CENTRO UNIVERSITÁRIO MARINGÁ - CESUMAR SANDRA MARIA REIS BELIZÁRIO ASPECTOS EVOLUTIVOS DOS DIREITOS DA MULHER EM FACE AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE MARINGÁ 2006 SANDRA MARIA REIS BELIZÁRIO ASPECTOS EVOLUTIVOS DOS DIREITOS DA MULHER EM FACE AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Dissertação de Mestrado, apresentada pela mestranda Sandra Maria Reis Belizário, no Curso de Pós-Graduação – Mestrado em Direito da Personalidade na Tutela Jurídica Privada e Constitucional, no Centro Universitário de Maringá (CESUMAR), como requisito final para obtenção do título de mestre. Orientador: Professor Doutor José Sebastião de Oliveira. MARINGÁ 2006 TERMO DE APROVAÇÃO SANDRA MARIA REIS BELIZÁRIO ASPECTOS EVOLUTIVOS DOS DIREITOS DA MULHER EM FACE AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Dissertação de Mestrado apresentada pela mestranda Sandra Maria Reis Belizário, no Curso de Pós-Graduação – Mestrado em Direito da Personalidade na Tutela Jurídica Privada e Constitucional, na linha de pesquisa, Acesso à Justiça como Direito da Personalidade nas Relações Familiares, no Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). COMISSÃO EXAMINADORA _______________________________________ _____________ _______________________________________ _____________ _______________________________________ ______________ Maringá, _______ de ____________________de 2006. DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à minha mãe, Marlene Reis, que sempre me apoio em todos os momentos. AGRADECIMENTOS Agradeço ao professor Doutor José Sebastião de Oliveira, pela orientação deste trabalho que muito me auxiliou com sugestões, idéias e ensinamentos, contribuindo para sua realização. RESUMO Durante a história da humanidade, a dominação masculina sempre foi vista como natural. Somente no final do século XIX é que as mulheres começaram a, efetivamente, questionar cada vez mais o seu papel na sociedade, bem como suas condições político-econômicas e seus condicionamentos históricos. Essa mudança não significa abdicação de responsabilidades, mas a revisão cultural entre as funções femininas ligadas à natureza e às masculinas ligadas à tecnologia. O Estado, exercendo as suas funções de poder de cautela se enquadra nesse item, criando condições para essa nova divisão de funções, tirando o homem do seu exclusivismo de detenção do poder. O Direito como fundamento de ordem social atribui às pessoas deveres e obrigações, reciprocidade de poderes e faculdades e também organiza a vida social dessas. O poder moral se baseia na razão e na lei moral, de fazer, possuir ou exigir alguma coisa. Nesse trabalho serão estudadas as evoluções da mulher ao longo do tempo, quais os direitos e responsabilidades que essa mudança trouxe. Será feita uma síntese histórica da mulher no Ocidente, no Brasil, sobre os direitos previstos na Constituição Federal, na igualdade jurídica, fazendo uma abordagem geral sobre o tema. Igualmente será tratado dos aspectos evolutivos dos direitos da mulher, considerando os direitos da personalidade, dando ênfase a questão do patronímico familiar, e o tratamento recebido pela mulher ao longo das legislações de Direito de Família. Não deixando de lado o Novo Código Civil, que trouxe inovações a respeito dos direitos da personalidade, principalmente no que se refere ao sobrenome usado após o matrimônio. Palavras-chave: evolução da mulher – direitos da mulher – direito positivo brasileiro – direitos da personalidade ABSTRACT During the history of the humanity, the masculine domination always was seen as natural. In the end of century XIX it only is that the women had started effectively, to question each time more its paper in the society, as well as its economic conditions historical politician and its conditionings. This change does not mean abdication of responsibilities, but the cultural revision enters the on feminine functions to the nature and the on masculines to the technology. The State, exerting its functions of being able of caution if fits in this item, creating conditions for this new division of functions, taking off the man of its exclusivismo of detention of the power. The Right as bedding of social order attributes to the people duties and obligations, reciprocity of being able and facultieses and also organize the social life of these. The moral power if bases on the reason and the moral law, to make, to possess or to demand some thing. In this work the evolution of the woman to the long one of the time, which the rights and responsibilities will be studied that this change brought. A historical synthesis of the woman in the Ocidente will be made, in Brazil, on the rights foreseen in the Federal Constitution, in the legal equality, making a general boarding on the subject. Equally anger to deal with the evolutions aspects of the rights of the woman, considering the rights of the personality, giving approach to the subject of the family name, and the treatment received for the woman to the long one from the laws of Family law. Not leaving of side new codigo civil, that brought new features regarding the rights of the personality, mainly as for the used last name after the marriage. Key words: evolution of the woman - right of the woman - brazilian positive law rights of the personality SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................ 01 CAPÍTULO I – SÍNTESE HISTÓRICA DA MULHER NO OCIDENTE 1.1 Na Antigüidade Greco-Romana .....................................................................................04 1.2 Na Idade Média ..............................................................................................................09 1.3 No Renascimento e na Idade Moderna............................................................................14 1.4 No Século XX e XXI.......................................................................................................16 CAPÍTULO II – SÍNTESE HISTÓRICA DA CONDIÇÃO DA MULHER NO BRASIL 2.1 A Mulher Indígena ..........................................................................................................19 2.2 A Mulher Escrava............................................................................................................23 2.3 A Mulher no Brasil Colônia e no Brasil Independente ...................................................25 2.4 A Mulher e a Religião .....................................................................................................34 CAPÍTULO III – EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER 3.1 A Constituição Imperial de 1824.....................................................................................38 3.2 A Constituição Federal de 1891 ......................................................................................39 3.3 A Constituição Federal de 1934 ......................................................................................41 3.4 A Constituição Federal de 1937 ................................................................................... ..44 3.5 A Constituição Federal de 1946 ......................................................................................45 3.6 A Constituição Federal de 1967 ......................................................................................48 3.7 A Emenda Constitucional de 1969 ..................................................................................50 3.8 A Constituição Federal de 1988 ......................................................................................52 CAPÍTULO IV – A MULHER E O DIREITO DO TRABALHO 4.1 Contexto Histórico...........................................................................................................64 4.2 Origem e Evolução das Medidas de Proteção a Favor da Mulher ..................................68 4.3 A Constituição Federal de 1988 ......................................................................................73 4.4 Igualdade de Oportunidade e Tratamento no Ambiente de Trabalho .............................75 4.5 Proteção à Maternidade no Brasil....................................................................................78 4.6 Importância Econômica do Trabalho Feminino e a Igualdade de Remuneração ...................................................................................................................87 CAPÍTULO V – A MULHER E O DIREITO CIVIL BRASILEIRO 5.1 O Código Civil de 1916...................................................................................................90 5.2 O Estatuto da Família ......................................................................................................95 5.3 O Estatuto da Mulher Casada. .........................................................................................96 5.4 O Novo Código Civil.......................................................................................................98 CAPÍTULO VI – A MULHER E O DIREITO DE PERSONALIDADE 6.1 Conceito de Personalidade ..............................................................................................104 6.2 Direitos de Personalidade ................................................................................................107 6.3 A Mulher e o Direito de Personalidade ...........................................................................108 6.3.1 A questão do patronímico familiar ...............................................................................112 6.3.2 Na Lei do Divórcio ficou facultativo............................................................................113 6.3.3 No novo Código Civil, tanto o homem como a mulher pode colocar o sobrenome do outro ........................................................................................................... 114 CAPÍTULO VII – A QUESTÃO DA IGUALDADE JURÍDICA 7.1 O Princípio da Igualdade .................................................................................................116 7.2 Da Igualdade Formal e Material......................................................................................121 7.3 A Igualdade Constitucional .............................................................................................126 7.4 As Desigualdades Admissíveis pela Constituição Federal..............................................128 CONCLUSÃO.................................................................................................................... 132 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 136 INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem como objetivo analisar os aspectos evolutivos dos direitos da mulher no direito positivo brasileiro. Tal investigação foi motivada com o intuito de melhor compreender todo o processo dos direitos femininos, apresentando um pouco da história da evolução dos direitos da mulher, bem como as lutas árduas travadas entre este ser considerado como sexo frágil e a sociedade. O trabalho será realizado tem como suporte metodológico a pesquisa bibliográfica, traçando um paralelo dos direitos da mulher no passado e como são atualmente, demonstrando as dificuldades para se alcançar a igualdade de direitos e o que tem feito a mulher para ter a plenitude dos direitos. Observa-se todos os aspectos dentro do quadro geral no qual estão inseridos, ainda que tal visão fique adstrita às linhas mestras, porém voltadas à necessária compreensão do critério delimitador das atribuições de cada uma. O desenvolvimento do presente estudo se encontra distribuído em sete capítulos. No primeiro, consta a trajetória histórico-sociológica que envolve a personagem mulher, em que se quer mostrar que o Direito não pode ser dissociado desse contexto. Ressalta-se que a compreensão do presente, ou a elaboração de uma solução futura implica interpretar o passado. Nessa incursão iniciada na Antigüidade greco-romana e, em seqüência, estendida até o século XX, procura-se demonstrar que a História sempre relegou a mulher a um plano inferior. Sendo o homem o construtor da história, da sociedade, da civilização portanto, o sujeito das mesmas - determinou os parâmetros da utilização da mulher. Ainda que a mulher tivesse seu papel na sociedade, nada era escrito sobre isso, pois o homem era o detentor da escrita e colocava os fatos segundo sua visão. Dessa forma, nesse percurso que se limitou ao mundo ocidental, cada período histórico é abordado em seu estilo específico. Enquanto “deusa”, a mulher era amada pelos gregos, mas, uma vez ser social, era afastada das relações políticas e econômicas, com o respaldo do pensamento filosófico da época. Em Roma, era tratada pelo Direito como um ser incapaz, pois assim dispunha o seu estatuto. A única função valorizada era a materna e isso não pelo fator inerente da reprodução, mas pela instituição casamento. Saliente-se que, nesse aspecto, Roma em nada se distinguiu das sociedades antigas e, de modo geral, da totalidade das sociedades humanas, anteriores à emancipação da mulher no mundo industrial contemporâneo. Na Idade Média, a mulher sofreu com a perseguição às bruxas, condição que não melhorou com o advento do Renascimento, da Revolução Francesa e das Guerras Mundiais. Assim, o mito do matriarcado apareceu como sendo apenas um conceito da antropologia. A dominação masculina é aqui demonstrada de diversas formas. No entanto, esse domínio não significa a ausência de poder feminino, mas mostra a clara resistência da articulação da supremacia masculina, para que as mulheres não se manifestem. Dessa forma, os escribas do poder registram tendenciosamente - segundo seleção feita por eles - o que as mulheres devem fazer ou dizer. Assim, a elas destinaram o espaço privado, enquanto os homens ocupam, com todo o respaldo ideológico, o âmbito público. No segundo capítulo é abordada a evolução da condição da mulher no Brasil, caracterizadas como indígenas e escravas, pertencentes ao Brasil colônia e ao Brasil independente. O enfoque dado à mulher será no que se refere aos conflitos e contradições que se estabelecem nas diferentes épocas, entre ela e a sociedade na qual estava inserida. O objetivo será apresentar as intrincadas relações, entre a mulher, o grupo social e o acontecimento histórico, enfatizando-a como ser social que é. Para tanto, será abordada a condição da mulher brasileira em diferentes períodos, inserida na sociedade e procurando ocupar o seu lugar na história. O terceiro capítulo abrange a evolução dos direitos da mulher perante o Direito Constitucional Brasileiro, desde a primeira Constituição Imperial de 1824 até a Constituição de 1988. Para uma melhor compreensão foram selecionados alguns fatores norteadores para uma análise detalhada de cada uma destas constituições. Dessa forma, se torna possível analisar os aspectos positivos e negativos de cada uma delas. O quarto capítulo se refere à mulher e o direito do trabalho, apresentando um contexto histórico, que permite compreender que a evolução do direito do trabalho da mulher não foi acompanhada de igual evolução pelo direito do trabalho do homem. Em princípio, a busca para o trabalho se deu para compor o suporte econômico que mantinha a família, e posteriormente, significou uma forma de aprimoramento próprio do ser humano, vital para o aperfeiçoamento da sociedade. No quinto capítulo, abordou-se a posição da mulher perante o Direito Civil Brasileiro, bem como as demais legislações conhecidas como o Estatuto da Família, Estatuto da Mulher Casada, além das perspectivas apresentadas no novo Código Civil Brasileiro. No sexto capítulo, serão abordados conceitos sobre o Direito de Personalidade, como o Direito se aperfeiçoou e evoluiu ao longo da história buscando melhorar a vida das pessoas, mostrando como os direitos da personalidade são poderes que a pessoa exerce sobre si mesma, tendo como objeto do direito a própria pessoa, seus atributos físicos e morais. Por serem intrínsecos à pessoa, possuem como características a irrenunciabilidade, a inalienabilidade e a imprescritibilidade, seja qual for a vontade de seu titular. O sétimo capítulo tem como objetivo mostrar as questões da igualdade entre o homem e a mulher. Embora o presente trabalho tenha como tema central o estudo dos aspectos evolutivos dos direitos da mulher no direito positivo brasileiro, é indispensável a apresentação da questão da igualdade e a aplicação deste princípio, visto que a condição subalterna imposta à mulher remonta séculos e milênios da história da civilização. Inúmeros documentos refletem o difícil problema da igualdade entre o homem e a mulher, sempre negado como princípio absoluto, no entanto aceito como princípio relativo. Nas considerações finais, procurou sintetizar as colocações trabalhadas neste estudo, acrescentando-se algumas reflexões que se somam ao enfoque selecionado acerca da questão da cidadania da mulher. CAPÍTULO I - SÍNTESE HISTÓRICA DA MULHER NO OCIDENTE 1.1 Na Antiguidade Greco-Romana Na Grécia e Roma Antiga, a família era composta pelo pai, pela mãe, pelos filhos e escravos. De acordo com Numas Denis Fustel de Coulanges1, a religião não colocava a mulher em posição muito elevada. Ela tomava parte nas funções religiosas, porém não era considerada senhora absoluta do lar. A mulher adquiria a religião, diferente do homem, não pelo seu nascimento, mas sim pelo casamento e, portanto, aprendia com o seu marido a oração que recitava. Os direitos grego, romano e hindu originaram-se de crenças religiosas e têm em comum o fato de considerarem a mulher como um ser inferior. Os deuses ao criarem Pandora, a primeira mulher segundo a mitologia, dotaram-na de voz humana, e o mundo antigo viveu sob esse murmúrio de vozes femininas, que tagarelavam em seu universo doméstico: universo privado, cuja porta era fechada e constantemente vigiada. A única palavra verdadeiramente reconhecida – a palavra política – esteve, por muitos séculos, fora do alcance das mulheres. Alguns historiadores afirmam que a sociedade sempre foi masculina, de onde decorre a centralização política nas mãos dos homens. Nesse sentido, Simone de Beauvoir afirma que “a autoridade pública ou simplesmente social pertence sempre aos homens”2. Em Atenas, a mulher sendo honesta vivia numa reclusão quase oriental, enquanto apenas as mulheres sem reputação eram convidadas para as festas dos homens. De acordo com H. D. F. Kitto3 (...) a casa ateniense mantinha separados os aposentos dos homens e das mulheres, sendo que estes tinham trancas. As mulheres não saiam de suas casas senão vigiadas, sob pena de serem mandadas a regressar, por entenderem os atenienses que a casa era o local mais adequado para elas. A mulher ateniense não era emancipada. Embora a historiografia não nos permita ver claramente em seus horizontes um direito materno, uma ginecocracia. 1 COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade Antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. São Paulo: Hemus, 1975, p. 69. 2 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, v.1, p.91. 