único apelo libertariano para eventuais transferências de recursos dos
mais ricos para o mais pobres residiria na filantropia, isto é, na possibilidade de
doações voluntárias entre os membros da sociedade (NOZICK, 1991). Segundo
Nozick, se a eliminação da pobreza e das condições adversas resultantes do sistema de
mercado pudesse ser eleita como meta de uma sociedade, caberia a tal sociedade
constituir um sistema de doações filantrópicas para atenuar tais mazelas sociais.
Somente tal sistema seria compatível com a teoria da justiça libertariana e obteria
inclusive maior êxito no propósito de redução das desigualdades sociais do que um
sistema de contribuições compulsórias.
Primeiramente, seu argumento diz que tal sistema contaria com a vantagem
de não ofender a estrutura de direitos de propriedade de um indivíduo, uma vez que as
transações seriam realizadas a partir de relações que contam com o consentimento
mútuo dos participantes. Não ocorreriam, assim, violações na individualidade daqueles
que dão e daqueles que recebem. Ademais, esse sistema permitiria que as
transferências ocorressem diretamente para os necessitados de assistência, evitando-se
o aparecimento de ‘aproveitadores’. Por fim, Nozick (1991) diz que o sistema
compulsório poderia ser abolido, pois a meta interna desejada por cada um – qual seja,
a eliminação da pobreza – não desapareceria com o fim da obrigatoriedade da
contribuição. Ou seja, não é porque alguns parariam de contribuir que haveria a
interrupção completa do sistema de doações filantrópicas, pois a meta permaneceria.
137
No entanto essa proposta distributivista ocupa um papel acessório dentro da
teoria proprietarista da justiça. Para que ela ocorra, é preciso um real acordo de
vontades entre os indivíduos no sentido de se mobilizarem para uma solidariedade em
relação aos demais. Sendo assim, o libertarianismo enfrentaria uma contradição.
Afinal, desse modo, não se colocaria o destino da vida de uns sob os caprichos da
vontade de outros? E, assim, não cairia por terra toda a proposta liberal de uma
individualidade e de uma liberdade absoluta?
Ante essas colocações, permanece a questão: seria possível estruturar uma
teoria da justiça em que o valor da liberdade seja levado a sério e, ao mesmo tempo, as
questões relativas à mitigação da desigualdade social sejam enfrentadas de modo a que
os mais desfavorecidos não tenham o exercício de sua liberdade comprometido pelas
circunstâncias materiais?
3.5 O liberal-igualitarismo de John Rawls
Poucas obras no séc. XX causaram tanta discussão no cenário político,
social e filosófico quanto Uma teoria da justiça (2002) de John Rawls, publicada em
1971. É o marco inicial da concepção que se pode denominar liberalismoigualitarista91. Inovou o debate que até então existia sobre o tema, em diversos
aspectos. Dentre eles, importa aqui considerar a originalidade de se pensar um modelo
91
Liberalismo-igualitarista ou igualitarismo liberal são as terminologias utilizadas por Van Parijs (1997) para
denominar a corrente de pensamento inaugurada por Rawls e seguida por aqueles que compartilham suas
premissas mais fundamentais de que a justiça de uma sociedade se realiza por meio de uma articulação dos
ideais de liberdade e de igualdade (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003). A expressão se mostra como
apropriada, pois demarca as fronteiras em que a teoria de Rawls se encontra: um termo médio entre o puro
liberalismo metodológico, atualmente defendido pelos libertarianos, e as teorias que dão primazia à questão da
distribuição dos bens sociais, como é o caso do utilitarismo e do marxismo.
138
de Justiça que revitalizou a importância de se levar a sério as garantias e liberdades
individuais, algo que é próprio da tradição liberal, sem, contudo, perder de mira o
estabelecimento de um sistema de (re)distribuição de bens sociais destinado à efetiva
melhoria da condição dos mais desfavorecidos (VAN PARIJS, 1997).
A teoria política do séc. XX foi fortemente marcada por uma preocupação
em realizar a justiça pela garantia de bens materiais aos indivíduos, seja por uma
maximização do bem-estar da coletividade (utilitarismo), seja pela coletivização dos
meios de produção e pela planificação da economia (socialismo marxista). Todavia,
nas duas concepções, o foco prioritário das instituições básicas da sociedade voltou-se
à alocação e distribuição de bens, o que, por si só, asseguraria a realização da justiça.
Por tal razão, justificou-se a adoção de um desmedido constrangimento às liberdades e
garantias individuais “em nome” da efetivação de um bem-estar ou de uma situação de
igualdade a serem usufruídos por todos.
Os libertarianos, por outro lado, defendiam que nenhuma ingerência na
esfera privada dos indivíduos se justificava em nome da distribuição de bens sociais
ou de um benefício coletivo “maior”. A justiça se realizaria pela ausência de
intervenções no que é próprio da esfera da individualidade, já que aquela decorreria do
desenvolvimento autônomo desta. Assim, a justiça reduzir-se-ia a um critério de
preservação formal das garantias à vida, às liberdades em geral (aqui entendidas como
espaço de reserva face ao Estado e aos demais) e à propriedade privada e a sua livre
circulação.
A originalidade de John Rawls reside em propor uma teoria que representa
ao mesmo tempo: 1) um avanço da discussão (compreendida no debate entre o
utilitarismo e o marxismo) acerca das concepções que entendiam a justiça como mera
definição, alocação e distribuição de bens materiais para a realização da felicidade,
139
sem levar seriamente em consideração os direitos individuais; 2) um núcleo de reserva
ao extremado postulado libertariano acerca da ausência de toda e qualquer atuação e
intervenção do Estado na esfera privada no sentido de promover redistribuição de bens
sociais (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 1997; VAN PARIJS, 1997).
Sua concepção, denominada de justiça como imparcialidade92, visa
preservar a proposta liberal de se reservar ao indivíduo o direito de decidir como
conduzir sua própria vida em convívio com os demais, sem deixar que os bens
necessários para tanto dependam tão somente de contingências naturais e sociais. Sob
qual fundamento teórico isso seria possível?
3.5.1 – O construtivismo kantiano e o construtivismo político na base do
pensamento de Rawls
Desde as primeiras linhas de Uma teoria da justiça (2002), John Rawls
declara-se seguidor da filosofia moral kantiana, não somente por recorrer a uma forma
remodelada do contrato social, mas também por sustentar uma doutrina moral que não
enxerga no Direito apenas um meio para se alcançar a utilidade social, como é o caso
do utilitarismo cuja supremacia era reinante em tempos de Estado Social. É como
Rawls se posiciona já no prefácio: “This theory seems to offer an alternative
systematic account of justice that is superior, or so I argue, to the dominant
92
A tradução amplamente consagrada para a palavra da língua inglesa fairness é eqüidade. Ela se refere ao dever
de se respeitar o acordo inicial acerca dos princípios fundamentais de justiça, como se verá adiante. Todavia,
esse conceito é melhor traduzido pela expressão “imparcialidade”, à qual pode-se associar a idéia de “jogo
limpo”, “respeito às regras do jogo”. A expressão imparcialidade também se relacionada ao procedimento de
suspensão do juízo, descrito por Kant e retomado por Rawls na elaboração dos princípios de justiça na posição
original. Há ainda o fato de que a expressão “eqüidade”, em português, é associada à filosofia aristotélica, pelo
conceito relativo à correção da justiça legal ao caso concreto, em nada semelhante à idéia de Rawls. Logo, pelas
razões expostas todas as referências à denominada teoria da “justiça como eqüidade” serão feitas pela expressão
“justiça como imparcialidade”.
140
utilitarianism of the tradition. The theory that results is highly Kantian in nature93”
(RAWLS, 1971, p.VIII)
Para Rawls, a contribuição kantiana à teoria da justiça como imparcialidade
dá-se pelo fato de que ela resgataria para o homem a condição de ser livre e autônomo,
capaz, ele próprio, de elaborar uma lei moral racional que pautará sua conduta, sem
que esta dependa de fatores sociais externos ou contingências particulares:
For one thing, he [Kant] begins with the idea that moral principles are the object of
rational choice. They define the moral law that men can rationally will to govern
their conduct in as ethical commonwealth (...) Finally Kant supposes that this moral
legislation is to be agreed to under conditions that characterize men as free and
equal rational beings 94 (RAWLS, 1971, p. 251-252)
Rawls (2002) buscará construir uma teoria da justiça que não se vincule
exclusivamente a um critério de redistribuição e alocação de bens materiais, mas que
coloque a liberdade e a autonomia como valores básicos prioritários da sociedade:
Kant held, I believe, that a person is acting autonomously when the principles of his
action are chosen by him as the most adequate possible expression of his nature as a
free and equal rational being. The principles he acts upon are not adopted because
of his social position or natural endowments, or in view of the particular kind of
society in which he lives or the specific things that he happens to want. To act on
such principles is to act heteronomously 95 (RAWLS, 1971, p. 252)
93
“essa teoria parece oferecer uma explicação sistemática alternativa da justiça que é superior, ou pelo menos
assim considero, ao utilitarismo dominante da tradição. A teoria resultante é altamente kantiana em sua
natureza” (RAWLS, 2002, p. XXII). Para os principais textos de Rawls, opta-se por apresentar a sua versão na
língua original para se manter a maior fidelidade possível às idéias do autor, transcrevendo-se, nos rodapés, a
tradução realizada pela edição brasileira.
94
“Em primeiro lugar, ele [Kant] começa com a idéia de que os princípios morais são objetos de uma escolha
racional. Definem a lei moral que os homens podem racionalmente almejar para dirigir sua conduta numa
comunidade ética. (...) Finalmente Kant supõe que essa legislação moral deve ser acatada em determinadas
condições que caracterizam os homens como seres racionais livres e iguais” (tradução da edição brasileira)
(RAWLS, 2002, p. 276)
95
“Kant acreditava, julgo eu, que uma pessoa age de modo autônomo quando os princípios que norteiam suas
ações são escolhidos por ela como a expressão mais adequada possível de sua natureza de ser racional igual e
livre. Os princípios que norteiam suas ações não são adotados por causa de sua posição social ou de seus dotes
naturais, ou em vista do tipo particular de sociedade em que ela vive ou das coisas específicas que venha a
querer. Agir com base em tais princípios é agir de modo heterônomo.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS,
2002, p. 276)
141
Tais premissas kantianas estarão presentes na arquitetura de sua ‘justiça
como imparcialidade’ – esboçada por Rawls em Uma teoria da justiça (2002) e
modificada em obras posteriores96. Ela diz que os conceitos de autonomia, liberdade e
igualdade entre homens dotados de racionalidade e razoabilidade devem estar
presentes nas instituições que compõem a estrutura básica da sociedade.
Em Uma teoria da justiça (2002), Rawls pressupõe que os homens, por
meio de agentes representativos, partirão de uma situação hipotética de absoluta
igualdade para escolherem os princípios de justiça que nortearão os acordos
subseqüentes da sociedade. Há um ‘véu da ignorância’, que atua como elemento
isolante das contingências e fatores externos que podem influenciar as decisões e
escolhas, fazendo com que estas não mais se curvem a princípios heterônomos
(posições sociais, inclinações, aspirações e dons de cada um dos indivíduos).
Rawls (2002) sustenta que os princípios escolhidos sob as condições desta
situação hipotética – denominada de posição original – atuariam na estrutura básica da
sociedade de forma análoga ao imperativo categórico kantiano. Em Kant (1974, 2003),
o imperativo categórico é definido como uma fórmula de adequação da vontade do
agir à conformidade com leis objetivas, sendo que esta vontade não é meio para
obtenção de um outro fim (como no imperativo hipotético), mas sim um fim em si
mesmo. Segundo Rawls, o agir em conformidade aos princípios estabelecidos pelos
parceiros na posição original teria semelhante efeito:
The principles of their actions do not depend upon social or natural contingencies,
nor do they reflect the bias of particulars of their plan of life or the aspiration that
96
. Sobre a evolução do pensamento de John Rawls comparar Uma teoria da justiça (2002), o artigo denominado
O construtivismo kantiano na teoria moral (2000), disponível em língua portuguesa no livro Justiça e
Democracia, O liberalismo político (2000b) e, finalmente, Justiça como eqüidade – uma reformulação (2003).
Sínteses dessa evolução podem ser encontradas também em O que é uma sociedade justa? Introdução à prática
da filosofia política (VAN PARJIS, 1997) e Justiça como eqüidade: Liberais, comunitaristas e a autocrítica de
John Rawls (CRUZ JÚNIOR, 2004)
142
motivate them. By acting from these principles person express their nature as free
and equal rational beings subject to the general condition of human life. (...)
The principles of justice are also categorical imperative in Kant’s sense. For by a
categorical imperative Kant understands a principle of conduct that applies to a
person in virtue of his nature as a free and equal rational being. (…) The argument
for the two principles of justice does not assume that the parties have particular
ends, but only that they desire certain primary goods. (…) To act from the principles
of justice is to act from categorical imperatives in the sense that they apply to us
whatever particular our aims are97 (RAWLS, 1971, p. 252-253)
Por fim, o critério da autonomia e da possibilidade de escolha dos
princípios de justiça é garantido pelo atributo do desinteresse mútuo. Por ele, não
haveria qualquer limitação específica na determinação de objetivos e finalidades:
Liberty in adopting a conception of the good is limited only by principles that are
deduced from a doctrine which imposes no prior constraints on these conceptions.
Presuming mutual desinterest in the original position carries out this idea. We
postulate that the parties have opposing claims in a suitably general sense. If their
ends were restricted in some specific way, this would appear at the outset as an
arbitrary restriction on freedom.98 (RAWLS, 1971, p. 254)
Ao encerrar o paralelo que realiza entre sua teoria da justiça como
imparcialidade e a doutrina kantiana da moral, John Rawls (2002) sintetiza as
semelhanças:
Properly understood, then the desire to act justly derives in part from the desire to
express most fully what we are or can be, namely free and equal rational beings
with a liberty to choose. It is for this reason, I believe, that Kant speaks of the failure
to act on the moral law as giving rise to shame and not to feelings of guilt And this
97
“Os princípios de suas ações não dependem das contingências naturais ou sociais, tampouco refletem a
tendência resultante da especificidade de seu projeto de vida ou as aspirações que as motivam. Agindo de
acordo com esses princípios, as pessoas expressam sua natureza de seres racionais iguais e livres, sujeitos às
condições gerais da vida humana (...) Os princípios da justiça também se apresentam como análogos aos
imperativos categóricos. Por imperativo categórico Kant entende um princípio de conduta que se aplica a uma
pessoa em virtude de sua natureza livre e racional. (...) O argumento a favor dos dois princípios da justiça não
supõe que as partes têm objetivos particulares, mas apenas que elas desejam certos bens primários. (...) Agir
com base nos princípios da justiça é agir com base em imperativos categóricos, no sentido de que eles se
aplicam a nós, quaisquer que sejam nossos objetivos particulares” (tradução da edição brasileira) (RAWLS,
2002, p. 277)
98
“A liberdade na concepção de felicidade é limitada apenas por princípios deduzidos de uma doutrina que não
impõe nenhuma restrição prévia a essas concepções. Pressupor o desinteresse mútuo na posição original
implementa essa idéia. Postulamos que as partes têm exigências opostas num sentido apropriadamente geral. Se
seus fins fossem limitados de alguma forma específica, isso apareceria desde o princípio como restrição
arbitrária da liberdade” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 278)
143
is appropriate, since for him acting unjustly is acting in a manner that fails to
express our nature as a free and equal rational being. Such actions therefore strike
at our self-respect, our sense o four own worth, and the experience of this loss is
shame. We have acted as though we belonged to a lower order, as though we were
creature whose first principles are decided by natural contingencies. Those who
think of Kant’s moral doctrine as one of law and guilt badly misunderstand him.
Kant’s main aim is to deepen and to justify Rousseau’s idea that liberty is acting in
accordance with a law that we give to ourselves. And this leads not to a morality of
austere command but to an ethic of mutual respect and self esteem.99 (RAWLS,
1971, p. 256)
Todavia, posteriormente à edição de Uma teoria da justiça, essa
aproximação entre a teoria da justiça como imparcialidade e a doutrina moral kantiana
foi sempre objeto de esclarecimentos, aprofundamentos e até mesmo de revisão
posterior.
No artigo intitulado O construtivismo kantiano na teoria moral (2000),
publicado em 1980, Rawls reconhece que em Uma teoria da justiça subsistem
insuficiências não exploradas100 no que concerne às suas posições em relação a sua
filiação à doutrina kantiana.
99
“Vemos então que, entendido corretamente, o desejo de agir com justiça deriva em parte do desejo de
expressar, da maneira mais plena, o que somos ou podemos ser, isto é, seres racionais iguais e livres, com
liberdade de escolha. É por essa razão, creio eu, que Kant fala da incapacidade de agir segundo a lei moral
como sendo causa de vergonha e não de sentimentos de culpa. E isso é apropriado, uma vez que, para ele, agir
injustamente é agir de uma maneira que não expressa nossa natureza de seres racionais iguais e livres. Tais
ações ferem, portanto, o nosso amor-próprio, o nosso senso de valor como pessoas, e a experiência dessa perda
causa vergonha. Agimos como se pertencêssemos a uma categoria inferior, como se fôssemos criaturas cujos
princípios básicos fossem determinados pelas contingências naturais. Aqueles que pensam na doutrina de Kant
como uma doutrina da lei e da culpa fazem dele uma interpretação bastante equivocada. O principal objetivo de
Kant é aprofundar e justificar a idéia de Rousseau de que a liberdade é agir de acordo com a lei que nós
estabelecemos para nós mesmo. E isso conduz não a uma moralidade de comando austero, mas sim a uma ética
de auto-estima e respeito mútuo.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 281)
100
Como apontadas pelo próprio Rawls (2000), tais insuficiências se referem à distinção entre autonomia
racional e autonomia completa, à caracterização do conceito de pessoa e de suas faculdades morais. O
reconhecimento de tais insuficiências ocorre em função do primeiro passo dado por Rawls em direção à
mudança de posicionamento segundo a qual a justiça como imparcialidade possui um caráter político, e não
metafísico: “Justificar uma concepção kantiana no quadro de uma sociedade democrática não quer dizer
simplesmente argumentar de maneira correta a partir de certas premissas u a partir de premissas publicamente
compartilhadas e mutuamente aceitas. A verdadeira tarefa consiste em descobrir e em formular as bases mais
profundas desse acordo que se pode esperar estejam enraizadas no bom senso. Ela pode chegar a criar e a
moldar pontos de partida para esse acordo exprimindo, sob uma forma nova, as convicções que pertencem à
tradição histórica e vinculando-as à gama variada das convicções mais sólidas, daquelas que resistem ao exame
crítico. (...) Devo agora ressaltar que o que denomino “tarefa verdadeira” não é, em primeiro lugar, um
problema epistemológico. A procura de argumentos razoáveis que permitiriam chegar a um acordo e que
estejam enraizados na nossa concepção de nós mesmos, bem como na nossa relação com a sociedade substitui a
procura de uma verdade moral fixada por uma ordem de objetos e de relações independente e anterior, seja ela
divina ou natural, uma ordem distinta e separada da nossa concepção de nós mesmos. A tarefa consiste em
elaborar uma concepção pública da justiça que seja aceitável para todos os que consideram sua pessoa e sua
144
A partir daquilo que ele denomina construtivismo kantiano, Rawls (2000)
aprofundará sua própria teoria com a inserção de novos conceitos, tais como os de
autonomia racional e autonomia completa, o de publicidade e a distinção entre o
racional e o razoável. Para tanto, seus recursos serão notadamente kantianos, ligados
aos conceitos de pessoa moral e de sociedade bem-ordenada. O construtivismo
kantiano, segundo define Rawls, é uma teoria que:
propõe uma concepção particular da pessoa e que faz disso um elemento de um
procedimento razoável de construção cujo resultado determina o conteúdo dos
princípios primeiros de justiça. Em outras palavras, ela estabelece um certo
procedimento de construção que satisfaz a certo número de exigências razoáveis, e
no âmbito desse procedimentos as pessoas caracterizadas como agentes racionais
desse processo de construção definem, por sua concordância, os princípios
primeiros de justiça (RAWLS, 2000, p. 47)
O que o construtivismo busca acentuar nessa vertente kantiana é o caráter
de uma conduta moral universalmente válida, que Kant sempre defendeu em seus
escritos sobre o uso prático da Razão:
Na doutrina kantiana que vou apresentar, as condições que permitem justificar uma
concepção da justiça só são válidas se, no contexto da cultura política, for
estabelecida uma base que permita a argumentação e o entendimento políticos. O
papel social de uma concepção de justiça consiste assim em permitir a todos os
membros da sociedade compreenderem por que as instituições e as disposições
básicas que eles compartilham são aceitáveis, bem como em fazer com que os
demais igualmente compreendam. Isso será possível se eles recorrerem a
argumentos reconhecidos publicamente como sendo razões válidas num sentido
definido por esta concepção. (RAWLS, 2000, p. 48)
Rawls (2000) terá, no entanto, a tarefa de conciliar a pluralidade própria
das atuais sociedades democráticas com a objetividade de uma moralidade que será
fruto necessário do processo de construção dos princípios da justiça (o
relação com a sociedade de uma determinada maneira. (...) O que justifica uma concepção da justiça não é,
portanto, que ela seja verdadeira em relação a uma determinada ordem anterior a nós, mas que esteja de
acordo com a nossa compreensão em profundidade de nós mesmos e o fato de que reconheçamos que, dadas a
nossa história e as tradições que estão na base da nossa vida pública, ela é a concepção ais razoável para nós.”
(RAWLS, 2000, p. 50-51)
145
procedimentalismo101 próprio de sua teoria). Como dito, o apelo é kantiano e se faz
sobre os conceitos de pessoa moral e de sociedade bem ordenada, ambos mediados
pela posição original, locus argumentativo que permitirá a interface entre os dois
conceitos.
A pessoa moral é o ente representativo de qualquer membro da sociedade
que, não obstante possuir seus próprios interesses egoístas, resguarda o desejo de
conviver em sociedade com instituições justas. Para tanto esse agente possui duas
faculdades morais, que são o senso de justiça e a capacidade de poder formular uma
concepção de bem.
O senso de justiça é definido como “uma capacidade para compreender e
aplicar os princípios de justiça, para agir segundo eles e não apenas de acordo com
eles” (RAWLS, 2000, p. 60-61). O conceito de senso de justiça traz consigo uma
101
Na exposição da teoria de Robert Nozick, fez-se referência (tópico 3.4.2, nota 89) ao fato de que sua teoria é
procedimentalista porque estabelece princípios fundamentais que determinam o modo como se adquire e como
se gera a propriedade. Os processos de interação entre os indivíduos não são regidos por resultados previamente
estipulados que se deseja alcançar, sendo justo qualquer um que decorra do que respeitado a seus princípios
norteadores. Teorias como as de Nozick são denominadas de justiça procedimental pura. Elas se opõem às
teorias de justiça alocativas, como é o caso do marxismo e do utilitarismo, e podem ser assim caracterizadas:
“pure procedural justice obtains when there is no independent criterion for the right result: instead there is a
correct or fair procedure such that the outcome is likewise correct or fair, whatever it is, provided that the
procedure has been properly followed”(RAWLS, 1971, 86) (“a justiça procedimental pura se verifica quando
não há critério independente para o resultado correto: em vez disso, existe um procedimento correto ou justo de
modo que o resultado será também correto ou justo, qualquer que seja ele, contanto que o procedimento tenha
sido corretamente aplicado.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002. p. 92) ). Segundo Rawls (2002), a
justiça como imparcialidade também se apresenta como uma teoria procedimental pura, pois define
anteriormente os princípios que irão dar origem a uma constituição política e a instituições econômicas e sociais
justas, ambas responsáveis por definir os processos de interação social da estrutura básica da sociedade. Porém
Nozick (1991) levanta a objeção de que a teoria de Rawls enfrentaria um dilema ao sustentar o princípio da
diferença, pois introduziria no procedimento um critério de estado final: “O princípio de diferença determina
como deve resultar o processo em andamento e proporciona um critério padronizado externo que ele tem que
satisfazer. É rejeitado todo e qualquer processo que não consegue passar no teste do critério.(...) A estrutura da
teoria de Rawls, por conseguinte, configura um dilema. Se os processos são tão importantes assim, a teoria é
defeituosa porquanto é incapaz de gerar princípios processuais de justiça. Se o não são, então um fundamento
insuficiente foi dado aos princípios produzidos pelo processo P de Rawls para chegar aos princípios.
Argumentos baseados em contrato incluem a suposição de que tudo que emerge de um certo processo é justo.
Sobre a força dessas suposições fundamentais repousa a força do argumento baseado no contrato. Certamente
nenhum argumento desse tipo deve ser estruturado de tal forma que impeça que os princípios de processo sejam
os fundamentais da justiça distributiva, pelos quais se julgarão as instituições de uma sociedade Nenhum
argumento dessa ordem deve ser formulado de maneira a tornar impossível que seus resultados sejam do mesmo
tipo que as suposições sobre as quais repousam. Se os processos são suficientemente bons para que uma teoria
seja fundamentada neles, também o são para que o mesmo aconteça com os possíveis resultados da teoria. Não
é possível ter as coisas das duas maneiras. ” (NOZICK, 1991, p. 224-225)
146
íntima carga moral, já que ligado ao desejo de agir em conformidade àquilo que é o
interesse publicamente construído no procedimento102.
Já a capacidade de formular uma concepção de bem liga-se à idéia
kantiana de liberdade humana enquanto poder de definir de modo autônomo os rumos
do próprio querer e a concepção de felicidade de si próprio. A capacidade de ter uma
concepção de bem não é descrita de modo completo em O construtivismo kantiano na
teoria moral (2000), pelo que se recorre ao posterior O liberalismo político (2000b)
para sua melhor caracterização:
The capacity for a conception of the good is the capacity to form, to revise, and the
rationality to pursue a conception of one’s rational advantage or good. (...)
Such a conception must not be understood narrowly but rather as including a
conception of what is valuable in human life. Thus, a conception of the good
normally consists of a more or less determinate scheme of final ends, that is, ends
we want to realize for their own sake, as well as attachments to other persons and
loyalties to various groups and associations. These attachments and loyalties give
rise to devotions and affections, and so the flourishing of the persons and
associations who are the objects of these sentiments is also part of our conception of
the good. We also connect with such a conception a view of our relation to the world
– religious, philosophical, and moral – by reference to which the value and
significance of our ends and attachments are understood.103 (RAWLS, 1993, p. 1920)
102
Agindo em conformidade com o senso de justiça, os indivíduos são levados a elaborar juízos morais
ponderados, isto é: “those judgments in which our moral capacities are most likely to be displayed without
distortion. Thus in deciding which o four judgments to take into account we may reasonably select some some
and exclude others. For example, we can discard those judgements made with hesitation, or in which we have
little confidence. Similarly those given when we are upset or frightened, or when we stand to gain one way or the
other can be left aside. All these judgments are likely to be erroneous or to be influenced by na excessive
attention to our own interests. Considered judgements are simply those rendered under conditions favorable to
the exercise of the sense of justice, and therefore in circumstances where the more common excuses and
explanations for making a mistake do not obtain”. (RAWLS, 1971, p. 47-48) (“juízos nos quais as nossas
qualidades morais têm o mais alto grau de probabilidade de se mostrarem sem distorção. Assim, ao decidir
entre quais dentre os nossos juízos devemos levar em conta, podemos com bom senso selecionar uns e excluir
outros. Por exemplo, podemos descartar aqueles juízos feitos com hesitação ou nos quais não depositamos
muita confiança. De maneira semelhante, podem ser postos de lado os juízos formulados quando estamos
nervosos ou com medo, ou quando, por uma razão ou por outra estamos numa posição de vantagem. Todos
esses juízos têm probabilidade de estar errados ou influenciados por uma atenção excessiva aos nossos próprios
interesses. Juízos ponderados são simplesmente os que são feitos sob condições favoráveis ao exercício do senso
de justiça, e portanto, em circunstâncias em que não ocorrem as desculpas e explicações mais comuns para se
cometer um erro.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 51) )
103
“A capacidade de ter uma concepção do bem é a capacidade de formar, revisar, procurar concretizar
racionalmente uma concepção de vantagem racional pessoal, ou bem. (...) Essa concepção não pode ser
compreendida em termos estreitos: deve incluir uma concepção do que é valioso na vida humana. Assim, sendo,
uma concepção do bem normalmente consiste em um projeto mais ou menos determinado de fins últimos, isto é,
fins que queremos realizar por eles mesmos, assim como ligações com outras pessoas e lealdades a vários
grupos e associações. Essas ligações e lealdades dão origem a devoções e afetos e, por conseguinte, o
florescimento das pessoas e associações que são objetos desses sentimentos também fazem parte da nossa
147
Rawls (2000) vai sustentar que essas duas faculdades morais (senso de
justiça e capacidade de defender uma própria concepção de bem) são os dois interesses
superiores que a própria sociedade deverá conservar como primordiais:
Dois interesses superiores, que correspondem a essas capacidades, animam as
pessoas. Ao dizer que eles são superiores, quero com isso significar que, dada a
maneira pela qual se define a concepção-modelo da pessoa, esses interesses
governam a nossa vida no grau mais elevado e de maneira mais eficaz. Isso implica
que, cada vez que as circunstâncias exercem um impacto sobre a sua efetivação,
esses interesses governam a nossa deliberação e a nossa conduta. Dado que os
parceiros representam pessoas morais, eles são, por conseguinte, movidos por esses
mesmos interesses que buscam garantir o desenvolvimento e o exercício das
faculdades morais. (RAWLS, 2000, p. 61)
As características peculiares a uma sociedade bem-ordenada seriam
justamente aquelas que permitiriam o desenvolvimento das faculdades morais, bem
como seus interesses superiores. Rawls (2000, 2000b) diz que, na sociedade bemordenada, haveria o predomínio de uma concepção pública de justiça. Isso significa
que os princípios de justiça definidos para essa sociedade seriam aceitos, conhecidos e
reconhecidos por todos os seus integrantes. Reciprocamente, as instituições sociais
derivadas dos princípios de justiça teriam o correlato dever de respeitá-los. Outro
ponto imprescindível para a caracterização da sociedade bem ordenada é o
reconhecimento de que seus membros:
são pessoas morais, livres e iguais, e eles se consideram a si mesmos e aos outros
como tais nas suas relações políticas e sociais (na medida em que elas dizem
respeito a questões de justiça). (...) Os cidadãos são iguais na medida em que se
consideram uns aos outros como detentores de um direito igual de determinar e de
avaliar de maneira ponderada os primeiros princípios de justiça que devem reger a
estrutura básica da sociedade. Eles são livres na medida em que pensam ter o
direito de intervir na elaboração de suas instituições comuns em nome de seus
próprios objetivos fundamentais e de seus interesses superiores. (RAWLS, 2000, p.