3 KITTO, H.D.F. Os Gregos. Coimbra: Armando Amado Editor, 1960, p. 361. Rose Marie Muraro4 usa e expressão “no princípio era a mãe” e Friedrich Engels5 por seu turno, disse que “... a reversão do direito materno foi a grande derrota histórica do sexo feminino”. Colocações, nessa linha de pensamento sugerem que houve um período da história onde a mulher exercia alguma supremacia, não no espaço privado – que lhe foi lugar comum em todas as épocas – mas no espaço público. Entretanto, esse período quase perdido através dos tempos, que correspondeu a um estágio original da humanidade, mereceu a atenção de Stella. Bachofen Georgoudi. De acordo, com a teoria desse jurista, (...) os povos são semelhantes aos indivíduos. Para ‘germinarem’, para chegarem à maturidade, têm necessidade de serem guiados por uma mão firme, dirigente, que não pode ser senão a mão tranqüilizadora e autoritária de mãe. Assim, as origens da humanidade são colocadas sob o signo e a supremacia de uma única força: a mulher, ou antes, o corpo materno que gera, imitando a ação da Mãe Original, a Terra.6 Recorrendo ainda à mitologia grega, encontra-se que o surgimento do nome de Atenas ocorreu após o confronto do regime matriarcal com o patriarcal: (...) Foi no tempo de Cécrope, o rei fundador de Ática que, segundo o mito, estalou uma querela entre Atena e Poseidon pela denominação e posse do país. (...) Após consulta ao oráculo de Delfos, o rei resolveu o assunto, convocou uma assembléia em que faziam parte ‘os cidadãos dos dois sexos’ porque nesse país era então costume que as próprias mulheres tomassem parte nos escrutínios públicos.7 Assim, as mulheres que apoiaram Atena foram às vencedoras, o que gerou a revolta dos homens, que se investiram do poder e determinaram às mulheres a perda de todos os direitos: de votar, do uso de nome pelos filhos e o da cidadania ateniense. A mulher ateniense era proibida de freqüentar a Assembléia e de desempenhar cargos públicos. Não podia ser proprietária, nem demandar em juízo. Durante sua vida, estava sob a tutela do pai, do marido ou de um parente próximo, ao contrário do que 4 MURARO, Rose Marie. A Mulher no Terceiro Milênio: Uma história da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o futuro. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, p.7. 5 A Origem da família, da propriedade privada e do Estado. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; LENIN, Vladimir. Sobre a Mulher. 3. ed., São Paulo: Global, 1981, p.15. 6 GEORGOUDI, Stella. Bachofen, o Matriarcado e a Antigüidade: relações sobre a criação de um mito. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. A História das Mulheres: A Antigüidade. Porto: Edições Afrontamento, 1990, v.1., p. 571. 7 Ibidem, p. 582. ocorria com a mulher na sociedade homérica e na Esparta histórica, onde gozava de liberdade e respeito. A sujeição da mulher casada ateniense ia ao extremo de não ser mais conhecida pelo seu nome, mas como mulher de fulano ou sicrano. As leis greco-romanas regravam: (...) Enquanto moça, está sujeita a seu pai; morto o pai, a seus irmãos e aos seus agregados; casada, a mulher está sob tutela do marido, não volta para a sua própria família porque renunciou a esta para sempre, pelo casamento sagrado; a viúva continua submissa à tutela dos agnados de seu marido; isto é, a tutela dos seus próprios filhos, se os tem, ou na falta destes, à dos mais próximos parentes do marido.8 Da análise do referido texto constata-se que só o casamento constituía a subordinação e a dignidade da mulher, visto que o poder do marido sobre esta não resultava absolutamente da maior força do primeiro. Derivava, como todo o direito privado, das crenças religiosas que colocavam o homem em posição superior, relativamente à mulher.9 O modo como os gregos criaram a figura da mulher é, no mínimo, curiosa. Ela surge, inicialmente, como uma deusa, um ente mitológico; depois, é apresentada pela medicina como um corpo a ser dissecado. Mais adiante, no plano filosófico, torna-se a mulher uma figura social a ser instituída. Quando a torna sujeito, colocam-na à margem de qualquer prática, com raras exceções, à margem da construção de qualquer história. No que se refere aos romanos, apesar de ter gozado de consideração e respeito como a esposa e mãe no seio da família romana, a mulher não possuía capacidade jurídica plena, pois, no Direito Romano, uma das qualidades necessárias para o indivíduo adquirir personalidade jurídica plena, além de ser cidadão romano e livre, era ser pater familias e sui juris. Dessa forma, afastava-se a hipótese de a mulher adquirir plena capacidade jurídica, independentemente da tão decantada fragilitas sexus, pois pater familias era o homem que não estivesse subordinado a nenhum ascendente masculino, e a expressão queria significar poder; o poder que exercia o pater familias sobre seus descendentes, e inclusive a mulher. Estava resumido no ius vitae ac necis10, no ius exponendi11, e no ius vendenti12. 8 COULANGES, Numa Denis Fustel de Coulanges. Op. cit., p. 69. Ibid. 10 Direito de vida e de morte sobre os dependentes. 11 Poder de abandonar o filho infante. 12 Direito de vender as pessoas que estão sob seu poder. 9 Perante a religião doméstica, que gozava de total dependência no Estado Romano, a mulher não desempenhava nenhuma função e só podia participar por intervenção do pai, do esposo ou do irmão. A religião estava, também, constituída como privilégio do sexo masculino e só se transmitia de linha masculina em linha masculina. Acreditava-se que, se não houvesse mais filhos a quem o pai transmitisse seu culto, sua crença, o direito de manter o Lar e de oferecer o repasto fúnebre, a família estaria condenada à desgraça e aos infortúnios, uma vez que, deste modo, abater-se-ia sobre ela a Fúria dos Manes13. Pitágoras via na mulher um ser voltado ao mal, quando assim explicou a sua origem: “Há um princípio bom que criou a ordem, a luz, o homem; e um princípio mau que criou o caos, as trevas, a mulher”14. Reflexões como estas – comuns entre os pensadores da Antigüidade – são consideradas o que de melhor se produziu e se disse a respeito do gênero mulher, na tradição ocidental. Assim, nesse sistema dicotômico, a mulher ocupava o lugar do negativo, do defeito, e que precisava ser integrada à sociedade, o que queria dizer, submetê-la à ordem masculina estabelecida. Verifica-se, desse modo, que nas narrativas das literaturas antigas as mulheres eram apresentadas como um suplemento, uma peça acrescida ao grupo social. Quando se tratava do saber e do poder, as mulheres não eram nunca mencionadas. O universo familiar na Antigüidade também era dual – machos e fêmeas – e a solução para os conflitos apresentava-se da mesma forma definida pela medicina e pela filosofia, isto é, com a predominância de um sexo sobre o outro, como era fortemente expresso nas leis de Manu: “Uma mulher, mediante um casamento legítimo, adquire as mesmas qualidades de seu esposo, como o rio que se perde no oceano, e é admitida depois da morte no mesmo paraíso celeste”.15 Também a Lei de Manu, em seu artigo 420, do Livro Nono, que trata dos deveres do marido e da mulher, diz que: (...) a mulher, durante sua infância, depende de seu pai; durante a juventude, de seu marido; por morte do marido, de seus filhos; se não tem filhos, dos parentes próximos do seu marido; porque a mulher jamais deve governar-se a sua vontade.16 13 FERREIRA, Valdemar Vieira Casas. A mulher casada no Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 43. 14 Apud BEAUVOIR, Simone de. Op. cit., p. 101 15 Ibid. 16 CÓDIGO DE MANU, Artigo 420. Bauru: Edipro, 1994, p. 97. Este artigo evidencia perfeitamente o tratamento discriminatório dado à mulher no Direito da Família, desde a Antigüidade. Nessa linha, todas as religiões e Códigos tratavam a mulher com muita hostilidade17. Em uma época em que o patriarcado estava estabelecido, foram redigidos Códigos que, naturalmente, ofereciam à mulher uma condição subordinada, passiva e inferior ao homem. Assim, a incapacidade da mulher romana era a tradução institucional da situação inferior a que ela se encontrava relegada, em uma sociedade em que prevalecia o poder masculino. Simone de Beauvior assevera que: (...) As leis de Manu definem-na como um ser servil que convém manter escravizado. O heretício assimila-a aos animais de carga que o patriarca possui. As leis de Sólon não Ihe conferem nenhum direito. O Código Romano coloca-a sob tutela e proclama-Ihe a ‘imbecilidade’. O direito canônico considera-na a ‘porta do diabo’.18 Desse modo, as mulheres da Antigüidade eram excluídas do mundo a que pertenciam. O papel social da mulher se restringia ao confinamento às esferas domésticas, enquanto os homens tinham monopólio das relações públicas e da política. Elas não possuíam cidadania. A mulher era vista, fundamentalmente, como propriedade e objeto de prazer dos homens. Esta convicção íntima da maioria é fruto de uma longa construção histórica, a despeito de muitos a acharem natural. Existem alguns mitos sobre a criação da mulher, sobretudo o de Pandora, da tradição grega, e o de Eva, da tradição judaico-cristã. Segundo a tradição, Pandora é plasmada com terra e água por Hefaístos; ou seja, é uma invenção técnica, uma obra de arte, um artifício. É tudo enfim, menos um ser natural. É uma vingança ardilosa de Zeus em resposta a outro ardil: o roubo do fogo divino por Prometeu. Conseqüentemente, sua natureza de mulher é ser um mal – por mais fascinante que seja sua beleza – enviado aos homens para arruiná-los.19 Assim, não existia lugar para a mulher a não ser para as atividades domésticas, pois apenas os homens podiam se relacionar com a política. 17 Nesse sentido, ver ENGELS, op. cit. p.15, que assevera “essa condição humilhante da mulher, tal qual como aparece notadamente, entre os gregos dos tempos heróicos e mais ainda dos tempos clássicos, foi gradualmente camuflada e dissimulada e também, em certos lugares revestida de formas mais amenas, mas não foi absolutamente suprimida.” 18 Op. cit., p. 101. 19 MATOS, Maria Izilda S. de; SOIHET, Rachel (Orgs.). O corpo feminino em debate. São Paulo: Ed. da UNESP, 2003, p. 103. 1.2 Na Idade Média A orientação social pela idealização e exaltação da mulher foi caracterizada na Idade Média, ao mesmo tempo em que se desenvolvia o horror a ela (misoginia). Apesar disso, a mulher passa a ser uma espécie de divindade, que nada devia aos que a adoravam, e cujos favores, por mínimos que fossem, eram sempre, para o homem, uma graça merecida. A sociedade da Idade Média, porém, continuou sendo acentuadamente marcada pela hegemonia masculina, onde as manifestações culturais possuíam o registro das lutas pelo poder e dos preconceitos masculinos. A mulher encontrava-se, ainda, em absoluta dependência do pai e do marido, como bem define Opitz: (...) Os seus desejos e idéias só podem freqüentemente ser descortinados por trás do véu da tutela e da regulamentação imposta pelos seus pais, maridos e confessores, sendo os seus atos ainda limitados pelas normas da sociedade e pelo controle social.20 Nessa trajetória, a família, a Igreja e as normas jurídicas vigiavam e exaltavam a virgindade da mulher, que era guarnecida pelo pai e assim transmitida ao marido. A repressão, nesse sentido, era muito forte, tanto que a multa para quem deflorasse uma mulher era o dobro da multa aplicada àquele que matasse um guerreiro. Conforme Jacques Leclerq: (...) as recompensas celestes são muito maiores para as virgens. E o evangelho fornece às mulheres o arquétipo de Maria. Isto não é novo, mas nunca tanto nos séculos XI e XII a Igreja exaltou a excelência desse estado. Tudo levava a isso: o medo do fim dos tempos, a irradiação espiritual dos monges, a reforma do clero e a promoção do culto mariano.21 A vida quotidiana das mulheres se movimentava em um enquadramento jurídico que lhes era desfavorável, e assim permaneciam fechadas nas suas tradicionais funções domésticas, servindo à expansão da espécie ou a Deus. Por seu turno, os homens possuíam o mundo para desvendar todas as aventuras a viver e toda a experiência a acumular. Segundo Rose Marie Muraro: 20 DUBY, Georges e PERROT, Michelle. O Quotidiano da Mulher no Final da Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990, v.1, 631p, p. 354. 21 DUBY, Georges e PERROT, Michelle. A Ordem Feudal. Porto: Edições Afrontamento, 1990, v.4, 640 p, p. 284. (...) Em geral as mulheres fiavam, teciam, cuidavam dos animais e das hortas, enquanto os homens faziam o trabalho mais pesado e as guerras. As senhoras da alta estirpe, contudo, na ausência dos maridos, eram obrigadas a gerir suas vastas propriedades. Assim, o papel econômico das mulheres expandia-se ou se contraía com a presença ou ausência dos homens, e a ausência era mais comum.22 Nessa concepção, com as restrições de direito à mulher, previstas nos Códigos, a capacidade jurídica da mesma era extremamente limitada, sendo a mais flagrante fixação de sua inferioridade a instituição da tutela do sexo masculino sobre o feminino. Consoante Claudia Opitz: (...) Os direitos gentílicos excluíam a mulher livre de todos os acontecimentos públicos. Não podia aparecer em pessoa perante um tribunal, tendo de se fazer substituir por um homem, o seu tutor (muntwalt). Entre as mulheres solteiras esta era por norma o pai, entre as casadas, o marido. Por morte destes, a tutela recaía no parente masculino mais próximo, pertencente à família do pai. Além do direito de representar o pupilo em tribunal, o tutor tinha o direito de dispor e de usufruir da fortuna desta, o direito de castigar - que em casos extremos podia incluir a morte - o direito de dar em casamento como entendesse e mesmo o direito de vender.23 Nesse período os discursos dirigidos às mulheres eram proferidos pelos pais, clérigos, mestres, etc. e o tema era a castidade, a humildade, o silêncio, o trabalho etc. Durante séculos, as mulheres ouviram a repetição desses princípios, acentuando a sua submissão. Eram os homens que usavam a palavra pelas mulheres, fortificando a ideologia da Igreja, reinante na sociedade e que determinava as relações familiares. De acordo com Claudia Opitz: (...) A doutrina do casamento por consenso defendida pela Igreja não podia opor-se às relações de poder vigentes na sociedade - e no fundo também não o queria: a relação entre marido e mulher não podia doravante ser de amizade e pressupor a igualdade de direitos: ‘Sêde submissos uns aos outros no temor a Cristo, as mulheres aos homens como ao Senhor...’ (Efésios, 5:21)... Um bom casamento era a comunhão entre o homem e a mulher, mas, segundo os ensinamentos morais da Igreja, ele só era realmente bom quando o homem 'governava' e a mulher obedecia incondicionalmente.24 22 Op. cit., p. 101. DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Op. cit., p.356. 24 Ibid. p. 366. 23 Nessa época a integração Igreja-Estado era muito acentuada, o que explica a criação dos Tribunais Oficiais - instância judicial episcopal - que se ocupava de questões familiares. Esses tribunais cuidavam dos casos de litígios mais freqüentes, o que correspondia à violência cometida pelos maridos, possuidores de um poder absoluto de castigo, amparado no Direito, sobre a mulher. Nesses tribunais as mulheres eram, muitas vezes, advertidas sobre a obediência que deviam aos seus maridos. Desse modo, a ideologia determinava limites repressivos extremos, onde se modelava o cotidiano feminino. Ensina Claudia Opitz: (...) Os maridos constituíam a primeira instância de controle social das suas mulheres, e isso não era apenas determinado pelas disposições legais redigidas a partir do século XII; os decretos canônicos que converteu o marido em chefe de sua mulher reforçam também a responsabilidade e as possibilidades de controle por parte do 'senhor e mestre'. Este monopólio de poder encontra a sua expressão mais nítida no direito que o marido tinha de castigar a mulher, que as autoridades locais e eclesiásticas fixavam, e no privilégio masculino de ser infiel sem conseqüências.25 Ressalta-se que antes do século XI, período entre 1000 a 1250, houve tempo em que às mulheres eram respeitadas em decorrência de que procriavam como elemento imprescindível à perpetuação dos laços de sangue e da família, da sippe germânica. No século XII, o feudalismo foi um modo de organização da sociedade, e nessa época o ocidente europeu dividiu-se em inúmeros feudos, domínios e senhorios. Continuando a mulher a desempenhar o papel apenas no âmbito doméstico. No ano de 1209, a união entre o homem e a mulher deveria ser mantida. Quando o homem abandonava a mulher ou esta abandonava aquele, várias conseqüências podiam surgir, como a nítida discriminação entre o homem e a mulher, uma vez que vários forais determinavam, quando da separação, o pagamento de quantia certa, muito menor para o homem do que para a mulher.26 Já nessa época a questão do adultério se apresentava tormentosa e discriminatória em relação à mulher. As conseqüências deste eram extremamente severas em relação às mulheres, sendo elas abandonadas e desapropriadas de seus bens.27 25 Ibid., p. 368. AZEVEDO, Luiz Carlos de. Estudo Histórico sobre a Condição Jurídica da Mulher no Direito LusoBrasileiro desde os anos mil até o terceiro milênio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 17. 27 Ibid., p. 20. 26 Dessa forma, comprova-se que quase tudo era proibido às mulheres. Elas não tinham o direito de contratar, prestar fiança, reclamar direitos em juízo, sem autorização do marido ou de seu representante. No século XIV, o decreto (Livro das Leis e Posturas) proibia a quaisquer dos cônjuges litigar sobre bens imóveis sem o consentimento do outro28. Tal decreto constitui a origem dos artigos 235, II e 242, I, do Código Civil Brasileiro de 1916. No que se refere às Ordenações Afonsinas, faz-se citação ao Livro IV, Título XVIII, enfocando o Benefício do Veleiano, que foi outorgado às mulheres, isentando-as do pagamento de fiança a que se comprometeram, quando não tivessem agido por malícia, mas em razão da “fraqueza do siso que existe na geração de mulheres”.29 Nessa época, quando ocorria a morte do marido, a mulher só seria herdeira caso não houvesse parente até o décimo grau. Acrescenta-se que o esposo tinha o direito de castigar a sua mulher, de modo ilimitado, podendo matá-la. Já nas Ordenações Filipinas, o Livro V, Título XXXVI, nº 1, que trata “das penas pecuniárias dos que matam, ferem ou atiram arma na Corte”, estabelece-se, dentre as excludentes de legítima defesa, de castigo a criado, discípulo, filho, escravo e mulher. Jerônimo da Silva Pereira30 informa que a possibilidade de o marido castigar a mulher tinha como fundamento o dever de submissão desta àquele. Assim sendo, as normas para a infidelidade conjugal eram aplicadas com maior rigor às mulheres do que aos homens. Elas podiam ser punidas até com a morte, porém, enquanto traídas, nos mesmos tribunais, não possuíam meio algum de agir contra seu marido. Recorrendo outra vez a Claudia Opitz, encontra-se: (...) um grande número de processos do tribunal episcopal de Paris diz respeito a casos de infidelidade conjugal, 6 foram sentenciados contra o homem e 13 contra a esposa infiel. Isto não demonstra necessariamente que as mulheres transgredissem mais as leis conjugais do que os homens, mas parece revelar que a norma de infidelidade conjugal se aplicava com mais rigor às mulheres do que aos homens, uma idéia que se tira também dos direitos consuetudinários e regionais.31 Nesse contexto, desafiando os padrões estabelecidos, surgiu, na França, um novo modelo de relação entre o homem e a mulher, o “amor cortês” que, segundo Duby, teria 28 Ibid., p. 29. Ibidem, p. 42. 30 Ibidem, p. 46. 31 Op. cit., p. 371. 29 implicado uma sensível melhora na condição de vida da mulher das classes sociais altas. Os entretenimentos nos castelos permitiam a elas criarem ao seu redor as descontrações da poesia, das conversações, para onde os poetas eram atraídos, garantindo o próprio sustento. 