55)
concepção do bem. Vinculamos ainda a essa concepção uma visão de nossa relação com o mundo – religioso,
filosófico e moral – com referência à qual o valor e sentido de nossos objetivos e ligações são compreendidos.”
(tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 62)
148
Inicialmente, Rawls (2000) somente menciona que os responsáveis pela
elaboração, definição e construção dos princípios de justiça na posição original são os
agentes representativos da racionalidade humana e de seu desejo de agir conforme
suas faculdades morais. A essa capacidade deliberativa que esses agentes praticam na
posição original, Rawls denomina autonomia racional. A ela se contraporá outra,
própria dos cidadãos que de fato terão suas vidas regidas pelos princípios de justiça
mencionados, e que será chamada de autonomia completa:
A autonomia racional dos parceiros na posição original difere da autonomia
completa exercida pelos cidadãos na sociedade. A autonomia racional é aquela dos
parceiros na medida em que são os agentes de um processo de construção. Essa é
uma noção relativamente estreita que se precisa colocar em paralelo com a noção
kantiana de um imperativo hipotético (ou a de racionalidade que se encontra na
economia neoclássica). A autonomia completa é aquela dos cidadãos na vida
cotidiana, que têm uma certa visão de si próprios, defendendo e aplicando os
princípios primeiros de justiça a respeito dos quais se puseram de acordo. (grifos
do autor) (RAWLS, 2000, p. 54)
Para caracterizar a autonomia completa de que fala Rawls, é preciso ir-se
além do caráter racional que define os parceiros na posição original como interessados
de maneira egoísta. Há a necessidade de um critério complementar para se alcançar a
autonomia completa dos cidadãos que irão conviver em sociedade. Como os cidadãos
participam de fato da sociedade, convivem dentro de uma cooperação social. Esta deve
ser pautada por termos eqüitativos que se estruturem sobre uma base de respeito
mútuo104:
104
Em O liberalismo político (2000b) define-se de modo sucinto o que são termos eqüitativos da cooperação e
desinteresse mútuo: “fair terms of social cooperation are terms upon which as equal persons we are willing to
cooperate in good faith with all members of society over a complete life. To this let us add: to cooperate on a
basis of mutual respect. Adding this clause makes everyone without resentment of humiliation (or for that matter
bad conscience) when citizen regard themselves and one another as having to the requisite degree the two moral
powers which constitute the basis of equal citizenship.” (RAWLS, 1993, p.303) (“termos eqüitativos de
cooperação são termos em função dos quais nós, enquanto pessoas iguais, estamos dispostos a cooperar de boafé com todos os membros da sociedade ao longo de toda vida. A isso acrescentamos: estamos dispostos a fazê-lo
sobre uma base de respeito mútuo. Acrescentar essa cláusula explicita que os termos eqüitativos de cooperação
podem ser aceitos por todos sem ressentimentos ou humilhação (ou má consciência), quando os cidadãos
149
Trata-se de termos que se pode esperar ver razoavelmente aceitos por cada
participante, com a condição de que os demais também aceitem. A noção inclui
portanto uma idéia de reciprocidade e de mutualidade. Todos os que cooperam
devem ser beneficiários ou compartir dos encargos comuns de um modo
relativamente satisfatório, avaliado por um critério adequado de comparação.
Chamarei de Razoável esse elemento presente na cooperação social. (grifos do
autor) (RAWLS, 2000, p. 66)
O Razoável representa, portanto, uma característica complementar para
que se possa instituir a autonomia completa aos cidadãos que convivem nas sociedades
de fato:
O Razoável pressupõe e condiciona o Racional. Ele define os termos eqüitativos da
cooperação que seriam aceitos por todos os membros de um grupo qualquer,
constituído por pessoas identificáveis separadamente, cada uma delas possuindo as
duas faculdades morais que indicamos. (...) O Razoável pressupõe o Racional
porque, sem as concepções do bem que mobilizam os membros do grupo, a
cooperação social não teria sentido algum, como tampouco o teriam as noções de
justo e justiça (...) O Razoável condiciona o Racional porque os porque os seus
princípios limitam e até mesmo, tomado num sentido kantiano, limitam de modo
absoluto os fins últimos que podem ser visados. (RAWLS, 2000, p. 69)
Pode-se dizer, com Rawls (2000), que esses cerceamentos à deliberação
dos agentes racionais na construção dos princípios de justiça são justamente os
elementos de sua teoria que definem os termos de uma cooperação social eqüitativa,
isto é, que se mantém imparcial e não se inclina ante as diversas concepções
particulares de bem que as pessoas podem desenvolver, razão pela qual é possível
denominá-la de justiça como imparcialidade:
Os representantes desses cerceamentos são a condição de publicidade, o véu da
ignorância e a simetria da situação dos parceiros uns em relação aos outros, bem
como a estipulação de que estrutura básica da sociedade seja o objeto primeiro da
justiça. Os princípios de justiça habituais são exemplos de princípios razoáveis, e os
princípios correntes da escolha racional constituem exemplos de princípios
racionais. A maneira de representar o Razoável na posição original conduz aos dois
princípios de justiça. (RAWLS, 2000, p. 69)
consideram que eles próprios e todos os outros têm o grau necessário das duas capacidades morais que
constituem a base da cidadania igual.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 357) )
150
Nesse trabalho, da década de 1980, há um estreitamento dos laços entre o
ideal de pessoa moral e os vínculos que se estabelecem em uma sociedade
determinada por esses mesmos princípios. Como a autonomia completa se realizaria
por meio da razoabilidade dos cerceamentos que produzem os princípios da justiça
como eqüidade, em última instância, o construtivismo priorizaria, com a opção pelos
bens primários, uma forma de vida moral supostamente superior às demais,
constrangendo os indivíduos a uma prática social para além da esfera política:
Ora, numa sociedade bem ordenada, estipulamos que o fato de a justificação dos
princípios de justiça ser o resultado da posição original é o objeto de um acordo
público. Assim, não apenas os cidadãos têm um desejo de ordem superior – seu
senso de justiça – de agir segundo os princípios de justiça como compreendem que
esses princípios são oriundos de uma construção na qual a concepção que têm de si
mesmos como pessoas morais, livres e iguais, ao mesmo tempo racionais e
razoáveis, está corretamente representada. Agindo a partir desses princípios e
defendendo-os na vida pública em razão dessa origem, eles exprimem sua
autonomia completa. (RAWLS, 2000, p. 73)
Perceba-se que a passagem transcrita aponta que o sustentáculo da
estrutura básica da sociedade, o acordo público que gerará os princípios de justiça, tem
uma origem precisa: o desejo de agir em conformidade com o senso de justiça, uma
das faculdades morais que orientará a opção pelos interesses superiores.
Em uma série de trabalhos subseqüentes, que culminaram no giro de O
liberalismo político (2000b), publicado em 1993, Rawls reverá alguns dos alicerces
que sustentavam Uma teoria da justiça (2002), bem como o propósito de fazer de seu
construtivismo uma teoria fortemente vinculada à doutrina moral kantiana:
Note that in my summary of the aims of Theory the social contract tradition is seen
as part of moral philosophiy and no distinction is drawn between moral and
political philosophy. In Theory a moral doctrine of justice general in scope is not
distinguished from a strict political conception of justice. Nothing is made of the
contrast between compreehensive philosophical and moral and conceptions limited
to the domain of the political. In the lectures in this volume, however, these
151
distinctions and related ideas are fundamental.105 (grifos do autor) (RAWLS, 1993,
p.XV)
Em O liberalismo político, Rawls (2000b) buscará dissociar do âmbito
político toda e qualquer exigência moral que leve o indivíduo a se vincular àquilo que
ele chama de doutrina filosófica abrangente, como forma de se preservar a proposta
do liberalismo político.
To explain: the serious problem I have in mind concerns the unrealistic idea of a
well-ordered society as it appears in Theory. An essential feature of a well-ordered
society associated with justice as fairness is that all its citizens endorse this
conception on the basis of what I now call a comprehensive philosophical doctrine.
They accept, as rooted in this doctrine, its two principles of justice. 106 (grifos do
autor) (RAWLS, 1993, p. XVI)
A inconsistência que Rawls encontrou em sua própria teoria deve-se à
questão de que, dado o fato do pluralismo razoável, uma doutrina filosófica
abrangente não pode se sobrepor à outra sem que haja um distúrbio na estabilidade da
sociedade.
Political liberalism assumes that, for political purposes, a plurality of reasonable
yet incompatible comprehensive doctrines is the normal result of the exercise of
human reason within the framework of the free institutions of a constitutional
democratic regime. Political liberalism also supposes that a reasonable
comprehensive doctrine does not reject the essentials of a democratic regime.(…)
The fact of a plurality of reasonable but incompatible comprehensive doctrines – the
fact of reasonable pluralism – shows that, as used in Theory, the idea of a wellordered society of justice as fairness is unrealistic. This is because it is inconsistent
105
Observe que, em meu resumo dos objetivos de Teoria, a tradição do contrato social aparece como parte da
filosofia moral e não se faz distinção alguma entre filosofia moral e política. Em Teoria, uma doutrina moral da
justiça de alcance geral não se distingue de uma concepção estritamente política de justiça. O contraste entre
doutrinas filosóficas e morais abrangentes e concepções limitadas ao domínio do político não é de grande
relevância. No entanto, essas distinções e idéias afins são fundamentais nas conferências aqui apresentadas.
(tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 23)
106
“O grave problema a que me referi – é preciso que eu explique – diz respeito à idéia pouco realista de
“sociedade bem-ordenada”, tal como aparece em Teoria. Uma característica essencial de uma sociedade bemordenada associada à justiça como eqüidade é que todos os seus cidadãos endossam essa concepção com base
no que agora chamo de doutrina filosófica abrangente. Aceitam que seus dois princípios de justiça estejam
fundamentados nessa doutrina.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 24)
152
with realizing its own principles under the best foreseeable conditions.107 (grifos do
autor) (RAWLS, 1993, p. XVI-XVII)
A distinção entre a existência de doutrinas morais abrangentes, próprias de
cada cidadão e, portanto, não extensiva nem impositiva aos demais, e a necessidade de
uma estrutura política que abarque todas elas, de modo que a coexistência seja
possível, é a principal guinada efetuada por Rawls em O Liberalismo Político (2000b).
Assim, sua doutrina restringir-se-á ao que é próprio do âmbito do político, sem que
esse sofra interferências cruciais dos conteúdos próprios das doutrinas morais. Isso
será possível em virtude da introdução de um novo recurso na teoria política, o
consenso sobreposto (overlapping consensus):
Part of the seeming complexity of political liberalism – shown, say, in its having to
introduce a further family of ideas – arises from accepting the fact of reasonable
pluralism. For once we do this, then we assume that, in an ideal overlapping
consensus each citizen affirms both a comprehensive doctrine and the focal political
conception, somehow related. In some cases the political conception is simply the
consequence of, or continuous with, a citizen’s comprehensive doctrine, in others it
may be related as an acceptable approximation given the circumstances of the
social world. In any case, since the political conception is shared by everyone while
the reasonable doctrines are not, we must distinguish between a public basis of
justification belonging to the many comprehensive doctrines and acceptable only to
those who affirm them.108 (RAWLS, 1993, p.XVIII-XIX)
107
O liberalismo político pressupõe que, para propósitos políticos, uma pluralidade de doutrinas abrangentes e
razoáveis, e, ainda assim, incompatíveis, seja o resultado normal do exercício da razão humana dentro da
estrutura de instituições livres de um regime democrático constitucional. O liberalismo político pressupõe
também que uma doutrina abrangente e razoável não rejeita os princípios fundamentais de um regime
democrático.(...)
O fato de haver uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis, porém incompatíveis entre si – o
pluralismo razoável –, mostra que a idéia de uma sociedade bem-ordenada de justiça como eqüidade, conforme
aparece em Teoria é pouco realista. É pouco realista por ser incoerente com a realização de seus princípios
num cenário de alta previsibilidade. (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 24-5)
108
“Parte da suposta complexidade do liberalismo político – evidente, por exemplo, na necessidade de
introduzir uma série complementar de idéias afins – decorre da aceitação do pluralismo razoável. Porque ao
aceitá-lo, presumimos que, num consenso sobreposto ideal, todo cidadão endossa tanto uma doutrina
abrangente quanto uma concepção política focal, relacionadas de alguma forma. Em alguns casos, a concepção
política é simplesmente conseqüência da doutrina abrangente do cidadão, ou mostra continuidade com ela; em
outros, a primeira pode estar relacionada com a segunda como uma aproximação aceitável, dadas as
circunstâncias do mundo social. Seja como for, já que a concepção política é compartilhada por todos, ao
contrário das doutrinas razoáveis, precisamos distinguir entre uma base de justificação pública de ampla
aceitação pelos cidadãos, no que diz respeito a questões políticas fundamentais, e as muitas bases de
justificação não-públicas que fazem parte das diversas doutrinas abrangentes aceitas apenas por seus
defensores.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 26-7)
153
Assim, ao invés de sustentar um construtivismo moral, como havia feito
nos anos 1980, Rawls (2000b) realizará uma diferenciação crucial na teoria da justiça
como imparcialidade em direção ao que ele denomina de construtivismo político.
Rawls (2000b) resume em quatro as distinções entre o construtivismo moral kantiano e
o construtivismo político que defende:
1) O construtivismo kantiano é, como dito, uma doutrina moral
abrangente, enquanto o construtivismo político não. Este somente fornece uma base
pública de justificação política para a possibilidade de convívio em sociedade de
diversas doutrinas morais abrangentes. Tal não poderia ser feito pelo construtivismo
kantiano já que não haveria compatibilidade com o fato do pluralismo razoável, ao
exigir dos cidadãos uma adesão a um ideal moral de vida.
2) Enquanto em Kant a autonomia do indivíduo radica na constituição dos
valores construídos para sua existência, dado o caráter do idealismo transcendental,
em Rawls essa autonomia restringir-se-á à constituição ordenada dos valores políticos,
em conformidade com os princípios da razão prática.
3) Para Kant, há uma concepção definida de sociedade e de pessoa que
orienta e define a construção dos valores morais para a fixação dos princípios de
justiça. No construtivismo político, há somente o respeito à exigência de uma
concepção razoável de sociedade e de pessoa, qualquer que ela seja, desde que
compatível com a preservação do domínio do político e capaz de justificar e organizar
os princípios básicos da sociedade.
4) Segundo o próprio Rawls (2000b) as três distinções acima estão ligadas
a uma última que nitidamente separa o construtivismo kantiano do construtivismo
político – a diferença de objetivos:
154
Justice as fairness aims at uncovering a public basis of justification on questions of
political justice given the fact of reasonable pluralism. Since justification is
addressed to others, it proceeds from what is, or can be, held in common; (…)
Kant’s aims are difficult to describe briefly. But I believe he views the role of
philosophy as apologia: the defense of reasonable faith. This is not the older
theological problem of showing the compatibility between faith and reason, but
that of showing the coherence and unity of reason, both theoretical and practical,
with itself; and of how we are to view reason as the final court of appeal, as alone
competent to settle all questions about the scope and limits of its own authority.109
(RAWLS, 1993, p. 100-101)
Com essa guinada, Rawls põe em pretensões bem mais modestas a função
do construtivismo que ele sustenta, pois a estrutura política que permite o convívio nas
sociedades democráticas não mais imporia uma específica doutrina moral aos
indivíduos. Contudo, nem por isso essa tarefa deixa de ser menos árdua, já que a força
do construtivismo por ele proposto terá de se basear justamente no desenvolvimento de
uma capacidade lançada por John Locke, um dos maiores defensores do liberalismo
moderno, a virtude da tolerância.
From the beginning the scope of political constructivism has been limited to the
political values that characterize the domain of the political; it is not proposed as an
account of moral values generally. It does not say, as I assume Kant did, that not
only is the order of all values presented by a constructivist argument but also that
the moral order itself is constituted or made by the principles of practical reason.
The political values of a constitutional democracy are, however, seen as distinctive
in the sense that they can be worked out using the fundamental idea of society as a
fair system of cooperation between free and equal citizens as reasonable and
rational. Granting all this, it does not follow, although it might be so, that other
kinds of values can also be appropriately constructed. Political constructivism
neither asserts nor denies this Otherwise a constructivist conception could not be
the focus of an overlapping consensus of reasonable comprehensive doctrines, since
on this question citizens will hold conflicting positions.110 (RAWLS, 1993, p. 125126)
109
A justiça como eqüidade tem por objetivo descobrir uma base pública de justificação no que se refere a
questões de justificação política dado o fato do pluralismo razoável. Como a justificação se dirige aos outros,
origina-se no que é, ou pode ser, defendido em comum (...)
É difícil resumir os objetivos de Kant. Mas acredito que ele entenda o papel da filosofia como apologia: a
defesa da fé razoável. Não se trata do antigo problema teológico de mostrar a compatibilidade entre fé e razão,
e sim do de mostrar a coerência e a unidade da razão, tanto teórica, quanto prática, consigo mesma; e de por
que devemos entender a razão como o tribunal supremo e último, como o único que tem competência para
resolver todas as questões sobre os alcances e limites de sua própria autoridade.(tradução da edição brasileira)
(RAWLS, 2000b, p. 146)
110
“Desde o princípio, o alcance do construtivismo político limitou-se aos valores políticos que caracterizam o
âmbito do político; ele não se propõe como uma explicação dos valores morais em geral. Não se diz, como
suponho que Kant tenha dito, que não só a ordem de todos os valores pode ser representada mediante um
argumento construtivista, como também que a própria ordem moral é constituída ou gerada pelos princípios da
razão prática.
155
Entretanto,
não
é
porque
Rawls
opera
reformulações
em seu
construtivismo (2000b), tendo em vista a justificação política das sociedades
democráticas constitucionais da atualidade, que sua obra deixa de ser tributária dos
ideais de Kant. Muito pelo contrário. As mudanças efetuadas visam resguardar o
espírito defendido pelo autor de Königsberg, qual seja, o de promover o respeito à
igualdade política entre os concidadãos, de modo a que todos eles possam participar
no processo de elaboração da legislação que regerá a vida pública de sua sociedade.
Uma vez vista a fundamentação teórica sobre a qual Rawls construirá a sua justiça
como imparcialidade, passa-se a apresentar o procedimento e o método utilizado por
Rawls para a escolha dos princípios de justiça que irão reger a estrutura básica da
sociedade, bem como o conteúdo desses princípios.
3.5.2 – O arcabouço teórico da teoria da justiça de Rawls
John Rawls pretende sustentar uma concepção de Justiça que venha a
conciliar indivíduos com diferentes projetos pessoais de vida dentro de uma sociedade
plural que respeite as diversas concepções particulares de mundo. Para tanto, recorre a
uma renovada teoria do contrato social enquanto recurso lógico de fundamentação
daquilo que permitirá o consenso de base acerca dos princípios da justiça (FARAGO,
2004; VAN PARIJS, 1997). Esse “contrato” difere do contrato social dos autores
No entanto, os valores políticos de uma democracia constitucional são vistos como característicos no sentido de
que podem ser formulados a partir da idéia fundamental de sociedade enquanto um sistema eqüitativo de
cooperação entre cidadãos livres e iguais, em sua condição de razoáveis e racionais. Dado tudo isso, não se
conclui, embora seja possível fazê-lo, que todos os outros tipos de valores também possam ser apropriadamente
construídos. O construtivismo político não afirma nem nega tal coisa. Porque, de outra forma, uma concepção
construtivista não poderia ser o foco de um consenso sobreposto de doutrinas abrangetes e razoáveis, uma vez
que, sobre esses valores, os cidadãos defenderão pontos de vista conflitantes.”(tradução da edição brasileira)
(RAWLS, 2000b, p. 172-73)
156
iluministas. Ao invés de buscar no pacto social uma justificação metafísica para a
utilização da violência pelo Estado, o expediente contratualista de Rawls busca
estabelecer quais serão as bases com as quais todos podem concordar como justas para
a distribuição dos bens primários em uma sociedade (FELIPE, 1996). Ao invés de se
orientar pela ficção, como faziam os autores do séc. XVII, Rawls busca fundamentar
em bases racionais a tradição do constitucionalismo democrático desenvolvida pelas
sociedades ocidentais:
Não há na teoria de Rawls, conforme já vimos acima, a ficção de um contrato
ahistórico acerca dos princípios da justiça a serem adotados. Há, por um lado, a
tradição do pensamento ocidental vinculada ao modelo democrático-constitucional,
que deve ser respeitada, preservada e aperfeiçoada; (...) A concepção de um
contrato, em Rawls, se funda numa espécie de reconhecimento ou aceitação da
irreversibilidade do curso da história das lutas políticas no mundo democrático
ocidental, que acaba por estabelecer definitivamente o princípio da liberdade igual
para todos os homens, apregoado pela tradição do movimento democráticoconstitucional moderno. (CRUZ JÚNIOR, 2004, p. 51-52)
O ponto de partida do contratualismo de Rawls é o lugar privilegiado em
que ocorrerá tal argumentação, denominado de posição original. Essa hipótese
metodológica permitirá estabelecer que os indivíduos que irão definir as bases do
acordo sobre os princípios de justiça se encontrem em posição de igualdade
(FARAGO, 2004). Assim, toda a teoria é construída em referência à posição original
na qual:
Free and rational persons concerned to further their own interests would accept in
an initial position of equality as defining the fundamental terms of their association.
These principles are to regulate all further agreements; they specify the kinds of
social cooperation that can be entered into and the forms of government that can be
established. This way of regarding the principles of justice I shall call justice as
fairness111 (RAWLS, 1974, p.11)
111
“pessoas livres e racionais, preocupados em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição
inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação. Esses princípios devem
regular todos os acordos subseqüentes; especificam os tipos de cooperação social que se podem assumir e as
formas de governo que se podem estabelecer. A essa maneira de considerar os princípios de justiça eu chamarei
de justiça como eqüidade.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 12)
157
Para que a adoção dos princípios da justiça se faça de modo imparcial, ou
“eqüitativo”, os indivíduos são colocados na posição original sob um “véu da
ignorância”. O véu da ignorância é o recurso que permite aos indivíduos abstraírem de
suas contingências particulares e escolherem os princípios de justiça para a sociedade
sem saber a posição que nela ocuparão (RAWLS, 2002):
Rawls propõe que as partes na posição original sejam desprovidas de qualquer
conhecimento relevante que possa macular a condição de status quo inicial justo
essencial para deliberarem em condição de igualdade, isto é, sem influenciais de
nenhuma sorte advindas do status quo real das partes. Rawls obtém esse efeito com
um ‘véu de ignorância’ em razão do qual as partes não sabem seu sexo, posição
social, habilidades inatas, país ou sociedade de onde vieram, força, inteligência,
influência política ou social, suas visões de mundo e propensões psicológicas. De
modo a tornar o véu de ignorância ainda mais espesso, as partes na verdade são na
verdade’representantes’ de pessoas como nós, de modo que os interesses sejam
ainda mais limitados e equilibrados por considerações de bem comum.(...)
Tamanhas restrições são levantadas com o propósito de se obter um universo de
deliberação perfeitamente simétrico, supondo ser razoável e aceitável que nenhuma
das partes seja favorecida devido a condições benéficas e fortuitas adquiridas de
habilidades inatas ou posições sociais transmitidas por herança. (CRUZ JÚNIOR,
2004, p. 51-52)
As restrições colocadas por Rawls aos agentes que se situam na condição
especial, exigida pela posição original, operam no sentido de que haja a maior
imparcialidade (a mais adequada das traduções para o termo “fairness”) possível na
escolha dos princípios que regerão a estrutura básica da sociedade (FARAGO, 2004).
No entanto, os participantes da posição original têm acesso a uma lista de bens
primários que sabem necessários à consecução de suas respectivas concepções de bem
(RAWLS, 2002). Os princípios de justiça servirão para determinar de que modo tais
bens primários serão selecionados, hierarquizados e distribuídos entre as diversas
instituições sociais (RAWLS, 2000b). Esses bens sociais primários são listados por
Rawls de maneira indicativa, constituindo-se, basicamente de: a) liberdades
fundamentais (liberdade de pensamento, consciência e congêneres); b) liberdade de
movimento e de escolha da ocupação em um contexto de oportunidades variadas; c)
158
poderes e prerrogativas de posições e cargos de responsabilidade; d) renda e riqueza,
entendidas como meios de troca em sentido amplo; e) bases sociais do auto-respeito,
ligadas ao sentimento de valor próprio como pessoa.
Uma última característica que a posição original está ligada à seguinte
premissa metodológica: os juízos que a descrevem, bem como os resultados das
deliberações, são fruto de uma situação denominada de equilíbrio ponderado, ou
reflexivo, o que lhes confere um caráter provisório e sujeito a revisão (RAWLS,
2002). Porém, isso não impede que eles sejam alicerces fixos para o desenvolvimento
da teoria enquanto válidos:
By going back and forth, sometimes altering the conditions of the contractual
circumstances, at others withdrawing out judgementsand conforming them to
principle, I assume that eventually we shall find a description of the initial situation
that both express reasonable conditions and yields principles which match our
considered judgments duly pruned and adjusted. This state of affairs I refer to as
reflective equilibrium. It is an equilibrium because at last our principles and
judgments coincide; and it is reflective since we know to what principles our
judgments conform and the premises of their derivation. At the moment everything is
in order. But this equilibrium is not necessarily stable. It is liable to be upset by
further examination of the conditions which should be imposed on the contractual
situation and by particular cases which may lead us to revise our judgments Yet for
the time being we have done what we can to render coherent and t justify our
convictions of social justice112 (RAWLS, 1971, 20-21)
Sendo assim, segundo a primeira formulação dada por Rawls em Uma
teoria da justiça (2002), os princípios de justiça que indivíduos livres e racionais
escolheriam na posição original, submetidos às restrições de conhecimento próprias do
véu da ignorância e ao equilíbrio reflexivo, seriam os seguintes:
112
“Por meio de avanços e recuos, às vezes alterando as condições das circunstâncias em que se deve obter o
acordo original, outras vezes modificando nossos juízos e conformando-os com os novos princípios, suponho
que acabaremos encontrando a configuração da situação inicial que ao mesmo tempo expresse pressuposições
razoáveis e produza princípios que combinem com nossas convicções devidamente apuradas e ajustadas. A esse
estado de coisas me refiro como equilíbrio ponderado. Trata-se de um equilíbrio porque finalmente nossos
princípios e opiniões coincidem; e é reflexivo porque sabemos com quais princípios nossos julgamentos se
conforma e conhecemos as premissas das quais derivam. Nesse momento tudo está em ordem. Mas este
equilíbrio não é necessariamente estável. Está sujeito a ser perturbado por outro exame das condições que se
pode impor à situação contratual e por casos particulares que podem nos levar a revisar nossos julgamentos.
Mas por enquanto fizemos o possível para tornar coerentes e justificar nossas convicções sobre justiça social”
(tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 23)
159
First Principle
Each person is to have an equal right to the most extensive total system of equal
basic liberties compatible with a similar system of liberty for all.
Second Principle
Social and economic inequalities are to be arranged so that they are both:
(a) to the greatest benefit of the least advantaged, consistent with the just savings
principle, and
(b) attached to offices and positions open to all under conditions of fair equality of
opportunity
First Priority Rule (The Priority of Liberty)
The principles of justice are to be ranked in lexical order and therefore liberty can
be restricted only for the sake of liberty. There are two cases:
(a) a less extensive liberty must strengthen the total system of liberty shared by all;
(b) a less than equal liberty must be acceptable to those with the lesser liberty
Second Priority Rule (The Priority of Justice over Efficiency and Welfare)
The second principle of justice is lexically prior to the principle of efficiency and to
that of maximizing the sum of advantages; and fair opportunity is prior to the
difference principle. There are two cases:
(a) an inequality of opportunity must enhance the opportunity of those with the
lesser opportunity;
(b) an excessive rate of saving must on balance mitigate the burden of those
bearing this hardship113 (grifos do autor)(RAWLS, 1971, p. 302-303)
Posteriormente, em O liberalismo político (2000b), algumas mudanças são
introduzidas nos princípios de justiça, de modo a que a estrutura da justiça como
113
Primeiro Princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangete sistema total de liberdades básicas iguais que seja
compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos
Segundo princípio
As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo:
(a) tragam o maior benefício para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da
poupança justa
(b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de
oportunidades
Primeira Regra de Prioridade (A Prioridade da Liberdade)
Os princípios da justiça devem ser classificados em ordem lexical e portanto as liberdades básicas só podem ser
restringidas em nome da liberdade.
Existem dois casos:
(a) uma redução da liberdade deve fortalecer o sistema total das liberdades partilhadas por todos;
(b) uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm liberdade menor.
Segunda Regra de Prioridade (A Prioridade da Justiça sobre a Eficiência ou o Bem-Estar)
O segundo princípio da justiça é lexicalmente anterior ao princípio da eficiência e ao princípio da maximização
da soma de vantagens; e a igualdade eqüitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença. Existem
dois casos:
(a) uma desigualdade de oportunidades deve aumentar as oportunidades daqueles que têm uma
oportunidade menor;
(b) uma taxa excessiva de poupança deve, avaliados todos os fatores, tudo é somado, mitigar as
dificuldades dos que carregam esse fardo (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 333-334)
160
imparcialidade permaneça condizente com as reformulações114 feitas nesse trabalho
(CRUZ JÚNIOR, 2004):
a. Each person has an equal right to a fully adequate scheme of equal basic
liberties which is compatible with a similar scheme of liberties for all
b. Social and economic inequalities are to satisfy two conditions. First, they must
be attached to offices and positions open to all under conditions of fair equality of
opportunity; and second, they must be to the greatest benefit of the least
advantaged members of society.115 (RAWLS, 1993, p.291)
Essa é a denominada concepção especial de justiça, que decorre de uma
concepção geral de justiça, de caráter mais amplo, por Rawls assim expressa: “All
social primary goods – liberty and opportunity, income and wealth, and the bases of
self respect – are to be distributed equally unless an unequal distribution of any or all
of these goods is to advantage of the least favored.” (RAWLS, 1971, p. 303) 116
Os dois princípios extraídos da concepção especial de justiça atuariam
como centro de referência para as demais tomadas de decisão relativas à composição
da estrutura básica da sociedade (RAWLS, 2002). A estrutura básica da sociedade é
composta das diferentes instituições sociais que atribuem direitos e deveres no seio de
uma sociedade:
114
Como já abordado na nota 96, a justiça como imparcialidade surge em Uma teoria da justiça, mas segue
sofrendo constantes reformulações por parte de Rawls, à medida que ele responde críticas e supera deficiências
encontradas em sua teoria. O liberalismo político (2000b) compõe-se de um ciclo de conferências em que a
justiça como imparcialidade incorpora em sua estrutura o denominado construtivismo político, em oposição ao
construtivismo moral kantiano que antes a orientava. Para melhor compreensão da mudança de perspectiva
ocorrida na passagem de Uma teoria da justiça (2002) para O liberalismo político (2000b), sugere-se a consulta
a esta última obra.
115
“a. Toda pessoa tem um direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades fundamentais iguais
que seja compatível com um sistema similar de liberdades para todos.
b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições. A primeira é que devem estar
vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e a
segunda é que devem redundar no maior benefício possível para os membros menos privilegiados da
sociedade.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 345)
116
O trecho transcrito foi suprimido na versão brasileira consultada. No entanto a versão original que serve de
base para a edição brasileira consultada é segunda edição, de 1975, sendo que a versão em língua original
consultada é a primeira, de 1971. Assim, é possível que a supressão ocorra no texto de 1975. Há, no entanto, em
outro local do texto em português, uma tradução que reproduz com exatidão a concepção geral de justiça:
“Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima –
devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses
valores traga vantagens para todos.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p. 66)
161
O objeto primário da justiça é, segundo Rawls (1997, p.5-8), a estrutura básica da
sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais
importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de
vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições mais importantes,
entende-se a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais, de
que constituem exemplos a proteção legal da liberdade de pensamento e de
consciência, os mercados competitivos, a propriedade particular no âmbito dos
meios de produção e a família monogâmica, entre outros. Tomadas em conjunto
como um único esquema, as instituições sociais mais importantes definem os
direitos e deveres dos homens e influenciam seus projetos de vida, o que eles podem
esperar vir a ser e o bem-estar econômico que podem almejar. (FLORENZANO,
2005, p. 41)
As instituições sociais componentes dessa estrutura seriam subdivididas em
conformidade com os respectivos objetos tratados em cada um dos princípios. No
primeiro princípio há, para a concretização da justiça, um dever de igual atribuição das
liberdades básicas no que concerne ao estabelecimento de direitos a elas relacionados.
Qualquer que seja o sistema de liberdades existentes em uma sociedade, dele devem
usufruir todos os seus membros. Perceba-se que, em O liberalismo político (2000b), o
primeiro princípio de justiça sofre uma ligeira alteração no conteúdo em relação a
Uma teoria da justiça – de “o mais abrangente sistema de liberdades” para “um
sistema plenamente adequado”. Essa alteração deve-se ao fato de que não
necessariamente “o mais extenso” sistema de liberdades atenderá aos propósitos da
justiça como imparcialidade117. Pelo contrário, para o desenvolvimento do senso de
117
“Now, in Theory one criterion suggested seems to be that the basic liberties are to be specified and adjusted
so as to achieve the most extensive scheme of these liberties. This criterion is purely quantitative and does not
distinguish some cases as more significant than others; moreover, it does not generally apply and is not
consistently followed. (…) Rather, these liberties and their priority ate to guarantee equally for all citizens and
the social conditions essential for the adequate development and the full and informed exercise of these powers
in what I shall call “the two fundamental cases”. The first of these cases is connected with the capacity for a
sense of justice and concerns the application of the principles of justice to the basic structure of society and its
social policies (…) The second fundamental case is connected with the capacity for a conception of the good and
concerns the application of the principles of deliberative reason in guiding our conduct over a complete life. (...)
The upshot will be that the criterion at later stages is to specify and adjust the basic liberties so as to allow the
adequate development and the full and informed exercise of both moral powers in the social circumstances
under which the two fundamental cases arise in the well-ordered society in question. Such a scheme of liberties I
shall call ‘a fully adequate scheme’.(grifos do autor) (RAWLS, 1993, p.331-333) (“Em Teoria, um critério
apontado parece ser o de que as liberdades fundamentais devem ser especificadas e ajustadas de modo que se
alcance o sistema mais abrangente possível dessas liberdades. Esse critério é puramente quantitativo e não
distingue alguns casos como mais significativos do que outros; além disso não se aplica em termo gerais e não é
162
justiça e a realização de uma concepção particular de bem de cada um dos cidadãos
seria mais apropriado trabalhar com a noção de um sistema “plenamente adequado” à
satisfação desses critérios118.
O segundo princípio refere-se à divisão de vantagens econômicas e sociais
na estrutura da sociedade. Desigualdades na repartição desses bens somente se
justificam caso promovam melhorias aos menos favorecidos nessa distribuição,
respeitado sempre. (...) O que se pretende é, em vez disso que essas liberdades e sua prioridade garantam
igualmente a todos os cidadãos as condições sociais essenciais para o desenvolvimento adequado e o exercício
pleno e bem-informado dessas capacidades naquilo que chamarei de ‘os dois casos fundamentais’ O primeiro
desses casos está ligado à capacidade de ter um senso de justiça e diz respeito à aplicação dos princípios de
justiça à estrutura básica da sociedade e a suas políticas sociais (...) O segundo caso fundamental está ligado à
capacidade de ter uma concepção de bem e diz respeito à aplicação dos princípios da razão deliberativa na
orientação de nossa conduta ao longo de toda a vida. (...) O resultado será que, nos estágios subseqüentes, o
critério deve especificar e ajustar as liberdades fundamentais de tal modo que permita o desenvolvimento
adequado e o exercício pleno e bem-informado de ambas as capacidades morais, nas circunstâncias sociais em
que os dois casos fundamentais se apresentam na sociedade bem ordenada em questão. A tal sistema de
liberdades chamarei de ‘um sistema plenamente adequado’. Esse critério é coerente com o de ajustar o sistema
de liberdades de acordo com os interesses racionais do cidadão igual representativo” (tradução da edição
brasileira) (RAWLS, 2000b, p.387-389) )
118
“Now there are two reasons why the idea of a maximum does not apply to specifying and adjusting the
scheme of basic liberties. First, a coherent notion of what is to be maximized is lacking. We cannot maximize the
development and exercise of two moral powers at once. And how could we maximize the development and
exercise of either power by itself?(...) Moreover, we have no notion of a maximum development of these powers.
What we do have is a conception of a well-ordered society with certain general features and certain basic
institutions. Given this conception, we form the notion of the development and exercise of these powers which is
adequate and full relative to the two fundamental cases. The other reason why the idea of a maximum does not
apply is that the two moral powers do not exhaust the person, for persons also have a determinate conception of
the good. (...) If the citizens had no determinate conceptions of the good which they sought to realize, the just
social institutions of a well-ordered society would have no point. Of course, grounds for developing and
exercising the moral powers strongly incline the parties in the original position to adopt the basic liberties and
their priority. But the great weight of these grounds from the standpoint of the parties does not imply that the
exercise of the moral powers on the part of the citizens in the society is either the supreme or the sole form of
good. Rather, the role and exercise of these powers (in the appropriate instances) is a condition of good. That is,
citizens are to act justly and rationally, as circumstances require”. (RAWLS, 1993, p. 333-334) (“Há duas
razões pelas quais a idéia de um máximo não se aplica à especificação e ao ajuste do sistema de liberdades
básicas. A primeira é que não temos uma noção corrente do que deve ser maximizado. Não podemos maximizar
ao mesmo tempo o desenvolvimento e o exercício das duas capacidades morais. E como poderíamos maximizar
o desenvolvimento e o exercício de cada uma delas em separado? (...)Além disso não temos nenhuma noção do
que seria um desenvolvimento máximo dessas capacidades. O que temos é uma concepção de uma sociedade
bem-ordenada, com certas características gerais e certas instituições básicas. Dada essa concepção,
formulamos a noção do desenvolvimento e exercício dessas capacidades, que é adequada e plena com respeito
aos dois casos fundamentais. A outra razão pela qual a idéia de um máximo não se aplica é que as duas
capacidades morais não esgotam a pessoa, pois as pessoas também têm uma determinada concepção de bem.
(...) Se os cidadãos não tivessem uma concepção específica do bem que procuram realizar, as instituições
sociais justas de uma sociedade bem-ordenada perderiam o sentido. É claro que os motivos para desenvolver e
exercer as faculdades morais inclinam fortemente as partes na posição original a adotar as liberdades
fundamentais e sua prioridade. Mas o grande peso desses motivos, do ponto de vista das partes, não implica que
o exercício das capacidades morais por parte dos cidadãos em sociedade seja a forma suprema, ou a única
forma do bem, e sim que o papel e exercício dessas capacidades morais (nos casos apropriados) são uma
condição do bem, isto é, os cidadãos devem agir de forma justa e racional, conforme o exijam as
circunstâncias.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p.389-390) )
163
respeitada a igual possibilidade de acesso a posições e cargos sociais. É o denominado
princípio da diferença. Com este segundo princípio, Rawls (2002) insere uma
perspectiva igualitarista em sua teoria. Não há nela a busca pela igualdade radical,
como propõe o marxismo, mas sim a instauração de uma tendência de se distribuir os
bens econômicos e sociais de modo a se atenuarem as desigualdades entre os
indivíduos. Desse modo, segundo Rawls, seria possível combinar justiça e eficiência
econômica, sem se colocar em risco a estabilidade da sociedade:
para o princípio da diferença, como o próprio nome levaria a supor, está afastado o
objetivo de se estabelecer qualquer tipo de igualdade estrita, mas antes uma forma
de distribuição de bens sociais, que possa combinar justiça com eficiência
econômica. Nada há de pior do que cercear as liberdades fundamentais para
assegurar a igualdade, pois tal cerceamento, além de violar os projetos de vida e
bens primários que todo indivíduo racional escolheria, independentemente do
conteúdo desses bens, afetaria as próprias bases da igualdade precariamente
adquirida. Não haveria estímulos, nem confiança, nem justiça em tal concepção de
sociedade, uma vez que os indivíduos não seriam iguais em termos políticos, ainda
que o fossem, de alguma forma, em termos econômicos. (CRUZ JÚNIOR, 2004, p.
69)
Rawls (2002) assevera ainda que os princípios encontram-se segundo uma
ordem serial, ou lexical, ou seja, o primeiro princípio (de liberdade igual) antecede ao
segundo (que prevê as desvantagens econômicas e sociais) em prioridade, assim como
a segunda parte do segundo princípio (de igualdade de acesso a cargos e posições)
antecede à primeira parte do segundo princípio (princípio da diferença). Para Rawls
(2000b), o princípio que atribui prioridade às liberdades fundamentais possui um
status especial, ou seja, considerações relativas a um melhor arranjo econômico ou
social não podem justificar intervenções que anulem as garantias fornecidas por esse
princípio: “The priority of liberty implies in practice that a basic liberty can be limite
164
or denied solely for the sake of one or more other basic liberties, and never, as I have
said, for reasons of public good or perfeccionist values”119 (RAWLS, 1993, p. 295)
Com isso, Rawls (2000b) não quer dizer que as liberdades são absolutas e
invioláveis sob qualquer fundamento. Há, para o seu exercício, a necessidade de uma
regulamentação de modo que elas venham a constituir um sistema que permita o seu
exercício organizado e efetivo por parte de todos os cidadãos.
E, assim, por meio de uma lealdade aos princípios acordados na posição
original na construção e definição das instituições sociais, obtém-se a realização da
justiça na estrutura básica da sociedade. Nas palavras do próprio autor:
In justice as fairness society is interpreted as a cooperative venture for mutual
advantage. The basic structure is a public system of rules defining a scheme of
activities that leads men to act together so as to produce a greater sum of benefits
and assigns to each certain recognized claims to a share in the proceeds. What a
person does depends upon what the public rules say he will be entitled to, and what
a person is entitled to depends on what he does. The distribution which results is
arrived at by honoring the claim determined by what persons undertake to do in the
light of these legitimate expectations120 (RAWLS, 1971, p. 84)
Deste modo a distribuição de conteúdos materiais deixa de ser responsável
pela realização da justiça (justiça alocativa), dando lugar à idéia de respeito às
condições e regras consideradas por todos como justas para a elaboração dos
posteriores acordos que definirão as instituições de uma sociedade (justiça
procedimental), donde se completa assim, a estrutura da justiça “as fairness” – com o
respeito às regras do jogo, a ser praticado de modo limpo e franco.
119
“A prioridade da liberdade implica, na prática, que uma liberdade fundamental só pode ser limitada ou
negada em nome de uma outra ou de outras liberdades fundamentais, e nunca, como eu disse, por razões de
bem-estar geral ou de valores perfeccionistas.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2000b, p. 349)
120
Na justiça como eqüidade, a sociedade é interpretada como um empreendimento cooperativo para a
vantagem de todos. A estrutura básica é um sistema público de regras que definem um esquema de atividades
que conduz os homens a agirem juntos no intuito de produzir uma quantidade maior de benefícios e atribuindo a
cada um certos direitos reconhecidos a uma parte dos produtos. O que uma pessoa faz depende do que as regras
públicas determinam a respeito do que ela tem direito de fazer, e os direitos de uma pessoa dependem do que ela
faz. Alcança-se a distribuição que resulta desses princípios honrando os direitos determinados pelo que as
pessoas se comprometem a fazer à luz dessas expectativas legítimas. (tradução da edição brasileira) (RAWLS,
2002 p. 90)
165
Se, por um lado, a trajetória da justiça como imparcialidade de Rawls
consegue articular uma teoria da justiça que, de modo atraente, defende as bases de
uma sociedade liberal, por meio de uma argumentação em favor dos postulados do
liberalismo, por outro ela desperta questionamentos quanto à fundamentação e à
pertinência desse projeto, colocando em xeque a própria coerência e a validade da
empresa de Rawls e estabelecendo novos rumos ao debate político sobre a questão da
justiça.
3.5.3 – A crítica comunitarista
A força do argumento de John Rawls em favor do estabelecimento de uma
teoria da justiça de matriz liberal, que em muito ratifica a experiência política
vivenciada pelas sociedades capitalistas ocidentais desenvolvidas, levantou uma série
de objeções por parte de autores que, por diferentes razões e fundamentos, se opõem a
esse modelo de justiça. Essa oposição tem em comum a crítica à estruturação da
sociedade em bases liberais121 e propõe, por sua vez, uma teoria da justiça de
perspectiva comunitarista122.
121
É preciso que não se confunda as críticas ao liberalismo que se fazem em função de seus efeitos, como
aquelas realizadas pelo utilitarismo e pelo marxismo à conseqüência de se privilegiar o mercado e a autonomia
da vontade nas questões ligadas à distribuição de recursos sociais, com as críticas dirigidas à fundamentação de
uma sociedade que não possua uma prévia fundamentação do que seja a vida boa e a perfeição humana. Em certa
medida, o utilitarismo e o marxismo compartilham do postulado liberal de não se sustentar em uma concepção
particular de vida boa (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003) e, portanto, são também alvo das críticas
comunitaristas.
122
O que se denomina teoria da justiça comunitarista é um conjunto de elaborações teóricas formuladas por
autores de diferentes tradições filosóficas em reação à hegemonia do pensamento liberal no início da década de
1980. O debate tem início com a publicação do livro de Michael Sandel O liberalismo e os limites da justiça, de
1982 (FARAGO, 2004), ao qual se seguem os trabalhos de Alasdair MacIntyre, Michael Walzer e Charles
Taylor (este último declara-se não filiado a nenhuma corrente, apesar da análise crítica feita ao conceito de self,
central às teorias liberais). A reunião desses autores sob uma mesma corrente decorre do fato de que todos eles
questionam a validade da premissa liberal que sustenta a prioridade do justo sobre o bem, isto é, que prefere
garantir as condições que permitem a busca da felicidade (autonomia e liberdade) ao invés de promover uma
concepção substancial de bem, denominada de “vida boa” e determinada pela vida em comunidade, que realize a
plenitude humana. (FARAGO, 2004)
166
Toda a formulação da justiça como eqüidade de John Rawls busca
estabelecer princípios de justiça que não sejam orientados por nenhuma concepção
específica de bem. Segundo Rawls, as atuais sociedades contemporâneas encontram-se
profundamente divididas no que concerne às visões de mundo, que informam as
doutrinas gerais abrangentes professadas por cada um dos cidadãos. Sendo assim,
como forma de se elaborar uma concepção política de justiça de matriz democrática, é
necessária uma estrutura de princípios de justiça que seja capaz de garantir igual
respeito a todas essas doutrinas professadas pelos cidadãos. Isso exigirá que os
princípios de justiça não se vinculem a nenhuma concepção específica de bem que
imponha um determinado tipo de “vida boa”. Pelo contrário, eles se constituirão de
uma gama de regras formais que estabeleçam as garantias para que cada um dos
indivíduos singularmente tenha a liberdade, a autonomia e, em certos casos, como na
teoria de Rawls, a oportunidade de buscar esse bem. Esse é o cânone liberal que
preconiza a prioridade do justo sobre o bem. Nenhuma idéia de bem da coletividade
teria a prerrogativa de ultrajar as regras que conferem aos indivíduos o direito de
perseguir aquilo que consideram como responsável por representar o bem próprio de
sua vida:
Each person possesses an inviolability founded on justice that even the welfare of
society as a whole cannot override. For this reason justice denies that the loss of
freedom, for some is made right by a greater good shared by others. It does not
allow that the sacrifices imposed on a few are outweighed by the larger sum of
advantages enjoyed by many. Therefore in a just society the liberties of equal
citizenship are taken as settled; the rights secured by justice are not subject to
political bargaining or to the calculus of social interests.123 (RAWLS, 1971, p.3-4)
123
“Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como
um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um
bem maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que
o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania
igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política
ou ao cálculo de interesses sociais.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002 p. 4)
167
Para que seja possível a elaboração dos princípios de justiça que regerão
essa sociedade profundamente dividida por conflitos de interesses, é preciso que, no
processo de construção desses princípios, sejam isoladas as visões particulares de bem
dos indivíduos históricos e empíricos. Esse papel é cumprido pelos constrangimentos
da posição original, em especial pelo véu da ignorância.
Desse modo, o recurso à posição original na teoria de Rawls dá origem a
um conceito de pessoa dotada apenas das qualidades primárias e mínimas que podem
ser comuns a todos os indivíduos: as capacidades morais (racionalidade e
razoabilidade, como visto acima) e o senso de justiça. As demais informações relativas
às características psicológicas, atributos humanos e sociais e experiências históricas
são deixadas de lado. Tudo isso para que a igualdade dos representantes e a natureza
deontológica124 do procedimento de escolha dos princípios não seja maculada.
Os conceitos fundamentais das teorias liberais, de um modo geral e de
Rawls em sentido estrito, que serão atacados pela crítica comunitarista são o
voluntarismo da posição original, o conceito de pessoa e os pressupostos relativos ao
conceito de sociedade (CRUZ JÚNIOR, 2004).
De acordo com os comunitaristas, o recurso à posição original em Rawls
originaria um “excessivo voluntarismo da concepção de pessoa” (CRUZ JÚNIOR,
2004, p.150), pois estabelece a existência de um “Eu” que definirá princípios de
justiça para a sociedade antes mesmo de ter contato com a realidade fenomênica que
lhe colocará seus fins concretos e constituirá a sua identidade.
124
Refere-se à natureza deontológica da teoria de Rawls nos termos empregados por Sandel para demarcar as
características que tornam a sua teoria tributária da teoria moral kantiana. “Desde el punto de vista plenamente
deontológico, la primacía de la justicia describe no solo una prioridad moral sino también una forma
privilegiada de justificación. (...) En su sentido moral, la deontología se opone al consecuencialismo, al
describir una ética de primer orden que contiene ciertos deberes y prohibiciones categóricos que tienen
prioridad incondicional sobre otras cuestiones morales y prácticas. En su sentido fundacional, la deontología se
opone a la teleologia porque describe una forma de justificación según la cual los primeiros princípios se
derivan de un modo que no presupone ningún propósito o fin humano final, ni una concepción determinada de
la bondad humana.” (SANDEL, 2000, p. 15-16)
168
El tema común a una gran parte de la doctrina liberal clásica que surge a partir de
la consideración deontológica de la unidad del ‘yo’ es la noción del sujeto humano
como un agente de elección soberano, una criatura cuyos fines son elegidos antes
que dados, que llega a sus propósitos y objectivos por actos de voluntad, en
contraste, digamos, con los actos de cognición. (...) La unidad antecedente del yo
significa que el sujeto, no importa cuán condicionado por su entorno se encuentre,
siempre es irreductiblemente anterior a sus valores y fines, y nunca completamente
construido por ellos. Aunque puedan darse circunstancias en las cuales las
condiciones sean formidables y las elecciones pocas, la acción soberana del hombre
como tal no depende de ninguna condición particular de existencia, sino que está
garantizada por adelantado. (SANDEL, 2000, p. 39)
Na medida em que esse exercício hipotético não trabalharia com
contingências reais, ele se limitaria a um trabalho epistemológico de encontrar aquilo
que é condizente com essa natureza parcial que lhe é imposta:
“Como esse indivíduo não está confrontado com escolhas sociais reais, ele tem
antes que avaliar introspectivamente qual seria o seu plano de vida, consideradas
as limitações da posição original e da sua natureza moral a-social, o que são uma e
a mesma coisa. (...) Tal opção é epistemológica na medida em que os projetos de
vida e concepções do bem seriam escolhidos ‘no vazio’, sem referência a nenhuma
sociedade ou experiência histórica ou cultural. O exercício preconizado por Rawls é
o de olhar para dentro de si e, munido das capacidades morais e dos instrumentos
congruentes com a natureza (racional e razoável) dos indivíduos, descobrir um
modelo de sociedade e um código de conduta moral que mais representariam uma
noção de ‘verdade’ – ainda que subjetivamente construída – do que uma opção
entre outras a ser propriamente escolhida. O indivíduo rawlsiano é, assim, livre,
mas não pode fazer muito com essa liberdade dada a limitação – ou mesmo a
indisponibilidade – de escolhas.” (grifos do autor) (CRUZ JÚNIOR, 2004 p. 150151)
Uma segunda questão colocada pelos comunistaristas à teoria de Rawls diz
respeito ao fato de que, para que haja a prioridade do justo sobre o bem, faz-se
necessário que o conceito de pessoa, responsável por definir os critérios de justiça para
uma sociedade, seja anterior à própria existência dessa sociedade (CRUZ JÚNIOR,
2004):
We should not attempt to give form to our life by first looking to the good
independently defined. It is not our aims that primarily reveal our nature but rather
the principles that we would acknowledge to govern the background conditions
under which these aims are to be formed and the manner in which they are to be
169
pursued. For the self is prior to the ends which are affirmed by it; even a dominant
end must be chosen from among numerous possibilities. There is no way to get
beyond deliberative rationality. We should therefore reverse the relation between
the right and the good proposed by teleological doctrines and view the right as
prior125 (RAWLS, 1971, p. 560)
Ao lançar tais argumentos como fundamento da justiça como
imparcialidade, Rawls resgata a noção kantiana de “Eu” transcendental, entidade
noumênica que não se encontra sujeita aos condicionamentos da experiência na
formulação de suas escolhas (FARAGO, 2004). Logo, o sujeito rawlsiano, que define
os princípios de justiça na posição original, seria, ao modo de Kant, livre e
independente para realizar tais escolhas, em função das restrições que lhe são impostas
pelo véu da ignorância.
Contra esse aspecto da teoria de Rawls, os comunitaristas afirmam que a
justiça como imparcialidade deve sua estrutura justamente à condição de um eu126
totalmente liberto (TAYLOR, 2000). Pois somente o recurso a esse tipo de eu tornaria
possível a escolha dos princípios de justiça na posição original. No entanto, segundo
os comunitaristas, essa condição ontológica seria impossível, porque a identidade do
eu é constituída somente a partir do momento em que esse convive dentro numa
comunidade (SANDEL, 2000). É ela que imprime os traços distintivos de suas
características sociais e humanas. A ausência do contexto social significa uma
impossibilidade de se estabelecerem fins e objetivos morais, pois as avaliações sobre o
que é bom e o que é ruim, o correto e o incorreto, o desejável e o indesejável somente
125
“Não devemos tentar dar forma a nossa vida olhando, em primeiro lugar, para o bem definido de modo
independente. Não são nossos objetivos que revelam primeiramente nossa natureza, mas sim os princípios que
reconheceríamos como reguladores das condições básicas nas quais esses objetivos devem ser formados e o
modo pelo qual eles devem ser buscados. Pois o eu é anterior aos objetivos que são afirmados por ele; até
mesmo um objetivo dominante deve ser escolhido dentre várias possibilidades. Não há como ir além da
racionalidade deliberativa. Devemos, portanto, inverter a relação entre o justo e o bom proposta pelas
doutrinas teleológicas, e considerar o justo como prioritário.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002 p.
622-623)
126
O termo “Eu” é aqui empregado por ser a tradução mais consagrada à palavra “self”.
170
podem existir em contextos concretos. São, em última instância, sociais, e não
dedutíveis a partir dos atributos racionais da natureza humana.
Desse modo, uma comunidade que viesse a dar origem a eus totalmente
libertos, ao modo como se fundamentam as teorias liberais, abriria espaço a um
ambiente de relativismo moral, em função da neutralidade dos valores e da ausência de
vínculos de solidariedade entre os indivíduos (SANDEL, 2000; TAYLOR, 2000). Essa
razão seria a origem dos problemas de anomia e de falta de integração social que se
constatam nas sociedades liberais contemporâneas (MACINTYRE, 2001).
Essa última questão se liga ao terceiro aspecto da crítica comunitarista à
teoria de Rawls. Ela reside na incongruência de se fazer derivar um conceito de
sociedade fortemente alicerçado na solidariedade entre os indivíduos, sendo que estes
são concebidos como seres que somente possuem seus atributos racionais e se
apresentam como mutuamente indiferentes (CRUZ JÚNIOR, 2004). Charles Taylor
(2000), ao comentar as críticas de Michael Sandel a Rawls, constata a seguinte
questão:
Ele (Sandel) alega que o princípio da diferença igualitária de Rawls, que envolve
tratar os talentos de cada um como parte dos recursos mantidos em conjunto em
benefício da sociedade como um todo, pressupõe um alto grau de solidariedade
entre os participantes. Esse sentido de compromisso mútuo só pode ser mantido por
eus libertos que partilhem um forte sentido de comunidade. E, no entanto, as partes
contratantes são definidas em larga medida como mutuamente indiferentes (...) O
que Sandel diz nos traz a questão de saber se o tipo de redistribuição igualitária
pode ser mantido numa sociedade que não esteja ligada em solidariedade mediante
um forte sentido de comunidade; e se, em contrapartida, é possível forjar uma
comunidade forte em torno de uma compreensão comum que faça da justiça a
principal virtude da vida social, ou se algum outro bem deveria ter de figurar
também na definição de vida comunitária. (TAYLOR, 2000 p. 200-201)
Há, pois, em Rawls, um tipo de solidariedade social que deriva estritamente
dos atributos da racionalidade. Ela não leva em conta fatores sociais, culturais e
históricos, revestindo-se exclusivamente de: 1) abster-se em interferir na vida alheia e
171
nos direitos dos demais; 2) agir no sentido de perseguir seus próprios interesses
individuais:
O problema do princípio da solidariedade não é o seu conteúdo, que remete a
atitudes consentâneas com a constituição da sociedade bem-ordenada. O problema
reside no fato de que essas preocupações são demasiadamente apriorísticas e
obstinadamente não empíricas. (...) Estando escoimado de interferências empíricas
e juízos de valor constitutivos de sua personalidade, trata-se de alguém que basta a
si mesmo e que atua com a certeza de que os outros bastarão a si mesmos e não
interferirão com seus desígnios. (...) A sociedade rawlsiana consiste antes num
agregado de pessoas possuidoras dos mesmos traços psicológicos e morais, e não
de uma sociedade que pressupõe uma diversidade de comportamentos que são
rejeitados, compartilhados e modificados não por decisões e julgamentos
individuais, mas pelo próprio movimento da história. (CRUZ JÚNIOR, 2004 p. 160161)
Assim, a importância e a finalidade da crítica comunitarista é mostrar a
inexistência de uma neutralidade ou de uma superioridade nas teorias liberais, mesmo
as mais ponderadas como a de John Rawls. Inclusive a justiça como imparcialidade,
que se apresenta como avanço sem precedentes na teoria política do século XX, não
consegue se desvincular de questões perniciosas ligadas a sua fundamentação liberal,
como, por exemplo, o exagerado recurso a uma sociedade atomista e individualista,
solapando os resquícios da dimensão comunitária que constitui a identidade humana.
A crítica comunitarista também tem a importância de deixar bem claro que
a opção por uma sociedade liberal é uma tradição dentre outras:
Os pontos de partida da teorização liberal não são nunca neutros no que se refere
às concepções do bem humano; eles são sempre pontos de partida liberais. E a
inconclusividade dos debates no liberalismo, quanto aos princípios fundamentais da
justiça liberal, reforça a visão de que a teoria liberal é melhor compreendida, não
como tentativa de encontrar uma racionalidade independente da tradição, mas
como a articulação de um conjunto historicamente desenvolvido de instituições e
formas de atividade, isto é, como a voz de uma tradição. (MACINTYRE, 2001)
172
A opção pela prioridade do justo sobre o bem somente é possível no quadro
de uma tradição específica, aquela própria das sociedades democráticas ocidentais
desenvolvidas, salientando, assim, os limites e o alcance da teoria liberal127.
As críticas comunitaristas dirigidas a Rawls atuam mais como um alerta às
sociedades que se pretendem estruturar sobre bases liberais do que trazem
fundamentos para o abandono da justiça como imparcialidade. Algumas das críticas
comunitaristas provocaram reformulações na própria teoria de Rawls. Outras foram
respondidas de modo satisfatório por ele e, por fim, há questões metaéticas ligadas ao
tipo de sociedade que cada uma das teorias da justiça, liberal ou comunitarista, deseja
estruturar (VAN PARIJS, 1997; TAYLOR, 2000).
Apesar dos esforços e das contribuições das teorias comunitaristas, seu
argumento em favor da priorização do bem sobre o justo é obscuro em relação à sorte
dos direitos individuais nas sociedades contemporâneas, em especial o da liberdade.
Abandonar os direitos ligados à liberdade individual em uma concepção da justiça
significa deixar de lado um dos pilares que sustenta a própria modernidade. Esse, aliás,
é o grande problema das teorias comunitaristas. Como não conseguem propor nenhum
modelo alternativo de sociedade baseada em termos comunitários, e que seja ao
mesmo tempo compatível com o atual desenvolvimento cultural da humanidade, suas
proposições enveredam por um caminho conservador ou retrógrado.
3.6 Sobre a relação entre liberdade e justiça nas teorias contemporâneas
127
John Rawls reconhece a procedência dessa crítica ao sustentar, em sua reformulação à justiça como
imparcialidade (RAWLS, 2003), que sua teoria somente tem aplicação nas sociedades ocidentais desenvolvidas.