32 Assim, enquanto os costumes oficiais sustentavam a tirania do esposo feudal, a mulher tentava uma compensação através das atenções de amante fora do casamento. Nessa forma de revestimento do amor, havia a possibilidade de perpetuação do casamento enquanto instituição, possibilitando afirmar que, mutatis mutandis, esse modelo de relação propagou-se até os dias atuais. A esse respeito Georges Duby discorreu: Assim, as relações entre o masculino e o feminino tomavam, na sociedade Ocidental, um rumo singular. Ainda hoje, apesar da revolução das relações entre os sexos, os traços que derivam das práticas do amor cortês, são aquelas pelas quais a nossa civilização se distingue mais abruptamente das outras.33 A fase do amor cortês, que suavizou um pouco a sorte das mulheres, não a modificou na sua essência, isso porque não é o tipo da relação em si ou o encantamento que possa envolvê-la que determinam a emancipação da mulher. A sua verdadeira libertação das amarras criadas pela sociedade e ratificadas pelo Direito, em uma ordem estabelecida, só ocorreu efetivamente, quando ela participou indiscriminadamente das decisões políticas, exercendo a cidadania. Nesse sentido, já no século XX, Lenin in Karl Marx et alii ensinaram: Enquanto as mulheres não forem chamadas a participar livremente da vida pública em geral, cumprindo também as obrigações de um serviço cívico permanente e universal, não pode haver socialismo, nem sequer democracia integral e durável. As funções de polícia como as de assistência a doentes e crianças abandonadas, o controle da alimentação etc., não podem em geral, ter uma execução satisfatória enquanto as mulheres não hajam obtido a igualdade perante os homens, não só nominal, mas efetiva.34 32 O Amor Cortês. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: A Idade Média, p. 332, que sustenta "Com efeito, peça fundamental como o xadrez, a dama, no entanto, por ser mulher - eis onde pára o seu poder - não poderia dispor livremente do seu corpo. Este pertencia ao seu pai, pertence agora ao marido. Contém, em depósito, a honra deste esposo, assim como a de todos os machos adultos da casa, solidários. Este corpo é, portanto, atentamente vigiado. Nas residências nobres (...) ela não pode escapar por muito tempo dos que a espiam e conjecturam que esta mulher é enganadora, fraca como são todas as mulheres. Surpreendem com sua conduta o menor indício de afronta, e logo a dizem culpada 33 Ibid., p. 350 34 O êxito de uma revolução depende do grau de participação das mulheres. In: MARX, Karl et alii. Op. cit., p.101. Por outro lado, uma outra forma de emancipação da mulher ocorreu pelo conhecimento. Entretanto, foi somente no final da Idade Média que as mulheres tiveram acesso aos pergaminhos, e às Universidades, participando da vida intelectual reservada somente aos homens. Isso representou uma grande conquista do gênero feminino, apesar de frágil e vulnerável, segundo a concepção masculina, pois os estudos de cunho oficial continuavam a ser monopólio masculino. Com isso, circundada de dificuldades destacou-se, nessa fase, no campo das letras, a escritora franco-italiana Cristina de Pisano.35 Ressalta-se que, nesse período, teve início um dos maiores genocídios da história da humanidade - o apogeu da discriminação da mulher - ou seja, o período de caça às bruxas. Ocorreu aí o compulsório afastamento das mulheres das Universidades e a proibição das mesmas de exercerem qualquer prática atinente à medicina – como a realização de partos, abortos e curas em geral - através do domínio da milenar química na utilização das plantas.36 O homem era considerado, em Roma, o chefe político, religioso e juiz; era o pater familias que exercia o chamado ius vitae ac necis, direito de vida e morte sobre todos os membros de seu grupo, impondo penalidades e tratando-os como coisas pertencentes ao seu patrimônio. No caso de morte do pater família, a mulher retornava a obedecer ao pai, ou se tivesse filho homem, a esse caberia ao comando da família. 1.3 No Renascimento e na Idade Moderna A Renascença contribuiu para que a mulher fosse adquirindo uma atuação social sempre maior. Seu lugar deixou praticamente de ser o lar, estendeu-se aos salões, aos 35 ver BOHLER, Régnier Danielle. Vozes Literárias, Vozes Místicas. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: A Idade Média, p. 529, que diz "Na história da literatura,francesa entre 1395 a 1405, Cristina de Pisano impõem-se como uma figura impressionante... Mas a sua identidade de mulher devia infalivelmente criar problemas quando, oficialmente, e em seu próprio nome, ela fala no quadro de um contexto social e cultural. Ela foi a primeira a afirmar a identidade de autora, a marcar solenemente a sua entrada no campo das letras." 36 FRUGONI, Chiara. A Mulher nas Imagens, A Mulher Imaginada. ln: DUBY, Georges e PERROT, Michelle, idem, p. 488, "a acusação de fabricarem ungüentos mágicos e malefícios remete para o conhecimento, transmitido zelosamente de mãe para filha, das ervas e das propriedades, precisamente porque as mulheres, fechadas em casa e destinadas a criar os filhos e a cuidar da família, estavam 'funcionalmente' obrigadas a conhecer remédios e poções das bruxas conflui também o ressentimento da medicina douta e masculina contra uma medicina popular, feminina e rival." movimentos políticos e literários da época. Sua influência consolidou-se, dia a dia. O Renascimento caracteriza-se pelo desenvolvimento da burguesia e culminou com a Revolução Francesa. A par do progresso comercial, surgem as reformas religiosas. Para alguns autores elas significam sob diversos aspectos uma reação apaixonada contra esse mundo libertino medieval que nega a Deus, entrega-se as cobiças da carne e a Satã. Concomitantemente, a Renascença representa um afluxo de vitalidade que agita a humanidade européia. O Renascimento trouxe consigo novas regras de conduta para as mulheres: o culto à domesticidade, a criação do amor materno e do amor romântico. Entretanto, o movimento de caça às bruxas, iniciado na Idade Média, teve continuidade no Renascimento. A repressão às feiticeiras aumentou consideravelmente e as mulheres foram responsabilizadas por tudo o que de ruim acontecesse: má colheita, epidemias, mortes inexplicáveis etc. A caça às bruxas prejudicou seriamente às mulheres em sua imagem social. E, mesmo após o término desse revoltante movimento de perseguição, o estatuto social das mesmas não é revalorizado. Pode-se aduzir que o crime de feitiçaria foi desqualificado de direito, mas não de fato. Nesse sentido, Sallmann in Georges Duby diz: Quando era feiticeira a forca ou a fogueira manifestavam, na sua crueldade, a sua responsabilidade penal. Vítima da sua imaginação ou tomada de loucura, ela transforma-se num ser juridicamente diminuído, com responsabilidade pessoal limitada.37 Paralelamente à caça às bruxas, que atingiu as mulheres das classes baixas, surgiu, nessa fase, um movimento dirigido ao amor platônico, que exaltava as mulheres alcançando as que pertenciam as classes mais elevadas – preparando-as para a era industrial. Desse modo, as primeiras seriam as operárias dóceis do século em questão e as segundas, cultivando extrema feminilidade, seriam as consumidoras. Devido à decisiva influência feminina nos tempos medievais, não há corte, nos Séculos XVI e XVII, por maior que seja a sua magnificência, que dispense a presença da mulher. Nessa época, a mulher revela apreciável instrução: conhece as letras, a música, a pintura, sabe dançar e conversar agradavelmente. Organiza os seus salões famosos, a que concorrem personalidades de grande destaque social. 37 Feiticeira. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: Do Renascimento à Idade Moderna. Porto: Edições Afrontamento, v. 3, 1990, p. 533. No Século XVIII o desenvolvimento intelectual, marcou a transição do antigo regime. A imprensa foi, acima de tudo, a grande artífice dessa evolução de princípios. Todo esse progresso colimou num dos movimentos mais importantes de todos os tempos: a Revolução Francesa. Nessa época, a mulher parisiense despertou interesse pela política, participando de forma intensa e tornando-se companheira dos líderes revolucionários. O casamento civil e o divórcio tornaram a vida mais fácil e cheia de atrativos. Surgiram mulheres extravagantes tanto na aparência quanto no espírito e foram denominadas de “as Maravilhosas”. Em Portugal, Marques de Pombal, mesmo por ocasião de um terremoto que arrasou a Lisboa Antiga, a reconstrução não trouxe apreciáveis modificações sobre o que fora, visto que a vida prosseguia com o luxo de sempre. Nessa época a mulher portuguesa ainda permanecia muito caseira, só saía do lar para ser batizada, para se casar e para ser enterrada. Logo, se abstinha de inúmeros eventos locais, porém, participava dos saraus familiares, freqüentava o teatro, desde que acompanhada, e costuma ir aos cafés com raríssimas exceções, por ser coisa muito mal vista. A sucessão do trono fazia-se, também, pela linha feminina, como o Rei D. José que foi substituído por D. Maria I, genitora do Príncipe Regente D. João, coroado Rei de Portugal, no Brasil como D. João VI. Já na conservadora Inglaterra, as sufragistas se empenharam numa luta de vida e de morte para a conquista do direito do voto. Esse movimento foi conseqüência também da extensão da educação superior às mulheres, e ocorreu a algumas individualidades, com Dorotéa Beale, Diretora do Cheltenham Ladies’ College, em 1858. O movimento pró-sufrágico Feminino acentuou-se, em 1906, já em pleno Século XX, e a mulher alcançou as posições que tanto almejaram, até esse momento, privilégio do homem, destacando-se na política, na ciência, na literatura, etc.38 1.4 No Século XX e XXI A história das mulheres sempre foi contada por homens, pois além da força física, eles detinham o prestígio moral, o controle intelectual e econômico. As mulheres que conseguiram algum espaço foi em decorrência de que os homens que a cercavam estavam dispostos a conceder tais privilégios. 38 FARHAT, Alfredo. A mulher perante o direito. São Paulo: Ed. Universitária de Direito, 1971, p. 23. Segundo Simone de Beauvior: (...) A mulher sempre foi, senão a escrava do homem, ao menos a sua vassala; os dois sexos nunca partilham o mundo em condições; e ainda hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca com um pesado ‘handicap’. Em quase nenhum país o seu estatuto legal é idêntico ao do homem e, muitas vezes, este último a prejudica consideravelmente. Mesmo quando os direitos lhes são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que encontre nos costumes sua expressão concreta.39 A classe de mulheres trabalhadoras gozava de certa autonomia econômica, mas, em contrapartida, carregava o fardo da discriminação no trabalho. A vida das mulheres sempre foi controlada e a participação destas tornou-se intensa somente a partir de da Revolução Industrial, participando nas áreas social, técnica e econômica. Portanto, não lhe foi dado construir Estados ou descobrir mundos. Acerca do tema, Simone de Beauvior assevera que: O êxito de algumas privilegiadas não compensam, nem desculpam o rebaixamento sistemático coletivo; e o fato de serem esses êxitos raros e limitados, prova precisamente que as circunstâncias lhes são desfavoráveis.40 A mulher que exerce atividade laboral carrega o ônus da dupla jornada, pois após o expediente tem que prestar assistência aos filhos e ao cônjuge, sobrando-lhe poucos momentos de lazer, circunscrevendo-se o círculo vicioso que Heloneida Studart descreve em sua obra: “A dominação produz debilidade mental e a debilidade mental facilita a dominação”.41 Lenin in Karl Marx corrobora: Fazer a mulher participar do trabalho produtivo social, libertando-a do jugo bruto e humilhante, eterno e exclusivo, da cozinha e do quarto dos filhos, eis a tarefa principal. Esta luta será longa. E exige uma transformação radical da técnica social e dos costumes.42 Frise-se que foi Freud quem embasou as teorias científicas para que, neste século, fosse assegurada a domesticidade da mulher. 39 Op. cit. p. 21 Op. cit. p. 171. 41 STUDART, Heloneida. Mulher, objeto de cama e mesa. 4. ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1974, p.20. 42 O êxito de uma revolução depende do grau de participação das mulheres. In: MARX, Karl et alii. Op. cit., p. 129. 40 Segundo Rose Marie Muraro43, esse psicanalista estabeleceu comportamentos sexuais e mostrou às mulheres que o seu espaço de domínio ainda era o privado. Desse modo, elas não podiam competir com o homem no mercado de trabalho, pois que, sendo companheira, significava ser-lhe submissa. Afinal, formou-se no imaginário social o preconceito contra a mulher que exercesse trabalho fora do lar: era considerada masculina. A evolução milenar dos direitos da mulher, porém, foi produto de ásperas lutas, de transformações sociais tão intensas que o homem foi compreendendo que não podia mais relegá-la a condição de mera servidora e elemento procriador, a fim de perpetuar a família, dando lhes um sucessor que viesse a cuidar do seu nome. A evolução das estruturas sempre esteve ligada à atuação da mulher, no trabalho profissional, na vida política, em que é, atualmente, muito intensa, no exercício de funções sociais, além daquela em que sempre se destacou como insubstituível, a função familiar, nos cargos públicos, na cultura, etc. E é natural que essas transformações do papel da mulher modificassem a visão do homem do conjunto da sociedade e contribuíram significativamente para mudança de sua escala de valores. A antiga rivalidade entre os sexos tende a desaparecer com plena igualdade sócio-política-jurídica do homem e da mulher, ainda que haja disputa de cargos e funções, e tenha aumentado a concorrência no exercício de diversas profissões liberais de igual para igual. Pode-se afirmar que a mulher é hoje partícipe, em todo o mundo, das atividades de que somente o homem tinha o direito de exercer. Ela está presente em tudo e, diga-se de passagem, com uma grande categoria, seja na política, na educação, na ciência, na cultura, nas artes, etc. A mulher contemporânea vem alcançando o seu espaço, alcançando a sua igualdade perante a atual Constituição depois de muitas lutas, muitos movimentos em prol disso, porém a essa altura ainda existem tabus e preconceitos que dependem de toda uma estrutura complexa para serem quebrados, e enquanto estes resquícios milenares não desaparecem, o ideal é buscar a formação de uma mentalidade geral dessa evolução da mulher perante a sociedade. 43 Op. cit., p. 137. CAPÍTULO II – SÍNTESE HISTÓRICA DA CONDIÇÃO DA MULHER NO BRASIL Na época em que o Brasil foi descoberto, os homens vinham para a nova terra sozinhos. Várias décadas se passaram para que as mulheres os seguissem, ocorrendo nesse espaço de tempo uma mistura de raças: brancos, mestiços de portugueses com índios e, mais tarde, com negras. Essa mestiçagem foi fundamental para a determinação da situação social da mulher. Nesse contexto a união legalizada era quase inexistente. 2.1 A Mulher Indígena O dia-a-dia da mulher indígena pode ser conhecido pelos relatos de viajantes que observavam a cultura indígena do Brasil colônia. Os viajantes adotavam uma visão típica da tradição cristã, não tendo preocupação com as particularidades dos habitantes do Novo Mundo, assim sendo, analisavam os indígenas tendo como paradigma o homem europeu. Ressalte-se que nas terras européias, os costumes eram opostos aos princípios da religião cristã, sendo vistos como indícios de barbarismo e da presença do Diabo. Os bons hábitos, porém, faziam parte das leis naturais criadas por Deus. Mary Del Priore44, fazendo menção a cultura indígena, revelou que o desconhecimento da palavra revelada, da organização estatal e da escrita foram vistos como marcas da barbárie e primitivismo. As diferenças eram consideradas desvios da fé, transgressões capazes de conduzir os americanos ao inferno. A alteridade significava o afastamento das leis naturais. Esta afirmação comprova que a cultura indígena foi descrita a partir do modelo teológico e do princípio de que os brancos eram eleitos de Deus e, dessa forma, superiores aos povos do novo continente. Dessa forma, os hábitos que os missionários descreviam provinham ou de reminiscências do cristianismo primitivo ou deturpações promovidas pelo Diabo, isentando a hipótese de serem concebidas apenas como estranhas no universo cristão. Essa possibilidade feria a idéia da “monogenia” dos seres humanos, ou seja, de que todos os homens são descendentes de Adão e Eva, como está escrito na Bíblia. A mulher indígena como mãe realizava algumas práticas mágicas ao longo da educação dos filhos. De acordo com Fernão Cardim45, os filhos eram amamentados durante 44 45 PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: UNESP, 1997, p. 12. CARDIM, Fernão. Tratado da terra e da gente do Brasil. São Paulo: Edusp, 1980, p. 91. um ano e meio e, neste período eram transportados em pedaços de panos conhecidos como “tipóia”. Mesmo trabalhando nas roças, as mães não se apartavam dos filhos, carregavam as crianças nas costas ou as encaixavam nos quadris. Muito ao contrário do que foi descrito acima os outros colonos tinham as mães indígenas como apenas seres sem sentimentos. Uma tribo chamada Caetés era, por exemplo, considerada cruel por não respeitar as relações de parentesco, pois os pais vendiam seus filhos e parentes sem nenhum constrangimento. Quando seus maridos ficavam doentes as índias cometiam atrocidades para restabelecer a saúde deles, matando os filhos para que aqueles se alimentassem até que se recuperassem. Caso não tivessem filhos saiam à caça de crianças com arco e flecha, pois acreditavam que somente o frescor da infância recuperava o marido debilitado. Acreditava-se que a dieta a base de carne de crianças vez que podiam absorver a força delas, devolveria a saúde de seus maridos. O amor maternal e a preservação da família representavam muito pouco para os nativos, contudo não podemos esquecer que essa interpretação de vida foi tirada a partir dos costumes e crenças de cultura cristã e “branca”. Quando os homens desejavam se unir a uma mulher, eles se dirigiam a ela e perguntavam se havia o interesse em se casar com ele. Se essa vontade fosse recíproca, pediam permissão aos seus pais ou parentes mais próximos. Assim sendo, conseguindo suas permissões já eram considerados casados. É interessante este evento, visto que não havia cerimônias, nem promessas de que o casamento deveria se perpetuar até que a morte os separasse. Tanto o marido poderia expulsar a mulher, como ela também o poderia fazer e se o casamento chegasse a um ponto de saturação a união se desfaria sem nenhum constrangimento deixando os dois livres para procurar outros parceiros. A poligamia era amplamente difundida, contudo, a maioria dos índios tinha apenas uma mulher. O adultério feminino era considerado um grande escândalo, pois o marido enganado poderia expulsá-la, ou em casos extremos até matá-la, considerando uma “lei natural” e se a mulher engravidasse fora do seu casamento a criança era enterrada viva e a mulher adúltera era trucidada ou abandonada nas mãos de outros índios. Contudo, o marido não se vingava do homem envolvido no adultério para não criar inimizade. Acerca do tema, Vitor de Toledo Abrantes, discorre: (...) os índios vegetavam lamentavelmente no fundo das selvas, freqüentemente entregues aos horrores do canibalismo e do infanticídio e à adoração de seres diabólicos que divinizavam. Evita-se assim que os índios assimilem a cultura ocidental, adotem a Religião católica pregada pelos autênticos missionários e trabalhem visando sua prosperidade, como o comum dos brasileiros, em harmonia com o resto da população. É uma forma disfarçada e malfazeja de racismo. Quanto aos que já se beneficiaram desses dons, são com freqüência estimulados a abandoná-los para voltar à triste situação de seus ancestrais. 