173
Neste capítulo fez-se uma revisão das principais concepções sobre a justiça
do séc. XX que se debruçaram sobre a questão da justiça em uma sociedade. Cada
uma delas sustenta-se sobre um diferente critério a partir do qual os bens de uma
sociedade devem ser distribuídos. Percebe-se também que cada um dos critérios de
distribuição é elaborado tendo em vista uma concepção de liberdade humana a ser
realizada pela sociedade, ou seja, cada uma das teorias da justiça prioriza, a seu modo,
uma determinada faceta do conceito de liberdade, consoante exposto no capítulo
anterior.
No caso do utilitarismo, há primazia da dimensão material da liberdade,
pois estabelece como critério para a realização da justiça que as instituições sejam
organizadas no sentido de promover a maximização da utilidade social, isto é,
aumentar ao máximo possível o bem-estar e a felicidade. Ainda que os utilitaristas
busquem inserir nos elementos responsáveis pela averiguação do bem-estar, bens de
ordem imaterial como a liberdade e o respeito recíproco, a teoria utilitarista acabou por
desembocar na fundamentação política do Estado de Bem-Estar Social, já que a
organização do Estado para fins de fornecimento de serviços tais como educação,
saneamento básico, saúde, habitação, transporte, energia, dentre outros, acabou por
polarizar o sentido do que representava o bem-estar invocado pelo critério da
utilidade. Sob inspiração utilitarista, como a maior felicidade do maior número é
alcançada pela promoção de benefícios e serviços que permitem a realização da
felicidade dos indivíduos, as instituições da sociedade deverão privilegiar uma
distribuição dos bens sociais satisfazendo tais critérios.
O utilitarismo defronta-se com algumas dificuldades, de caráter interno à
própria teoria, bem como ligadas às críticas que se fazem a partir de uma perspectiva
externa. A primeira está ligada à questão de se estabelecer um critério preciso para se
174
definir e listar, em ordem de prioridade, as preferências sobre aquilo que promove o
bem-estar. Critérios como a escolha ótima de Pareto, quando submetidos a exame
rigoroso, não são suficientes para sustentar uma análise precisa, ou mesmo satisfatória,
acerca de uma teoria da escolha pessoal que leve em conta a intensidade das
preferências dos indivíduos acerca daquilo que promoverá a sua felicidade e, portanto,
o bem-estar. O utilitarismo tampouco possui estratégias para tratar a questão da
desigualdade entre os indivíduos. Seu único recurso para abordar essa questão seria
um apelo indireto à alegação de que uma sociedade com grandes desigualdades sociais
traria, por esse fato, infelicidade à totalidade dos indivíduos. Por fim, a principal
crítica que se desfere contra a teoria utilitarista relaciona-se ao fato de que o
utilitarismo colocaria o bem-estar coletivo em patamar superior aos direitos
individuais, aceitando a eventual supressão destes para a realização daquele. Com isso,
coloca a dimensão material da liberdade, que se realiza por meio do efetivo acesso aos
bens que são objeto do desejo e da vontade, em detrimento das dimensões formal e
negativa da liberdade, que privilegiam a autonomia das escolhas e o espaço de reserva
do indivíduo contra interferências sua dimensão privada. Admitir essa percepção
parcial da liberdade seria inaceitável sob um enfoque que busca conferir um lugar
destacado à liberdade na teoria da justiça.
Viu-se também que o utilitarismo não é ortodoxo. Possui uma
permeabilidade a modificações e cláusulas condicionantes. Tem sido inclusive parte
da estratégia de sobrevivência da teoria utilitarista recorrer a tais adaptações. Em
virtude da natureza teleológica do raciocínio utilitarista, haverá sempre a preocupação
em se encontrar um resultado final que seja o mais adequado às suas pretensões de
promoção do bem-estar da sociedade. O recurso a preferências racionais externas
175
poderia ser a solução para os dilemas do utilitarismo, mas ao preço de desfigurar
completamente os cânones da própria teoria.
Ao apostar na igualdade, na supressão das necessidades e no fim da
exploração entre os homens como bandeira principal de sua teoria da justiça, o
marxismo introduz o apelo de que a justiça se realiza por meio de uma sociedade
moralmente superior. O reino da liberdade decorre da capacidade do homem de
intervir na realidade para modificá-la, construindo a sociedade sem injustiças. E como
o fruto das questões ligadas ao problema da justiça reside no modo de produção
econômico capitalista, grande parte das estratégias adotadas pela teoria marxista
consistirá em constituir as instituições da sociedade de modo a neutralizar as
conseqüências desse sistema.
A tradição marxista tem enfrentado diversos dilemas no que tange aos
meios de que ela se valeu para promover as metas impostas por sua concepção de
justiça. Questiona-se a viabilidade do modelo socialista de produção e em que medida
ele apenas substitui a exploração capitalista por outra, levada a efeito pelo próprio
Estado, por meio de sua burocracia. Também a via revolucionária – seja ela
capitaneada pelo proletariado, pelo partido socialista, pela juventude estudantil ou
pelos excluídos do sistema econômico – mostrou-se historicamente responsável muito
mais pela violação a direitos dos indivíduos, com a instauração de regimes ditatoriais
em que liberdades individuais e coletivas foram suprimidas, do que pela promoção dos
ideais propostos pela tradição marxista.
Assim é o que o marxismo histórico também carece de alterações em seu
quadro referencial para se tornar uma teoria consistente e ao mesmo tempo viável do
ponto de vista da relação com um sistema de liberdades individuais. Uma das
estratégias está ligada ao abandono da teoria tradicional da exploração capitalista pela
176
da extração da mais-valia – a partir da análise do valor-trabalho – para se verificar a
existência da exploração a partir das dotações finais de recursos dos indivíduos nas
relações sociais, como na teoria analítica de John Roemer. Ao se levar ao extremo o
princípio da igualdade de oportunidades e do fim da exploração, essa proposta tende a
sacrificar as liberdades individuais já que exige a proibição de doações voluntárias
entre as pessoas, banindo por completo toda forma de altruísmo do seio da sociedade.
Desse modo, assim como o utilitarismo, também o marxismo foca a liberdade a partir
da perspectiva unidimensional da liberdade positiva, que se realiza pela efetivação do
projeto político de emancipação coletiva do homem, mas cujo preço é o aniquilamento
da dimensão formal e negativa da liberdade que lhe garantem o exercício soberano da
vontade.
Como reação ao utilitarismo e ao marxismo, o libertarianismo concebe que
cada um dos indivíduos é soberano e autônomo na capacidade de escolher a melhor
forma de realizar o seu bem pessoal e as intervenções do Estado na vida e no
patrimônio dos indivíduos, para fins de promoção de algum tipo de melhoria social,
são, em verdade, imposições de determinadas concepções de bem sobre outras. E
assim, por não contarem com o consentimento das pessoas, não passariam de
injustiças perpetradas em razão da posição de supremacia daqueles que detêm o poder.
Para que uma sociedade seja justa e preserve a liberdade de seus membros contra as
ofensas dos que têm poder, os libertarianistas sustentam que as instituições devem
contar com um forte sistema de direitos que preserve a soberania da vontade nas
relações sociais. Direitos individuais e garantias para a propriedade privada atuam
como a forma de se promover o livre intercâmbio entre os indivíduos, permitindo-se
que as regras de mercado e o sistema de satisfação de necessidades sejam capazes de
177
promover, por meio da oferta e da procura, a distribuição dos bens e serviços na
sociedade.
O libertarianismo associa-se ao modo de produção capitalista, já que a
liberdade ganha destaque nesse sistema econômico. O sistema de mercado e a
meritocracia baseada na utilidade econômica de cada um passam a ser os principais
critérios de distribuição dos bens na estrutura libertarianista, pois somente eles são
capazes de preservar a autonomia da vontade nas relações sociais.
Com tais posições, o libertarianismo possui o mérito de tomar a sério a
questão da liberdade em sua argumentação acerca da justiça para a sociedade,
lançando questionamentos para as intervenções não justificadas da coletividade na
esfera pessoal dos indivíduos. Suas colocações visam preservar o pluralismo de
valores da modernidade em que não há uma fonte central para a qual devem convergir
as ações dos indivíduos. O libertarianismo resgata com toda ênfase a dimensão
negativa da liberdade, afirmando a impossibilidade de que qualquer outra venha a
sobrepujá-la. Nesse ponto, seus argumentos contra o utilitarismo e o marxismo são tão
incisivos que essas duas doutrinas serão obrigadas a passar por profundas mudanças,
caso se pretendam ainda viáveis na modernidade.
A proposta libertariana de se deixarem as distribuições dos bens e recursos
sociais tão somente a cargo do sistema de mercado capitalista tem o condão de
comprometer a liberdade defendida por sua própria teoria. Todavia, a estrutura de
distribuição de riquezas no sistema capitalista não é capaz de assegurar condições
materiais mínimas aos indivíduos, de modo que estes fiquem em posição de exercer
sua vontade livre de constrangimentos. Tais constrangimentos são ligados a questões
de ordem econômica e se manifestam na submissão a condições e apelos impostos
pelos detentores dos meios de produção econômica. Tal grupo social torna-se capaz de
178
fazer valer sua vontade sobre os demais, em função da posição privilegiada na relação
de troca que se estabelece no mercado. Assim, no libertarianismo há um apego
ferrenho às dimensões formal e negativa da liberdade, com a completa exclusão das
demais, o que torna essa teoria da justiça incompleta no que tange à caracterização e à
realização da liberdade.
Constata-se, pela análise da teoria libertariana, que a liberdade formal é
essencial para a justiça de uma sociedade, mas não suficiente. John Rawls
desenvolverá uma teoria da justiça que leve a sério a necessidade de se preservar a
liberdade individual, mas que, ao mesmo tempo, estabeleça instituições promotoras de
igual acesso às oportunidades e se destinem a melhorar a condição dos mais
desfavorecidos da sociedade.
A solidez de seu argumento em favor de uma sociedade liberal, que trata os
indivíduos e seus direitos como entidades invioláveis, despertou o debate na teoria
política acerca da pertinência desse modelo de sociedade, em especial pela crítica
vinda dos autores comunitaristas. Não obstante a validade dos argumentos, as
propostas de uma teoria da justiça de matriz comunitarista são incompatíveis com as
características da modernidade, uma vez que não dispensam um tratamento
privilegiado ao indivíduo e aos seus direitos, em especial o de liberdade, pois colocam
o bem da comunidade em posição superior a estes.
O liberalismo-igualitarista de John Rawls apresenta-se como a teoria da
justiça que melhor consegue articular as quatro dimensões da liberdade moderna
tratadas no primeiro capítulo. Isso porque consegue fornecer parâmetros para a
constituição das instituições da sociedade que preservam a individualidade de cada
um, permitindo a busca pessoal da felicidade, mas também os coloca em uma relação
179
de cooperação recíproca, voltada à melhoria da condição dos mais desfavorecidos e da
redução das desigualdades entre eles.
O liberalismo-igualitarista não se resume nem se restringe à justiça como
imparcialidade de John Rawls. Em função da abertura permitida pelos dois distintos
pólos da teoria (o liberalismo e o igualitarismo), é possível avançar concepções que
coloquem ênfase em qualquer uma das vertentes abertas. Isso faz parte inclusive da
própria metodologia do equilíbrio ponderado que exige a submissão dos resultados
alcançados pela elaboração teórica a nossos juízos morais.
A partir dessa abertura proporcionada pela teoria de Rawls, Phillippe Van
Parijs entende ser possível a concepção de uma teoria da justiça que efetive a liberdade
tomando como referência todas as dimensões assumidas por esse conceito. Assim,
Van Parijs aceitará as premissas do liberalismo-igualitarista de John Rawls, mas
avançará em seu conteúdo em direção ao que denomina de “real-libertarianismo” ou
“real-liberdade-para-todos”, a partir de um diálogo fecundo entre as diversas tradições
de teorias de justiça expostas. Tal diálogo culminará na proposição de uma renda
básica universal, instituição pela qual convergirão os esforços no sentido de realizar as
diversas dimensões da liberdade apresentadas.
180
4 A PROPOSTA DE UMA REAL-LIBERDADE-PARA-TODOS
4.1 Questionamentos iniciais
No capítulo anterior, viu-se como as teorias contemporâneas da justiça
privilegiaram as dimensões formal e negativa da liberdade para que a concepção
moderna desse conceito não fosse comprometida. Em virtude do fato do pluralismo de
visões de mundo sobre as concepções de bem, um eventual descaso em relação a essas
duas dimensões da liberdade colocaria em risco a viabilidade de uma teoria prestar-se
a um modelo de justiça adequado ao mundo atual. As objeções feitas ao utilitarismo e
ao marxismo ilustram a assertiva: apontam para o fato de que essas duas teorias, em
seus modelos puros, estariam dispostas a sacrificar determinados conjuntos de
liberdades individuais, em nome da realização de seus respectivos objetivos.
Viu-se que uma compreensão adequada do conceito moderno de liberdade,
dentro de modelos teóricos de justiça, passa pela presença de instituições sociais que
consagrem sistemas de direitos, os quais preservem as características formal e negativa
da liberdade. Ao grande conjunto dessas teorias, pode-se genericamente chamar de
teorias liberais da justiça.
Em linhas gerais, as teorias liberais da justiça são aquelas que sustentam
que nenhuma concepção de ‘vida boa’128 pode ser qualificada como superior às
demais. Não havendo, assim, um bem comum que determine e oriente os indivíduos
no que tange ao modo de realização de sua felicidade. De acordo com as teorias
128
Para a caracterização do que seja a “vida boa” remete-se o leitor ao tópico 3.5.3, em especial à nota 122.
181
liberais, cada indivíduo deve ser livre para perseguir a sua própria concepção de vida
boa. Assim, uma sociedade será tanto mais justa quanto mais as suas instituições
sociais forem capazes de preservar essa capacidade a seus membros. Não favorecendo,
portanto, nenhuma concepção específica de bem que se caracterize pela imposição de
certas formas de vida aos seus membros.
Dentre as teorias contemporâneas da justiça, o libertarianismo é
aparentemente o mais propício para realizar, de modo pleno, o ideal de uma sociedade
liberal. Suas instituições sociais permitem-lhe ter por foco fundamental a defesa dos
princípios da propriedade-de-si e da inviolabilidade das manifestações de vontade. No
entanto, viu-se que sua íntima ligação com o capitalismo de mercado e a ausência de
uma estrutura redistributiva de recursos sociais fazem com que vários aspectos da
própria dimensão formal e negativa da liberdade fiquem em posição ameaçada, pois a
carência de meios e recursos materiais põe em risco o exercício da vontade individual
livre de constrangimentos.
Em resposta ao radicalismo das posições libertarianas, mas sem perder de
vista os pilares fundamentais do liberalismo, a proposta liberal-igualitarista de John
Rawls apresentou-se como o compromisso mais fecundo entre liberdade e
solidariedade que a teoria política do século XX formulou (VAN PARIJS, 1996). Os
princípios definidos pela justiça como imparcialidade estabelecem um sistema de
direitos que salvaguarda as dimensões formal e negativa da liberdade, realizando
assim a ‘exigência’ da liberdade moderna de que seja garantida, a cada indivíduo, a
definição dos rumos de sua própria vida. Contudo, introduz-se também, pelo princípio
da diferença, um sistema de distribuição de bens sociais que prioriza a melhoria da
sorte dos mais desfavorecidos da sociedade, exigindo-se das instituições sociais que
também se voltem para as dimensões positiva e material da liberdade.
182
Enquanto referência para o que se denominou de liberalismo-igualitarista, o
trabalho de John Rawls não se apresenta como uma elaboração acabada e irretocável.
Pelo contrário, sua condição é a de marco inicial, um ponto de partida para as
reflexões ligadas à possibilidade de se articular o respeito à pluralidade das
concepções de mundo e uma preocupação solidária em relação à sorte de todos os
membros que fazem parte da sociedade (VAN PARIJS, 1996). O próprio Rawls e sua
teoria tornam-se objeto de uma investigação mais acurada. Faz-se necessário pesquisar
quais as conseqüências teóricas e práticas de suas proposições que contrariariam juízos
morais ponderados129 acerca delas – o que, aliás, estaria condizente com a própria
metodologia do equilíbrio reflexivo130 proposta por Rawls.
É justamente sobre esse questionamento que se debruça Phillipe Van Parijs.
O foco que orientará toda a sua obra pode ser encontrado na introdução de seu
principal livro chamado Real-freedom-for-all: What (if anything can) justify
capitalism? (1995) (“Real-liberdade-para-todos: O que (se é que algo pode) justificar
o capitalismo?”):
One: Our capitalist societies are replete with unacceptable inequalities. Two:
Freedom is of paramount importance. This book is written by someone who strongly
holds these two convictions. And it is primarily addressed to those who share them
with him. One of its most central tasks, therefore, is to provide a credible response
to the libertarian challenge, that is to the claim that these two convictions are
mutually exclusive, or that taking freedom seriously requires one to endorse most of
the inequalities on today’s world – and more.131 (VAN PARIJS, 1995, p.1)
Van Parijs estabelecerá um diálogo entre as diversas tradições de análise da
teoria da justiça estudadas no capítulo anterior, por meio de uma “atitude de simpatia
129
Para a conceituação de juízos morais ponderados, remete-se o leitor ao tópico 3.5.1, nota 122.
Para caracterização do equilíbrio reflexivo, remete-se o leitor ao tópico 3.5.2
131
“Um: Nossas sociedades capitalistas são repletas de desigualdades inaceitáveis. Dois: A liberdade é de
fundamental importância. Esse livro é escrito por alguém que firmemente possui essas duas convicções. E é em
primeiro lugar endereçado àqueles que as dividem com o autor. Uma das tarefas centrais é, portanto, prover
uma resposta confiável ao desafio libertariano, quer dizer à pretensão de que essas duas convicções são
mutuamente excludentes, ou que levar a sério a liberdade exige que se reforce a maioria das desigualdades no
mundo atual – e algo mais.” (tradução nossa)
130
183
crítica, que permita o diálogo sem banir as convicções” (VAN PARIJS, 1997, p. 9).
Isso permitirá que se extraia de cada uma delas o seu potencial para melhor realizar as
duas convicções acima estabelecidas. Assim, nem mesmo a obra de Rawls estaria
imune a uma revisão crítica. Van Parijs afasta-se de John Rawls nos pontos em que a
justiça como imparcialidade não é suficiente à implementação de uma liberdade
condizente com as convicções lançadas acima. Dois são os pontos cruciais desse
questionamento: 1) as aberturas interpretativas proporcionadas pelo princípio da
diferença (VAN PARIJS, 2001); 2) a relação entre trabalho e distribuição da liberdade
entre todos os membros da sociedade (VAN PARIJS, 1995).
As correções propostas por Van Parijs conduzirão à concepção de justiça
por ele denominada de real-liberdade-para-todos ou real-libertarianismo (VAN
PARIJS, 1995). Diferentemente do libertarianismo, essa concepção não se restringe à
mera garantia da propriedade-de-si por um sistema de direitos que defina as regras e
limites para o exercício da individualidade. Ela exige das instituições sociais, que
darão origem ao sistema de direitos e deveres de uma sociedade, a oferta da maior
gama possível de oportunidades para que cada um dos indivíduos tenha condições de
realizar sua própria concepção de vida boa (VAN PARIJS, 1995). Ou seja, para que
cada um tenha a capacidade de realizar sua felicidade do modo como possa querer.
A principal implicação institucional de uma teoria como esta é a atribuição
de uma renda básica universal (VAN PARIJS, 1995; VANDERBORGHT; VAN
PARIJS, 2006). Tal renda seria paga a todos os membros da sociedade, sem qualquer
discriminação ou condicionamento, como forma de se elevar, ao nível máximo, as
possibilidades de desfrute da liberdade, em especial para aqueles que se encontram na
condição mais desfavorecida (VAN PARIJS, 1995, 2001b; VANDERBORGHT; VAN
184
PARIJS, 2006). No entanto, por ser uma proposta inovadora, é preciso que se
estabeleçam os padrões pelos quais ela seria implementada.
Por meio da exposição do pensamento de Philippe Van Parijs será possível
fornecer respostas aos questionamentos levantados no início do trabalho sobre a
relação entre a liberdade e a justiça.
4.2 O que é a real-liberdade?
Quando a crítica libertariana questionava o marxismo e o utilitarismo, seus
principais argumentos dirigiam-se contra a proposta de liberdade dessas duas teorias.
Diziam os libertarianos que aquilo que justificaria a intervenção na economia e na vida
das pessoas para fins de distribuição de recursos sociais não passaria de uma quimera
ou, na melhor das hipóteses, de um equívoco. Segundo eles, a questão da liberdade
estaria ligada à ausência de coerções no exercício legítimo da vontade individual, ou
seja, não poderia haver nenhuma limitação arbitrária no processo de escolha e de
realização daquilo que o indivíduo desejasse fazer, compreendendo-se por arbitrário
tudo aquilo que não estivesse em conformidade com o sistema de direitos garantidor
do exercício da liberdade individual pelos demais membros da sociedade.
A outra liberdade, aquela que se relaciona às dimensões positiva e material
da liberdade, não passaria de uma questão ligada à riqueza, ao poder, às habilidades,
ou ainda ao conjunto de oportunidades de que alguém dispõe. Assim, o ponto de
partida para a caracterização da real-liberdade consiste em apresentar uma solução ao
desafio libertariano: mostrar que o conceito libertariano de liberdade é insuficiente
185
para dar conta de toda a significação contida na idéia de liberdade e, por conseguinte,
que não há incompatibilidade entre a preservação da liberdade e a adoção de medidas
que intervenham na economia e na sociedade com o objetivo de distribuir os meios
materiais necessários à realização da liberdade (VAN PARIJS, 1995).
Segundo Van Parijs (1995), é possível sintetizar a caracterização da
liberdade ‘libertariana’ em dois princípios: 1) segurança, entendido como a proteção
da individualidade contra ações arbitrárias e ilegítimas por parte de terceiros; e 2)
propriedade-de-si, segundo o qual a vontade individual deve ser a instância soberana
de definição dos rumos e ações que um indivíduo deseja realizar em sua vida.
O argumento lançado por Van Parijs (1995) para questionar se o conceito
de liberdade proposto pelos libertarianos ainda se sustentaria após um cuidadoso juízo
reflexivo, parte da seguinte análise: quando há um obstáculo que se coloca entre o que
alguém deseja fazer e a efetiva capacidade de realizar tal ato, constituindo-se em uma
incapacidade para tanto132, diz-se necessariamente que o sujeito não é livre para
realizar o ato. Se eu me encontro desempregado e passo por uma situação de escassez
de recursos financeiros para alimentar a mim e a minha família, ao me deparar com
uma oferta de emprego cuja remuneração é irrisória e em condições de trabalho
pesadas, eu não sou livre para decidir. Optar entre a penúria de minha família ou o
emprego degradante que me é oferecido não é de fato uma livre de escolha. Nesse
caso, a ausência de recursos financeiros estabelece-se como obstáculo a minha real
opção de ação.
Desse modo, não é possível restringir, como fazem os libertarianos, o
conceito de liberdade à simples ausência de uma coerção que impeça a realização de
132
Interessante notar que o argumento empregado por Van Parijs (1995) para mostrar a insuficiência da
caracterização da liberdade feita pelos libertarianos – e que privilegia as dimensões negativa e formal da
liberdade – é justamente o recurso ao conceito hobbesiano de liberdade, de caráter mecanicista e ligado a sua
dimensão material, que exige a inexistência de impedimentos à concretização do impulso volitivo.
186
um ato (VAN PARIJS, 1995). Pois, no exemplo dado, mesmo sem que houvesse
qualquer coerção restringindo a ação do indivíduo, ainda assim não haveria liberdade
para a recusa da oferta.
É possível ainda, e na maioria das vezes é o caso, que o que se constitui
como obstáculo impeditivo para a realização daquilo que alguém deseja fazer – e que
lhe retira a liberdade – seja uma condição institucional ou uma circunstância
contingente, tal como no exemplo dado. Logo, é a própria estrutura institucional
libertariana, decorrente da aplicação de seus princípios de justiça, que limita a
liberdade, ao invés de realizá-la como propõe (VAN PARIJS, 1995).
Assim, o conceito libertariano de liberdade será sempre incompleto. Ele
não reconhecerá como pertinentes diversas situações reais em que se colocam
obstáculos efetivamente limitadores da liberdade. Assim, para que a definição de
liberdade seja completa e compreenda também as noções intuitivas a ela relacionadas,
é preciso que lhe seja acrescido um terceiro componente.
Van Parijs (1995) vai chamá-lo de oportunidade. As oportunidades
definem as possibilidades que o indivíduo tem a sua disposição para realizar as ações
que deseja. As oportunidades que uma pessoa tem diante de si para optar entre
escolhas desejáveis é uma questão de nível. Quanto maiores forem as possibilidades
abertas e menores as restrições ao exercício da liberdade, tanto maior será o conjunto
de oportunidades dessa pessoa (VAN PARIJS, 1995).
Assim, a oportunidade pode ser definida como o conjunto de possibilidades
abertas ao indivíduo para que possa realizar aquilo que deseja (VAN PARIJS, 1995).
Segundo Van Parijs (1995), esse componente integrará o núcleo da caracterização da
real-liberdade. Esta não se caracteriza tão-somente como uma questão de direitos, mas
também e principalmente, liga-se a uma questão de meios (VAN PARIJS, 1997).
187
Assim, respeitadas as exigências relativas à preservação da liberdade formal, tal como
definida pelos dois princípios libertarianos da segurança e da propriedade-de-si, a realliberdade também levará em conta a dimensão relativa ao conjunto de “means each
person is given for pursuing the realization of her aims, whether by her genetic
endowment or in the course of her life, including in the form of rents associated to the
job she holds.” 133 (VAN PARIJS, 1995b, p.4)
Conseqüentemente, a real-liberdade modificará as exigências para o que se
define por uma sociedade livre. Segundo ela, além dos dois princípios requeridos pela
justiça libertariana, deve-se considerar a capacidade das instituições sociais para
promover a distribuição de ‘possibilidades’ entre os seus membros:
What is then, a free society? It is a society whose members are all really free – or
rather, as really free as possible. More precisely, it is a society that satisfies the
following three conditions:
1. There is some well enforced structure of rights (security).
2. This structure is such that each person owns herself (self ownership).
3. This structure is such that each person has the greatest possible
opportunity to do whatever she might want to do (leximin
opportunity).”134 (VAN PARIJS, 1995, p.25)
A explicação dada por Van Parijs (1995) evidencia o modo como a terceira
condição guarda semelhança com a proposta de distribuição dos bens sociais primários
de Rawls segundo o princípio da diferença. Os arranjos institucionais a serem
adotados pela sociedade devem ser aqueles que deixem a pessoa que ocupa a posição
menos vantajosa na sociedade com a maior oportunidade possível. Em seguida, sem
133
“meios que são colocados à disposição de cada pessoa para perseguir a realização de suas metas, sejam os
dons herdados geneticamente ou aqueles adquiridos ao longo da vida, incluídos sob a forma das rendas ligadas
à ocupação de um emprego.” (tradução nossa)
“O que é, então, uma sociedade livre? É uma sociedade cujos membros são todos realmente livres – ou, melhor,
tanto mais realmente livres quanto possível. Mais precisamente, é uma sociedade que satisfaz as três seguintes
condições:
1. Existe alguma estrutura de direitos bem reforçada (segurança).
2. Essa estrutura é tal que cada pessoa é proprietária de si própria (propriedade-de-si).
3. Essa estrutura é tal que cada pessoa tem as maiores oportunidades possíveis para fazer o que quer que
ela possa querer fazer (leximin das oportunidades)” (tradução nossa)
188
que haja qualquer prejuízo para os que se encontram nessa pior situação, os arranjos
institucionais devem elevar ao máximo o conjunto de oportunidades dos que se
encontram na segunda posição logo acima. E, assim, sucessivamente elevando-se, de
baixo para cima, o conjunto de oportunidades das respectivas posições ocupadas pelos
grupos sociais, sem que haja prejuízo para os que se encontram nas posições menos
elevadas (VAN PARIJS, 1995).
Esse modo de se distribuírem as oportunidades entre os membros da
sociedade, requerido pela terceira condição, denomina-se leximin ou maximin léxico.
Maximin é uma expressão oriunda da Teoria Econômica e sugere a elevação ao
máximo da posição menos favorecida ou, em resumo, maximização do mínimo
(RAWLS, 2002). Em sua forma léxica, impõe-se que esse processo obedeça uma
ordem serial da posição menos favorecida em direção à mais favorecida. (RAWLS,
2002)
Para se preencher o esboço desenhado para esse ideal de uma sociedade
livre, é preciso definir como as três condições estabelecidas se relacionariam, já que as
pretensões exigidas por cada uma delas tenderiam a entrar em conflito:
a free society should give a priority to security over self-ownership, and to selfownership over leximin opportunity. But this priority is of a soft kind. It does not
amount to a rigid lexicographic priority. More specifically, mild disturbances of law
and order can be tolerated if getting rid of them would require major restrictions of
self-ownership or major departures from leximin opportunity.135 (VAN PARIJS,
1995, p.25)
Assim, é possível a completa caracterização de uma sociedade livre e, por
conseguinte, a exposição do real-libertarianismo defendido por Phillippe Van Parijs:
135
“(...) uma sociedade livre deveria dar prioridade à segurança sobre a propriedade-de-si e à propriedade de
si sobre o leximin das oportunidades.. Mas essa prioridade é de tipo flexível. Ela não remonta a uma rígida
prioridade léxica. Mais especificamente, leves perturbações da lei e da ordem podem ser toleradas se para nos
livrarmos delas fossem necessárias grandiosas restrições da propriedade de si ou grandes distanciamentos do
leximin das oportunidade.” (tradução nossa)
189
A free society is one in which people’s opportunities are being leximined subject to
the protection of their formal freedom, that is, the respect of a structure of rights
that incorporates self-ownership. This in turn, I shall further abbreviate by saying
that a free society, as characterized by the three conditions and their articulation, is
one that leximins real-freedom or, more roughly still, one that realizes realfreedom-for-all (a phrase I shall often use as a convenient shorthand) And I shall
call real-libertarian the view that conceives of a just society as a free society in this
sense.136 (tradução nossa) (VAN PARIJS, 1995, p.27)
Por tais características, o real-libertarianismo filia-se às concepções de
justiça denominadas de liberal-igualitaristas, na esteira do marco definido inicialmente
por John Rawls. Nesse aspecto, o real-libertarisnimo preocupa-se com o postulado
central das teorias liberais de neutralidade ou de igual respeito às diversas concepções
de mundo professadas por cada um dos cidadãos no que concerne ao modo como
realizaram suas visões particulares de mundo sobre o que significa uma vida boa. No
entanto, ela não descura daquilo que pode ser chamado de uma igual preocupação com
o interesses de todos os membros da sociedade, em especial daqueles que se
encontram em posição mais desfavorecida (VAN PARIJS, 1997). Isto faz dela uma
teoria, solidarista, em oposição às chamadas teorias proprietaristas como é o caso do
libertarianismo137.