46 A evolução das “classes de idades” entre os ameríndios foi descrita por um frei e estudioso chamado Yves d’Evreux. Ele destaca que para o sexo feminino existiam seis “classes de idade”: primeira classe de idades era comum aos dois sexos, ou seja, os pequenos pouco diferia ao nascer. A segunda classe de idades estendia-se até o sétimo ano após o nascimento. Começando assim, as distinções entre os sexos, sobre tudo em relação às atitudes, comportamentos e deveres próprios da idade. As meninas ficavam muito mais tempo amamentando que os meninos. Embora as meninas se comportassem como os demais e comessem bem, elas costumavam mamar até os seis anos de idade. Em tarefas cotidianas as meninas ajudavam suas mães na confecção de redes e em outras tarefas comuns. Fabricavam potes e panelas enquanto os meninos carregavam pequenos arcos e flechas. Na terceira classe de idade encontram-se meninas com idade de sete a quinze anos, nesta idade elas perdiam a pureza em função das fantasias. Estando nesta idade a menina aprendia os deveres da mulher, tais como: fiar, tecer, fabricar farinha e outras atividades relacionadas à alimentação diária. Em reuniões ficavam em silêncio e aprendiam a seguir o mundo masculino, enquanto os homens se dedicavam em buscar alimento para a família. Na quarta classe de idade, as jovens de 15 a 25 anos, cuidavam da casa aliviando assim o trabalho das mães. Depois de casadas as índias andavam acompanhadas de seus maridos levando nas costas provisões alimentícias a fim de sustentá-los em uma longa caminhada caso necessária. O frei citado chegou a comparar as mulheres ameríndias a burros de carga. Ele também conta em sua obra que essas mulheres em tempo de gravidez não deixavam de trabalhar até a hora do parto e que nem procuravam a cama para o momento certo. Elas apenas se sentavam e comunicavam às vizinhas que o momento de dar à luz estava próximo. 46 ABRANTES, Vitor de Toledo. Suprema crueldade entre os índios. In Catolicismo. São Paulo. Artigo publicado nº 639 em março de 2004, p. 27. Assim, a notícia se espalhava e atraía um grande número de mulheres para junto da parturiente. Depois que o filho nascia a mulher continuava normalmente às suas tarefas domésticas, enquanto o homem era cumprimentado pela aldeia. Ele ficava de cama e era tratado como se estivesse grandemente doente. Segundo Vitor de Toledo Abrantes: (...) O Estado não reconhece a esses indígenas qualquer direito individual além de viver lá dentro, submetidos totalmente como estão aos ditames dos que dominam o conjunto deles e dos antropólogos que os controlam; podem comer algum animal, ave, inseto, peixe ou vegetal que consigam obter, naturalmente sem nunca trabalhar seriamente em coisa alguma, porque isto seria contrário à sua cultura.47 Já a quinta classe de idade, ou seja, entre 25 e 40 anos, algumas índias ainda conservavam traços da mocidade, porém nessa fase se iniciava um processo de decadência física, notada sobretudo, pela queda dos seios. Na sexta classe de idade, as mulheres com mais de 40 anos presidiam as cerimônias de fabricação do “cauim” e de todas as bebidas fermentadas. A morte das velhas não causava comoção, pois os selvagens preferiam as moças. Os homens da sexta classe etária não recebiam o mesmo tratamento. Para eles, essa era a idade mais honrosa de todas. Eles viviam cercados de respeito e veneração, continuavam soldados valentes e capitães prudentes. O falecimento de um velho guerreiro era acompanhado de homenagens, sobretudo quando tombavam no campo de batalha. A sua morte com armas tornavam-no herói e enobrecia seus filhos e parentes. Ao invés de exibirem a experiência e a sabedoria da idade, as velhas índias expressavam por meio de corpos a degeneração moral. Elas demonstravam, de forma ostensiva, a degradação da idade e o resultado das transgressões da mocidade. Percebe-se que há um destaque para a fragilidade moral das mulheres. Na puberdade, quando descobriam a sexualidade, as moças podiam “perder” a cabeça, enquanto os rapazes auxiliam a família, caçando e pescando. A sexualidade praticamente pertencia ao mundo feminino, e o trabalho era a tônica entre as classes de idades masculinas. 47 Ibid., p. 22-34. 2.2 A Mulher Escrava Desde o Século VII, o mundo islâmico abastecia-se de escravos na África Negra. Pelo Deserto do Saara os mercadores árabes levavam escravos para o Marrocos, para Argel, para o Egito e para a Arábia, no Mar Vermelho. A preferência era por mulheres, porque realizavam os serviços domésticos e para os haréns dos califas, ministros de príncipes mulçumanos, e por crianças que eram educadas na nova fé islâmica e preparadas para os serviços de administração ou para formar tropas de elite, como os janízaros do Sultão do Egito. A partir do momento em que se deu início ao tráfico transatlântico para as plantações de açúcar ou as Minas nas Américas, a preferência foi por escravos do sexo masculino. Nesse sentido Hugues D’ans48 explica que com um aumento inesperado da demanda de escravos, as mulheres eram escravizadas em massa na África, para ali seguirem reproduzindo o sistema escravista, fornecendo novos escravos aos mercadores. Mesmo sendo a África o local dos quais os escravos provinha, grande número de mulheres eram embarcadas nos navios negreiros. A proporção embora variável, costumando ser a ser de dois terços de homens para um terço de mulheres. No Brasil, as mulheres escravas desempenham quase todos os trabalhos executados pelos homens, e para outros apenas delas. Encontravam-se nos campos cortando cana ou nas moendas de garapa, além de capinar e derriçar o café e, plantar e colher algodão. Estavam em maior número, contudo, nos serviços domésticos, lavavam, passavam, cozinhavam, limpavam, arrumavam e cuidavam das crianças e das senhoras, como mucama. De acordo com Hugues D’ans49, eram elas que imprimiam o inconfundível aroma e sabor da comida à comida baiana, rica de azeite e pimenta. Eram elas que enfeitavam as ruas com os turbantes e os panos da costa, animavam a vida dos centros de culto afro, onde mães e filhas-de-santo guardavam viva a tradição dos orixás trazidos da África. Durante a escravidão, elas dominavam o pequeno comércio de rua, seja servindo, logo de madrugada, cuias de sopas aos negros, seja oferecendo doces e salgados ao longo do dia. Os homens escravos eram minoria. Tal fato dificultava ainda mais os casamentos já pouco favorecidos no regime escravista. Nas áreas de mineração, podia subir para oitenta ou noventa por cento o número de homens em relação às mulheres. A maioria 48 49 D’ANS, Hugues. Mulher: da escravidão a libertação. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 16. Ibid. delas eram requisitadas pelos homens brancos, de forma que ainda quase crianças eram defloradas pelos filhos da casa, pelos senhores e feitores, povoando de mulatinhas as dependências das casas-grandes e acendendo os furores e ciúmes das senhoras de engenho ou de latifúndio. Na época da escravidão, em nosso país, a família negra é rara, e quando existia, era geralmente, incompleta, constituída pela mãe e filhos pequenos que rapidamente eram arrancados da genitora, para serem vendidos ou mandados para o trabalho, longe da mesma. Em outros países, a legislação proibia separar o marido e mulher, pais dos filhos, nas vendas de escravos. No Brasil, ocorria o tráfico com uma certa liberdade. Em 1871, a Lei do Ventre Livre, dispunha sobre a família escrava da seguinte forma: “Em qualquer caso de alienação em transmissão de escravos, é proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges, e os filhos menores de 12 anos, do pai ou mãe” (art. 4º § 7º). Esta lei surgiu de forma tardia e quase sem força para mudar o costume vigente, surge, dezessete anos antes do término da escravidão, proteção às crianças menores de doze anos e aos pais proibidos de serem separados de seus filhos. Conseqüentemente, a escravidão afetou mais a mulher, obrigada a gerar filhos de quem não queria, privada de conviver estavelmente e em regime familiar com quem ela amava e era também alugada para amamentar filhos que não eram seus, enquanto seus próprios filhos pereciam. Muitas escravas resistiam à escravidão, para que não gerassem filhos que viesse a ser escravo. Algumas, inclusive, procuravam de propósito o aborto, só para os filhos de suas entranhas não viessem a padecer o que elas padeciam.50 Mesmo com todos estes empecilhos, as mulheres escravas mantiveram a vida, multiplicando-se e afirmando-se. Guardaram histórias, cantigas, tradições e rezas, que passaram indistintamente para crianças negras, mestiças e brancas. Ressalte-se que a maioria das uniões entre escravos, era consensual e não sancionada pelo sacramento do matrimônio, instrumento, ao mesmo tempo jurídico, religioso e civil. Entre os escravos, essa união consensual era até mesmo inexistente, enquanto vinculo estável entre um homem e uma mulher, ou melhor, não consistia na coabitação regular entre os parceiros sexuais. O resultado era a mãe sozinha com os filhos, o que se converteu até hoje no denominado pelas classes populares de “mãe solteira”. 50 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência no Brasil. São Paulo: Forense, 1967, p. 164. O sacramento do matrimônio era relativamente raro entre os escravos. Entretanto, o mesmo não se sucedia com o batismo. Na realidade, o batismo parece que cumpria algo mais do que a função religiosa de incorporar, formalmente, os recém-nascidos à Igreja Católica e de dar um documento civil a cada criança. O batismo organizava uma complexa rede de parentesco espiritual, que envolvia a criança, seus pais, ou pelo menos a mãe e os padrinhos. Assim sendo, o batismo dava origem, para pessoas destituídas de família legal, a uma família espiritual, com obrigações recíprocas que eram levadas a sério pelas pessoas envolvidas. Além do respeito que afilhados deviam ao padrinho e à madrinha, aos quais recordam as mães, devia-se pedir uma bênção, e estes deviam ao afilhado (a) proteção e socorro, até mesmo a obrigação de criá-los e educá-los na falta dos pais e, sobretudo da mãe. 2.3 A Mulher no Brasil Colônia e no Brasil Independente A partir do século XVII, a historiografia relata através de documentos a legislação aplicada a mulher no Brasil, como "imbecilitus sexus", equiparada às crianças, aos doentes e aos incapazes. No entanto, apesar de ser considerada incapaz, ela podia herdar e mesmo administrar propriedades, quando houvesse o interesse ou por necessidade da família. Nesse sentido, Paulo Freire apud Maria Lúcia Rocha Coutinho51 afirma: (...) matriarcas houve no Brasil patriarcal, apenas com o equivalente de patriarcas, isto é, considerando-se matriarcas aquelas mulheres que, por ausência ou fraqueza do pai ou do marido, e dando expansão a predisposições, ou características masculinóides de personalidade foram, as vezes, os homens da casa. No século XVIII a família, de organização patriarcal, constituía-se no centro econômico e político da sociedade e, como tal, uma força que se antepunha ao Estado. A Igreja, por seu turno, exercia uma posição intermediária entre a família e o Estado, usando como canal para estabelecer esta relação as mulheres que militavam na religião. Essa era também uma forma de compensar as mulheres por sua situação de inferioridade social. A mulher branca – no período colonial do Brasil e mesmo na República – casava por conveniência econômica, quase sempre com parentes, para reforçar os laços familiares, mas especialmente para preservar o patrimônio da família. Assim sendo, aquelas 51 Apud COUTINHO, Maria Lúcia Rocha. Tecendo por trás dos Panos: A mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 68. mulheres que não desejassem participar desse pacto familiar eram enviadas para os conventos, para evitar casamentos inter-raciais. Por outro lado, a virgindade da mulher era considerada uma virtude, um fator de alta importância e, como tal, era guardada pelo patriarca e por outros membros da família. Ademais, a família honrada era aquela que mantinha a condição de subserviência da mulher e sua total dedicação aos afazeres domésticos, como bem define Charles Expilly52apud Maria Lúcia Rocha Coutinho: A desconfiança, a inveja e a opressão resultantes, prejudicavam todos os direitos e toda a graça da mulher que não era, para dizer a verdade senão a escrava do seu lar. Os bordados, os doces, a conversa com as negras, o cafuné, o manejo do chicote, e aos domingos uma visita à igreja, eram todas as distrações que o despotismo paternal e a política conjugal permitiam às inquietas esposas. A mulher negra e a mulata, por sua vez, sofriam grandes privações, desde a instrução básica, que não lhes era possibilitado receber. A liberdade de deslocamento dessas mulheres, empregadas domésticas em sua maioria, era controlada, assim como o seu modo de vestir. A propósito, Clarice Lispector53 descreve a monotonia e a falta de perspectiva da vida dessas mulheres: Sua preocupação reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia, sem precisar dela, o sol alto, cada membro da família distribuído em suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides da casa lhe haviam transmitido... De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Nesse diapasão a função da mãe - aqui se inclui a negra e a mulata - era glorificada. A figura da mãe - a exemplo do que foi exposto na primeira parte deste trabalho era associada à Igreja, à Virgem Maria, à imagem da devoção e do sacrifício. Ela simbolizava a honra familiar, a solidariedade e a moral da família. Destarte, ela era a figura-modelo da 52 53 Apud COUTINHO, Maria Lúcia Rocha. Op. cit., p. 66. LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. 4. ed., Rio de Janeiro: Sabiá, 1970, p. 19. família, perpetuando-se essa mistificação até os dias atuais, onde muitos maridos chamam a esposa de "mãezinha", numa associação com sua própria mãe. Nesse sentido Donald Woods Winnicott54 apud Maria Lúcia Rocha Coutinho assevera: A saúde do adulto forma-se durante toda a infância, mas as funções dessa saúde, são as mães que estabelecem durante as primeiras semanas e os primeiros meses da existência de seu filho...Alegrem-se de que tal importância lhes seja concedida. Alegrem-se de deixar a outros o cuidado de conduzir o mundo enquanto põe no mundo um novo membro da sociedade. Enquanto a mulher-mãe era exaltada devia, como reconhecimento e gratidão a esse tributo que a sociedade lhe conferia, permanecer em seu espaço privado. Ela era mãode-obra gratuita – no período colonial e, não tão raramente, ainda hoje - permitindo a auto suficiência das residências. A mulher era o agente passivo da multiplicação da riqueza do marido, embasando o funcionamento do sistema econômico que é exterior às famílias e mais amplo que estas. Antonia Fraser, a esse respeito, ensina: O papel do cidadão no capitalismo clássico, de dominação masculina é, portanto, um papel masculino. Ele vincula o Estado e a esfera pública, como afirma Habermas. Mas também vincula estes com a economia oficial e a família. E em todas as circunstâncias, os vínculos são forjados na esfera da identidade do gênero masculino....55 A autoridade do patriarca, comum no Brasil Colônia, prosseguiu no período do Império, da República e, em muitos casos, até os dias atuais, conforme diz Maria Lúcia Rocha Coutinho: As circunstâncias do regime econômico-social no Brasil, portanto, muito contribuíram para forçar a opressão da mulher pelo homem: limitando sua atividade à esfera doméstica ou ao plano da prática religiosa, o homem melhor pôde exercer o seu domínio sobre ela. O absolutismo do pater famílias, em nossa terra só começou a se dissolver à medida que outras instituições e figuras cresceram....56 Foi somente no século XIX, com o processo de industrialização e com as imigrações, que a unidade familiar sofreu algumas alterações, tais como: declínio da 54 Apud COUTINHO, Maria Lúcia Rocha. Op. cit., p. 93. Apud BENHABIB, Seyla e CORNELL, Drucilla, Feminismo como Crítica da Modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987, p. 53. 56 Op. cit., p. 75. 55 autoridade paterna, maior participação das mulheres nas atividades lucrativas, algumas formas de controle da maternidade etc. Nesse período, emergiu uma nova classe social formada por profissionais liberais: médicos, advogados e outros. Entretanto, apesar dos muitos avanços socioculturais, não se modificaram algumas características feudais que dizem respeito à mulher como a intolerância ao adultério cometido por ela, enquanto para o homem, o mesmo comportamento era aceito; e o tabu contra a perda da virgindade da mulher. Muraro, nesse sentido, define: “...o adultério era chamado de crime, mas apenas para as mulheres. A virgindade era aquilo que distinguia as mulheres que iriam ter uma vida má de uma vida boa”.57 Acrescente-se que no século XIX, foram introduzidas no Brasil teorias científicas para justificar a natureza do homem com predisposição à intelectualidade, enquanto que a mulher era vinculada à natureza afetiva. Com base nessas teorias eram justificadas as atitudes racionais, autoritárias e altivas do homem, enquanto às mulheres eram atribuídas as variações de fraqueza, sensibilidade, doçura e a conseqüente submissão. A ciência, desse modo, estava reforçando os estereótipos masculinos e femininos, justificando o papel que cada gênero exercia na sociedade. O Código Civil de 1916, retratava a sociedade da época, que era extremamente conservadora e patriarcal, consagrando a superioridade masculina. O comando era exclusivo do homem, transformando-o em autoridade com poder pessoal. Ao se casar, a mulher perdia sua capacidade, tornando-se relativamente capaz, pois até para trabalhar necessitava de autorização do marido. O casamento era indissolúvel. Só havia o desquite, que rompia a sociedade conjugal, mas não dissolvia o casamento.58 A Escola era uma das instituições sociais que ratificava o tratamento diferenciado oferecido aos meninos e às meninas. Enquanto àqueles era ensinado Línguas, Aritmética, Geografia, etc., a estas o currículo oferecido compreendia Letras, Música, Dança e Prendas Domésticas. Saliente-se, também, que o acesso à educação às meninas somente foi possível muito tempo depois dos meninos. Dessa forma, pode-se deduzir que o ensino ministrado às meninas visava prepará-las para a missão de professora primária, ou seja, um segmento das funções maternais que lhes eram delegadas na época. 57 Op. cit., p. 35. DIAS, Maria Berenice. A Mulher no Código Civil. Disponível em <http://www.mariaberenicedias.com.br>. Acessado em 03/01/2006. 58 Nesse círculo hermético e limitado não era possível à mulher a construção de maiores sonhos, como pode ser visto em Machado de Assis: (...) aprendera a ler, escrever e cantar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo quis que prima Justina Ihe ensinasse. Se não estudou Latim com o Padre Cabral, foi porque o padre, depois de Ihe propor gracejos, acabou dizendo que Latim não era língua de meninas.59 O conhecimento de uma língua estrangeira, preferencialmente o francês, era imprescindível às mulheres das classes altas da época. Pelo domínio dessa língua e da habilidade no trato com as prendas domésticas, assim como no manejo do piano, tornavam-se simpáticas e atraentes ao convívio social, fator de orgulho e valorização do marido. Esse modelo de mulher ideal foi igualmente descrito por Machado de Assis: Era doce, afável e inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e Ihe dava possibilidade de triunfar era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e a toda casta de espíritos, arte preciosa que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres. Helena praticava de livros a alfinetes, de bailes ou de arranjos de casa... Era pianista, sabia desenho, falava corretamente a língua francesa, um pouco a inglesa e o italiano. Entendia de costura e bordados e toda sorte de trabalhos femininos.60 Logo, o casamento, para as mulheres do século XIX, representava uma “carreira”, e uma das poucas oportunidades de ascensão social, pois através deste elas poderiam ter sua própria atividade, embora não remunerada e exercida em regime de dependência, no interior de uma casa. A dupla moral, componente de toda a história, estava aqui presente, permitindo ao homem toda espécie de aventura amorosa, enquanto da mulher se esperava pureza, recato e dedicação ao marido, à casa e aos filhos. Assim, sempre que a mulher saía ao espaço público, devia estar acompanhada de um homem da família. A literatura da época é bem clara a esse respeito, como se pode ver em José de Alencar: Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundia a máscara hipócrita do vício com o modesto recato de inocência. Só então notei que aquela moça estava só e que a ausência de um pai, de um marido ou de um irmão, devia ter-me feito suspeitar a verdade.61 59 ASSIS, Machado. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Editora Moderna Ltda., 1983, p. 51. ASSIS, Machado. Helena. 11. ed., São Paulo: Ática, 1983, p. 24. 61 ALENCAR, José. Lucíola. 11 ed., São Paulo: Ática, 1987, p. 13. 60 Esse controle direto exercido sobre a mulher a impedia de uma relação extraconjugal e também porque a legislação conspirava para inibir qualquer ação da mulher. O Código Penal de 1890 previa punição por adultério, com prisão de um a três anos, mas somente para a mulher. O homem, para ser considerado adúltero, precisava comprovadamente manter a concubina. As teorias a respeito da natureza do homem e da mulher - já referidas anteriormente - eram assimiladas e se tornavam componentes do imaginário social, agindo, assim, sobre a aceitação do tratamento diferenciado aos gêneros. Cândido Mendes, a esse respeito, afirmou: O instinto sexual na mulher, pode-se dizer que não existe quase, de ordinário; a mulher se presta, sacrifica-se às grosserias do homem, mas é fundamentalmente pura; a pureza quase não custa esforço à mulher, e é por isso que ela é tão severa quanto a este ponto, em relação ao seu sexo.62 Desse modo, as teorias e discursos de então vinham reforçar o que estava prescrito a respeito da conduta do homem e da mulher, e que dava àquele a certeza de que o filho por esta gerado era seu pela exclusão da mulher da proximidade com outros homens. Essas ponderações nos reportam à Antigüidade romana, quando se afirmava que a maternidade era uma certeza, enquanto a paternidade era uma questão de fé. Com a industrialização teve início a participação da mulher no mercado de trabalho. No entanto, o trabalho da mulher não era visto como realização profissional ou emancipação econômica da mesma, mas apenas como um complemento financeiro à renda familiar. Por outro lado, a participação da mulher no mercado de trabalho não diminuiu a carga de obrigações que ela suportava em casa, no cuidado da família. Considerada atividade secundária, a mão-de-obra feminina formava um banco de reserva de serviço, que era acionado sempre que houvesse necessidade, como assevera Maria Lúcia Rocha Coutinho: (...) Desta forma, a política do Estado com relação à mulher, foi sempre bastante contraditória; de um lado reforçava a permanência no lar a fim de garantir a tarefa reprodutiva e, de outro, guardava-a como exército industrial de reserva, a fim de que pudesse lançar mão de seu trabalho sempre que necessário aos interesses da Nação.63 No período pós-guerra – décadas iniciais do século XX – houve uma profunda transformação nas sociedades européias e norte-americanas – já exposto na primeira parte deste trabalho – que se refletiu na sociedade brasileira. As mulheres, igualmente aqui, foram incentivadas a cederem o seu espaço no mercado de trabalho aos homens, com 62 63 Apud COUTINHO, Maria Lúcia Rocha. Op. cit., p. 88. Op. cit., p. 95. fundamento na ideologia que enfatizava o papel de mulher-mãe e de sua função indispensável e insubstituível na educação dos filhos. A maternidade era o eixo básico em torno do qual a mulher se movimentava, cumprindo, assim, o seu destino biológico. Dessa forma, formou-se a imagem estereotipada da boa mãe no lar e da infelicidade que vitimava as crianças que eram carentes da atenção materna. Era toda uma gama de profissionais ligados à psicologia, medicina, sociologia etc. que avalizaram essa corrente ideológica, que bem delimitava a esfera pública e a privada para homens e mulheres respectivamente. Edificou-se então, em torno da mulher, toda uma crença, onde ela seria a culpada pelos problemas que ocorressem aos filhos e, conseqüentemente em extensão, à família em geral. Era necessário esquecer-se a si mesma para melhor amar e cuidar dos filhos e marido. Esse foi o modelo importado de mulher ideal que perdurou, mais ou menos, até o ano de 1960. O isolamento da mulher no espaço privado a impossibilitava de participar de qualquer movimento coletivo em prol da melhoria de suas condições. Ao lado disso, era igualmente considerado impróprio a uma mulher ser superior ao homem intelectualmente ou em força física. A mulher, desse modo, somente poderia adquirir alguma posição social por meio das atividades do marido ou dos filhos, de onde se formou o consagrado ditado: “Por trás de um grande homem existe sempre uma grande mulher”. Somente nos tempos atuais foi aceita a adaptação desse popular ditado para: “ao lado de um grande homem...” No entanto, a responsabilidade da mulher com relação à casa, ao bom relacionamento com o marido e à educação dos filhos foi por ela muito bem internalizada a ponto de, por muitas décadas, a sua exclusiva dedicação ser voltada ao espaço privado que lhe foi conferido. O discurso do enclausuramento da mulher no lar foi definido por Emily Dickinson: “Eles me engrandecem em prosa tal quando uma menininha. Eles me mantêm no isolamento porque eles me gostam tranqüila”.64 Com relação à moral sexual, o duplo padrão perdura até os dias atuais, com o reforço de teorias que afirmaram ser o homem dotado de impulso biológico, justificando o comportamento deste ao interessar-se por outras mulheres, mesmo se casado fosse. Desse modo, o homem conta com o aval da sociedade que incentiva a sua atuação naquilo que, por sua própria natureza, dizem ser inerente. 64 Apud COUTINHO, Maria Lúcia Rocha. Op. cit., p. 41. No original da poetisa norte-americana: “They shut me up in prose/as when a little girl/ They put me in the closet/Because they liked me still”. Por outro lado, a esposa devia ser complacente e preservar o casamento, ignorando as ligações paralelas do marido. Para isso havia conselheiros, que iam desde sacerdotes a médicos, que falavam à mulher de sua responsabilidade na preservação do casamento - eterno e indissolúvel. Esse tipo de raciocínio se faz presente, em muitas regiões do Brasil, até os dias de hoje, onde homens e mulheres, filhos e filhas, etc., possuem posições bem definidas no contexto familiar e social. O papel de cada sexo, internalizado desde a infância, era passado de geração a geração, como preceitua Costa apud Maria Lúcia Rocha Coutinho: (...) é informado por um código moral, que os sujeitos também internalizam, que lhes permite distinguir o certo e o errado, o que é permitido para os ocupantes de cada uma dessas posições e, a partir destas internalizações, os sujeitos se inserem nesta sociedade e se representam, no futuro, ocupando posições análogas, com os mesmos contornos.65 Na década de 60, em âmbito mundial, ocorreram movimentos em oposição ao poder socialmente institucionalizado, como o que balançou a estrutura da França em 1968 e a mobilização em prol dos Direitos Humanos nos Estados Unidos. Como reflexo desses movimentos gerais surgiram movimentos específicos de feministas, que discutiam a distinção entre sexualidade e procriação, requalificando o papel sexual da mulher e a questão dos limites entre espaço público e privado. O movimento feminista se impôs, negando a ordem patriarcal que atribuía à mulher uma função secundária em relação ao homem. Esses movimentos frutificaram, pois abriram espaço para que hoje as mulheres ocupem posições de destaque no mercado de trabalho e na sociedade como um todo. Atualmente, as mulheres se questionam sobre o que desejam na vida e não mais aceitam um destino outorgado, pelo simples fato de serem mulheres. O modelo preestabelecido fez com que coubesse ao homem o espaço público e à mulher, o privado, nos limites da família e do lar. Isso faz ressurgir dois mundos paralelos: um de dominação, externo, produtor; o outro de submissão, interno e reprodutor. A redefinição desse contexto levou a mulher para fora do lar e fez com que o homem assumisse responsabilidades dentro de casa, afastando o parâmetro estabelecido e fazendo surgir conflitos entre o casal, como a violência, para impor o cumprimento dos papéis ideais de gênero.66 65 Apud COUTINHO, Maria Lúcia Rocha, op. cit. p. 109. Artigo publicado. A mulher é a vítima da Justiça. Direito e Democracia - Revista de Ciências Jurídicas . ULBRA, vol. I, n. 02, 2º semestre 2000, p. 247-254. 66 Entretanto, apesar de todas as conquistas obtidas, muitas mulheres de hoje ainda continuam vinculadas ao antigo modelo de mulher, tentando equilibrar a profissão que exercem com as atividades da casa. Nesse sentido, Maria Lúcia Rocha Coutinho adverte: Enaltecida por uma florescente campanha que prometia o paraíso para quem quisesse trabalhar, ter filhos, cuidar da casa, ainda ser uma amante sempre disposta e disponível, a mulher passou a se desdobrar e, exausta com o peso de todas as responsabilidades, não conseguindo a excelência almejada, começou a interiorizar uma sensação de fracasso. O problema passou a ser individualizado, como se a dificuldade em ser múltipla o tempo todo fosse pessoal.67 Assim acontece com as mulheres das zonas rurais que sofrem muita opressão, exercendo dupla ou tripla jornada de trabalho, além de darem à luz muitos filhos e, no plano sexual, sofrem as mais rígidas sanções da sociedade. Por desconfiança de adultério, o marido pode até matá-la, em nome da “legítima defesa da honra”, tese esta que ainda é defendida por muitos advogados nos tribunais do júri de todo país. Nas cidades, as mulheres que constituem a classe urbana trabalhadora, de salários mais baixos, também sofrem discriminações em relação ao homem, inclusive no salário, no exercício de função análoga. As pesquisas demonstram a persistência de algum preconceito, que dificulta o progresso na carreira e mantém os holerites femininos mais magros que os masculinos. As mulheres faveladas, de modo geral, apresentam um comportamento diferente das mulheres das classes sociais mais privilegiadas. São elas que sustentam a família que é matricêntrica, na maioria das vezes. Segundo Rose Marie Muraro: “Isto mostra que a família nuclear só é possível em camadas acima de uma certa renda e, portanto, é um privilégio de classe”.68 Nesse início de milênio, a maior transformação está-se processando nas classes médias modernas, onde a mulher avança na conquista de espaço nos tribunais superiores, nos ministérios, no topo das grandes empresas transnacionais, em organizações de pesquisa de tecnologia de ponta. Também pilotam jatos, comandam tropas, ocupam cargos eletivos, não havendo um único espaço considerado, no passado, como masculino, que não seja ocupado por mulheres, fortalecendo os apelos de igualdade que estão expressos na Constituição 67 68 Op. cit., p. 114. Op. cit. p. 157. Federal Brasileira de 1988, uma das mais avançadas do mundo em relação à equiparação dos direitos do homem e da mulher. O movimento feminista, o surgimento de métodos contraceptivos e a abertura do mercado de trabalho para as mulheres desencadearam uma luta emancipatória. A mulher teve acesso à educação, mas ainda que desempenhando funções idênticas às do homem, na maioria das vezes percebe salários inferiores. O poder ainda permanece em mãos masculinas.69 Finalmente, é possível afirmar que – considerando-se esses vários estamentos sociais – os movimentos feministas não proporcionaram uma resposta a todas as dúvidas e anseios femininos. No entanto, eles foram vitoriosos, porque tiraram as mulheres da sombra da História e mexeram com o modelo patriarcal que sempre vigorou, no Brasil, lançando a semente da transformação e modificando a posição que a mulher ocupa na sociedade: no campo profissional e na política70. Conclui-se, que uma nova realidade social - igualitária e progressista – ainda está longe de milhões de mulheres. Não há, nem haverá desenvolvimento social e econômico com justiça, se não houver igualdade de oportunidades para homens e mulheres, direitos e deveres para todos, sem discriminação. 2.4 A Mulher e a Religião Como instituição social, a Igreja Católica tem sofrido transformações que marcam o processo de sua adaptação a um mundo social movente e instável. Embora a mulher tivesse dado provas insofismáveis de sua alta qualidade enquanto trabalhadora, penetrando em massa nas fábricas, no ensino, no comércio e em outros setores da vida econômica, a Igreja Católica insiste em colocá-la ao lado das crianças e em confiná-las aos trabalhos domésticos sempre que possível, reduzindo-a à condição de trabalhadora doméstica não remunerada, à socializadora dos filhos e à garantidora da prosperidade da família como se a economia doméstica tivesse o poder de exterminar a pobreza. 69 Artigo publicado no Jornal Minuano, Bagé-RS, em 25/04/2003; no site Migalhas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/>. Acesso em: 04/01/2006 e Informativo ADCOAS, n° 59, maio/2003, p. 09 70 BOCA-DE-URNA. Caderno da Eleição .Zero Hora, Porto Alegre, fl. 08, 15.09.2002: “Apesar de corresponder a mais de 50% do eleitorado nacional, as mulheres estão muito mal representadas entre aqueles que buscam se eleger no dia 6 de outubro. Elas equivalem a apenas 13,96% do total de candidatos. São 2.637 representantes do sexo feminino disputando uma vaga no Senado, na Câmara, nas Assembléias Legislativas e nos governos estaduais. Ainda assim a taxa é recorde. Nas últimas eleições, em 1998, as mulheres eram 12, 27 % dos candidatos. Em 1994, ainda menos: 6%.” Foram mantidos na Igreja alguns conceitos fundamentais a respeito da mulher, já consolidados na tradição cristã desde muitos séculos até a revolução de 1930, no Brasil, a saber: • a concepção da inferioridade natural da mulher, que desde a sua criação fora destinada para ser submissa ao homem pela realização do matrimônio; • a inclinação da mulher para o pecado da vaidade, que a torna uma criatura pouco reflexiva, atraída pelos aspectos superficiais da vida, e necessitada, por conseguinte, de uma constante orientação masculina; • a imagem da mulher como uma reprodução constante de Eva pecadora, procurando seduzir o homem mediante a sexualidade. Na Revolução de 1939 houve um desenvolvimento industrial mais expressivo no País, especialmente no Centro-Sul do País, sendo também acompanhado de um aceleramento na urbanização. Nessa região criaram-se condições mais favoráveis para mudanças de cunho social, que passaram a atingir não só a estrutura familiar, mas a própria vida da mulher. Já no Centro-oeste, Norte e Nordeste essas alterações nos costumes e tradições sociais se operaram em ritmo bem mais lento. Os meios de comunicação, por sua vez, se encarregaram de ir rompendo as resistências culturais que se opunham aos novos hábitos implantados na sociedade brasileira. A Instituição Eclesiástica, por sua vez, manteve se via de regra como um baluarte onde se refugiavam as forças sociais conservadoras, temerosas das conseqüências dessa alteração dos costumes tradicionais. O modelo da educação feminina oferecido pela Igreja Católica continuou a pautar-se por padrões marcadamente conservadores, não obstante a progressiva abertura da sociedade brasileira. Maria José Rosado Nunes71, ao analisar o papel desempenhado pelas freiras nessa área, afirma que as condições específicas ao campo religioso, aliadas à posição da mulher e especialmente da Irmã de Caridade, na sociedade e na Igreja católica e ao contexto sóciopolítico brasileiro, vão permitir então que a vida religiosa feminina vá se firmando dentro de padrões rígidos de organização interna e de aparente fechamento às mudanças 71 NUNES, Maria José Rosado. Vida religiosa nos meios populares. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 76. ocorridas na sociedade. Enquanto esta se industrializava e se urbanizava, ascendendo ao poder uma burguesia industrial nascente, a vida religiosa continuava a pautar-se por padrões arcaicos, tendo como sua clientela mais significativa, especialmente nos colégios as filhas da oligarquia rural em decadência. A educação ministrada nos colégios católicos, a maioria dos quais dirigidos por religiosas, tinha como finalidade específica não apenas preparar a mulher para os cuidados do lar, mas na medida do possível, buscava também atrair as jovens para a vida conventual. No fim da década de 20, quando muitos costumes começaram a mudar, o corte de cabelos foi se introduzindo. Houve certa polêmica nos internatos, porque as moças, principalmente, queriam seguir a moda e as diretoras dos colégios permaneciam conservadoras, recriminando as que aderiam ao novo costume, sendo proibido também o uso de maquiagens e de esmaltes. Era proibido ainda às internas tirar sobrancelhas, trazer consigo pente, espelho, etc. Assim sendo, diante das mudanças de comportamento ético e social corridas a partir da década de 30, pode-se afirmar que em termos gerais, a Igreja manteve-se numa atitude conservadora, procurando impedir, ou pelo menos retardar e diminuir seu ímpeto. Nesse sentido, a instituição eclesiástica estava em sintonia com as forças sociais conservadoras atuantes no País. Entretanto, em alguns aspectos houve uma significativa “evolução católica”, sobretudo a partir dos anos 50, já então sob a influência do espírito liberal que se difundira no mundo após a II Guerra Mundial. A Igreja foi pouco a pouco mostrando sensibilidade para com o trabalho da mulher fora do lar e sua relativa autonomia diante do marido, mas continuou inflexível com relação à indissolubilidade do vínculo conjugal. Embora desejando manter a mulher mais vinculada aos espaços do lar e da Igreja, a instituição católica teve de admitir, progressivamente, maior participação da mulher nas atividades profissionais e na política. O Juízo Católico contribuiu para o diálogo da hierarquia eclesiástica com o sexo feminino e melhorar suas novas posições assumidas na sociedade. Já na doutrina muçulmana, o Alcorão revelava a deplorável situação da mulher, a menos que tivesse completa independência econômica. Recomendava o Alcorão amparo às repudiadas, às viúvas, às parentas e inúteis. Mais por caridade, porém, do que por direito ou por moral, aconselhava: "Determina a lei que elas baixem sempre os olhos, não deixando ver seus ornamentos, senão aos seus maridos e seus pais."72 Dessa forma, a mulher pouco a pouco conquistava o seu espaço, ainda que fosse apenas como participante de atividades eclesiásticas, mas já tinham uma participação publica, buscando cada vez mais seu espaço na sociedade. 72 PINHEIRO, Ralph Lopes. História resumida do direito. 