136
“Uma sociedade livre é aquela na qual as oportunidades dos indivíduos são ‘leximinizadas’ respeitando-se a
proteção de sua liberdade formal, ou seja, a estrutura de direitos que garante a propriedade-de-si. Isto, por sua
vez, eu abreviarei dizendo que uma sociedade livre, tal como caracterizado pelas três condições e o modo de
articulação entre si, é aquela que leximiniza real-liberdade ou, de modo ainda mais simples, aquela que realiza
real-liberdade-para-todos (uma expressão que com freqüência utilizarei como uma conveniente abreviação). E
eu chamarei de real-libertariana a posição que concebe que uma sociedade justa é uma sociedade livre nesse
sentido.” (tradução nossa)
137
“Uma teoria liberal proprietarista define uma sociedade justa como uma sociedade que não permite a
ninguém extorquir de um indivíduo o que lhe é de direito em um sentido predefinido. Para uma teoria liberal
solidarista, uma sociedade justa é uma sociedade organizada de tal maneira que não trata seus membros
somente com igual respeito, mas também com uma igual solicitude. (...) esta despreza qualquer entitlement
prévio, qualquer pretensão pré-social, e se pergunta o que implica uma solicitude igual em relação a todos os
membros da sociedade. A justiça aqui consistirá em distribuir de uma certa maneira – é o critério da
distribuição – uma variável cuja distribuição interindividual é diretamente importante (não somente a título de
indicador ou de fator causal) – o distribuendum. As numerosas variantes do liberalismo solidarista diferem
umas das outras pelas escolhas, essencialmente independente uma da outra, do distribuendum e do critério”
(VAN PARIJS, 1997, p. 210-212) Assim, caracterizam-se como as teorias solidaristas o utilitarismo, o marxismo
e o liberal-igualitarismo, enquanto são proprietaristas as teorias da justiça de matriz libertariana.
190
Contudo, a semelhança e os tributos prestados à justiça como
imparcialidade de John Rawls não fazem do real-libertarianismo uma simples
repetição ou mesmo um desdobramento daquela. Muitos dos avanços do reallibertarianismo ocorrem por discordâncias à teoria de John Rawls. Em especial, ele dá
atenção àqueles pontos em que as conseqüências, sejam elas teóricas ou práticas, de
uma observância irrestrita das propostas de Rawls, são incompatíveis com juízos
morais ponderados. Logo, é preciso voltar o olhar à justiça como imparcialidade e
verificar quais seriam esses pontos que afastam John Rawls do real-libertarianismo na
acepção plena do conceito.
4.3 Com Rawls, contra Rawls
Como toda teoria que se expressa sobre as questões mais genéricas acerca
de um modelo de justiça para uma sociedade, também a justiça como imparcialidade
possui uma abertura interpretativa sobre os princípios que ela estatui como
fundamentais para reger as instituições da sociedade. No caso especial da teoria de
Rawls, há um agravante ainda maior no que tange a essa abertura, pois ela busca
conciliar dois pólos tradicionalmente opostos na tradição do pensamento político – o
liberalismo e o igualitarismo. Isso torna constante o risco de se derivar ora para o lado
liberal, ora para o lado igualitário, a interpretação que levará aos desdobramentos
teóricos e práticos dos princípios de justiça (VAN PARIJS, 1996).
A vertente liberal, que clama pela primazia dos direitos de liberdade e
igualdade formal de acesso a cargos e oportunidades em detrimento da opção por uma
191
maior distribuição de vantagens sócio-econômicas, aparentemente se opõe à vertente
igualitária que, por sua vez, toma partido em favor da melhoria de condições dos mais
desafortunados, pela via de uma constrição amplamente consentida de parcela dessas
liberdades (VAN PARIJS, 1997)
Philippe Van Parijs preocupa-se em extrair do pensamento de Rawls
proposições o quanto mais voltadas às possibilidades abertas pela vertente igualitária.
Somente assim, as bases lançadas por Rawls podem converter-se na possibilidade
utópica (e também real)138 de conservação de um pensamento e de uma prática política
destinados à preocupação com a solidariedade e com o fim das desigualdades injustas
nas atuais sociedades capitalistas.
No presente trabalho, serão apresentadas duas das objeções à teoria da
justiça como imparcialidade abordadas por Van Parijs (1995, 2001) que interessam à
caracterização da real-liberdade-para-todos. A primeira delas (2001) relaciona-se às
interpretações cabíveis ao princípio da diferença de John Rawls. A análise dessa
primeira objeção permitirá a formulação da segunda objeção (1995), ligada à
deficiência contida nas idéias de Rawls ao rejeitar os argumentos em favor de uma
renda básica universal a ser paga a todos os cidadãos de uma sociedade, não vinculada
ao trabalho ou a qualquer outro critério. Tal presunção em favor de uma renda básica
138
Refere-se aqui à caracterização de utopia realizada por Santos (2000): “A utopia é, assim, o realismo
desesperado de uma espera que se permite lutar pelo conteúdo da espera, não em geral, mas no exacto lugar e
tempo em que se encontra. A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia por um futuro
geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir
localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos
os tempos e lugares, exceto naqueles em que ocorreram efetivamente.” Esse caráter utópico e ao mesmo tempo
real do real-libertarianismo e da Renda Básica Universal é salientado por Phillippe Van Parijs ao descrever como
justamente em um país de terceiro mundo sua proposta atingiu o estatuto de Lei: “Brasília, Palácio do Planalto,
8 de janeiro de 2004. Nas paredes da sala, rostos radiantes, de todas as idades e todas as raças, se alternam
com o slogan ‘Renda básica para todos’. As câmeras se agitam, os ministros se aprumam, Luiz Inácio Lula da
Silva, presidente da República Federativa do Brasil, faz a sua entrada com a esposa e o chefe da Casa Civil.
Vinte e dois minutos e dois discursos mais tarde, levanta-se entre aplausos para assinar uma lei que institui um
abono universal para todos os brasileiros. É verdade que o texto afirma que começará pelos mais necessitados e
que a generalização gradual para toda a população dependerá das condições orçamentárias para a sua
realização. Mas ela ilustra, ali mesmo onde menos se espera, o modo como uma proposta até então considerada
fantasista pode inspirar e motivar os atores políticos e contribuir para transformar a realidade.”
(VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006, p. 29)
192
universal seria, segundo Van Parijs (1995), condição indispensável para a efetivação
de uma real-liberdade-para-todos.
4.3.1 – Os vários princípios da diferença
Van Parijs ilustra as ambivalências no que concerne à interpretação do
princípio da diferença, a ensejar distintas posturas e práticas políticas dele decorrentes,
a partir de uma metáfora extraída do romance “A Ilha dos Pingüins” de Anatole
France139. Conta a estória que Maël, o líder político e religioso da ilha, convocou todos
os pingüins da Ilha e solicitou de todos contribuições aos fundos públicos, em
proporções equivalentes à riqueza de cada um. Todavia ele foi retorquido por Morio,
um rico fazendeiro, ao argumento de que a exigência do interesse público:
não é pedir muito àqueles que possuem muito; pois, nesse caso, os ricos seriam
menos ricos e os pobres mais pobres. Os pobres vivem dos bens dos ricos; é por isso
que esse bem é sagrado. Não toquem nele, seria maldade gratuita. Tomando dos
ricos, vocês não ganhariam muito, pois eles não são muito numerosos; e vocês se
privariam, ao contrário, de todos os recursos, mergulhando o país na miséria
(FRANCE, 1907, p.83-84 apud: VAN PARIJS, 1997, p. 80 nota 26)
Essa metáfora revela como o princípio da diferença de Rawls pode tornarse um instrumento de perpetuação e legitimação de estruturas injustas de
desigualdades existentes nos tempos atuais. Seu apelo intuitivo reside na atual
conjuntura econômica de mobilidade transnacional do capital e da mão-de-obra, a criar
uma situação de concorrência global. Isso sugeriria cada vez mais “facilidades” para
que os ricos venham a se tornar mais ricos140, em troca de parcas migalhas que
benefícios indiretos e seus reflexos venham a trazer a todo o restante da população.
139
Philippe Van Parijs emprega essa metáfora em mais de uma oportunidade (1995, 1996, 1997, 2001)
Tais facilidades podem ser definidas por uma direta atuação do Estado no sentido de reduzir a carga fiscal a
recair sobre o capital (incentivos fiscais e redução da carga tributária), como pode decorrer de posturas que
140
193
Assim, de modo a compreender os diversos e reais alcances do princípio da
diferença, Philippe Van Parijs (2001) inicia a análise de sua aludida ambigüidade a
partir da compreensão literal da formulação do princípio (“social and economic
inequalities are to be arranged so that they are both reasonably expected to be to
everyone’s advantage
141
(RAWLS, 1971, p. 60) (grifos nossos)). O próprio Rawls
observou essa ambigüidade e explicitou-a nas páginas seguintes de Uma teoria da
justiça (2002). O que significaria, portanto, a expressão “vantajosas para todos”, no
contexto de uma justa ordenação e distribuição de vantagens econômicas e sociais,
segundo o critério por ele proposto da igualdade democrática? Rawls (2002) formula
duas distintas acepções para essa expressão:
The first case is that in which the expectations of the least advantaged are indeed
maximized (subject, of course, to the mentioned constraints). No changes in the
expectations of those better off can improve the situation of those worst off. The best
arrangement obtains, what I shall call a perfectly just scheme. The second case is
that in which the expectations of all those better of at least contribute to the welfare
of the more unfortunate. That is, if their expectations were decreased, the prospects
of the least advantaged would likewise fall. Yet the maximum is not yet achieved.
Even higher expectations for the more advantaged would raise the expectations of
those in the lowest positions. Such a scheme is, I shall say, just throughout, but not
the best just arrangement .142 (RAWLS, 1971, p.78-79)
De início Van Parijs (2001) denuncia que, ao possibilitar a consideração de
esquemas totalmente justos (just throughout) para a cooperação social, mas não
perfeitamente justos (perfectly just), a justiça como imparcialidade de Rawls não
tornem atrativas ou propícias a livre atuação do capital, como a flexibilização de direitos trabalhistas ou altas
taxas de juros remuneratórias. Cf. Van Parijs (1997).
141
“as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo
consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável” (tradução da edição brasileira)
(RAWLS, 2002 p. 64)
142
“Um primeiro caso é aquele em que as expectativas dos menos favorecidos estão de fato maximizadas
(obedecendo, é claro, as restrições mencionadas). Nenhuma mudança nas expectativas daqueles que estão em
melhor posição pode, nesse caso melhorar a situação dos menos favorecidos. Dá-se o que chamarei de esquema
perfeitamente justo (perfectly just). O segundo caso é aquele em que as expectativas dos mais favorecidos de
qualquer forma contribuem para o bem-estar dos menos favorecido. Ou seja, se suas expectativas fossem
diminuídas, as perspectivas dos menos favorecidos cairiam da mesma forma. No entanto, ainda não se atingiu o
máximo. Expectativas ainda mais elevadas para os mais favorecidos elevariam as expectativas daqueles que
estão em posição mais baixa. Afirmarei que tal esquema é totalmente justo (just throughout), mas não a
organização mais justa.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p.83)
194
empenha todas as suas forças em promover a vocação igualitarista a que se poderia
destinar. Assim, dentro do esquema totalmente justo (just throughout) sempre haverá a
possibilidade de se fazer mais pelos menos afortunados, a menos que se alcance uma
relação entre expectativas dos mais e menos afortunados dominada pelo critério
maximin143. Nesta hipótese, as condições dos desfavorecidos não poderiam ser
elevadas a um nível superior.
Mas essa distinção faz-se sob a suposição de que há uma situação de
entrelaçamento (close-knitness), ou seja, que alterações em qualquer posição de uma
das situações representativas têm o condão de afetar as demais no mesmo sentido,
como define o próprio Rawls (2002):
Assume further that expectations are close-knit: that is, it is impossible to raise or
lower the expectation of any representative man without raising or lowering the
expectation of every other representative man, especially that of the least
advantaged. There is no loose-jointedness, so to speak, in the way expectations hang
together. Now with these assumptions there is a sense in which everyone benefits
when the difference principle is satisfied. For the representative man who is better
off in any two-way comparison gains by the advantages offered him, and the man
who is worse off gains from the contribution which these inequalities make 144 pe
No entanto, Van Parijs (2001) observa que o citado critério do
entrelaçamento é uma suposição por demais simplificada para dar conta dos impactos
efetivos que alterações na distribuição de vantagens sócio-econômicas terão nas
respectivas posições dos indivíduos representativos. Aqui, ele chama atenção para o
fato de que podem ocorrer mudanças (para melhor ou para pior) nas expectativas de
143
Não obstante rejeitada pelo próprio Rawls (2002) a identificação de seu princípio da diferença com o critério
maximin, a bibliografia secundária sobre sua obra consagrou amplamente este termo como referência a sua
proposição de estabelecer a maximização da posição menos elevada como critério justo de distribuição de
vantagens sócio-econômicas.
144
“Suponhamos ainda que as expectativas estão intimamente entrelaçadas: ou seja, é impossível elevar ou
abaixar a expectativa de qualquer homem representativo sem elevar ou abaixar a expectativa de qualquer outro
homem representativo, especialmente a do menos favorecido. Não há pontas soltas, por assim dizer, no modo
como as expectativas se entrelaçam. Ora, com essas suposições há um sentido em que todos se beneficiam
quando o princípio da diferença é satisfeito. Pois o homem representativo que está em melhores condições em
qualquer comparação de mão-dupla ganha pelas vantagens que lhe são oferecidas, e o homem em piores
condições ganha por meio das contribuições originadas pelas desigualdades” (tradução da edição brasileira)
(RAWLS, 2002, p.85)
195
um grupo sem que necessariamente o outro tenha semelhante destino. Portanto,
eventuais mudanças em um grupo podem ser inócuas em relação ao destino do outro
grupo.
Sob essa nova situação, Van Parijs identifica (2001) a possibilidade de
subsistirem esquemas perfeitamente justos (perfectly just), que se adequariam ao
critério de justiça e ao princípio da diferença proposto por Rawls, mas que não
promovem uma efetiva melhoria das condições dos mais desfavorecidos.
Com o abandono da condição de entrelaçamento, alterações em uma das
posições não afetarão necessariamente as demais no mesmo sentido (VAN PARIJS,
2001). Assim, podem ocorrer esquemas de distribuição que promovam melhorias nas
expectativas dos mais favorecidos, mas cujo resultado em relação aos desfavorecidos
seja simplesmente a manutenção de sua atual situação. E mais: seria imprescindível
empregar tais melhorias em favor dos afortunados, pois as mesmas condicionariam a
permanência do estado atual dos desfavorecidos, mantidos no mesmo padrão. Logo,
em hipótese contrária às melhorias para os mais ricos verificar-se-ia uma queda no
padrão dos mais desfavorecidos. E tudo isso seria justificado dentro dessa versão
menos igualitária do princípio da diferença.
O que Van Parijs (2001) busca demonstrar com essa análise é que há uma
diferença entre: 1) atribuir-se legitimidade às desigualdades sociais existentes, por
meio de verificações realizadas nos atuais esquemas de distribuição de vantagens
sócio-econômicas, especialmente de modo a justificar uma conformação dos
desfavorecidos em relação à sua sorte – o que é feito pela versão menos igualitarista; e
2) buscar uma coerência no que tange ao modo como se deve estruturar a divisão de
vantagens sócio-econômicas de acordo com o recurso ao véu da ignorância, em
resgate ao acordo que se faria na posição original.
196
A chave para a compreensão do problema evidenciado por Philippe Van
Parijs (2001) quanto ao princípio da diferença está contida nas formulações do próprio
Rawls acerca do que ele denomina princípio da reciprocidade ou do benefício mútuo:
“it must be reasonable for each relevant representative man defined by this structure,
when he views it as a going concern, to prefer his prospects with the inequality to the
prospects wthout it”145 (RAWLS, 1971, p.64).
Em contraponto a uma possível alegação conformista de que os indivíduos
que atualmente se encontram nas condições mais desfavoráveis deveriam agradecer a
existência desse esquema em que os mais afortunados tornam-se ainda mais
privilegiados, enquanto os desfavorecidos agarram-se ao pouco que têm para não
perdê-lo, ou que, em nome de qualquer pequena melhora em sua atual condição,
justifica-se um enorme abismo entre os que têm mais e os que têm menos, é
importante lembrar a prudente ponderação de Van Parijs (2001):
the difference principle is defined by Rawls in terms of anonymous positions, not in
terms of proper names. For it to be satisfied, the worst off must be at least as well off
as they would be under any other feasible scheme, but at least as well off as the
worse off, whoever they may be, would be under any other feasible scheme.146 (VAN
PARIJS, 2001, p.7) (grifos do autor)
O que Van Parijs (2001) afirma é que outros rearranjos no esquema de
distribuição das vantagens sócio-econômicas, inclusive remodelando-se toda a
estrutura, são possíveis. E, para que o princípio da diferença seja satisfeito em sua
versão mais igualitarista, essa estrutura deve aceitar somente desigualdades
145
“Isso significa que cada homem representativo definido por essa estrutura, quando a observa como um
empreendimento em curso, deve achar razoável preferir a suas perspectivas com a desigualdade às suas
perspectivas sem ela.” (tradução da edição brasileira) (RAWLS, 2002, p.69)
146
“o princípio da diferença é definido por Rawls em termos de posições anônimas, não em termos de nomes
próprios. Para que ele seja satisfeito, não é preciso que os mais desfavorecidos estejam, ao menos, tão melhores
quanto de fato eles estariam em relação a quaisquer outros esquemas viáveis, mas que, ao menos, eles estejam
tão melhores quanto os mais desfavorecidos, quem quer sejam eles, estariam em relação a quaisquer outros
esquemas viáveis.” (tradução nossa)
197
justificadas no interior desses esquemas. Por conseguinte, devem ser rejeitadas aquelas
desigualdades que não promovam uma redução entre a posição dos mais favorecidos e
dos menos desfavorecidos (hipótese de entrelaçamento); ou ainda aquelas justificadas
em nome da manutenção da atual situação dos menos favorecidos, em promoção dos
mais afortunados (hipótese de ausência de entrelaçamento) (VAN PARIJS, 2001).
Pois, afinal, o que se está a tratar, em última instância, é de um critério para
distribuições justas de bens e vantagens, que assim nunca poderiam ser qualificadas se
aceita a versão menos igualitária do princípio da diferença ambiguamente sugerida por
Rawls.
O que se está em jogo na argumentação de Phillippe Van Parijs (2001) é a
questão relativa à “tensão de comprometimento”, ou seja, como é possível justificar,
aos olhos dos menos favorecidos, sua condição desfavorável nos arranjos sociais, de
modo a realizar o princípio da reciprocidade ou do benefício mútuo. Satisfazer esse
princípio significa que aqueles que se encontram na pior situação reconhecem a
legitimidade do arranjo que os coloca na situação mais desfavorável, já que determina
uma estrutura social que qualquer um que viesse a ocupar a condição menos
favorecida escolheria para a hipótese de nela se encontrar. Não há simplesmente um
critério de eficiência, que diz que os que atualmente se encontram na pior situação
estariam ainda piores caso se modificasse a atual estrutura, que em nada se refere à
aceitação ou à adesão dos menos favorecidos a sua condição. A “tensão de
comprometimento” decorre do maior ou menor potencial de um arranjo social em
promover a motivação dos menos favorecidos em cumprir os acordos fundamentais
por seu reconhecimento como justo:
To start with, if the rules can be recognized to be fair by all because their choice
was guided by the ideal of impartiality embodied in the original position and if their
implementation can be expected to be fair because of the verifiability of the
198
conditions in terms of which they are formulated, then citizens will generally have
no plausible excuse for infringing them, and one can therefore expect them to
routinely comply with them, not out to fear for the sanctions, nor as a direct
reflection of a commitment to a particular comprehensive moral conception, but out
of allegiance to an institution they cannot help recognizing as fair. (...) Moreover,
there is a wide range of other ways in which the choice of institutions can affect
people’s motivation and behavior in daily life, and the consequences of this
influence for the lifelong prospects of the worst off need to be factored in when
assessing whether a particular combination of institutions constitutes a just basic
structure. For example, legal rules regarding urban planning, health care provision
or Trade Union organization may foster, or instead counteract, segregation between
age groups or income classes, in such a way that spontaneous solidarity between
these categories is discouraged or nurtured, with potentially momentous
consequences for the expectations of the worst off. 147 (VAN PARIJS, 2001, p.26)
Em certo sentido, toda discussão do princípio da diferença volta-se a um
“reforço” na espessura do véu da ignorância (VAN PARIJS, 2001). Isso levará, por
conseguinte, a toda uma reelaboração dos acordos conseqüentes, já que os princípios
de justiça, dentre eles o princípio da diferença, são decorrências desse acordo realizado
na posição original148.
Mas esse retorno à posição original não se presta somente a reformular o
princípio da diferença. No entender de Van Parijs (2001), é inclusive a partir dos
efeitos gerados por uma reformulação do princípio da diferença em favor de sua
147
“Para começar, se as regras podem ser reconhecidas como justas por todos porque sua escolha foi guiada
por um ideal de imparcialidade incorporado na posição original e espera-se que sua implementação seja justa
por conta da possibilidade de se verificar tais condições por meio dos termos pelos quais elas foram
formuladas, então os cidadãos geralmente não terão desculpas plausíveis para infringi-las e pode-se, portanto,
esperar que eles estejam de acordo com tais regras em no seu dia-a-dia, não por medo de sanções, ou como um
reflexo direto de um compromisso com alguma concepção moral abrangente em particular, mas em decorrência
de uma aliança com uma instituição que eles não podem deixar de reconhecer como justa. (...) Ainda, há um
amplo espectro de outros modos pelo qual a escolha das instituições pode afetar a motivação e o
comportamento das pessoas na vida diária e as conseqüências dessa influência na expectativa de vida dos
menos favorecidos precisa ser levada em conta se uma particular combinação de instituições constitui uma
estrutura básica justa. Por exemplo, regras jurídicas relativas ao planejamento urbano, assistência de saúde ou
organização sindical podem fomentar ou, ao invés, reduzir a segregação entre grupos de diferentes faixas
etárias ou entre classes com distintos rendimentos, de tal modo que a solidariedade espontânea entre tais
categorias é desencorajada ou nutrida, com conseqüências potencialmente enormes para as expectativas dos
menos favorecidos” (tradução nossa)
148
Uma vez que na posição original se estabelecem os princípios mais abrangentes que irão reger a estrutura
básica da sociedade, incorporar a versão mais igualitária do princípio da diferença, e somente ela, tem por
conseqüência impor às instituições sociais, decorrentes desses novos padrões para os princípios de justiça, um
novo critério normativo para sua criação e avaliação. Assim, as instituições e arranjos sociais que não
satisfizessem essa versão mais igualitária do princípio da diferença não seriam qualificadas de justas e
careceriam de uma reformulação ou de mesmo de sua substituição.
199
versão mais igualitária que se poderá considerar a hipótese de uma concepção de
sociedade na qual todos os membros sejam, de fato, o mais livres possível149.
O princípio da maior liberdade a todos encabeça a ordem serial dos
princípios de justiça de Rawls. Segundo o postulado real-libertariano assumido por
Phillipe Van Parijs a liberdade, enquanto capacidade de exercício de uma faculdade,
encontra-se intimamente relacionada aos meios efetivos que o indivíduo possui para
exercê-la. Ser livre para realizar algo não se restringe à simples faculdade abstrata de
deliberação, mas se refere à efetiva oportunidade de escolha entre as opções que se
apresentam diante do indivíduo. Daí se conclui que uma estrutura básica que se
pretende justa somente pode ser construída possibilitando aos que estão em posição
mais desfavorecida, ao menos, as mais amplas oportunidades possíveis. E isso
somente ocorrerá com engajamento e explícita tomada de posição em seu favor (VAN
PARIJS, 1996).
No que concerne às conseqüências institucionais práticas dessa
reformulação do princípio da diferença, a posição real-libertariana advogará, como
requisito de condição para a efetivação da justiça de uma sociedade, a adoção de uma
renda básica universal150, a ser paga pela comunidade política a todos os seus
149
Uma vez que o real-libertarianismo exige como critério para realização da liberdade não somente a
consagração de suas dimensões negativa e formal, mas também que se promova o acesso a suas dimensões
material e positiva pela elevação, segundo o critério maximin, das oportunidades dos indivíduos, o princípio da
diferença passa a ser mecanismo crucial na constituição do sistema plenamente adequado de liberdades
sustentado pelo primeiro princípio, pois é por ele que se regem as distribuições de vantagens sociais e
econômicas na sociedade.
150
Adotar o princípio da diferença como critério que define a distribuição de vantagens sociais e econômicas na
sociedade implica em estabelecer, de algum modo, como as instituições sociais irão promover e elevar, segundo
o critério do maximin, o acesso à renda dos menos favorecidos. Em Uma teoria da justiça, Rawls (2002)
apontaria duas alternativas: Uma primeira identificaria os menos favorecidos aos trabalhadores nãoespecializados, tendo por sugestão a elevação da remuneração paga às pessoas que ocupam os empregos menos
qualificados, por meio de um sistema de subsídios. A segunda faria referência à implementação de um
suplemento de renda, ou de uma renda mínima, cujo valor seria estabelecido no nível máximo que uma
sociedade pudesse sustentar. Segundo Van Parijs (2001) somente a segunda proposta estaria em conformidade
com a versão mais igualitária do princípio da diferença, porque promoveria a liberdade de todas as pessoas, e
não somente dos que trabalham ou estão dispostos a trabalhar, bem como porque não exigiria que o benefício
estivesse atrelado a uma visão particular de mundo, identificada com o ethos do trabalho. A questão será
aprofundada mais adiante.
200
membros adultos, sem qualquer discriminação ou condicionamento, independente da
disposição para trabalhar ou não. Rawls (2003), ao comentar se a justiça como
imparcialidade referendaria algo similar, posicionou-se explicitamente contra tal
proposta, o que o afastaria, assim, das posições real-libertarianas. Portanto, antes de
apresentar em detalhes em que consiste a renda básica, é preciso verificar como tal
proposta é possível dentro do marco do liberal-igualitarismo, ainda que em oposição a
Rawls.
4.3.2 – Os surfistas de Malibu
Desde sua formulação inicial, a justiça como imparcialidade foi encarada
pelos defensores do real-libertarianismo (VAN PARIJS, 1995) como detentora de um
forte potencial para justificar a adoção de uma renda básica universal, seja por força
dos critérios utilizados na constituição do princípio da diferença, seja em função da
natureza dos bens primários que figuram na lista das vantagens sócio-econômicas a
serem distribuídas entre os membros da sociedade.
Em primeiro lugar, e de modo mais óbvio, como o princípio da diferença
trata da distribuição de riqueza entre os membros da sociedade, a renda básica
universal realizaria tal propósito a todos os membros adultos da sociedade, e não
somente uma categoria ou grupo de indivíduos (trabalhadores, deficientes ou
excluídos de toda sorte).
Mas, a renda básica universal não se prestaria apenas a esse papel. Caso o
princípio da diferença tratasse exclusivamente da mais elevada possível distribuição de
renda, sua preocupação primordial seria a de elevar ao máximo as oportunidades de
obtenção de renda proveniente de uma fonte de trabalho (VAN PARIJS, 1995). Por
201
essa razão, a social-democracia européia a concebeu o ideal de pleno-emprego,
orientando a constituição do Estado de bem-estar social, pois pressupunha que o modo
mais proveitoso de se elevar a renda de cada um dos membros da sociedade é a
providência de fontes de trabalho a todos os membros (VAN PARIJS, 2001b).
Entretanto, além da riqueza, uma renda de cidadania promoveria também
os poderes e prerrogativas ligados às posições sociais, em especial os dos menos
favorecidos (VAN PARIJS, 1995). Em princípio, ela conferiria maior poder de
barganha em relação a potenciais empregadores e ao Estado mais do que qualquer
outro sistema de transferências direcionadas a beneficiários específicos151. Porque, ao
contar com uma base material segura, os indivíduos não se submeteriam a ofertas de
emprego degradantes ou teriam comprometida sua isenção na tomada de decisões de
natureza política, ao ficarem à mercê de partidos que viessem a se aproveitar de sua
instabilidade econômica (VAN PARIJS, 1995).
Por fim, a renda básica universal teria o potencial de elevar – ou, ao menos,
de não comprometer – as bases sociais do auto-respeito, por ocasião de seu caráter não
discriminatório (VAN PARIJS, 1995). Como a renda básica universal seria paga a
todos os membros da sociedade, isso impediria a formação de indivíduos e grupos
estigmatizados, já que, para poder usufruir do benefício da renda básica, o processo de
avaliação e aprovação não seria humilhante ou embaraçoso aos indivíduos, pois
ausente o caráter assistencial direcionado. Desse modo, haveria uma maior propensão
a se evitar que o indivíduo viesse a se sentir como alguém incapaz, um sujeito que
precisaria da ajuda estatal para sua sobrevivência.
A teoria de Rawls possui uma forte inclinação em favor da instituição de
uma renda básica universal. Isso foi notado não somente pelos defensores da posição
151
Como desempregados com disposição para o trabalho, por exemplo
202
libertariana mas também por outros autores preocupados com a coerência da
interpretação do princípio da diferença. Richard Musgrave (1974 citado por VAN
PARIJS, 1995) fez a Rawls a seguinte colocação:
Implementation of maximin thus lead to a redistributive system that, among
individuals with equal earning ability, favors those with a high preference for
leisure. It is to the advantage of recluses, saints, and (nonconsulting) scholars who
earn but little and hence will not have to contribute greatly to redistribution.”152
(MUSGRAVE, 1974, p. 632 apud VAN PARIJS, 1995, p. 96)
A partir de uma abordagem utilitarista, o que Musgrave desejava sustentar
com tal colocação é que um sistema de tributos deveria ser estabelecido para
promover, de modo eqüitativo, benefícios e tempo-livre em potencial, promovendo-se,
assim, aquilo que compreende como uma adequada caracterização do bem-estar em
potencial (VAN PARIJS, 1995).
Ao ser confrontado com tal objeção, Rawls (2003) argumentou que a
justiça como imparcialidade não se prestaria ao financiamento de pessoas que
possuem plena capacidade para o trabalho, mas que optam pelo lazer ou pelo uso do
tempo livre para realização de atividades não-remuneradas:
Ao elaborarmos a justiça como eqüidade pressupomos que todos os cidadãos são
membros normais e plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida.
Fazemos isso porque para nós a questão dos termos eqüitativos de cooperação
entre os cidadãos assim considerados é fundamental e deve ser examinada primeiro.
Esse pressuposto implica que todos querem trabalhar e fazer sua parte na
distribuição das responsabilidades da vida social, desde que, é claro, os termos da
cooperação sejam vistos como eqüitativos.
Mas como esse pressuposto se expressa no princípio de diferença? O índice de bens
primários, da maneira como foi discutido até aqui, não faz qualquer menção a
trabalho, e os menos favorecidos são aqueles com o índice mais baixo. Será que isso
quer dizer que os menos favorecidos são aqueles que vivem da assistência pública e
surfam o dia todo em Malibu? (RAWLS, 2003, p. 254)
152
“A implementação do maximin leva, assim, a um sistema redistributivo que, entre indivíduos com
capacidades iguais de geração de renda, favorece aqueles com uma forte inclinação para o tempo livre. Ele põe
em vantagem os reclusos, os monges e os (não consultores) eruditos que quase nada recebem e, portanto, não
terão de contribuir de maneira maciça para a redistribuição”. (tradução nossa)
203
Para solucionar essa questão que, aos seus olhos, parece incompatível com
a caracterização da justiça como imparcialidade, Rawls (2003) propôs uma
modificação no princípio da diferença: a inclusão do lazer e do trabalho em seu
interior:
Podemos tratar essa questão de duas maneiras: uma é pressupor que todos
trabalham um dia de trabalho padrão; a outra é incluir no índice de bens primários
certa quantidade de horas de lazer, por exemplo, dezesseis horas por dia se o dia de
trabalho padrão for de oito. Aqueles que não trabalham têm oito horas extras de
lazer e contamos essas oito horas extras como equivalentes ao índice dos menos
favorecidos que trabalham um dia padrão. Os surfistas têm de encontrar alguma
forma de se sustentar. (RAWLS, 2003, p. 254)
A resposta apresentada por Rawls à objeção levantada por Musgrave – e a
conseqüente (sensível) alteração no princípio da diferença – despertou ambigüidades e
contradições, seja em relação à coerência geral da justiça como imparcialidade, seja
entre essa proposta de modificação do princípio da diferença e a própria conseqüência
aduzida por Rawls em sua resposta (VAN PARIJS, 1995, 1997; ARNSPERGER;
VAN PARIJS, 2003).
A primeira dessas objeções (VAN PARIJS, 1997) diz que a versão
modificada do princípio da diferença permanece em contradição com o conjunto de
postulados lançados pela justiça como imparcialidade. Ao equiparar o trabalho ao
lazer, estabelecendo entre eles uma equivalência para que, em seguida, possam ser
anulados entre si no processo distributivo, Rawls, não leva em consideração o
comprometimento de diversos bens primários, à exceção da riqueza, caso inexistente a
renda básica universal. Mencionou-se acima o potencial que a renda básica universal
possui para promover os poderes e prerrogativas ligados às posições sociais, bem
como as bases sociais do auto-respeito, em especial daqueles que ocupam a posição
mais desfavorecida da sociedade. Logo, o contra-argumento de Rawls não sustentaria
204
o arranjo mais capacitado a favorecer os que se encontram nas posições inferiores da
sociedade, contrariando os ideais e princípios contidos na justiça como imparcialidade.
Há ainda uma segunda objeção (ARNSPERGER; VAN PARIJS, 2003),
decorrente de dificuldades conceituais ligadas à definição daquilo a que Rawls quis
referir-se por ‘trabalho’, por sua vez equiparável a ‘lazer’, em seu contra-argumento.
O que seria trabalho? Apenas o trabalho remunerado? Estariam, pois, excluídos desse
critério, os serviços domésticos, o voluntariado e as atividades comunitárias? Por outro
lado, Rawls menciona um ‘trabalho de 8 horas’. Isso levaria a deduzir que o único
aspecto do trabalho levado em consideração seria a sua duração. Assim, todas as
formas de trabalho seriam iguais, não se devendo considerar a intensidade, o nível de
habilidade técnica ou de formação exigido, as condições em que ocorre, etc. Seria
possível nivelar todas as formas de trabalho para fins de sua equiparação com o lazer?
Que critério seria adotado?
Mas há ainda uma objeção final (VAN PARIJS, 1995) que se apresenta
como crucial para definir como imprópria e apressada a resposta dada por Rawls à
objeção lançada por Musgrave. Para ilustrá-la, é preciso recorrer ao exemplo de uma
sociedade hipotética em que a classe dos menos favorecidos é formada por dois tipos
de indivíduos, aqui definidos por “laboriosos” e “preguiçosos”153. Ambos possuem
talentos e aptidões idênticas para o trabalho, mas com disposições de caráter distintas.
Enquanto os ‘laboriosos’ tem por objetivo de vida a obtenção da maior renda possível
para si próprios e lançam-se em busca das maiores e melhores ofertas de trabalho que
lhes possam proporcionar tal remuneração, os ‘preguiçosos’ não se empolgam com
tais perspectivas, preferindo viver da maneira mais pacata e tranqüila possível.
Acresça-se ainda que, no exemplo dessa sociedade hipotética, a utilização de um
153
“Crazy” and “Lazy” na versão original em língua inglesa (VAN PARIJS, 1995)
205
recurso natural disponível torna-se responsável pela considerável elevação de sua
produção econômica e, por sua vez, de sua riqueza total.
Seguindo à risca o contra-argumento de Rawls, somente os ‘laboriosos’ se
beneficiarão do crescimento econômico obtido por essa sociedade, enquanto os
‘preguiçosos’ permanecerão estagnados. Esse seria o resultado da equivalência
abstrata entre lazer e trabalho (VAN PARIJS, 1995). Se, antes, ambos dividiam a
mesma condição de pertencentes à posição social dos mais desfavorecidos, agora
haverá um descompasso entre eles, agravando-se, inclusive, a condição de parcela
dessa classe que já se encontra na pior posição.
Ainda em relação a essa ultima objeção, a proposta de Rawls afrontaria
diretamente o princípio do igual respeito às diversas concepções de bem (VAN
PARIJS, 1995)154. Sob tal esquema, as instituições sociais privilegiariam um
determinado modelo de vida, professado pelos ‘laboriosos’, pelo estímulo decorrente
da obtenção de maiores vantagens e benefícios no processo de distribuição dos bens
oriundos da cooperação social. Ao distribuir incentivos econômicos somente àqueles
que se realizam pessoalmente por meio do acréscimo de riqueza proveniente do
trabalho, a sociedade estaria fazendo uma clara opção por um tipo de vida –
conseqüentemente pela realização de uma forma específica de bem – em detrimento de
outras possíveis155.
154
A constituição dos gostos e talentos das pessoas é algo arbitrário e fortuito. Decorre de questões individuais e
coletivas que não estão ao alcance de sua escolha. São justamente esses gostos e talentos, bem como as
condições culturais diversas que dão origem às inúmeras concepções particulares de bem professadas pelos
indivíduos. O princípio liberal da neutralidade sustenta que não há superioridade entre elas. Aplicado à estrutura
básica da sociedade, tal princípio determina que os arranjos institucionais não privilegiem nenhuma dessas
concepções particulares de bem. Para tanto, tais arranjos não podem vincular benefícios a indivíduos que
possuam determinados modos de ser e agir decorrentes de seus gostos e talentos. Isso significaria tornar mérito
algo que é arbitrário (RAWLS, 2002). Assim, quando a estrutura institucional distribui riqueza proveniente de
recursos naturais somente aos laboriosos, ela vincula um benefício a uma peculiar forma de vida (VAN PARIJS,
1995).
155
Ao contrário do que se poderia argumentar, com o exemplo dado, o real-libertarianismo não afirma que os
arranjos institucionais devem ser tais que laboriosos e preguiçosos comunguem das mesmas somas totais de
renda e outras condições materiais, pois isso significaria desrespeitar o princípio da neutralidade em favor dos
preguiçosos (VAN PARIJS, 1995). O que o real-libertarianismo propõe, por meio da renda básica, é que ambos
206
Os questionamentos levantados mostram que a teoria de Rawls nem sempre
seria condizente com a posição real-libertariana. Em diversos pontos, ela falha ou é
insuficiente para realizar a proposta de se elevar, segundo o critério maximin, as
oportunidades de os indivíduos levarem sua vida do modo que quiserem. Segundo Van
Parijs (1995, 1997, 2001b), a instituição de uma renda básica universal teria grande
potencial para cumprir essa tarefa. É preciso, pois, compreender em que, de fato,
consiste essa proposta e como ela se efetivaria, seus fundamentos, qual a sua relação
com outros esquemas de distribuição de bens sociais existentes – e sua a superioridade
em relação aos demais.
4.4 Uma proposta audaciosa
Viu-se que, de um ponto de vista real-libertariano, a realização da liberdade
em uma sociedade não se restringe à garantia das dimensões negativa e formal da
liberdade, pela efetivação dos princípios da segurança e da propriedade-de-si. É
preciso também que proporcione a maior oferta possível, segundo o critério leximin,
do conjunto de oportunidades que cada membro dispõe para conduzir sua vida como
bem entender.
Desse modo, o foco das instituições sociais a serem elaboradas segundo o
modelo de justiça real-libertariano deverá recair sobre os meios capazes de garantir
aos indivíduos que sejam o mais livres possível para decidirem sobre o modo como
tenham iguais condições de oportunidades para professar o seu respectivo modo de vida. Assim, se laboriosos
encontram sua felicidade no acúmulo de patrimônio por meio do trabalho, é certo que eles merecem desfrutar de
uma riqueza maior do que os preguiçosos. Mas isso não pode implicar que os arranjos institucionais deixem os
preguiçosos em total desamparo para professarem seu próprio modo de vida.
207
irão conduzir suas respectivas vidas. E a questão dos meios liga-se diretamente à
questão da riqueza ou do poder aquisitivo, pois é o amparo de uma base material
sólida que lhes possibilita tomar decisões livres de constrangimentos.
Assim, a real-liberdade-para-todos implicará a necessidade de um
mecanismo institucional de distribuição de uma renda que proporcione a todos os
membros da sociedade uma base material que lhes permita adotar a vida que melhor
lhes convier (VAN PARIJS, 1995). No entanto, a idéia de uma renda de cidadania não
é nova156. É proposta por diversos pensadores e implementada por certas comunidades
políticas, sob diferentes modelos, nos últimos duzentos anos. Logo, é preciso verificar
qual dentre as versões seria mais condizente com a proposta real-libertariana, ou seja,
qual delas possui o potencial para elevar o conjunto de oportunidades das pessoas
segundo o critério leximin. Esse será o critério adotado por Van Parijs (1995) para
definir suas posições acerca da configuração mais adequada para a renda básica
universal.
Para se iniciar a caracterização da renda básica universal, é preciso recorrer
à definição dada pelo próprio Van Parijs (2001b) à sua proposta:
By universal basic income (UBI) I mean an income paid by a government, at a
uniform level and at regular intervals, to each adult member of society. The grant is
paid, and its level is fixed irrespective of whether the person is rich or poor, lives
alone or with others, is willing to work or not. In most versions – certainly in mine –
it is granted not only to citizens, but to all permanent residents.
The UBI is called ‘basic’ because it is something on which a person can safely
count, a material foundation on which a life can firmly rest. Any other income –
whether in cash or kind, from work or savings, from the market or the state – can
lawfully be added to it. On the other hand, nothing in the definition of UBI, as it is
here understood, connects it to some notion of ‘basic needs’. A UBI, as defined, can
fall short of or exceed what is regarded as necessary to a decent existence. 157 (VAN
PARIJS, 2001b, p. 5-6)
156
Sobre um histórico da idéia de se atribuir uma renda universal aos membros da sociedade, bem como do
embrião das propostas de renda básica universal, veja-se Vanderborght e Van Parijs (2006) e Suplicy (2002,
2006)
157
“Chamo de renda básica universal (RBU) uma renda paga por uma entidade política, em um nível
padronizado e em intervalos regulares, para cada membro adulto da sociedade. A quantia é paga, e seu valor é
fixado, independentemente do fato de a pessoa ser rica ou pobre, viver sozinho ou com outras, estar disposta a
208
Da definição apresentada é possível extrair quais são as principais
características que podem ser atribuídas à renda básica universal. Em primeiro lugar,
ela não se vincula à condição de o indivíduo estar disposto a aceitar um emprego ou
qualquer outra forma de trabalho158. Tampouco se vincula à condição material atual da
pessoa, pois tanto ricos como pobres têm direito a ela159. Em terceiro lugar, não existe
nenhum fator condicionante da renda, seja ele ligado à constituição do grupo familiar
em que o indivíduo se insere ou à região do país na qual ele reside. São essas
características da renda básica universal que conferem a ela o caráter de incondicional
(VANDERBORGHT, VAN PARIJS, 2006).
Isso significa que os destinatários não necessitam submeter-se a um teste de
aptidão (means test) para ter direito ao recebimento do benefício (VAN PARIJS, 1995;
2001b). A incondicionalidade da renda básica atribui-lhe maior potencial de realização
do princípio liberal de igual respeito às diversas concepções de bem que as pessoas
trabalhar ou não. Em muitas versões – certamente na minha – ela é garantida não somente aos cidadãos, mas a
todos aqueles que possuem residência permanente.
A RBU é chamada de básica por ser algo com o que a pessoa pode seguramente contar, uma base material em
que uma vida pode se assentar de modo firme. Qualquer outra renda – seja em dinheiro ou in natura, oriunda do
trabalho ou de poupança, do mercado ou do Estado – pode ser legitimamente acrescida a ela. Desse modo,
nada na definição da RBU, tal como aqui compreendida, a relaciona a alguma espécie de ‘necessidades
básicas’. A RBU, tal como definida, pode ficar ou pouco aquém ou exceder aquilo que se considera como
necessário para uma vida decente.” (tradução nossa)
158
Quanto a esse aspecto, a renda básica universal se distingue dos programas sociais de auxílio-desemprego,
próprios do conjunto de medidas assistenciais elaboradas sob a influência do Estado de Bem-Estar Social. Tais
programas exigem do destinatário do benefício o preenchimento de requisitos condicionantes para o recebimento
da verba. Via de regra, esses requisitos são: ter ocupado emprego ofertado no mercado formal de trabalho; ter
disponibilidade para aceitar uma ocupação caso proporcionada pela agência estatal que controla o pagamento
dos benefícios; ter disponibilidade para participar de programas de treinamento e reciclagem profissional; não
receber qualquer outro tipo de renda proveniente ou de fontes de trabalho informal ou de outros benefícios
previdenciários. O instituto brasileiro de proteção ao emprego que se enquadra nesse modelo é o segurodesemprego, (art. 7º, inc. II da CF/88; Lei 7.998/90 e alterações).
159
A opção por não discriminar entre ricos e pobres o direito à renda básica universal, ao invés da adoção de
programas direcionados a públicos-alvo (target efficiency) carentes de políticas sociais é realizada para evitar-se
a segregação da sociedade em grupos considerados inferiores, acarretando-lhes, conseqüentemente, estigma,
vergonha ou humilhação (VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006; SUPLICY, 2006). Nesse sentido a renda
básica universal se distingue da renda mínima. O objetivo daquela é distribuir a todos os membros da sociedade,
segundo o critério maximin, um dividendo a que cada indivíduo tem direito, de modo a poderem conduzir sua
vida como bem entendem, ou, em resumo, que lhes atribuam um status de cidadão. Já a denominada renda
mínima tem por objetivo a elevação dos indivíduos mais depauperados de uma sociedade a uma condição acima
do mínimo da pobreza (poverty gap) (VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006).
209
podem professar, já que ela não exigiria, dos membros da sociedade, nenhum
comportamento ou dever de prestar informações atrelados ao recebimento do
benefício160. Um teste de aptidão, ou mesmo a exigência de requisitos para o
recebimento da renda básica universal, implicaria a realização de diferenciações entre
indivíduos com diferentes necessidades, mas:
there is no positive reason for differentiation consistent with a real-libertarian
standpoint. It may, of course be the case that what one needs when living alone far
exceeds what one needs when living in a commune, ot that one needs when living in
a capital city far exceed what one needs when living in a remote hamlet But from a
real-libertarian standpoint, this is irrelevant. What a real-libertarian is concerned
to leximin, remember, is not the real freedom to get what person happens to want, or
what she needs in order to maintain her way of life. It is the real freedom to do what
she might want to do. It is therefore enough to assume – innocuously enough – that
someone living in a commune might wish to live alone, or that dwellers of the
countryside might want to settle in the city, for a uniform, undiscriminating basic
income to be the obvious choice. 161 (grifos do autor) (VAN PARIJS, 1995, p. 37-38)
Ao se definir a proposta de uma renda básica universal, certas
conseqüências práticas surgem de imediato, como, por exemplo, a adoção de um
critério para se definir o valor monetário dessa renda. Viu-se que a premissa inicial em
que a renda básica se assenta requer sua capacidade em promover, segundo o critério
leximin, a maior real-liberdade possível dos membros de uma sociedade. Viu-se
também que os arranjos institucionais que levarão à renda básica devem respeitar as
dimensões formal e negativa da liberdade, ou seja, a comunidade política não pode
160
Remete-se aqui ao argumento dos laboriosos e dos preguiçosos utilizado por Van Parijs (1995) para justificar
a superioridade da renda básica universal sobre o sistema subsídios à remuneração do trabalho formal. Do
mesmo modo como no exemplo apresentado distribuir a riqueza da sociedade somente entre os que optam por
um emprego formal e remunerado significa empenhar as instituições sociais para realizar um particular modo de
vida, definir requisitos como a situação familiar ou a localização geográfica da residência como condição para o
pagamento do benefício implica em eleger certas formas de vida como superiores a outras.
161
“não há razão favorável para diferenciações consistentes com o ponto-de-vista real-libertariano. Pode ser, é
claro, o caso de que o que alguém necessita quando vive sozinho exceda em muito o que alguém necessita
quando vive em comunidade, ou que o que alguém necessita quando vive em uma grande cidade excede em
muito o que alguém necessita quando vive numa aldeia remota. Mas de um ponto de vista real-libertariano, isso
é irrelevante. Lembre-se que o que um real-libertariano está preocupado em elevar, segundo o critério leximin,
não é a real-liberdade de obter aquilo que uma pessoa vem a desejar, ou o que ela necessita a fim de manter seu
padrão de vida. É sim a real-liberdade de fazer que ela poderia querer fazer. Isso é, portanto, suficiente para se
assumir – de maneira inócua suficiente – que alguém que viva em uma comunidade possa desejar viver
sozinho,ou que moradores do interior possam querer se estabelecer na cidade grande, pelo que uma renda
básica uniforme e indiscriminada é a melhor opção” (tradução nossa)
210
ultrajar os direitos individuais ligados à segurança e à propriedade-de-si para arrecadar
os fundos da renda162.
Assim, um critério que se apresenta como apropriado para proporcionar
uma primeira abordagem à questão do valor da renda básica é o critério da
sustentabilidade (VAN PARIJS, 1995; VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006).
Por tal critério, a definição do valor monetário da renda passa por uma análise do
potencial sócio-econômico de cada sociedade, de maneira a evitar que a sua efetivação
leve a um colapso, atual ou futuro, de suas instituições econômicas e sociais:
this idea [de uma renda básica universal] would then offer a simple criterion for the
real-libertarian evaluation of competing socio-economic regimes, that is, of the
aspects of a society’s institutional set-up that regulates the production and
distribution of material resources. For any given society, formal-freedom-respecting
socio-economic regimes could then simply be ranked according to the level of basic
income they would sustainably provide. Sustainability is obviously an essential
consideration. If we are concerned with the real freedom of all, it is clearly
inadmissible to give away society’s wealth now, in the form of a lavish basic income,
at the expense of economic collapse tomorrow 163 (VAN PARIJS, 1995, p. 38)
(grifos do autor)
Para evitar um colapso sócio-econômico ou mesmo uma redução drástica
de seu valor, é preciso que o financiamento da renda universal seja realizado por
arranjos institucionais que não se deteriorarem ao longo do tempo, isto é, que não
proporcionem uma drástica alteração na estrutura sócio-econômica da sociedade, tais
como a oferta de trabalho, o sistema de intercâmbios e trocas, o nível de poupança, dos
fundos e investimentos (VAN PARIJS, 1995). Nesse aspecto, a arrecadação pela via
162
Exclui-se, assim, que a fonte de custeio da renda básica universal não implique em transferências de recursos
oriundas de confisco direto ou tomada de propriedade dos indivíduos (VAN PARIJS, 1995).
163
“essa idéia [de uma renda básica universal] ofereceria então um critério simples para uma avaliação reallibertariana dos regimes sócio-econômicos em competição, isto é, dos aspectos de um arranjo institucional que
regula a produção e distribuição dos recursos materiais. Para uma dada sociedade, respeitada a liberdade
formal, os regimes sócio-econômicos poderiam ser simplesmente listados de acordo como o valor da renda
básica que eles podem, de modo sustentável, prover. A sustentabilidade é, obviamente, de essencial
consideração. Se nós estamos preocupados com a real liberdade de todos, é claramente inadmissível gastar a
riqueza de uma sociedade agora, sob a forma de uma pródiga renda básica, ao custo do colapso econômico de
amanhã” (tradução nossa)
211
tributária164 apresenta-se como a mais adequada e ganha uma posição de destaque na
operacionalização da renda universal:
for any given type of socio-economic regime, one should select the structure of
(explicit and implicit taxation that can durably generate the highest yield, and that
the tax rates should be pitched at a level corresponding to the peak of the associated
‘Laffer hyperplane’, that is to the highest tax yield that can be durably generated
under this type of regime.
This suggestion takes for granted that, once appropriate deductions are made for
the sake of formal freedom, a higher tax yields necessarily means a higher basic
income.165 (VAN PARIJS, 1995, p. 38-39)
Contudo, a especificação do valor da renda dependerá de nuances sócioeconômicas próprias de cada sociedade em consideração. Não há um valor a priori
que seja responsável por concretizar a renda básica, uma vez que ela não se atrela a
nenhuma noção de ‘necessidades básicas’ (VAN PARIJS, 2001b). É em função da
estrutura e dos níveis de eficiência na arrecadação de seu sistema tributário que cada
sociedade determinará aquilo que pode distribuir a seus membros166 para que eles
164
Suplicy (2006) ilustra como, ao contrário do que se poderia pensar, o aporte de recursos para o financiamento
da renda básica de universal é perfeitamente viável em nossa atual estrutura orçamentária, a partir das fontes de
arrecadação do programa Bolsa Família em comparação com outros gastos efetuados pelo governo federal no
mesmo período: “Para pagar o benefício do Bolsa Família, que em novembro de 2005 era da ordem de R$
64,00 por família, o governo definiu no Orçamento da União um montante equivalente a aproximadamente R$
64 vezes 12 meses, vezes 11,2 milhões de famílias em 2006, pressupondo que o valor do benefício não seja
aumentado. Essa soma, se incluir os custos administrativos, será próxima de R$ 9 bilhões. Entre outras fontes
de recursos orçamentários para fazer frente a essa finalidade, o governo dispõe de parte da receita da
Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras. Ou seja, da alíquota de 0,38% sobre cada
movimentação financeira, apenas 0,08% são destinados ao Fundo de Combate à Pobreza. Os 0,30% restantes
são destinados à Saúde. Não se trata de um valor tão excepcional quando se examina a sua finalidade e
comparado a outros itens do orçamento. Para pagar os juros da dívida pública, por exemplo, somados os três
níveis de governo da União, dos estados e dos municípios nos anos de 2003, 2004, e 2005 foram gastos,
respectivamente, R$ 145,2 bilhões, R$ 128,2 bilhões e R$ 157,1 bilhões, segundo o Boletim do Banco Central”
(SUPLICY, 2006, p.18-19)”
165
“(...), para um dado tipo de regime sócio-econômico, deve-se selecionar a estrutura de tributação (explícita
ou implícita) que pode gerar de modo duradouro a maior arrecadação, e que as alíquotas dos impostos
deveriam ser elevadas ao nível correspondente o pico da ‘Curva de Laffer’ relacionada, isto é, à maior
arrecadação tributária que pode ser duradouramente gerada sob esse tipo de regime.
Essa sugestão faz com que, uma vez feitas as deduções devidas por conta da liberdade formal, uma maior
arrecadação tributária significa necessariamente uma maior renda básica.” (tradução nossa) A curva de Laffer
define o valor máximo em que um tributo pode ser fixado para que ele continue a ser pago, pois acima desse
valor os contribuintes passam a optar pela sonegação (LIMA; CRAVEIRO, 2003)
166
Para ilustrar a variação do montante da Renda Básica em diferentes condições sócio-econômicas da
comunidade política que a custeia, é interessante comparar o que Suplicy (2006) sugere como valor inicial que o
Brasil adote para a Renda Básica Universal (denominada Renda Básica de Cidadania), R$ 40,00 (quarenta reais)
mensais, com os valores que o Estado norte-americano do Alasca efetivamente pagou (SUPLICY, 2006) a seus
212
tenham o seu conjunto de oportunidades, isto é, sua real-liberdade, elevado segundo o
critério leximin.
Outra questão prática relaciona-se ao meio de pagamento da renda, se em
dinheiro ou em produtos (VAN PARIJS, 1995). Pois se pode argumentar que uma
proposta preocupada com a efetiva real-liberdade das pessoas deveria prover os
indivíduos seja com os meios necessários à produção de sua própria renda, seja com
produtos que garantam que essa renda não seja desviada para fins que não realizem os
propósitos de promover o critério leximin ao conjunto de oportunidades das pessoas.
Com relação ao primeiro argumento, em favor do pagamento da renda pela
distribuição dos meios de produção segundo o critério leximin, tem-se a objeção de
que a dotação de meios de produção limitaria o total de real-liberdade a ser desfrutado
pelos indivíduos (VAN PARIJS, 1995), pois: 1) os meios de produção não têm a
possibilidade de uma imediata conversão em produtos que se deseja ou necessita,
reduzindo, assim, em muito, o espectro de ações que cada indivíduo poderia realizar
com sua renda; 2) as pessoas não possuem a mesma disposição e capacidade
produtiva, sendo muito difícil realizar uma distribuição que seja perfeitamente
adequada às aptidões e habilidades de cada um aos seus respectivos meios de
produção. Disponibilizar um meio comum a todos, como a terra ou um maquinário,
por exemplo, ainda traria um conseqüente desperdício em relação àquilo que as
pessoas poderiam fazer com sua renda.
Também aqui a objeção relativa à ofensa ao princípio de igual respeito às
diversas concepções de vida entra em cena para afastar a proposta de se realizar o
membros por meio da experiência do dividendo social, oscilantes entre US$ 300,00 (trezentos dólares
americanos) anuais no início dos anos 1980, US$ 1.963, 86 (um mil novecentos e sessenta e três dólares
americanos e oitenta e seis centavos) anuais, quando o valor atingiu seu valor máximo em 2000 e a atual quantia
de US$ 1.000,00 (mil dólares americanos) anuais. Ressalta-se que o Alasca é um país com baixa densidade
demográfica e detentor de recursos naturais geradores de muita riqueza como a pesca e o petróleo, o que
justificaria montantes mais elevados para o valor per capita da Renda Básica.
213
pagamento da renda básica através de meios de produção, uma vez que a efetivação da
renda básica sob tal esquema pressuporia que as pessoas realizariam suas concepções
de felicidade e vida boa exclusivamente através do trabalho manual, excluindo as
demais formas de trabalho existentes, como o intelectual ou o artístico.
Ao segundo argumento, sobre a possibilidade do pagamento da renda
básica sob a forma de cupons ou títulos que dariam direito a benefícios in natura167,
necessários à manutenção dos patamares de sobrevivência, tem-se a questionar em que
medida seu potencial em aumentar a real-liberdade das pessoas não é mais limitado do
que o pagamento em dinheiro (VAN PARIJS, 1995; VANDERBORGHT; VAN
PARIJS, 2006). Afinal, o propósito da real-liberdade-para-todos é promover, segundo
o critério leximin, o maior conjunto de oportunidades de cada um para realizar aquilo
que deseja fazer e não apenas distribuir riqueza ou um padrão de bem-estar. E nesse
sentido, a fungibilidade do dinheiro permite a ampliação das possibilidades colocadas
à disposição dos indivíduos. No entanto, não haveria incompatibilidade entre o
pagamento de parte da renda em dinheiro e outra parte in natura (VAN PARIJS,
1995). Pois é possível conceber que um complemento do benefício seja
disponibilizado em cupons ou ‘vales’ dessa natureza, ou até mesmo sob a forma de
prestação de serviços de assistência social, educação e saúde, tal como instituído pelo
Estado de Bem-Estar Social, desde que, sob essa modalidade, não haja redução no
montante da renda pago em dinheiro.
A terceira conseqüência prática a ser considerada sobre o modo de
implementação da renda básica refere-se à questão de como o pagamento deveria ser
realizado: todo o valor em uma única oportunidade ou o estabelecimento de
pagamentos regulares com certos intervalos de tempo. Algumas formulações históricas
167
Suplicy (2006) mostra como, no Brasil, programas sociais dessa natureza como o Auxílio-gás e o Cartão
Alimentação encontram-se na origem das discussões sobre programas de Renda Mínima no Brasil e,
posteriormente, deram origem ao Bolsa Família, o mais abrangente deles já vivenciado no país.
214
da idéia de renda básica, como a de Thomas Paine (VAN PARIJS, 1995), sugerem o
pagamento de um valor único a ser atribuído a cada uma das pessoas ao atingirem a
idade de vinte e um anos. Segundo mostram Vanderborght e Van Parijs (2006), esse
modelo ainda é defendido por alguns dos pensadores contemporâneos que tratam da
questão, como Bruce Ackerman e Anne Alstott.
Uma vez que a renda básica propõe elevar ao máximo a oferta de liberdade
dos membros da sociedade, haveria um apelo intuitivo em favor de que o valor fosse
disponibilizado integralmente para os indivíduos assim que eles atingissem a
maioridade. Afinal, determinados projetos de vida somente se concretizariam por meio
do emprego de uma soma significativa de dinheiro.