10 ed., Rio de Janeiro: Thex, 2001, p. 70. CAPÍTULO III – EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER 3.1 A Constituição Imperial de 1824 O ano de 1824 foi marcado pelas idéias liberais. A ideologia do liberalismo gira em torno do homem como base de todo o sistema social. Dessa forma, quando a sociedade é ampla e ilimitada, o Estado deve agir de maneira excepcional e restrita. Assim sendo, a Constituição de 1824, era marcada por um grande liberalismo que era retratado pela da adoção e separação de poderes, que além dos clássicos, possuía um outro: o poder. A primeira manifestação ou primeiro esboço legal do princípio geral da isonomia foi introduzido com a Constituição de 1824, quando em seu artigo 179, inciso XIII proclamou: “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Em pleno Século XIX, seria praticamente impossível referir-se a movimentos femininos, em luta pelos direitos da mulher, muito menos se cogitava sobre o princípio da igualdade entre homem e mulher. A Constituição de 1824 possuía em seu contexto outras disposições, coerentes com as idéias que se propagavam naquele período. Não fazia, portanto, qualquer referência aos direitos do trabalhador em geral, nem conseqüentemente, aos direitos da mulher em relação ao trabalho. A respeito da nacionalidade e cidadania, a Constituição de 1824 determina que: Art. 6°: São cidadãos brasileiros: I. Os que no Brasil tiveram nascido, quer sejam ingênuos ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que não resida por serviço de sua nação. lI. Os filhos de pai brasileiro, e os ilegítimos de mãe brasileira, nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicílio no Império.. III. Os filhos de pai brasileiro, que estivesse em país estrangeiro em serviço do Império, embora eles não venham estabelecer domicílio no Brasil... Pode-se concluir que três são os casos previstos: • em relação aos filhos legítimos nascidos no estrangeiro, o legislador brasileiro considerava relevante para a concessão da cidadania brasileira, apenas a nacionalidade do pai; • em relação aos filhos ilegítimos nascidos no estrangeiro, a Constituição de 1824, levava em consideração a nacionalidade da mãe; • quanto à nacionalidade de filhos de estrangeiros nascidos, no Brasil, só considerava a Constituição ora em estudo, a nacionalidade do pai. No que se refere ao direito de voto, a Constituição de 1824 dispõe: “Art. 91 Têm voto nestas eleições primárias: I – Os cidadãos brasileiros que estão no gozo de seus direitos políticos. II – Os estrangeiros naturalizados”. Ao tempo do Império, conseqüentemente, a mulher não podia votar, nem ser eleita para cargo público, havia referência apenas aos homens. Ressalte-se que, a Constituição de 1824 não contém dispositivos sobre proteção à família e à maternidade. Assim sendo, pode-se perceber que não há qualquer referência expressa à mulher, mas subentende-se que ela estava excluída de determinadas obrigações. Nada obstante a isto, é preciso reconhecer inegáveis méritos a esta Constituição, pois foi sob ela que o país manteve a integridade nacional, onde decorreram os primeiros passos no sentido da democracia.73 Estabelecendo uma comparação entre o texto de 1824 com as práticas constitucionais é possível notar acentuadas controvérsias, pois não era possível ao Brasil da época praticar todos os institutos previstos na Lei Maior. Mesmo assim, não deixou de ser um marco para o desenvolvimento do País, e o crescimento. 3.2 A Constituição Federal de 1891 Trata-se da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891. Na data de 15 de novembro de 1889, o Brasil sofreu um golpe de Estado, pelo qual pôs fim à Monarquia, destituindo-se, por conseguinte o Imperador, proclamando-se uma República Federativa. Este movimento não veio calcado em grandes movimentos populares ou em uma parte da opinião pública. Tudo se resumiu a um movimento de tropas situadas no Rio de Janeiro, a que a nação limitou-se a assistir. O primeiro ato jurídico do movimento armado de 15 de novembro de 1889 consistiu na edição do Decreto n° 1, redigido por Rui Barbosa. Por este diploma ficava provisoriamente decretada a forma de governo da nação brasileira: a República Federativa. Dispõe a Constituição de 1891, no art. 72, parágrafo 2°: 73 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. Saraiva: São Paulo, 1999, p. 103. Todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho. Da mesma forma que a Constituição anterior, a Constituição de 1891 limitava-se a afirmar de maneira ampla a igualdade de todos perante a lei. Não trazia também nada sobre os direitos da mulher referentes ao trabalho, a igualdade civil, etc. Segundo o art. 69 da Constituição de 1891: São cidadãos brasileiros: 1°) Os nascidos no Brasil, ainda que pai estrangeiro, não residindo este a serviço de sua Nação; 2º) Os filhos de pais brasileiros e os legítimos de mãe brasileira nascidos em País estrangeiro, se estabelecerem domicílio na República; 3º) Os filhos de pai brasileiro, que estiver em outro país ao serviço da República, embora nela não venham domiciliar-se... A Constituição de 1824 previu três casos relacionados a cidadania. O primeiro deles é relativo aos filhos legítimos nascidos no estrangeiro, era considerado preponderante para a concessão da cidadania brasileira, apenas a nacionalidade do pai. O segundo é referente aos filhos legítimos nascidos no estrangeiro, levando-se em conta a nacionalidade da mãe. E o terceiro, se refere à nacionalidade de filhos de estrangeiros nascidos no Brasil, a Constituição em tela só considerava a nacionalidade do pai. Consta na Constituição de 1891 que: Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da Lei Pontes de Miranda observa que a constituição de 1891 não limitava aos varãos o direito de voto, porém ‘a Lei Ordinária, fugindo à constituição, nunca atribuiu o voto às mulheres’.74 A Constituição de 1891 não confere qualquer dispositivo sobre a proteção à família e à maternidade. Ressalte-se que as garantias constitucionais mereceram grande destaque na Lei Maior de 1891, foi introduzido o Habeas Corpus, instrumento jurídico de grande valia na repressão às prisões indevidas ou abusivas e aos atentados ao direito de locomoção em geral. 74 RT.Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967. T.IV, p.552. A Declaração de Direitos também não merece ser esquecida, pois foi na Constituição de 1891 que as penas criminais foram abrandadas, suprimindo-se as penas de galés, banimento judicial e de morte. 3.3 A Constituição Federal de 1934 A Constituição Federal de 1934 trouxe como ponto dominante o caráter democrático com um certo teor social. Procurou-se conciliar a democracia liberal com o socialismo, o federalismo com o unitarismo, o presidencialismo com o parlamentarismo. Nesta Constituição houve a multiplicação dos títulos e capítulos, ficando com mais do dobro de artigos que tinha a de 1891. Com a Carta Magna de 1934, o princípio vedatório de qualquer discriminação de gênero foi finalmente expressa com clareza, quando no artigo 113, § 1º, foi declarado que: “Todos são iguais perante a Lei. Não haverá privilégios, nem distinções por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”. A problemática da igualdade entre os sexos inseria-se dentro de uma preocupação maior, qual seja: a da igualdade entre os seres humanos. Dessa forma, a Constituição de 1934, não poderia esquivar-se do problema, só que tal artigo inserto, significava uma proibição de discriminações legislativas e não uma igualdade absoluta de direitos entre homens e mulheres. Quanto à proteção ao trabalho da mulher, mencionada no capítulo anterior, a Constituição de 1934, dispõe no artigo 121, §§ 1° e 3°: §1°. A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos...:- proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil;... d) proibição de trabalho... em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e as mulheres;... h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurado a este descanso antes e depois do parto;... e instituição de previdência... a favor da velhice, da invalidez, da maternidade... §JD Os serviços de amparo à maternidade e à infância, os referentes ao lar e ao trabalho feminino, assim como a fiscalização e a orientação respectivas, serão incumbidos de preferência a mulheres habilitadas.75 75 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (De 16 De Julho De 1934), Art. 121, disponível em <http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm>, acessado em 10/01/2006. As constituições passaram a legislar sobre o assunto, somente a partir de 1934. Todas elas, porém, contêm preceitos que garantem certos direitos específicos à mulher. Quanto à diferença de salários por motivo de gênero há proibição quando se tratar do mesmo trabalho. Igualmente proíbe o trabalho da mulher em indústrias insalubres e dispõe sobre o descanso antes e depois do parto. Observa-se que os dispositivos supracitados se encontram inseridos no Título IV, da Ordem Econômica e Social, da Constituição de 1934, demonstrando dessa forma, o lado social desta Lei Maior, que resultou da necessidade de atender à massa urbana proletária existente, sobretudo nas ferrovias e nos portos. Salienta-se ainda, que direitos sociais, são direitos fundamentais do homem, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social. Consta no artigo 106: São brasileiros: a) os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não residindo este a serviço do governo de seu País; b)os filhos de brasileiro, ou brasileira, nascidos em País estrangeiro, estando os seus pais a serviço público e, fora deste caso, se, ao atingirem a maioridade, optarem pela nacionalidade brasileira.76 Pode-se levar em consideração dois casos: • filhos legítimos nascidos no estrangeiro: a partir da Constituição de 1934, a nacionalidade da mãe passou a ser também fator determinante dessa cidadania; • nacionalidade de filhos de estrangeiros nascidos, no Brasil, só se considerava a nacionalidade do pai. Em relação à participação política das mulheres e o direito ao voto, há muito reivindicado, foi uma das alterações ocorridas na Constituição de 1934: Art. 108. São eleitores os brasileiros de um ou de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei. Art. 109. O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar.77 76 Id Ibid., Art. 106. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (De 16 De Julho De 1934), disponível em <http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm>, acessado em 10/01/2006, Art. 108 e 109 77 Ressalte-se, que já em 1932, embora não tivesse sido ainda beneficiada com uma declaração constitucional de isonomia, a mulher já havia conquistado, no País, o direito ao voto e o direito de acesso aos cargos públicos, em igualdade de condições com os homens, graças ao Decreto nº. 21.076/32. De forma inédita no Brasil, a Constituição de 1934 assegurou à mulher o direito de voto. Limitou, porém, este direito aos casos em que a mulher exercesse função pública remunerada. Outro fator inédito é referente à proteção à maternidade. A Constituição de 1934 foi a primeira a legislar sobre o assunto, referindo-se expressamente à incumbência da União, dos Estados e dos Municípios de amparar a maternidade e a infância. “Art. 138. Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas (...) c) amparar a maternidade e a infância (...)”. Durante muitos séculos, a mulher viveu apenas para o lar, tendo sido, em grande período, escrava ou quase-escrava do homem. Com o passar do tempo, as condições sociais do mundo foram transformadas, e a mulher foi, aos poucos tomando seu lugar na sociedade. E uma vez que era considerada como uma missão essencial da mulher a maternidade, o Estado precisava proteger o trabalho feminino para que a mulher não fugisse à sua precípua missão. Para isso, a Constituição de 1934 foi precursora, e em outros países, fizeram-se leis para tutelar o trabalho da mulher. Em relação ao funcionalismo público, o artigo 168 da Constituição de 1934, preceituou que: “Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros sem distinção de sexo ou estado civil, observadas as condições que a lei estatuir”. A mulher poderia concorrer de forma igualitária para conseguir um emprego público, a sua condição de mulher já não a impedia. Inovando a respeito, a Constituição de 1934 dispõe sobre aposentadoria compulsória aos 68 anos de idade, mas ainda, nada traz sobre a aposentadoria voluntária. Quanto ao serviço militar, a Constituição de 1934 é a primeira a mencionar expressamente que as mulheres são isentas. Enquanto as Constituições anteriores nada mencionam a esse respeito. Não obstante, elas ficam obrigadas a outros encargos necessários à defesa da Pátria, em caso de mobilização. Assim sendo, dois pontos principais chamam atenção no que se refere Constituição de 1934. O primeiro se refere ao extremo caráter compromissário assumido pelo texto ante as múltiplas divergências que dividiam o conjunto das forças político-ideológicas da época. O segundo considera a curtíssima duração de sua vigência, visto que, promulgada em 1934, estava condenada a ser abolida, já em 1937 pela implantação do Estado Novo. Esta curta duração que teve não deve ser explicada, ainda que resumidamente, pelos defeitos que trazia em si, mas, em verdade, pela radicalização do clima social de então. Com a Constituição de 1934, foi introduzido, no Brasil, o Estado Social, passando a prever direitos sociais e econômicos. A partir desta Constituição se estendeu o direito de sufrágio também à mulher; ocorrendo a chamada “simetrização entre os sexos.”78 A partir desse momento, a mulher começa a tomar parte da vida política do Estado, participando ativamente através do voto, uma vitória conquistada, após anos de luta. 3.4 A Constituição Federal de 1937 Esta Constituição foi decretada em 10 de novembro de 1937, pelo presidente Getúlio Dorneles Vargas, inspirada no modelo fascista e, conseqüentemente, de cunho eminentemente autoritário, o que é perceptível pelas descrições das competências do chefe máximo da nação. A Constituição de 1937, trouxe restrições aos direitos individuais e às suas garantias, ao contrário dispunha contra vários princípios obrigatórios para o Regime Democrático, por isso nela não foram albergados os princípios da legalidade e da irretroatividade da lei. No lugar deles reapareceu a pena de morte para os crimes políticos e para os homicídios cometidos por motivo fútil e com extremos de perversidade. O direito da manifestação de pensamento foi limitado pela censura prévia da imprensa e outras barbaridades que colocavam a democracia por terra. A Constituição de 1937, de reconhecida tendência autoritária e outorgada ao País no momento da instalação do Estado Novo, suprimiu a referência expressa à igualdade jurídica de ambos os sexos, retomando à formula genérica das constituições brasileiras promulgadas no século anterior. No que se refere à proteção ao trabalho da mulher, o artigo 137 dispunha: Art. 137. A legislação do trabalho observará, além de outros, os seguintes preceitos: (...) k) proibição de trabalho a menores de 14 anos; ao trabalho noturno a menores de 16, e, em indústrias insalubres a menores de 18 anos e a mulheres; 1) assistência médica e higiênica ao trabalhador e à gestante, 78 MIRANDA, Francisco Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. 1.ed., Tomo IV. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1967, p.552. assegurado a esta, sem prejuízo do salário, um período de repouso antes e depois do parto...79 Pode-se constatar que nesse dispositivo, não se levou em consideração a diferença de salários por motivo de sexo, que proíbe qualquer diferença quando se tratar do mesmo trabalho. Quanto ao direito do voto, o artigo 115 dispõe “São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei”. Há omissão, porém, quanto à função pública remunerada, logo, conclui-se que foi garantido à mulher o direito de votar e ser eleita. Quanto à proteção à maternidade, a Constituição omite este tema. Em relação à prestação do serviço militar, o artigo 164 caput dispõe o seguinte: “Todos os brasileiros são obrigados, na forma da lei, ao serviço militar e a outros encargos necessários à defesa da Pátria, nos termos e sob as penas da lei”.80 Mesmo este dispositivo não se referindo expressamente à mulher quando trata da obrigação de serviço militar e outros encargos necessários à defesa da Pátria, não a exclui, visto que de certo modo apresenta a expressão “todos os brasileiros”. Assim sendo, a vigência deste Texto Constitucional só decorria dos termos do art. 187 que rezava: “Esta Constituição entrará em rigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma regulada em decreto do Presidente da República”. No entanto, este plebiscito nunca se realizou. Em termos jurídicos, a Constituição jamais ganhou vigência, pois o que prevaleceu nesta época foi o chamado Estado Novo, estado arbitrário despojado de quaisquer controles jurídicos, onde primava a vontade do ditador Getúlio Vargas. Essa Constituição foi nominada pelo povo de "polaca" pois era quase uma réplica da Constituição Polonesa. 3.5 Constituição Federal de 1946 Esta Constituição foi promulgada em 18 de setembro de 1946 e foi considerada a melhor que tivemos. Segundo Celso Ribeiro Bastos tecnicamente muito correta e do ponto de vista ideológico traçava nitidamente uma linha de pensamento libertário no campo político sem descurar da abertura para o campo social que foi recuperada da Constituição de 1934.81 79 Constituição dos Estados Unidos do Brasil (De 10 De Novembro De 1937), disponível em <http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>, acessado em 10/01/2006 80 Constituição dos Estados Unidos do Brasil (De 10 De Novembro De 1937), Art 164, disponível em <http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>, acessado em 10/01/2006. 81 Op. cit., p. 126. Em relação à Constituição de 1934, poucas são as divergências. Do ângulo da ordem econômica a Constituição de 1946 pode ser vista como uma tentativa de conciliar o princípio da liberdade de iniciativa com o princípio da justiça social. Os dispositivos referentes aos direitos auferidos pela mulher, praticamente não foram alterados. Ao lado desse escrupuloso respeito pelos direitos individuais a Constituição Federal de 1946 soube prestigiar também os valores coletivos que, gradualmente marcavam presença nos textos básicos da época do seu surgimento.82 A Constituição de 1946 foi uma Constituição Republicana, Federativa e Democrática. Por força do princípio republicano tem-se a origem popular de todo poder que é exercido por mandatários do povo em seu nome e por período certo. Quanto à proteção ao trabalho da mulher, o artigo 157 determinava: Art. 157. A legislação do trabalho e da previdência social obedecerão aos seguintes preceitos, além de outros que visem à melhoria da condição dos trabalhadores: (...) II- proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil;(...) IXproibição de trabalho a menores de 14 anos; em indústrias insalubres, as mulheres e a menores de 18 anos; (...) X- direito da gestante a descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do emprego nem do salário; (...) XVIprevidência, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado, em favor da maternidade e contra as conseqüências da doença, na velhice, da invalidez e da morte (...)83 Foi proclamado nesta Constituição que a ordem econômica haveria de ser organizada conforme os princípios da justiça social e a liberdade de iniciativa conciliada com a valorização do trabalho humano. Conclamou que a todos seria assegurado trabalho que possibilitasse existência digna e alçou o trabalho à obrigação social. Apontou ainda, os preceitos a que deveria obedecer à legislação do trabalho e a da previdência social, visando à melhoria condição dos trabalhadores. Pelos 17 itens enunciados no art. 157, cuidou desde o salário mínimo, da participação obrigatória e direta do trabalhador. Nos lucros da empresa, repouso semanal remunerado, direito da gestante a descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do emprego nem do salário; assistência aos desempregados, e até a previdência em favor da maternidade, devendo contribuir a União, o empregador e os empregados. A Carta Constitucional consagra diversas dessas aquisições, anteriormente, feitas assim como agrega algumas, como direito de greve, antes inexistente. 82 ALVES, Francisco. As Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Ciência Política. p. 58. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (De 10 De Novembro De 1937), Art. 157, disponível em <http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>, acessado em 10/01/2006. 