No entanto, nos termos do real-libertarianismo, rejeita-se essa modalidade
de pagamento, dando-se preferência à utilização de pagamentos regulares em
periódicos intervalos de tempo. Os argumentos que endossam esse ponto de vista estão
ligados à possibilidade de um uso pródigo e inconseqüente do montante da renda, o
que eliminaria todo o seu propósito168:
What matters here is that no one should at any time be so poor as to be forced to
steal, and regular installments are therefore the obvious choice. Similarly, if the
introduction of a minimum income is motivated by the feeling that destitution and
the display of destitution jeopardize human dignity or moral worth, the payment of a
given overall level of income should be spread as thinly as is practical over people’s
whole lifetimes.169 (VAN PARIJS, 1995, p. 46)
168
Um argumento de tipo libertarianista certamente não endossaria tal posicionamento, pois, segundo tal
corrente, o Estado não poderia interferir nos atos de vontade das pessoas relativos a seu patrimônio, já que
importa a preservação da liberdade negativa e a liberdade formal. Todavia, esse não é o caso do reallibertarianismo, pois o que realiza a liberdade é a existência do maior conjunto possível de oportunidades
disponível ao indivíduo ao longo de toda a sua vida, o que certamente seria colocado em risco na hipótese de se
adotar o pagamento único, justificando-se, assim, a adoção da medida levemente paternalista de se restringir o
pagamento a intervalos regulares (VAN PARIJS, 1995).
169
“O que importa aqui é que ninguém nunca deva ficar tão pobre de tal maneira que seja obrigado a roubar, e
pagamentos regulares são, portanto, a escolha mais óbvia. De modo semelhante, se a introdução de uma renda
mínima é motivada pelo sentimento que a falta de posses ou a possibilidade que elas venham a faltar coloca em
risco a dignidade humana ou o valor moral, o pagamento de um dado valor total de renda deveria se pulverizar
do modo menos intenso possível, de modo a que ela seja prática por toda a vida das pessoas.” (tradução nossa)
215
Não somente um uso indevido da renda, mas também o fato de que as
pessoas podem mudar radicalmente a sua personalidade, seus objetivos e sua
identidade ao longo de uma vida, levam o real-libertarianismo a optar pela
implementação de pagamentos que ocorram regularmente durante o curso de toda a
vida. Pois o que se visa resguardar é a garantia de uma real-liberdade em todas as
‘fases’ que um indivíduo possa ter em sua vida, seja enquanto jovem ou adulto: de
caráter empreendedor altivo e ousado, de ‘mochila nas costas’ em uma viagem à la
Guevara ou poupando cada centavo para proporcionar conforto a sua família170.
Assim, o real-libertarianismo endossa uma perspectiva levemente
paternalista de se proibir que os indivíduos tenham acesso ao montante total de renda
básica a que teriam direito, restringindo-a a pagamentos regulares, sejam eles mensais,
trimestrais ou anuais, conforme um critério arbitrário que se deseje adotar171.
Desse modo, Phillippe Van Parijs – e sua proposta real-libertariana de
teoria da justiça – sustenta como seria possível proporcionar, segundo um critério
leximin, a maior liberdade possível aos indivíduos de uma sociedade172. Enquanto
decorrência da efetivação de uma proposta de justiça, a renda básica universal acaba
por proporcionar aos membros de uma sociedade, a maior liberdade possível, fazendo
dela uma sociedade livre (ou o mais livre possível).
170
Outra objeção comumente levantada contra o pagamento em intervalos regulares está ligada a uma eventual
desigualdade de tratamento, decorrente do fato de que pessoas receberiam valores totais de renda básica
diferentes ao fim de sua vida, em função da idade em que falecem. Para rebatê-la, é preciso recordar que a
finalidade da renda básica não é promover uma igualdade de resultados (outcomes) materiais daquilo que os
indivíduos recebem, mas sim que, enquanto vivos, todos possuam o mesmo conjunto de oportunidades
(opportunity-set) para realizarem aquilo que possam vir a desejar (VAN PARIJS, 1995).
171
Vanderborght e Van Parijs (2006) sugerem o critério do pagamento mensal, em que são acompanhados por
Suplicy (2006). Como mencionado, o pagamento do dividendo realizado pelo Estado do Alasca é anual
(SUPLICY, 2006).
172
O presente trabalho fez uma clara opção por não discutir e enfrentar os argumentos relativos à viabilidade
econômica da implementação efetiva renda básica universal, principalmente nos países em desenvolvimento
como é o caso do Brasil, em especial no que concerne aos impactos no PNB, no mercado de trabalho e no
planejamento fiscal e orçamentário das sociedades, pois isso implicaria um acentuado desvio do objeto da
presente pesquisa. Tais argumentos podem, no entanto, ser encontrados em Van Parijs (1993, 1995, 1997,
2001b); Vanderborght e Van Parijs (2006); Suplicy (2002, 2006).
216
4.4.1 – A Renda Básica Universal no Brasil
A renda básica universal não é apenas um critério sustentado por teóricos e
acadêmicos para solucionar de modo mais adequado a relação entre justiça e
liberdade. Ao longo dos últimos duzentos anos ela foi também, testada e
experimentada em diferentes modelos que variaram conforme as situações históricas
concretas (VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006). Após a Constituição de 1998,
também o Brasil passou a contar com uma forte propensão para que a renda básica
universal fosse implementada em nosso país. O princípio constitucional que sustenta
como fundamento da República o respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc.
III, CF/88) e o dispositivo que define como um dos objetivos fundamentais da
República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inc. I, CF/88)
constituem diretivas que determinam as opções políticas mais amplas que o Estado
estabelece para si próprio (SILVA, 1999).
Com base nessa abertura igualitária e solidária proporcionada pela nova
ordem constitucional, foi apresentado o projeto de lei nº 80/91, de autoria do então
Senador da República Eduardo Suplicy, que propunha o pagamento de uma renda
mensal a todas as pessoas que ganhassem menos 2,5 salários mínimo, no montante
correspondente à diferença entre aquele valor e o que efetivamente recebessem
(SUPLICY, 2006).
Nos anos que se seguiram, diversas experiências locais de programas de
garantia de renda mínima foram ocorrendo em localidades do país, seja em âmbito
estatal, seja em âmbito municipal, com destaque para o programa Bolsa Escola,
implementado no Distrito Federal pelo então governador Cristovam Buarque e o
Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima do município de Campinas. Em
217
síntese, tais programas consistiam no pagamento de uma renda às famílias cuja renda
era muito pequena ou nula e que cumprissem a exigência de manter suas crianças
matriculadas e freqüentando a escola primária e secundária.
Tais programas locais foram incentivados por legislações federais que
autorizaram maiores gastos públicos com iniciativas dessa natureza e que
estabeleceram a possibilidade de transferir, através de convênio, o custeio dos
programas ao governo federal173. O incentivo maior ocorreu com a criação, em 2002,
do Fundo de Pobreza, que destinou parcela da arrecadação obtida com Contribuição
Provisória sobre Movimentações Financeiras174 (CPMF), intensificando ainda mais as
ações ligadas à garantia de renda mínima no Brasil.
Posteriormente, no ano de 2003, os programas de renda mínima existentes
no país – Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás e Cartão Alimentação –
foram unificados no Programa Bolsa Família, através da Medida Provisória nº
132/2003. Por tal programa, estabelece-se que todas as famílias cuja renda mensal per
capita for inferior a R$ 100,00 têm direito a uma complementação em sua renda
mensal, determinada de acordo com o valor que recebem:
Se a renda mensal per capita for de até R$ 50, o benefício mensal é de R$ 50, mais
R$ 15, R$ 30, ou R$ 45, dependendo se a família tem uma duas ou mais crianças de
até 16 anos de idade, respectivamente. Se a renda per capita mensal da família está
na faixa de R$ 50 a R$ 100, o benefício será de apenas R$ 15, R$ 30 ou R$ 45 por
mês, dependendo se a família tem uma duas, três ou mais crianças de até 16 anos de
idade respectivamente. (SUPLICY, 2006, p. 95)
Tendo em vista os impactos positivos que a instituição desses programas de
renda mínima trouxe aos índices de desenvolvimento social do país e o momento
político favorável, o Congresso Nacional aprovou, no ano de 2004, a Lei 10.835, que
173
Lei 9.533/97 e Lei 10.219/01, respectivamente.
A CPMF determina que 0,38% do valor de todas transações financeiras seja retido a título de contribuição. O
valor correspondente a 0,08% é destinado ao Fundo de Pobreza (SUPLICY 2002, 2006);
174
218
institui a renda básica de cidadania, oriunda do Projeto de Lei apresentado pelo
Senador Eduardo Suplicy, mas acrescido de modificações necessárias a sua adequação
às Leis orçamentárias do país (SUPLICY, 2002).
Em seu artigo 1º, a Lei 10.835/04 prevê a implementação da renda básica
de cidadania, bem como em que consiste a referida verba:
Art. 1o É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se
constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros
residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição
socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário.
Perceba-se que, diferentemente dos programas de renda mínima, a renda
básica de cidadania, tal como o modelo de renda básica universal defendido por Van
Parijs (1995), não prevê distinções relativas à condição sócio-econômica para ter
direito ao beneficio da renda. Ela é direito de todos os cidadãos residentes no país há
mais de cinco anos, sejam eles ricos ou pobres, consagrando-se, assim, o atributo da
incondicionalidade próprio dessa medida. No entanto, ante a premência de uma ação
política que priorize a questão da miséria e da pobreza no país e a preservação do
critério relativo à sustentabilidade que condiciona a instituição da renda, a legislação
optou por definir que a renda básica de cidadania será implementada gradualmente,
priorizando-se as camadas mais necessitadas da população:
§ 1o A abrangência mencionada no caput deste artigo deverá ser alcançada em
etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas
da população.
§ 2o O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente
para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e
saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as
possibilidades orçamentárias.
Assim, tornar viável economicamente a ambiciosa proposta contida na
legislação nacional é o desafio que o país passa a enfrentar a partir da promulgação da
219
legislação. A fundamentação legal para tanto já se encontra no ordenamento jurídico
brasileiro. Suplicy (2002, 2006) expõe em sua obra que a principal condição para que
se consiga efetivar implementação da renda básica de cidadania é a generalização do
debate175 a seu respeito. Isto é, fazer com que se torne conhecida e aceita pelos
cidadãos, pelas entidades e associações de classe, pelos atores políticos, a fim de que o
coro de vozes que reivindica às instituições governamentais o direito de todos os
cidadãos à renda básica de cidadania cada vez mais ganhe corpo e, enfim, seja possível
afirmar que o Brasil seja um país o mais justo e o mais livre possível.
Logo, após o percurso de todas as etapas decorrentes do desdobramento da
questão, tem-se agora condições de voltar à indagação feita no início do trabalho (2.1)
sobre a relação entre liberdade e justiça.
4.5 Sobre a relação entre justiça e liberdade, ou ainda, como distribuir justiça
distribuindo liberdade
A apresentação das diversas dimensões do conceito moderno de liberdade
permitiu demonstrar de que modo a polissemia dessa palavra fez com que as diversas
interpretações peculiares que lhe foram dadas tornaram a liberdade algo incompatível
com as pretensões distributivas da justiça.
De uma perspectiva liberal extremada, ortodoxa e tradicional, a contradição
manifesta-se do seguinte modo: de um lado, a liberdade exige um sistema econômico
175
Instrumentos eficazes no processo de divulgação da renda básica universal são as redes (network) de debate.
A BIEN (antes denominada Basic Income European Network agora convertida para Basic Income Earth
Network) é o mais amplo fórum de debate acerca renda básica universal, realizando encontros e promovendo
publicações (VANDERBORGHT; VAN PARIJS, 2006). No Brasil, conta-se com a RBRBC (Rede Brasileira da
Renda Básica de Cidadania), presidida pelo Senador Eduardo Suplicy (2006).
220
de distribuição de riquezas impessoal, pautado pelo livre mercado e que preserve a
livre iniciativa e a autonomia da vontade nas relações econômicas e sociais, atributos
intrínsecos ao sistema capitalista. De outro, os efeitos da permanência desse sistema
leva ao estabelecimento e à perpetuação de uma estrutura de distribuição de bens
sociais profundamente desigual e injusta.
Segundo um ponto de vista liberal extremado, liberdade e justiça seriam
incompatíveis entre si, pois a realização da liberdade ocorreria ao custo da negação da
justiça, já que qualquer pretensão a esta significaria uma ofensa àquela.
Por outro lado, as movimentações políticas que tomaram partido em favor
da bandeira da justiça ao longo do século XX só se sustentaram a partir de uma
perspectiva acerca da liberdade que sacrificaria a sua dimensão moderna,
estabelecendo, assim, uma nova contradição entre justiça e liberdade. Pois, de um
lado, a justiça exigia a observância de certos padrões de distribuição dos bens sociais
em conformidade com os critérios por ela definidos como justos, fossem eles a
igualdade plena de recursos ou a atribuição do maior bem-estar possível às pessoas. E,
de outro, as medidas necessárias para se levar a cabo tais padrões, definidas por uma
entidade política, requeriam intervenções diretas na vida, na vontade e na
individualidade das pessoas.
Segundo um ponto de vista intervencionista, também justiça e liberdade
seriam incompatíveis entre si, pois a realização da justiça ocorreria ao custo da
liberdade, já que qualquer pretensão desta significaria um obstáculo à implementação
daquela.
No entanto, viu-se como a perspectiva liberal-igualitarista mostra ser
possível equacionar a convivência dessas duas idéias no seio de uma sociedade. Os
princípios de justiça de Rawls constituem um primeiro passo em direção à
221
compreensão de que é possível o estabelecimento de uma sociedade justa e, ao mesmo
tempo, livre. Todavia, em sua formulação, há ainda uma distinção nítida entre o papel
da liberdade e da justiça no conjunto da teoria. Ambas se encontram
compartimentadas em cada um dos respectivos princípios que as consagram: de um
lado, está o princípio que atribui um direito igual ao mais abrangente sistema de
liberdades aos indivíduos; de outro, o princípio que rege a distribuição das vantagens
oriundas da cooperação econômica, notadamente, os bens sociais.
Nesse aspecto, Philippe Van Parijs adota uma perspectiva inovadora, pois
compreende a liberdade como um conceito unitário. Do ponto de vista da realliberdade, no conceito de liberdade estão presentes tanto as dimensões formal e
negativa (princípio da segurança e da propriedade de si) quanto as dimensões material
e positiva (princípio do leximin das oportunidades).
Assim, quando Van Parijs propõe que a realização da justiça se faça pela
atribuição aos indivíduos da maior liberdade possível que cada um possa desfrutar
para levar a vida como bem entende, propõe também como critério de realização da
justiça a (maior) realização (possível) da liberdade. E desse modo o reallibertarianismo consegue afirmar que uma sociedade justa é, em última instância,
também e necessariamente uma sociedade livre (ou uma sociedade em que seus
membros são realmente livres). Livre não somente no sentido de uma sociedade que
garanta a seus membros o igual respeito às diferentes concepções de bem que cada um
deseja professar, mas também que lhes dispense igual solicitude de tratamento,
disponibilizando-lhes as oportunidades e os meios efetivos para que possam realizar
suas escolhas.
Para tanto, não se faz qualquer recurso a uma oposição ferrenha entre
Capitalismo e Socialismo Real/ Estado de Bem-Estar Social, como se cada um dos
222
sistemas econômicos encabeçasse a função de realizador da liberdade ou da justiça,
respectivamente. Os arranjos institucionais necessários à efetivação da real-liberdadepara-todos podem perfeitamente ocorrer dentro do marco de um sistema econômico
capitalista. Aliás, há inclusive uma forte presunção para que assim o seja, já que o
capitalismo dispensa a presença de uma autoridade central de planejamento, que dirige
e comanda a dimensão produtiva das relações sociais humanas, significando a
concessão de uma maior liberdade aos indivíduos para poderem determinar por si
mesmos os rumos de sua vida.
Por sua vez, também não se justifica a adoção de um capitalismo orientado
pelas diretivas do credo neoliberal de intervenção mínima. Caso subsistir em uma
sociedade justa, esse sistema capitalista deverá adequar-se a reformas institucionais, de
modo a que nele sejam incorporadas estruturas que possibilitem o financiamento dos
meios necessários a se promover os mecanismos que proporcionarão a real-liberdade
aos indivíduos. Em última análise, esse sistema capitalista compatível com uma
sociedade justa seria aquele que incorporasse, em sua estrutura, a atribuição de uma
renda básica universal, responsável por permitir às pessoas o maior conjunto possível
de oportunidades para que elas venham a levar as suas vidas do modo mais livre
possível. Nessa sociedade, as eventuais desigualdades oriundas do sistema capitalista
estariam justificadas, pois, de fato, elas somente existiriam para promover o benefício
de todos, em especial daqueles que se encontram na posição menos favorecida.
E desse modo a proposta de Phillippe Van Parijs para se atribuir uma renda
básica universal, indiscriminada e não condicional, sem amarras ou restrições, se
apresentaria como responsável por realizar a justiça em uma sociedade, através da
oferta de liberdade, a maior possível, a todos os seus membros.
223
5 CONCLUSÃO
No início do trabalho, pretendeu-se dissertar sobre a relação entre justiça e
liberdade nas concepções de teoria da justiça contemporâneas. Levantou-se como
hipótese de trabalho que essas teorias eram levadas a sustentar uma contradição entre a
justiça e a liberdade em função da perspectiva parcial com que concebiam a liberdade
moderna, sempre descurando de alguns de seus aspectos. E que somente quando as
teorias da justiça empregassem um conceito de liberdade que englobasse todas as suas
dimensões a aparente contradição seria resolvida.
Para esclarecer os termos do problema relativo à hipótese de trabalho, foi
necessário demonstrar a existência de uma característica peculiar à liberdade moderna
responsável por orientar as teorias da justiça em suas formulações sobre o tema, qual
seja, a de que o indivíduo deve possuir um espectro de ações individuais protegido
contra as medidas coletivas, dentro do qual somente ele é soberano para tomar
decisões relativas a sua pessoa. Essa característica faz com que as teorias da justiça
que concorrem a uma validade normativa no quadro da modernidade devam ser
‘liberais’, isto é, ser teorias da justiça que defendam que o indivíduo é a última
instância de definição sobre a concepção de bem que irá lhe orientar, inexistindo,
assim, uma que seja superior às demais. Isto leva as instituições sociais a
resguardarem aos membros da sociedade o direito de cada um conduzir a sua vida
como bem entender.
Foi possível identificar como esse caráter individual da liberdade nasce a
partir de uma evolução de idéias, podendo-se encontrar o seu germe na filosofia que
antecede a modernidade, como verificado tanto nas idéias de Epicuro, sobre a
224
felicidade e a autarquia no espaço interior do homem, quanto de Santo Agostinho, que
forja o conceito de livre-arbítrio para marcar como o caminho que leva à liberdade
passa por uma escolha individual do homem pela bondade infinita do Senhor.
Viu-se também que a liberdade moderna não se resume às idéias de nãointerferência e de autonomia, segundo defendidas pelos autores liberais John Locke e
Immanuel Kant, respectivamente. A análise da fundação do sujeito moderno, por meio
do pensamento de René Descartes, salientou que o nascimento do sujeito significará
que a realização da liberdade exige o preenchimento de outras dimensões trazidas com
a noção de individualidade correlata a esse conceito. Isso pode ser constatado tanto
pela filosofia de Thomas Hobbes quanto de Jean-Jacques Rousseau. Em apelo ao
mecanicismo, Hobbes mostra que para haver liberdade é preciso que sua dimensão
material seja realizada. Isso ocorre através da retirada dos obstáculos e impedimentos
que ligam o impulso da vontade ao seu objeto de desejo e, assim, haja a concretização
material dessa vontade. Também a filosofia rousseauniana apresenta um aspecto da
liberdade não compreendido na formulação liberal desse conceito, denominado de
dimensão positiva. Ela se relaciona à capacidade de o indivíduo participar ativamente
na definição dos rumos da coletividade que se insere, definindo-lhe um igual valor
político em relação aos demais.
Da investigação relativa às dimensões peculiares que a liberdade moderna
adquiriu, passou-se a analisar como elas deram origem às concepções de teoria da
justiça formuladas nos séculos XIX e XX. Os contrastes verificados da comparação
entre essas concepções são responsáveis pela formulação da assertiva que sustentou a
oposição entre liberdade e justiça.
Demonstrou-se que as teorias da justiça que buscaram realizar apenas as
dimensões material e positiva da liberdade, respectivamente o utilitarismo e o
225
marxismo, expuseram a contradição entre justiça e liberdade nos seguintes termos: as
exigências necessárias à preservação das dimensões formal e negativa da liberdade
constituem empecilhos para que a justiça possa realizar as dimensões material e
positiva da liberdade. Pois como essas dimensões da liberdade requerem a distribuição
de bens segundo cada um dos respectivos critérios de justiça que cada teoria adota,
quais sejam, estabelecer o maior bem-estar possível para aos membros da sociedade
ou a igualdade de acesso dos recursos econômicos da sociedade a todos os indivíduos,
tem-se um enfraquecimento dos direitos ligados à propriedade privada e à soberania da
vontade. Foram relacionadas também as experiências históricas que cada uma dessas
teorias da justiça inspirou: respectivamente, o Estado de Bem-Estar Social e o
Socialismo Real. Ambos são marcados pela presença de uma autoridade central que
controla e distribui os recursos econômicos e sociais da sociedade de modo a
promover os padrões de justiça definidos por cada uma das teorias. Viu-se que essas
duas experiências políticas foram marcadas por uma forte presença do Estado na vida
privada das pessoas, tolhendo, assim, o sentido primordial que a liberdade moderna
havia estabelecido para esse conceito.
Em seguida, apresentou-se a reação do libertarianismo às teorias da justiça
que enfatizaram a alocação e distribuição de recursos sociais como critério de
realização da justiça. Explicou-se como essa concepção de justiça reforça os aspectos
negativo e formal da liberdade e extirpa desse conceito as suas dimensões positiva e
material. Com esse recurso, o libertarianismo expôs a contradição entre liberdade e
justiça nos seguintes termos: a realização da liberdade exige que sejam preservadas
apenas as dimensões negativa e formal da liberdade, o que torna as pretensões
distributivas de justiça relativas às dimensões material e positiva da liberdade apenas
ofensas àquelas. A análise do libertarianismo permitiu constatar como essa concepção
226
resgata a noção liberal de liberdade, reduzindo a justiça à observância de um sistema
de direitos que garante a propriedade-de-si e a soberania das manifestações de vontade
e deixando a questão relativa à distribuição de recursos econômicos e sociais de uma
sociedade a cargo do sistema de trocas e intercâmbios próprio do mercado. Ao
verificar os reflexos históricos da aplicação prática das propostas libertarianistas, viuse que essa concepção inspirou o modelo político-econômico que se contrapôs ao
Estado Social e prega um Estado restrito às funções imprescindíveis de permanência e
de sobrevivência do corpo político, no qual a distribuição dos recursos sociais e
econômicos da sociedade é realizada pelo mercado e seu conjunto próprio de regras.
Contudo, ao final da análise sobre o libertarianismo, constatou-se também que essa sua
última característica põe em xeque os fundamentos em que toda a teoria se assenta. Ao
deixar que o mercado seja responsável pela distribuição dos recursos de uma
sociedade, permite-se que a condição econômica das pessoas possa ser reduzida a tal
ponto que elas fiquem impossibilitadas de manifestar livremente a sua vontade, em
função dos constrangimentos decorrentes da escassez de recursos.
Assim, se até então a contradição entre liberdade e justiça afigurava-se
como manifesta nos debates entre utilitarismo e marxismo, de um lado, e
libertarianismo, de outro, a formulação da justiça como imparcialidade de John Rawls
introduziu uma ponto-de-vista completamente inovador à discussão, chamado de
liberal-igualitarismo. A exposição dos princípios de justiça, definidos através do
expediente metodológico da posição original, explica como Rawls mostra ser possível
acomodar um sistema de justiça distributiva dentro de um conjunto de liberdades
fundamentais que lhe são prioritárias, fazendo cair por terra a aparente contradição
entre justiça e liberdade. Viu-se que a solidez dos argumentos da justiça como
imparcialidade impediu que os questionamentos às concepções liberais de justiça
227
permanecessem relativos à sua incapacidade de definir um sistema de distribuição dos
recursos econômicos e sociais para as instituições sociais. Caso pretendam-se
pertinentes, eles devem agora situar-se em um nível mais abrangente, relativo à
contestação da própria proposta de se fundar uma sociedade sobre bases liberais. No
entanto, a apresentação das teorias comunitaristas que levaram à cabo tal propósito
deixou claro que, ao se argumentar em favor de uma concepção unitária de bem, correse o risco de negar o caráter plural das sociedades contemporâneas e, com isso, o valor
de se preservar o direito de cada um buscar a sua felicidade de acordo com a
concepção de bem que melhor lhe apraz. Negar o fato do pluralismo implicaria, assim,
um rompimento com a noção moderna de liberdade, o que estaria em descompasso
com o momento histórico-cultural que atualmente se vivencia.
Após a superação da contradição aparente entre justiça e liberdade, os
rumos da investigação voltaram para o potencial da teoria de John Rawls em ser o
compromisso mais adequado entre justiça e liberdade. Nesse aspecto, foram
exploradas as deficiências de sua teoria que apontam em quais aspectos a justiça como
imparcialidade deixaria de lado esse compromisso. O parâmetro utilizado foi o
conceito de real-liberdade definido por Phillippe Van Parijs. Segundo a real-liberdade,
a justiça de uma sociedade exige não apenas a proteção aos princípios da segurança e
da propriedade-de-si como também a realização do princípio que determina a elevação
do conjunto de oportunidades (opportunity set) dos indivíduos segundo o critério do
leximin. Por meio desse último princípio, ao lado das dimensões negativa e formal,
também as dimensões positiva e material da liberdade seriam plenamente consagradas
em uma teoria da justiça, pois o conjunto de oportunidades forneceria aos indivíduos
não somente a possibilidade de realizar escolhas livres, como também a capacidade
para tanto.
228
A análise das críticas dirigidas por Van Parijs a Rawls permitiu que se
avançasse em direção a uma reformulação da justiça como eqüidade naqueles pontos
em que ela não se presta a realizar os parâmetros da real-liberdade. Os alvos dessas
críticas foram a ambigüidade do princípio da diferença e a explícita negação de Rawls
acerca da possibilidade de sua teoria fundamentar a atribuição de uma renda básica aos
membros da sociedade. O estudo da primeira das críticas mostrou que o princípio da
diferença possui uma abertura interpretativa que sugere a formulação de duas distintas
versões: a versão menos igualitária, utilizada para justificar as desigualdades sociais
que se verificam nas sociedades capitalistas contemporâneas; e a versão mais
igualitária, que fornece um critério de justiça para tornar legítimas e aceitáveis as
eventuais desigualdades sociais que possam existir em uma sociedade. E como Rawls
não se posicionou explicitamente acerca dessa ambigüidade, definiu-se que a
realização do critério da real-liberdade implica em uma reformulação da justiça como
imparcialidade, de modo que ela somente aceite a versão mais igualitária do princípio
em seu interior.
A segunda das críticas, referente aos argumentos apresentados por Rawls
para rejeitar que sua teoria se preste a fundamentar a instituição de uma Renda Básica,
mostra uma incoerência no pensamento maduro de Rawls. Pois, não obstante os
variados argumentos que se pode inferir da justiça como imparcialidade em favor de
uma renda básica, Rawls viu-se obrigado a reformular o princípio da diferença para
rejeitar que essa proposta fosse condizente com sua teoria. Contudo, ao introduzir o
lazer como integrante da lista de bens primários, viu-se que seus contra-argumentos
levam a uma série de imprecisões conceituais, tolhem a realização outros bens
primários, como as bases sociais do auto-respeito e as posições e prerrogativas ligadas
229
às posições sociais, e ainda terminam por ofender o princípio da neutralidade, já que
consagram uma concepção particular de realização da felicidade por meio do trabalho.
Assim, a conclusão extraída das críticas a Rawls é a de que a atribuição de
uma Renda Básica Universal seria o modo como as instituições de uma sociedade
realizariam a liberdade em seu sentido mais pleno. Isto levou a uma investigação das
características dessa proposta, segundo formuladas por Phillippe Van Parijs.
Verificou-se que características como a incondicionalidade, relacionada à abolição de
qualquer teste de meio (means test) para o recebimento do benefício, o pagamento em
dinheiro e em intervalos regulares fazem dela uma proposta altamente condizente com
os critérios da real-liberdade. Viu-se que as referências ao critério da sustentabilidade
para a definição do valor monetário da renda e ao seu custeio pelo sistema de
arrecadação tributária tornam a proposta viável também do ponto de vista econômico.
Por fim, foi apresentado um breve relato da experiência no Brasil, de como
o país passou da utilização de programas de garantia de renda mínima para a
aprovação de uma Lei que estabelece o direito à renda básica aos seus cidadãos,
mostrando-se, assim, que a proposta de renda básica não é algo tão distante da
realidade como muitos poderiam imaginar.
Os caminhos percorridos na verificação da correção da hipótese de trabalho
demonstraram que a contradição entre justiça e liberdade era antes fruto de uma
compreensão parcial do conceito de liberdade do que uma real oposição entre esses
termos. A análise da teoria da justiça liberal-igualitarista demonstrou que é possível
um arranjo institucional que consiga realizar uma distribuição justa de recursos
econômicos e sociais sem ofender os direitos ligados à liberdade individual. Já o
critério de justiça fornecido pelo real-libertarianismo tornou ainda mais íntima a
relação entre justiça e liberdade, pois introduziu como forma de realização desta o
230
princípio da elevação do conjunto de oportunidades, segundo o critério leximin, que
somente ocorre por meio daquela. Ou seja, demonstrou-se que a distribuição da justiça
significa tão-somente a distribuição da liberdade. Logo é o critério do reallibertarianismo que deverá ser adotado caso se pretenda formular um critério
normativo para uma sociedade justa e, ao mesmo tempo, livre.
Por esse critério as instituições sociais são levadas a instituir uma Renda
Básica Universal a ser paga incondicionalmente aos seus cidadãos. Essa proposta que,
à primeira vista, pode parecer audaciosa, fantasiosa ou mesmo utópica é, em verdade,
o mecanismo mais óbvio à disposição da sociedade para introduzir um critério de
justiça aceitável para suas instituições sociais. Em um país como o Brasil, é ainda um
eficiente instrumento de combate à pobreza e às mazelas sociais dela decorrentes.