83 Em relação ao direito ao voto, o artigo 131 reza que “são eleitores os brasileiros maiores de 18 anos que se alistarem na forma da lei”. É garantido à mulher, em igualdade com o homem, o direito de votar e ser eleita. Nesse sentido, o artigo 133 “o alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de ambos os sexos, salvo as exceções previstas em lei”. Quanto à proteção à maternidade, o artigo 164 reza que “é obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo das famílias de prole numerosa”. Novamente foi especificado o amparo à maternidade, omitida na Constituição anterior. No que se refere ao serviço militar, o artigo 181 dispõe que: Art. 181. Todos os brasileiros são obrigados ao serviço militar, mas sujeitas aos encargos necessários à defesa da Pátria, nos termos e sob as penas da lei. § 1º. As mulheres ficam isentas do serviço militar, mas sujeitas aos encargos que a lei estabelecer.84 O artigo é explícito quanto à isenção do serviço militar às mulheres e também quanto à obrigação de se sujeitarem aos encargos que a lei estabelecer. De 1946 a 1961 a primeira Constituição do segundo pós-guerra teve uma existência relativamente calma, sofrendo apenas três emendas, nada obstante a vida política nesse período ter sido marcada por diversos sobressaltos. Ressalta-se que nesta Constituição foram adotadas algumas medidas de cunho humanitário, o que revela uma recusa com certos tipos de pena. Fica excluída a pena de morte assim com o banimento e o confisco. Em 1948, foi feita a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que em seu art. 2º, condena toda discriminação fundada não só sobre a religião, a língua, mas também sobre o sexo e a raça. Norberto Bobbio assevera: (...) No que se refere à discriminação fundada na diferença de sexo, a Declaração não vai e não pode ir além dessa enunciação genérica, já que se deve entender que, quando o texto fala de ´indivíduos´, refere-se indiferentemente a homens e mulheres. Mas, em 20 de dezembro de 1952, a Assembléia 84 Geral aprovou uma Constituição dos Estados Unidos do Brasil (De 10 De Novembro De 1937), Art. 181, disponível em <http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>, acessado em 10/01/2006. Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, que (...) prevê a não-discriminação tanto em relação ao direito de votar e de ser votado quanto à possibilidade de acesso a todos os cargos públicos.85 3.6 Constituição Federal de 1967 Foi promulgada a 24 de janeiro de 1967, como uma tentativa de agasalhar princípios de uma Constituição democrática, conferindo um rol de direitos individuais, liberdade de iniciativa, mas onde a todo instante se sente a mão do Estado autoritário que a editou. A Constituição de 1967 entrou em vigor a 15 de março desse ano, e foi a primeira Constituição brasileira elaborada após a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Conforme o artigo 153, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei”. Fixa expressamente o preceito que garante a igualdade de todos perante a lei sem distinção de sexo. A igualdade jurídica entre o homem e a mulher foi afirmada como preceito constitucional. A esse princípio devem-se subordinar, sob pena de inconstitucionalidade, todas as leis e demais normas escritas ou costumeiras. Entretanto, exame objetivo da realidade jurídica e social mostrava que nem sempre a legislação ordinária e a vida prática respeitavam o imperativo constitucional. Pode-se citar como exemplo flagrante de tratamento desigual entre o homem e a mulher estabelecido por leis ordinárias, os preceitos da lei civil que atribui ao marido, e não a ambos os cônjuges: a direção da sociedade conjugal, o direito de fixar o domicílio da família, de nomear tutor, de administrar os bens do casal e em casos de divergências entre o casal, cabia ao marido decidir. Observa-se que muitas restrições aos direitos da mulher foram eliminadas pela Constituição Federal que ora nos governa e que trouxe inúmeras alterações, principalmente no direito de família e sucessões. Em relação à proteção do trabalho da mulher, o artigo 158 reza que: Art. 158: A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos, além de outros que, nos termos da lei, visem à melhoria de sua condição 85 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1992, p.35. social; (...) III- proibição de diferença de salários e de critério de admissões por motivos de sexo, cor e estado civil; (...) X- proibição de trabalho em indústrias insalubres a mulheres e menores de 18 anos e de qualquer trabalho a menores de 12 anos; (...) XI- descanso remunerado da gestante, antes e depois do parto, sem prejuízo de emprego e do salário; (...) XVI- previdência social, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado, para seguro-desemprego, proteção da maternidade e nos casos de doença, velhice, invalidez e morte; (...) XX-aposentadoria para a mulher, aos 30 anos de trabalho, com salário integral (...)86 Praticamente, não houve alterações no que tange à proteção do trabalho da mulher, mas vale ressaltar duas importantes que são: quanto à aposentadoria por tempo de serviço, esta Constituição estabelece que é apenas de trinta anos, e não de trinta e cinco, o tempo de serviço necessário para a aposentadoria da mulher. Também quanto à diferença de critérios de admissões por motivo de sexo, pois o preceito que proíbe esta discriminação só integrou o texto constitucional a partir de 1967. Quanto ao direito do voto, disposto no artigo 142 “São eleitores os brasileiros maiores de 18 anos, alistados na forma da lei §1°. O alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de ambos os sexos, salvo as exceções previstas em lei (...)”, este foi garantido, assim como nas Constituições anteriores o direito da, mulher de votar e ser votada. No que tange à proteção à maternidade, o artigo 167, § 40: “A lei instituirá a assistência à maternidade, à infância e à adolescência”. Além do amparo à infância e a adolescência, há referência específica à maternidade. Os legisladores continuaram a considerar importante a assistência à maternidade, e de certa forma, foram-se aperfeiçoando os métodos utilizados. No que tange ao serviço militar, o artigo 93 reza que: Art. 93. Todos os brasileiros são obrigados ao serviço militar ou a outros encargos necessários à segurança nacional, nos termos e sob as penas da lei. Parágrafo único. As mulheres e os eclesiásticos, bem como aqueles que foram dispensados, ficam isentos do serviço militar, mas a lei poderá atribuir-lhes outros encargos.87 Novamente esta Constituição, assim como a de 1946, é explícita quanto à isenção do serviço militar às mulheres e também quanto à obrigação de se sujeitarem aos encargos que a lei estabelecer. Dessa forma, pode-se concluir que a Constituição de 1967 asseguraria o desenvolvimento e a segurança do país. 86 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1967, Art. 158, disponível em <http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>, acessado em 10/01/2006. 87 Id. Ibid., Art. 93 Sobre essas características ainda vale a pena ressaltar que a situação econômica era extremamente favorável, visto que afluíam para o País muitos recursos estrangeiros, ocasionando o desenvolvimento de todo o sistema financeiro extremamente sofisticado e bastante abastecido por uma poupança que era estimulada a toda força. Na Constituição de 1967, como ocorreu na de 1946, exclui-se distinção de sexos. Resta a parte da população que não tem direito de alistar-se: os que perderam os direitos políticos, analfabetos e os que não sabiam exprimir-se na língua nacional. A exigência atende ao fato de existirem naturalizados brasileiros natos que não aprenderam a língua nacional e se não podem exprimir-se em língua portuguesa, dificilmente estavam interessados na vida política do País. A Constituição de 1946 riscou a exceção do alistamento aos mendigos. Esta e a de 1967, alargaram a exceção ao que se estabelecera quanto às praças de pré. Em vez de só se pré-excluírem da incapacidade os aspirantes a oficial, pré-excluíram-se os suboficiais, os subtenentes, os sargentos e os alunos das escolas militares de ensino superior para a formação militar. A Constituição de 1934, pré-excluía os sargentos do Exército e da Armada e das forças auxiliares do Exército. A Carta de 1891 só excetuava os alunos das escolas militares de ensino superior. 88 Nos anos posteriores a situação política brasileira tornou-se turbulenta, tendo-se tomado medidas drásticas que será visto no item seguinte. 3.7 A Emenda Constitucional de 1969 Pela Constituição de 1969, foi atribuída a todo cidadão brasileiro a responsabilidade pela segurança e foi instituído o "Conselho de Segurança Nacional", com amplos poderes. Os delitos enquadrados nas leis de segurança nacional caracterizavam-se por estarem definidos de uma forma vaga e genérica, oferecendo ampla margem à arbitrariedade. Com isso, sob o manto do direito, foram levantadas as bases do estado policial arbitrário. O artigo 153, §1°dispõe que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça”. 88 MIRANDA, Francisco Pontes de. Op. cit., p. 551-61. Como se pode perceber, não há qualquer alteração em relação à Constituição anterior, ou seja, continua a afirmação do preceito que garante a igualdade de todos perante a lei sem distinção de sexo. Quanto à proteção ao trabalho da mulher, o artigo 165 dispõe o seguinte: Art. 165. A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos, além de outros que, nos termos da lei, visem à melhoria de sua condição social: (...) III- proibição de diferença de salários e de critério de admissões por motivos de sexo, cor e estado civil; (...) X- proibição de trabalho, em indústrias insalubres, a mulheres e menores de 18 anos e de qualquer trabalho a menores de 12 anos; XI- descanso remunerado da gestante, antes e depois do parto, sem prejuízo do emprego e do salário; (...) XVI- previdência social nos casos de doença, velhice, invalidez e morte, seguro-desemprego, seguro contra acidentes do trabalho e proteção da maternidade, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado; (...) XIXaposentadoria para a mulher, aos 30 anos de trabalho, com salário integral (...)89 O exame histórico das nossas Constituições, até aqui, revela uma inegável evolução nos direitos da mulher enquanto trabalhadora. Entretanto, se comparar estudos e pesquisas realizadas na época em que vigorava esta Emenda Constitucional vai-se defrontar com dados bem interessantes: Rubens Vaz da Costa90 observava que a mulher brasileira ainda não alcançava compensação financeira justa e acesso a posições de maior responsabilidade profissional, executiva e política. Afirmava que 13% das mulheres empregadas tinham salários mensais de até ¼ do salário mínimo oficial, em comparação com 4% dos homens empregados. Na faixa de ¼ a ½ salário mínimo estavam 16% das mulheres empregadas e 12% dos homens; e na faixa de ½ a um salário estavam 23% dos homens. Em todas as categorias acima de um salário mínimo a porcentagem dos homens era superior à das mulheres, em sua opinião, essa disparidade na estrutura salarial por sexos refletia uma discriminação, tanto quanto o fato de que, embora as mulheres formassem 1/3 da população economicamente ativa, elas representavam 40% dos desempregados. Lembra Heleith Iara Saffioti91 que embora, no Brasil, não tenha havido exploração maciça de mão-de-obra feminina, a fim de acelerar-se a acumulação de capital, o 89 EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1, DE 17 DE OUTUBRO DE 1969, que emenda a Constituição da Republica Federativa do Brasil (1967), Art. 165, disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>, acessado em 10/01/2006 90 COSTA, Rubens Vaz da. A mulher no Brasil-II. Folha de São Paulo, ed. de 27.06.1975. 91 SAFFIOTI, Heleith Iara. A mulher na sociedade de classes: Mito e Realidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1979, p. 247. emprego das mulheres sempre permitiu a apropriação de maior lucro, dada a discrepância entre os salários masculinos e femininos. Em seu entender, o que explicava este fenômeno era concepção do trabalho feminino como subsidiário, determinando uma oferta e aceitação mais baixas que as masculinas. Vale informar que estes fatos são referentes à sociedade capitalista. Todavia, entende-se que não se pode atribuir apenas ao capitalismo a responsabilidade pela discriminação que a mulher e o trabalho feminino vêm sofrendo através dos séculos. Basta lembrar o fato de que o capitalismo é um fenômeno do mundo ocidental que remonta a pouco mais de um século, enquanto o preconceito em relação à sujeição feminina não se limita ao ocidente e data de milênios. Quanto ao direito ao voto, prossegue o direito da mulher de votar e ser eleita. No que tange à proteção à maternidade, o artigo 175, § 4° dispõe que “Lei especial disporá sobre a assistência à maternidade, à infância e à adolescência e sobre a educação de excepcionais”. A norma constitucional ampara especificamente a maternidade, devendo lei especial dispor sobre a mesma. Quanto ao serviço militar o artigo 92 reza: Art. 92. Todos os brasileiros são obrigados ao serviço militar ou a outros encargos necessários à segurança nacional, nos termos e sob as penas da lei. Parágrafo único. As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos de serviço militar em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.92 O dispositivo é explícito quanto à isenção de serviço militar às mulheres e também quanto à obrigação de se sujeitarem aos encargos que a lei estabelecer. 3.8 A Constituição Federal de 1988 A Constituição Federal de 1988 trouxe mudanças no tratamento da mulher e do homem, colocando um freio na distinção existente até então. A igualdade perante a lei é prevista no artigo 5º, como se segue: Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à 92 EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1, DE 17 DE OUTUBRO DE 1969, que emenda a Constituição da Republica Federativa do Brasil (1967), Art. 92, disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>, acessado em 10/01/2006. propriedade, nos termos seguintes: 1- homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta constituição (...).93 A análise desse dispositivo aponta que se torna inaceitável a utilização do fator discriminatório sexo, sempre que o mesmo esteja presente, com o propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher. Não obstante a isso, poderá ser aceito quando a finalidade pretendida for atenuar os desníveis. É bem de ver que se é importante a decretação de iguais direitos entre homem e mulher, é também forçoso reconhecer que esta disposição só se aperfeiçoa e se torna eficaz na medida em que a própria cultura se altera. É necessário que as mentalidades se modifiquem. Uma outra questão a ser levantada é que homens e mulheres não são, em diversos sentidos, iguais, sem que com isto se queira afirmar a primazia de um sobre o outro. O que cumpre notar é que por serem diferentes, em alguns momentos haverá forçosamente de possuir direitos adequados a estas desigualdades. A novidade maior, contudo, reside na exceção de cláusula "nos termos desta Constituição".94 Criou-se então uma reserva constitucional no assunto o que vale dizer, que será a Lei vedada a fazê-lo, poderá, no entanto a legislação infraconstitucional atenuar os desníveis de tratamento em razão do sexo. Observa-se ainda que a Constituição cria posições de vantagem em favor da mulher: a aposentadoria com menos tempo de serviço, benefícios nas relações de trabalho, entre outros. Finalmente, cumpre registrar que mesmo a igualdade assim categoricamente assegurada há de ceder diante daquelas situações em que a realidade está a impor a exclusividade de um dos sexos. Assim, não é lícito a um homem o ingresso em batalhão de polícia feminino nem à mulher é dado insistir em prover um cargo de carcereiro em prisão masculina. Embora seja sabido que depende muito da cultura de cada país o reconhecer o que é próprio a cada um dos sexos, o fato é que o direito há de respeitar estas distinções que, embora de base eminentemente cultural, não deixam de ter como suporte uma diferenciação na própria caracterização de cada um dos sexos. Ainda com relação à igualdade dos direitos e deveres do homem e da mulher, a Constituição em vigor proclama no art. 226, § 5º o mesmo princípio de igualdade em 93 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Art. 5º, disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>, acessado em 10/01/2006. 94 BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 186. relação a direitos e deveres dos cônjuges, na constância da sociedade conjugal. “Art. 226 (...) § 5°. Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. O princípio constitucional da igualdade do homem e da mulher ingressou no domínio do Direito Positivo. Isto significa que todas as disposições do antigo Código Civil Brasileiro que consagram desigualdades entre os cônjuges, e que não se encontram justificadas por algum princípio constitucional estão revogadas ou perderam sua eficácia. Segundo Oliveira et al95 as desigualdades consagradas no Código Civil Brasileiro de 1916, no setor da família, são de três ordens. Nas relações pessoais entre os cônjuges, em harmonia com a perspectiva de funções diversas no interior da família para o marido e para a mulher, o exemplo é a norma que destinava a conferir ao marido a chefia da sociedade conjugal (art. 233), que sinalizava desigualdades concretizadas por outras regras. A mulher desempenhava função auxiliar: era colaboradora do marido na direção material e moral da família (art.240), atribuía lhe a direção da casa (poder art. 247), na idéia de que o marido devia prover especialmente as despesas comuns. A obrigação primeira do marido era prover a manutenção da família (art, 233, IV), enquanto a mulher devia ocupar-se dos cuidados do lar (modelo composto de marido-provedor e mulher donade-casa). Era reservado ao marido o poder de decisão sobre os assuntos mais importantes da família, o que é incompatível com o princípio da igualdade. Era, por exemplo, o que se observava com relação à norma que atribuía ao marido o poder de fixar o domicílio (art. 233, III). Relação entre pais e filhos: é o pai que tem o poder de decisão porque se lhe atribui a última palavra na hipótese de divergência com a mãe, ressalvando-se a esta o direito de recorrer ao juiz (art. 380, parágrafo único). Relações patrimoniais entre os cônjuges, por exemplo, marido e mulher não têm igual legitimação para contrair obrigações. A mulher não podia "contrair obrigações que possam importar em alienação dos bens do casal" (art. 242, IV), o que significava uma limitação ou restrição fundada em motivos que não justificavam o tratamento desigual entre os cônjuges, no atual estado de desenvolvimento de nossa sociedade e da consciência jurídica. 