No entanto, para que a implementação da Renda Básica Universal se torne
uma realidade no Brasil e, quem sabe, no mundo, não bastam apenas apresentações
acadêmicas de sua inegável superioridade enquanto critério de justiça. É preciso
também um engajamento político em seu favor, não somente de Van Parijs, Suplicy,
de tantos outros que hoje compõem a BIEN e outras redes de debate mundiais de
debate sobre a renda básica espalhadas pelo mundo, mas também o meu, o seu, do seu
vizinho, de seus colegas de trabalho, daqueles que participam de sua comunidade,
enfim, de todos aqueles com quem você possa conversar sobre o tema. Talvez juntos
seja possível que cantemos com John Lennon: “You may say I'm a dreamer / But I'm
not the only one / I hope someday you'll join us / And the world will live as one”.176
176
“Você pode me chamar de sonhador / mas eu não sou o único / espero que um dia você se junte a nós / e o
mundo em que vivemos seja um só” (LENNON, 1971) (tradução nossa)
231
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 223p.;
AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. 4.ed. São Paulo: Paulus, 2004. 296p.;
ARAÚJO, Cícero. Algumas reflexões sobre Descartes e Maquiavel. Transformação,
São Paulo, Vol. 17, p. 113-132, 1994;
_______. Nozick e o Estado. In: OLIVEIRA, Manfredo; AGUIAR, Odílio Alves;
SAHD, Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva (org.). Filosofia Política
Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2003. p.272-286.;
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
348p.;
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p.281
(Coleção Os Pensadores);
ARNSPERGER, Christian; VAN PARIJS, Philippe. Ética econômica e social. São
Paulo: Loyola, 2003. 142p.;
AUDARD, Catherine. Glossário. In: RAWLS, John. Justiça e Democracia. São
Paulo: Martins Fontes, 2000. 406p.;
ÁVILA, José Manuel Bermudo. Bentham: a ciência do legislador. In: PELUSO, Luis
Alberto (org.). Ética & utilitarismo. Campinas: Alínea, 1998. p.81-95.;
BENTHAM, Jeremy. An Introduction to The Principles of Morals and Legislation.
Darien: Hafner, 1970. 378p.;
BERNARDES, Júlio. Hobbes & a Liberdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. 76p.
(Coleção passo-a-passo, 7);
232
BERTEN, André. Filosofia social: A responsabilidade social do filósofo. São Paulo:
Paulus, 2004. 140p.;
BIGNOTTO, Newton. O conflito das liberdades: Santo Agostinho. Síntese Nova
Fase, Belo Horizonte, vol. 19, n. 58, p. 327-359, 1992;
_______. O renascimento das liberdades. In: NOVAES, Adauto (org.). O avesso da
liberdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p.77-98.;
BINI, Edson. Glossário. In: KANT, Imannuel. A metafísica dos costumes. São Paulo:
Edipro, 2003. 335p.;
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 8. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 217;
_______. Estudos sobre Hegel: Direito, Sociedade Civil, Estado. 2.ed. São Paulo:
Brasiliense, 1991. p. 229;
BONELLA, Alcino Eduardo. Rawls e a justiça de fundo “background justice”.
Philósophos, Goiânia, v. 6, n. 01/02, p.27-42, 2001;
BORNHEIM, Gerd. O sujeito e a norma. In: NOVAES, Adauto (org.). Ética. São
Paulo: Cia. das Letras, 1992. p. 247 - 260.;
_______. As medidas da liberdade. In: NOVAES, Adauto (org.). O avesso da
liberdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p. 41-58.;
BOTTOMORE, Tom (ed.). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001. 454p.;
BRASIL. Lei n. 10.835, de 8 de jan. 2004. Institui a renda básica de cidadania e dá
outras providências. Diário Oficial, Brasília, 9 jan. 2004;
BRITO. José de Souza e. É o princípio da utilidade racional? In: PELUSO, Luis
Alberto (org.). Ética & utilitarismo. Campinas: Alínea, 1998. p.63-80.;
BROWNE, Alfredo Lisboa. Economia Geral: para os cursos da área tecnológica.
Petrópolis: Vozes; São Paulo: Edusp, 1973. 384p.;
233
CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. O utilitarismo, os direitos e os deveres
morais. In: PELUSO, Luis Alberto (org.). Ética & utilitarismo. Campinas: Alínea,
1998. p.223-238.;
_______. Utilitarismo: ética e política. In: OLIVEIRA, Manfredo; AGUIAR, Odílio
Alves; SAHD, Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva (org.). Filosofia Política
Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2003. p.191-213.;
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das aflições. De Epicuro à ressurreição de César:
ensaio sobre o materialismo e a religião civil. 2.ed. São Paulo: É Realizações, 2000.
335p.;
CHAUÍ, Marilena. Público, privado, despotismo. In: NOVAES, Adauto (org.). Ética.
São Paulo: Cia. das Letras, 1992. p. 345-390.;
CRUZ JÚNIOR. Ademar Seabra da. Justiça como eqüidade: Liberais, comunitaristas
e a autocrítica de John Rawls. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 351p.;
DIAS, Maria Clara. A fundamentação dos direitos naturais em Locke: na encruzilhada
entre o divino e o humano. Ethica – Cadernos Acadêmicos, Rio de Janeiro, v.5, n.2,
p. 59-74, 1998;
DINIZ, Antônio Carlos de Almeida. Direito, Estado e Contrato Social no pensamento
de Hobbes e Locke: uma abordagem comparativa. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, ano 38, n. 152, p. 151-172, out./dez. 2005;
DESCARTES, René. Discurso sobre o método. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes,
1996. 102p.;
_______. Meditações. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores);
DOMINGUES, Ivan. Marx, o Marxismo e o Socialismo Real. Kriterion, Belo
Horizonte, Vol. XXV, vol. 73, p. 27-60, jul./dez. 1984;
DONATO, Messias Pereira. O Socialismo Científico: Karl Marx. Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de Minas gerais (Nova Fase), Belo Horizonte,
ano XI, p.48-76, out. 1959;
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998. 119p.;
234
_______. O manifesto comunista. Rocket Edition, 1999. Disponível em
<http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/manifestocomunista.html>.
Acesso
em
11/12/2006;
ESTEVES, Julio. Críticas às críticas de Rawls ao utilitarismo. Ethica – Cadernos
Acadêmicos, Rio de Janeiro, v.9, n.1, e. 2 p. 157-173, 2002;
FARAGO, France. A justiça. São Paulo: Manole, 2004. 334p.;
FARRELL, Os utilitarismos possíveis e a máquina da felicidade. In: PELUSO, Luis
Alberto (org.). Ética & utilitarismo. Campinas: Alínea, 1998. p.190-200.;
FELIPE. Sônia T. Rawls: entre o socialismo real e o capitalismo liberal. Filósofos,
Goiânia, vol. 01, n. 02, p.89-96. jul./dez. 1996;
_______.A relação crítica de Rawls com a filosofia política: a fundamentação
histórica e não-metafísica de uma teoria da justiça. Filósofos, Goiânia, vol. 04, n. 01,
p.105-123. jan./jun. 1999;
FERNANDES, Jussara Valente. Da progressividade social: o princípio utilitarista de
John Sturat Mill como filosofia fomentadora do conhecimento humano. Phrónesis,
Campinas, v. 07, n. 02, p.95-111, jul./dez. 2005;
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica
decisão, dominação. 4.ed. São Paulo, Atlas, 2003. 370p.;
FLORENZANO, Vincenzo Demetrio. Justiça, mínimo social e salário mínimo: uma
abordagem transdisciplinar. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 42, n.
165, p. 39-50, jan./mar. 2005;
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Um estudo sobre a relação entre o Estado e a
propriedade privada a partir de John Locke. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, ano 37, n. 148, p. 183-195, out./dez. 2000;
GALUPPO, Marcelo Campos. Hermenêutica Constitucional e Pluralismo. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Org.)
Hermenêutica e jurisdicão constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, cap. 3,
p.47-65;
235
_______. A virtude da justiça. Extensão, Belo Horizonte, v.10/11, n. 33/34, p.67-78,
dez.2000/abr. 2001;
_______. A epistemologia jurídica entre o positivismo e o pós-positivismo. Revista do
Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, vol. 01, n. 03, p. 195-206, 2005;
GAUTHIER, David. Hobbes: The laws of nature. Pacific Philosophical Quarterly,
Oxford; Malden, 82, p. 258-284, 2001;
GOMES, Maria Cristina Leite. John Stuart Mill: felicidade, justiça e liberdade.
Phrónesis, Campinas, v. 02, n. 01, p.49-61, jan./jun. 2000;
GUISÁN, Esperanza. Utilitarismo, Justiça e Felicidade. In: PELUSO, Luis Alberto
(org.). Ética & utilitarismo. Campinas: Alínea, 1998. p.131-142.;
GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Ética e Direito em Kant: duas esferas
inconciliáveis? Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, Vol. XLII, Fac. 173, p.89102, jan./mar. 1994;
_______. Das necessidades humanas aos direitos: ensaio de sociologia e filosofia do
direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. 230p.;
HABERMAS, Jürgen. Ensayos políticos. 3.ed. Barcelona: Península, 1997, 283p.;
HARRISON, George. Taxman. Londres: Parlophone, 1966. Disponível em
<http://www.lyricsdomain.com/7/george_harrison/taxman.html>.
Acesso
em
12/11/2006.;
HARTOG, François. Da liberdade dos antigos à liberdade dos modernos: o momento
da Revolução Francesa. In: NOVAES, Adauto (org.). O avesso da liberdade. São
Paulo: Cia. das Letras, 2002. p.151-190.;
HAYEK. Friedrich August von. O caminho da servidão. 5.ed. Rio de Janeiro:
Instituto Liberal, 1990. 221p.;
HECK, José N; LEANDRO, Wanisse A. Hobbes e a modernidade filosófica: um
estudo do ‘more geometrico’ hobbesiano. Filósofos, Goiânia, vol. 03, n. 01, p.29-56.
jan./jun. 1998;
236
HECK, José N. A justiça das preferências e a justiça das instituições. Filosofia
UNISINOS, São Leopoldo, vol. 02, n. 03, p. 125-148, jul./dez. 2001;
_______. Fisicalismo e liberdade: impasses do materialismo hobbesiano. Filosofazer,
Passo Fundo, ano XIII, n. 24, p. 71-92, 2004-I;
HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. A condição política pós-moderna. 2.ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 239p.;
HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2004. 288p.;
_______. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico civil. São
Paulo: Rideel, 2005. 414p.;
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. 2.ed. São
Paulo: Cia. das Letras, 1995. 598p.;
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 379p.;
HUME, David. A treatise of human nature. Londres: Everyman´s Library, [19-??]
258p. (século certo);
_______. Investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural,
1973. p.127-200. (Coleção Os Pensadores);
INWOOD, Micheal. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 362p.;
JORGE FILHO, Edgar José. Moralidade e estado de natureza em Rousseau. Síntese
Nova Fase, Belo Horizonte, vol. 21, n. 65, p. 183-205, 1994;
KANT. Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p.7-98.
(Coleção Os Pensadores);
_______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Abril Cultural,
1974. p.195-256. (Coleção Os Pensadores);
_______. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto em teoria mas nada vale
na prática. In: A Paz Perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2002, 179p.
(Coleção Textos filosóficos);
237
_______. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003. 335p.;
KUNTZ, Rolf. Locke, Liberdade, Igualdade e Propriedade. In: QUIRINO, Célia
Galvão; VOUGA, Cláudio; BRANDÃO, Gildo Marçal; (org.). Clássicos do
pensamento político. São Paulo: Edusp, 1998. p.91-120.;
LAGO, Lorenzo. Notas acerca da liberdade dos súditos no Leviatã de Thomas
Hobbes. Fragmentos de cultura, Goiânia, vol. 13 (especial), p. 137-147, mar. 2003;
LANDIM, Maria Luiza P. F. A liberdade em Kant. Revista Brasileira de Filosofia,
São Paulo, Vol. XLIII, Fac. 182, p.182-190, abr./jun. 1996;
LENNON, John; McCARTNEY, Paul. Paperback writer. Londres: Parlophone, 1966.
Disponível em < http://www.seeklyrics.com/lyrics/Beatles/Paperback-Writer.html >.
Acesso em 12/11/2006;
_______. She is leaving home. Londres: Parlophone, 1967. Disponível em
<http://www.lyrics007.com/The%20Beatles%20Lyrics/She's%20Leaving%20Home%
20Lyrics.html>. Acesso em 12/11/2006;
LENNON, John. Imagine. Londres: Apple/EMI, 1971.
<http://www.oldielyrics.com/lyrics/john_lennon/imagine.html>.
12/11/2006;
Disponível
Acesso
em
em
LEVY, Nelson. Uma reinvenção da ética socialista. In: NOVAES, Adauto (org.).
Ética. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. p. 163-190.;
LIMA, Fernanda Telles de Lima; CRAVEIRO, Silvia. Tributação e política municipal
um estudo de caso: o programa de fortalecimento financeiro do município de Vitória
da Conquista – BA. Cadernos gestão pública e cidadania, São Paulo, vol. 29, jul.
2003.
Disponível
em
<http://inovando.fgvsp.br/conteudo/documentos/cadernos_gestaopublica/CAD%2029.
pdf>;
LOCKE, John. Dois Tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
639p.;
LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o Direito. Porto
Alegre: Fabris, 1983. 95p.;
238
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual racionalidade? 2.ed. São Paulo:
Loyola, 2001. p. 439 (Coleção Filosofia, 17);
MACEDO, Ubiratan Borges de. A crítica de Michael Walzer a Rawls: liberalismo
versus comunitarismo na universalidade ética. Revista Brasileira de Filosofia, São
Paulo, Vol. XLIV, Fac. 187, p.335-351, jul./set. 1997;
_______. Renascença, apogeu e crise do liberalismo. Ethica – Cadernos Acadêmicos,
Rio de Janeiro, v.5, n.2, p. 75-92, 1998;
MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a
Locke. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1979;
MADANES, Leiser. Hobbes e o poder arbitrário. Discurso, São Paulo, n. 28, p.89126, 1997;
MAFFETONE, Sebastiano; VECA, Salvatore (org.). A idéia de justiça de Platão a
Rawls. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 451p.;
MAGALHÃES, Sérgio Faria. O moralismo legal como fundamento da coação legal à
divergência: aspectos filosóficos da questão do paternalismo jurídico no âmbito do
pensamento liberal. Phrónesis, Campinas, vol. I, n. 01, p. 107-118, jan./abr. 1998;
MAGALHÃES, Theresa Calvet de. A idéia de liberalismo político em J. Rawls – Uma
concepção política de justiça. In: OLIVEIRA, Manfredo; AGUIAR, Odílio Alves;
SAHD, Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva (org.). Filosofia Política
Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2003. p.251-286.;
MARQUES, Divina. Liberdade e autoridade em John Stuart Mill. Phrónesis,
Campinas, v. 02, n. 01, p.62-74, jan./jun. 2000;
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro primeiro. 17.ed. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 1999. vol. 1 o processo de produção do capital. 571p.;
_______. Contribuição à Crítica da Economia Política. 3.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003. 405p.;
_______. A questão judaica. In: MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos.
São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 13-44;
239
_______. Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In: MARX, Karl.
Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 45-59;
_______. Manuscritos econômico-filosóficos. In: MARX, Karl. Manuscritos
econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 61-193;
MATHIOT, Jean. A República segundo Hobbes: o corpo ou a razão? Discurso, São
Paulo, n. 22, p.35-61, 1993;
MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991;
MILL, John Stuart. A liberdade; Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
277p.;
MORAES, Elaine Robert. Sade: o crime entre amigos. In: NOVAES, Adauto (org.).
Libertinos Libertários. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p. 245-254.;
MORAES, João Quartim de. A teoria marxista na história do pensamento político. In:
OLIVEIRA, Manfredo; AGUIAR, Odílio Alves; SAHD, Luiz Felipe Netto de
Andrade e Silva (org.). Filosofia Política Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2003.
p.19-37.;
MORAIS, Luís Fernando Lobão. Marx e o Direito. In: LEMOS FILHO, Arnaldo et al.
(org.). Sociologia geral e do Direito. Campinas: Alínea, 2004. cap. 5, p.125-131;
MORRIS, Clarence (org.). Os grandes filósofos do direito: Leituras escolhidas em
direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002;
MONTOYA. José. Bentham e os Direitos Humanos. In: PELUSO, Luis Alberto
(org.). Ética & utilitarismo. Campinas: Alínea, 1998. p.96-110.;
NASCIMENTO, Milton Meira do. Reivindicar direitos segundo Rousseau. In:
QUIRINO, Célia Galvão; VOUGA, Cláudio; BRANDÃO, Gildo Marçal; (org.).
Clássicos do pensamento político. São Paulo: Edusp, 1998. p.121-134.;
NOVAES, Moacyr. Vontade e contravontade. In: NOVAES, Adauto (org.). O avesso
da liberdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p.59-76.;
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991,
395p.;
240
NUNES JÚNIOR, Armandino Teixeira. A teoria rawlsiana da justiça. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, ano 42, n. 168, p. 215-225, out./dez. 2005;
OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas do
trabalho e da política. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 322p.;
OLIVEIRA, Fábio de. Política e Estado no pensamento marxista. Revista Seqüência,
Florianópolis, n. 43, p. 09-28, dez. 2001;
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Democracia e constitucionalismo nas
tradições do pensamento político moderno – um ensaio crítico. Revista da Faculdade
de Direito da UFMG, Belo Horizonte, volume desconhecido, p. 207-230, ano
desconhecido;
PASUKANIS, Eugeny Bronislanovich. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Rio
de Janeiro: Renovar, 1989. 173p.;
PELUSO, Luis Alberto. A ética utilitarista como ciência social aplicada: a visão
engenharial de Jeremy Bentham. Revista Reflexão, Campinas, no. 49, p. 27-47,
jan./abr. 1991;
_______. “Problemas na conceituação de lei em Jeremy Bentham:” pode ser
justificada a punição legal? Revista Reflexão, Campinas, no. 51/52, p. 137-166, set.
1991/abr. 1992;
_______. Ciência e avaliação moral: subsídios para um enfoque utilitarista. Revista
Reflexão, Campinas, no. 55/56, p. 48-62, jan./ago. 1993;
_______. Utilitarismo e teoria da justiça: os argumentos de J. Bentham contra William
Blackstone. Revista Reflexão, Campinas, no. 67/68, p. 52-66, jan. /ago. 1997;
_______. Utilitarismo e ação social. In: PELUSO, Luis Alberto (org.). Ética &
utilitarismo. Campinas: Alínea, 1998. p.13-26.;
_______. O utilitarismo e a eliminação da pobreza como um problema moral.
Phrónesis, Campinas, v. 05, n. 02, p.11-59, jul./dez. 2003;
241
PEREIRA, Rosilene de Oliveira. Reflexões sobre liberdade, moralidade e direito em
Kant. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, Vol. LII, Fac. 209, p.75-90,
jan./mar. 2003;
PESSANHA, José Américo Motta. As delícias do jardim. In: NOVAES, Adauto
(org.). Ética. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. p. 57-86.;
PINHEIRO, Maria Celeste Miranda. Sobre o debate entre o liberalismo e o
comunitarismo. Ethica – Cadernos Acadêmicos, Rio de Janeiro, v.8, n.1, p. 70-101,
2001;
PIMENTA, Alessandro. A importância da vontade no método e na dúvida cartesiana.
Filosofazer, Passo Fundo, ano XII, n. 23, p. 43-54, 2003-II;
PIRES, Cecília. A propósito da Carta sobre a tolerância. Filosofia UNISINOS, São
Leopoldo, vol. 02, n. 03, p. 107-124, jul./dez. 2001;
POCOCK. John G. A.; Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.
452p.;
POLIN, Raymond. O mecanismo social no Estado civil. In: QUIRINO, Célia Galvão.
SADEK, Maria Tereza (org.). O Pensamento Político Clássico, São Paulo: T.A.
Queiroz, 1992;
_______. O Individuo e o Estado. In: QUIRINO, Célia Galvão. SADEK, Maria
Tereza (org.). O Pensamento Político Clássico, São Paulo: T.A. Queiroz, 1992;
QUINTANEIRO, Tânia. BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia
Gardênia Monteiro de. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim e Weber. Belo
Horizonte: UFMG, 2002 p. 159;
RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University, 1971. 607p.;
_______. Political liberalism. New York: Columbia University, 1993. 401p.;
_______. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 406p.;
_______. O liberalismo político. São Paulo: Atica, 2000. 430p.;
242
_______. Uma Teoria da Justiça. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 708p.
(Coleção Justiça e Direito);
_______. Justiça como eqüidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes,
2003. 306p. (Coleção Justiça e Direito);
_______. História da filosofia moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 439p.
(Coleção Justiça e Direito);
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. 9.ed. São Paulo: Loyola, 1992, vol. I.
419p.;
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. 9.ed. São Paulo: Loyola, 1992, vol.
II. 503p.;
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. 10.ed. São Paulo: Loyola, 1992, vol.
III. 475p.;
REIS, Cláudio. Vontade geral e pluralismo. Fragmentos de cultura, Goiânia, vol. 14,
n. 4, p. 675-687, abr. 2004;
_______. Prioridade do justo ou soberania do bem? Philósophos, Goiânia, v. 9, n. 01,
p.81-100, jan./jun. 2004;
REIS, José Carlos. Os conceitos de Liberdade e Necessidade em Marx. Kriterion,
Belo Horizonte, n. 78, p. 101-128, 1987;
RIBEIRO, Renato Janine. O retorno do bom governo. In: NOVAES, Adauto (org.).
Ética. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. p. 101-112.;
_______. O poder das palavras: Hobbes sobre a liberdade. In: NOVAES, Adauto
(org.). O avesso da liberdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p.135-150.;
ROCKMORE, Thomas. Após o marxismo: liberalismo democrático e reconhecimento
hegeliano. Filósofos, Goiânia, vol. 04, n. 01, p.125-137. jan./jun. 1999;
ROEMER John E. Valor, explotación y clase. Cidade do México: Fondo de Cultura
Económica, 1989. p. 128;
243
_______. Egalitarian perspectives: Essays in philosophical economics. Cambridge:
Cambridge University, 1994. 356p.;
ROUANET, Luiz Paulo. O debate Habermas-Rawls de 1995: uma apresentação.
Revista Reflexão, Campinas, no. 78, p. 111-117, set. /dez. 2000;
_______. Rawls e a questão da justiça social. Phrónesis, Campinas, v. 05, n. 01, p.1124, jan./jun. 2003;
_______. Filosofia política norte-americana contemporânea. In: OLIVEIRA,
Manfredo; AGUIAR, Odílio Alves; SAHD, Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva
(org.). Filosofia Política Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 236-250.;
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de direito político. Rio de
Janeiro: Edições de Ouro, 1969. 183p.;
_______. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens e se é
autorizada
pela
lei
natural.
Cultvox,
2001.
Disponível
em
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000053.pdf > Acesso em
08/08/2005.;
SADE, Justine ou os infortúnios da virtude. Lisboa: Antígona, 2001. 337p.;
SAHD, Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva. O Estado mínimo de Robert Nozick.
Síntese, Belo Horizonte, vol. 31, n. 100, p. 255-238, 2004;
_______. A noção de liberdade no Emílio de Rousseau. Transformação, São Paulo,
Vol. 28, p. 109-118, 2005;
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na
liberdade e na igualdade. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995, 371p.;
SANDEL, Michael J. El liberalismo y los limites de la justicia. Barcelona: Gedisa,
2000;
SANTIAGO, Gabriel Lomba. A concepção de felicidade no pensamento de J.-J.
Rousseau. Revista Reflexão, Campinas, no. 85/86, p. 11-27, jan./dez. 2004;
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: O social e o político na pósmodernidade. 2. ed. Porto: Afrontamento, 1994;
244
_______. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós contratualismo.
In: HELLER, Agnes. (Org.) A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios
para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999 268p.;
_______. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São
Paulo: Cortez, 2000. 415p.;
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Paradoxos do liberalismo: teoria e história.
3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 160p.;
SANTOS FILHO, Orlando Venâncio dos. Democracia em Jean Jacques Rousseau.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 39, n. 155, p. 285-291, jul./set. 2002;
SEN, Amartya. Libertad, igualdad y derecho. Barcelona: Ariel, 1988;
SILVA, Markus Figueira da. Epicuro e a morte como perda da subjetividade.
Princípios, Natal, ano II, n. 03, p. 140-146, jul./dez. 1995;
SILVA, Otacílio Rodrigues da. A doutrina lockiana dos direitos naturais como
fundamentação da defesa dos direitos humanos. Síntese, Belo Horizonte, vol. 32, n.
104, p. 401-428, set./ dez. 2005;
SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Teoria da Justiça de John Rawls. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, ano 35, n. 138, p. 193-212, abr./jun. 1998;
SOTTOMAYOR-CARDIA, Mário. O interesse geral e o interesse de cada um. In:
PELUSO, Luis Alberto (org.). Ética & utilitarismo. Campinas: Alínea, 1998. p.167189.;
SOVERAL, Eduardo Abranches de. O lugar de Locke na filosofia moderna. Revista
Brasileira de Filosofia, São Paulo, Vol. XLIV, Fac. 188, p.452-469, out./dez. 1997;
STUCKA, Pëtr Ivanovic. La función revolucionaria del derecho y del estado. 2.ed.
Barcelona: Península, 1974. 356p.;
SUPLICY, Eduardo Matarazzo. A legitimação da Renda Básica em países em
desenvolvimento: o caso do Brasil. Johannesburgo, 2002. Disponível em
245
<http://www1.senado.gov.br/eduardosuplicy/Rendaminima/BIEN/palestrabiengenebra
portug.htm>. Acesso em 15/06/2005;
_______. Renda Básica de Cidadania: a saída é pela porta. São Paulo: Perseu
Abramo, 2002. 368p.;
_______. Renda Básica de Cidadania: a resposta dada pelo vento. Porto Alegre:
L&PM, 2006. 119p.;
TABORDA, Wilmar. Discussão em torno de uma concepção racional de justiça: de
Aristóteles a John Rawls. Direito & Justiça, Porto Alegre, v.21, ano XXII, p. 345356. 2000;
TASSET, José Luis. Hume e o Utilitarismo: convergências e discrepâncias. In:
PELUSO, Luis Alberto (org.). Ética & utilitarismo. Campinas: Alínea, 1998. p.2748.;
TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. p.311;
TILICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Bernardo do Campo: Metodista,
(1988?). 265p.;
TROUSSON, Raymond. Romance e libertinagem no século XVIII na França. In:
NOVAES, Adauto (org.). Libertinos Libertários. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p.
165-182.;
VANDERBORGHT, Yannick; VAN PARIJS, Phillippe. Renda básica de cidadania:
fundamentos éticos e econômicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 191p.;
VAN PARIJS, Phillippe. Liberté formelle et liberté réelle. La critique de Rawls par les
Libertariens. Revue Philosophique de Louvain, Louvain-la-neuve, tome 86, n. 69,
p.59-86, fev. 1988;
_______. Marxism recycled. Cambridge: Cambridge University, 1993. 246p.;
_______. Real Freedom for All: What (if anything can) justify capitalism? Oxford:
Oxford University, 1995. 330p. (Coleção Oxford Political Theory);
_______. Are inequalities ever just. Madri: Fondación Argentaria, 1995. Palestra
proferida no II Simposio sobre Igualdad y Distribución de la Renta y la Riqueza, em
246
Madri,
em
de
5
a
9/06/1995.
<http://www.etes.ucl.ac.be/publications/dochs>;
Disponível
em
_______. Justice as the fair distribution of freedom: Fetishism or stoicism? CergyPontoise: IUT. Comunicação proferida na conferência The ethics and economics of
liberty,
em
Cergy-Pontoise,
em
21/06/1995.
Disponível
em
<http://www.etes.ucl.ac.be/publications/dochs>;
_______. Sauver la solidarité. Paris: Cerf, 1996. 99p. (Coleção Humanités);
_______. O que é uma sociedade justa? Introdução à prática da filosofia política. São
Paulo: Ática, 1997. 280p. (Série Temas, 54);
_______. Difference Principles. In: FREEMAN, Samuel (org.). The Cambridge
Companion to John Rawls. Cambridge: Cambridge University, 2001. Disponível em:
<http://www.etes.ucl.ac.be/publications/dochs>. Acesso em 31/10/2005;
_______. What´s wrong with a free lunch? Boston: Beacon, 2001. 137p.;
_______. Hybrid Justice, Patriotism, and Democracy: A selective reply. In: REEVE,
Andrew; WILLIAMS, Andrew (org.). Real Libertarianism Reassessed: essays on
Van
Parijs.
London:
Palgrave,
2002.
Disponível
em
<http://www.etes.ucl.ac.be/publications/dochs>;
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991.
300p. (Coleção Filosofia, 15);
_______. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica I. 2.ed. São Paulo:
Loyola, 2002. 483p. (Coleção Filosofia, 47);
WALZER, Michael. Esferas da Justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade.
São Paulo: Martins Fontes, 2003. 476p.;
WEFFORT, Francisco C. (org.) Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke,
Montesquieu, Rousseau, “O Federalista”. 13.ed.São Paulo: Atica, 2005, vol. I. 287p.
(Série Fundamentos, 62);
WOLFF, Francis. A invenção materialista da liberdade. In: NOVAES, Adauto (org.).
O avesso da liberdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p.15-40.;
247
WOLKMER, Antônio Carlos. Marx, A questão judaica e os direitos humanos. Revista
Seqüência, Florianópolis, n. 48, p. 11-28, jul. 2004;
WOLKMER, Maria de Fátima S. Modernidade: nascimento do sujeito e subjetividade
jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 41, n. 164, p. 31-46,
out./dez. 2004;
YAZBECK, Fuad Gabriel. Ética, liberdade e vontade geral em Rousseau. Ethica –
Cadernos Acadêmicos, Rio de Janeiro, ano III, n.6, p. 78-96, 1996;
248
ANEXO A - LEI Nº 10.835, DE 8 DE JANEIRO DE 2004.
O Presidente da República Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu
sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se
constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros
residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição
socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário.
§ 1o A abrangência mencionada no caput deste artigo deverá ser alcançada em
etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas da
população.
§ 2o O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e
suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação,
educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as
possibilidades orçamentárias.
§ 3o O pagamento deste benefício poderá ser feito em parcelas iguais e
mensais.
§ 4o O benefício monetário previsto no caput deste artigo será considerado
como renda não-tributável para fins de incidência do Imposto sobre a Renda de
Pessoas Físicas.
Art. 2o Caberá ao Poder Executivo definir o valor do benefício, em estrita
observância ao disposto nos arts. 16 e 17 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio
de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal.
Art. 3o O Poder Executivo consignará, no Orçamento-Geral da União para o
exercício financeiro de 2005, dotação orçamentária suficiente para implementar a
primeira etapa do projeto, observado o disposto no art. 2o desta Lei.
Art. 4o A partir do exercício financeiro de 2005, os projetos de lei relativos aos
planos plurianuais e às diretrizes orçamentárias deverão especificar os cancelamentos
e as transferências de despesas, bem como outras medidas julgadas necessárias à
execução do Programa.
Art. 5o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 8 de janeiro de 2004;
249
Download