95 OLIVEIRA, José Luis et al. Curso de Direito da Família. Curitiba: Juará Editora, 1998, p. 460. Pode-se notar ainda que o regime da comunhão parcial (art. 269 a 275) não se apresenta equilibrado entre os cônjuges. Em primeiro lugar, a administração dos bens comuns está, no regime supletivo, reservada ao marido (art. 233, lI, e art. 247). Trata-se de sistema de gestão individual centralizada, em que o marido tem o poder exclusivo de administração dos bens comuns. Isto é inconciliável com o princípio da igualdade entre os cônjuges, que exige que eles tenham o mesmo direito de administração do patrimônio comum. Essa igualdade é um direito fundamental do homem, como explica José Afonso da Silva: (...) Os direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente efetivados. reconhecidos, mas concreta e materialmente 96 Por outro lado, na composição dos bens comuns, o produto do trabalho do marido entrava na comunhão (art. 271, IV), enquanto o provento do trabalho da mulher tinha o caráter de bem reservado (art. 246). Conseqüentemente, a exclusão de ganhos e salários da mulher do núcleo de bens comuns produz, dentro da comunhão, um injustificado desequilíbrio entre os cônjuges, em especial por ocasião da partilha dos aqüestos para cuja formação só concorrem ganhos e salários do marido. Para se dar ao princípio da igualdade o seu justo alcance é necessário que num sistema de comunhão, as suas regras sejam expressão da idéia de que o que se ganha e se economiza durante o casamento pertence aos cônjuges em comum, como resultado de uma cooperação existente entre ambos. Percebe-se que o art. 246 do CC de 1916, que contemplava a instituição dos bens reservados da mulher, revelava um desequilíbrio do sistema que consagra, assim, uma 96 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13. ed., revista e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p.176-177. solução contrária ao princípio da igualdade de direitos entre os cônjuges. Assim sendo, com a Constituição Federal de 1988, abriram-se inúmeras lacunas no sistema, que o juiz, no processo de realização concreta do direito, deve integrar, inspirado na nova determinação constitucional. Considerando toda polêmica gerada pelo tema ora em discussão, ressalta-se que as opiniões são divergentes, havendo autores que discordam com dispositivos que igualam homens e mulheres em direitos e obrigações. Áurea Pimentel Pereira97, em sua obra intitulada Nova Constituição e o Direito da Família assevera que mesmo com o advento da Constituição, em vigor, em que o homem já não seria mais o chefe da sociedade conjugal ou a cabeça do casal como proclama o art. 233 do Código Civil, passando a direção de tal sociedade ser exercida agora, ao mesmo tempo pelo homem e pelas mulheres, é absolutamente inaceitável. Segundo os argumentos da autora, a família brasileira se assentou, desde o início, em tradição eminentemente patriarcal, em que a chefia do grupo familiar se deferiu sempre ao homem, no próprio interesse da subsistência do equilíbrio e harmonia da entidade familiar, só possíveis quando submetidas esta a uma autoridade diretiva unificada, parecendo que o desdobramento de tal autoridade, para propiciar seu exercício ao mesmo tempo pelo homem e pela mulher, por certo poderá fazer nascer entre estes uma situação de verdadeiro confronto, sem condições de ser, no futuro, contornado. Conforme Áurea Pimental Pereira acrescenta, Na linha de tais considerações, portanto, e que entendemos que em respeito à formação patriarcal da família brasileira, e no interesse da sobrevivência da harmonia nas relações do grupo familiar, e que a autoridade diretiva unificada deve sobreviver, mantendo-se nas mãos do homem a chefia da sociedade conjugal, como aliás, atualmente se faz em quase todos os países do mundo.98 Os países do mundo aos quais se referiu a autora são, por exemplo, a França, cujo estatuto civil proclama em seu art. 213: O marido é o chefe da família. Exerce ele esta função no interesse comum do lar e dos filhos. A mulher concorre com o marido para assegurar a direção moral e material da família, para cuidar da sua manutenção, para educar os filhos e para preparar o estabelecimento deles. A mulher substitui o marido na sua função de chefe se não estiver ele em condições de manifestar a sua 97 98 PEREIRA, Áurea Pimentel. A Nova Constituição e o Direito da Família. Rio de Janeiro: Renovar, 1990. Id. Ibid., p. 58. vontade por motivo de sua incapacidade, da sua ausência, do seu afastamento ou por qualquer outra causa.99 Da mesma forma, na Itália, estabelece o artigo 144 do Código Civil daquele país: “O marido é o chefe da família; a mulher segue a sua condição sócia, recebe o seu sobrenome e está obrigada a acompanhá-lo para onde creia ele oportuno de fixar sua residência”100. O mesmo princípio da existência de uma autoridade diretiva aparece no Código Civil Suíço, onde guardando-se fidelidade com as linhas mestras da tradicional família patriarcal romana no art. 331, assim se declara: Se pessoas que vivem na comunidade tiverem de acordo com as disposições de lei ou de acordo com o convencionado ou com os costumes um chefe de família, caberá a ele a autoridade doméstica. A autoridade doméstica se estende a todas as pessoas que, na qualidade de parentes consangüíneos ou afins ou, com fundamento em contrato, com serviçais, aprendizes ou oficiais ou em outra posição semelhante, vivem na comunidade doméstica.101 A conclusão sobre o posicionamento de Áurea Pimentel Pereira em relação ao direito comparado é a seguinte: Tendo presentes os exemplos dos países como, França, Itália e Suíça, e a tradição histórica que desde os primórdios das civilizações deferiu sempre ao homem o pesado encargo da direção da família, atribuindo-lhe a condição de cabeça do casal, não se vê a quem poderia, afinal, aproveitar exclusivamente em nome de um princípio de igualdade que na verdade é relativo - a divisão da autoridade diretiva entre o homem e a mulher, parecendo muito mais adequado mantê-la nas mãos do homem para ser exercida, naturalmente, como preconiza a lei, com a colaboração da mulher.102 Vale lembrar, que não se concorda com a opinião da ilustre autora, acreditase que com o advento da Constituição Federal de 1988, a situação mudou. Praticamente, às portas do século XXI, a mulher deixou de ser apenas um “ornamento” dentro de casa, para buscar sua independência pessoal, econômica e profissional. Em face do exposto, não há motivos justificáveis para o homem ser o “cabeça do casal”, uma vez que ambos lutam para o bem estar da família. No que tange à proteção ao trabalho da mulher, a Constituição de 1988, trouxe preceitos constitucionais, como o estatuído no art. 7º, inciso XVIII, que dispõe sobre a 99 Código Civil Francês, traduzido pelo Prof. Dr. Souza Diniz, p. 64. Código Civil Italiano, idem, p. 53. 101 Código Civil Suíço, idem, p. 61. 102 PEREIRA, Áurea Pimentel. Op. cit., p. 60. 100 licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com duração de cento e vinte dias.103 Convém esclarecer que no direito anterior a licença cogitada era menor. Tinha a duração de quatro semanas antes e oito após o parto. Quanto ao salário, diz o art. 393 da Consolidação das Leis do Trabalho que, naquele período, terá a mulher direito aos salários integrais, calculados de acordo com a média dos seis últimos meses de trabalho. A Constituição de 1967/69, no entanto, alterou essa fórmula de cálculo, na medida em que utilizou a cláusula “sem prejuízo do emprego e do salário” (art. 165, XI). Não se pode, evidentemente, no inciso em questão identificar grandes inovações, a não ser quanto ao prazo da licença que foi aumentado para 120 dias. Como mencionado anteriormente, este direito figura dentre aqueles de precoce reconhecimento constitucional, lembrando que a primeira Constituição com preocupações sociais foi a de 1934 que já reconhecia o direito a licença a maternidade em seu art. 121, § 1º, alínea “h” e que as Constituições posteriores mantiveram, com reduzidíssimas ressalvas. Celso Ribeiro Bastos104 assevera que o fundamento dessa proteção normativa é a suposição da fraqueza feminina, no campo físico, sobretudo, em razão de um menor desenvolvimento muscular, e também derivada de uma maior vulnerabilidade com respeito aos órgãos que a diferenciam do seu companheiro de trabalho. Segundo o mesmo autor, o próprio ingresso da mulher no mercado de trabalho não se vem dando senão por força de eventos que tornaram a sua participação indispensável, assim como as mutações sofridas nas próprias condições de trabalho. Os primeiros têm como exemplo, o período de guerras, durante o qual, chamados os varões para as frentes de batalha, não sobrou outra solução senão admitirem-se mulheres nas suas vagas. No que diz respeito às mutações do mercado, é bem mais ameno o próprio trabalho braçal nas indústrias, o que torna acessível às mulheres. O fato é que, considerado em princípio como de segunda categoria, em virtude da deficiência somática da mulher, o trabalho feminino foi mal remunerado. Daí o emergir de toda uma legislação, inclusive constitucional, vedatória da discriminação entre sexos. Hoje, essa proibição está contida no inciso XXX do art. 7° da Constituição Federal de 1988. 103 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Art. 7º, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm, acessado em 10/01/2006. 104 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. vol II. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 465. Crê-se que o inciso comentado é conseqüência de duas linhas: a) a existência de medidas protetoras do trabalho da mulher, o que do ponto de vista pragmático se traduz em privilégios; b) por outro lado, a vigência de um princípio isonômico que proíbem às mulheres serem discriminadas. Ora, é de fácil compreensão que estas duas tendências são conflitantes ao menos do ponto de vista da absorção pelas empresas do trabalho feminino. Para reequilibrar os pratos da balança e obstar que a contratação da mão-deobra masculina possa se afigurar mais vantajosa, surge a previsão constitucional de incentivos específicos à admissão de mulheres. Não se trata, portanto, da tradicional proteção das condições de trabalho feminino. Mas sim de propiciarem estímulos aos empregados que compensem os ônus advindos das vantagens legais e constitucionais que cercam o trabalho feminino. É reconhecido que o objetivo do inciso é válido na medida em que procura substituir uma mera proibição de discriminação contra as mulheres, pela procura de equiparação efetiva de mercado, ou melhor, busca-se por meio da lei equiparar o que a própria lei desequiparou. Com o dispositivo constitucional intenta um tratamento isonômico que independerá do mero respeito a norma, mas encontrando base na situação objetiva mencionada por exemplo no art. 7º, inciso XXX, que prevê a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”. Discriminar significa diferenciar, discernir, distinguir, estabelecer diferença. Relacionando este Texto Constitucional com os anteriores, pode-se concluir que o dispositivo da Constituição regente é mais completo do que os anteriores, mesmo não fazendo menção ao aspecto da nacionalidade. A Consolidação das Leis do Trabalho, nos arts. 5°, 358 e 461, trata das regras relativas à não-discriminação salarial, entre os empregados, por motivo de sexo, nacionalidade ou idade. É de se perceber que um dos preconceitos, uma das práticas discriminatórias, que nos últimos anos mais rapidamente sofreu grandes desmoronamentos, foi a relativa ao trabalho da mulher. Reconhecidamente, cada vez mais o sexo feminino ocupa posições de alta relevância e responsabilidade não só na atividade privada, mas inclusive em todos os níveis da Administração Pública, direta ou indireta. Hoje, é indiscutível a competência profissional feminina, ao que se deve acrescentar que, em decorrência de certas virtudes femininas, certas características específicas da mulher, determinadas atividades laborais são por elas executadas com maior qualidade e rapidez. Na Constituição de 1988, inciso XX do art. 7º, está prevista norma de proteção ao direitos de trabalho da mulher: “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;”105 É de se concluir que a transmutação de valores e a crescente participação da mulher na vida social vêm criando condições para progressiva afirmação dos direitos da mulher com relação ao trabalho. No que se refere ao direito ao voto, a Constituição Federal de 1988, reitera no seu art. 14 que: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e nos termos da lei, mediante: (...)”.106 Obviamente, com o princípio da igualdade, não há mais sequer referência quanto ao sexo feminino. O voto é um direito já solidificado e a mulher simplesmente exerce esse direito de votar e ser votada. No que tange à proteção à maternidade, o fato de a mulher contrair matrimônio não contém justo motivo para a rescisão do contrato de trabalho. Assim como também não é motivo para a rescisão, o fato de a mulher encontrar-se em estado de gravidez. Como base legal, encontra-se a Lei n° 9.029, de 13 de abril de 1995, e a exigência de teste, exame, perícia, atestado ou outro procedimento relativo à esterilização ou estado de gravidez é considerado crime, bem como outras medidas de iniciativa do empregador, que configurem instigação à esterilização genética ou controle de natalidade, não se compreendendo como talo oferecimento de serviços de planejamento familiar submetido às normas do SUS.107 E segundo o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7°, inciso I, da Constituição, fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto.108 A licença à gestante, já comentada anteriormente, também merece ser contemplada, como proteção à maternidade, pois tem esse direito, sem prejuízo do emprego e 105 Indice Fundamental do Direito. Art. 7º, inciso XX, disponível em http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cf006a011.htm, acessado em 10/01/2006 106 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Art. 14º, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm, acessado em 10/01/2006 107 BARROS, Alice Monteiro. A mulher e o direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995, p. 483. 108 ADCT, da Constituição Federal de 1988, art. 10, inc.II, letra “b”. do salário, com duração de 120 dias.109 A mulher empregada tem direito à licençamaternidade qualquer que seja o seu estado civil e mesmo que a criança tenha falecido. Ressalte-se ainda que a proteção à maternidade está inserta na atual Constituição Federal, no art. 6°, capítulo II, Dos Direitos Sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. “Seções III da Previdência Social: Art. 201 - A previdência social será organizada (...) II- a proteção à maternidade, especialmente à gestante; III (...)”.110 Ressalta-se que o salário-maternidade da empregada será devido pela Previdência Social enquanto existir a relação de emprego.111 O salário-maternidade para a segurada empregada consiste numa renda mensal igual à sua remuneração integral e será pago pela empresa, efetivando-se a compensação quando do recolhimento das contribuições sobre a folha de salário.112 Por fim, a Previdência Social, mediante contribuição, tem por fim assegurar aos seus beneficiários (incluindo obviamente as mulheres), meios indispensáveis de manutenção por motivo de incapacidade, desemprego, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e de reclusão ou morte daquele de quem dependiam economicamente.113 Mas não é só pelo pagamento da Previdência Social que haverá o amparo à maternidade, é o que se encontra na Seção IV- Da assistência social: Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice (...).114 É de se perceber que a Carta Magna de 1988 foi a primeira lei fundamental brasileira a disciplinar o ideal de justiça social, em seção própria, que tem por fim corrigir as injustiças, independentemente de qualquer contribuição à seguridade social. Especificamente, a assistência social tem, sobretudo como finalidade eliminar a pobreza e a marginalização de grupos que não possam integrar-se devidamente na 109 Id. Ibid. art. 7º, inc. XVIII. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Art. 201º, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm, acessado em 10/01/2006 111 Decreto n° 2.172197, arte 95. 112 Id. Ibid. art. 92. 113 Id. Ibid. art 1°. 114 Id. Ibid. art. 203 110 vida econômico-social do país. Estes grupos se constituem na família, bem como a mulher, quando é contemplada com a maternidade.115 Não obstante ao que foi exposto, tem-se clara a consciência de que a realidade brasileira é bem diferente da teoria, e que inúmeras mulheres, mesmo contempladas com a maternidade, mas em condição econômica precária, acabam por interromper a gravidez e colocando em risco a sua própria vida. Quanto à aposentadoria, a Constituição Federal de 1988 em seu art. 201 § 7º dispõe: Art. 201 § 7º. É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: I - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e 30 anos de contribuição, se mulher; II sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos(...)116 Assim pelo disposto na Lei Maior, sendo servidora pública, a mulher: • pode aposentar-se aos 30 anos de serviço, com proventos integrais; • pode aposentar-se aos 25 anos de efetivo exercício em funções de magistério, com proventos integrais; • pode aposentar-se aos 25 anos de serviço, com proventos proporcionais a esse tempo; • pode aposentar-se aos 60 anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de serviço.117 Com as reformas constitucionais, a situação será assim: • Para se aposentar, as trabalhadoras da iniciativa privada e do setor público precisam completar 35 anos de contribuição e 55 anos de idade; • A professora universitária não terá mais aposentadoria especial. Esta será apenas direcionada para as professoras da educação infantil, ensino fundamental e médio. 115 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 46. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Art. 201º, § 7º, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm, acessado em 10/01/2006 117 Id. Ibid. art. 40, inc. III, letras “a”, “b”, “c” e “d”. 116 • A atual Constituição diminuiu o limite de idade de 70 para 60 anos, aliás, a Emenda Constitucional de 1969, não fazia distinção quanto à aposentadoria compulsória. No que se refere à aposentadoria voluntária, ainda persiste aos 30 anos de contribuição para a mulher se pertencente ao setor privado, no entanto, se for servidora pública o prazo é de 25 anos. Quanto ao serviço militar, reza a atual Constituição, no seu art. 143: § 2º: O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. § 2º: As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuiu.118 Esse § 2° é dedicado às mulheres e aos eclesiásticos, que ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, mas são obrigados a assumir outros encargos vinculados ao conceito amplo de segurança nacional determinados pela lei. Essa matéria é regida atualmente, pela Lei n° 8.239, de 4 de outubro de 1991. Hoje, o serviço militar, no mundo inteiro, não é privilégio dos homens, mas já foi no passado. Joana D' Arc teve que se vestir-se de “guerreiro” para comandar as tropas francesas e até mesmo mulheres excepcionais como Hatsepsut, a rainha do Alto Império Egípcio, comandavam o povo sem comandar o Exército.119 Nunca foi regra, ao longo da história da humanidade, mulheres integrarem tropas regulares ou mercenárias. Tais atividades continuam para atuação masculina, e o § 2° consagra essa visão, em que as mulheres são dispensadas do serviço militar em tempo de paz, sendo obrigadas a atuar em encargos substitutivos mais condizentes com sua conformação física. Realça o constituinte que tal dispensa apenas ocorre em tempo de paz, só que quando houver guerra se infere que, não haverá garantias, isenções ou privilégios, todos deverão colaborar com a nação na tentativa de solucionar o momento crítico. E nessa situação, com certeza as mulheres serão iguais a qualquer homem. 118 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Art. 143º, § 2º, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm, acessado em 10/01/2006 119 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. vol V. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 191. CAPÍTULO IV – A MULHER E O DIREITO DO TRABALHO 4.1 – Contexto Histórico Antes da exposição propriamente dita desta questão, é importante ressaltar que a evolução do Direito do Trabalho da mulher não foi acompanhada de igual evolução pelo Direito do Trabalho do homem. Na antiguidade, a mulher era escravizada pelo marido, permanecendo na mais absoluta ignorância. Era considerada um ser marginalizado, a quem se devia deixar no desconhecimento e na servidão. Reclusa a uma vida doméstica, vivia com a única finalidade de procriar e cuidar dos filhos, contribuindo nos afazeres domésticos, muitas vezes além das suas forças. Era considerada como um campo fértil destinado a receber a semente masculina e fazê-la frutificar. Aos homens devia total obediência e respeito nas formas mais primitivas da sociedade conjugal, até as mais abrandadas formas de contrato matrimonial, onde prevaleciam os interesses materiais da união em detrimento de possíveis aspirações pessoais. A história das relações econômicas registra que a mulher sempre contribuiu na economia familiar ou grupal, assumindo diferentes papéis segundo a época. O art. 415 do Código de Manu120 dispõe que em Roma a mulher era sempre tida como menor, sujeita ao pai e ao marido. Esta, distante das informações externas, renegada a um segundo plano na hierarquia familiar devido às organizações patriarcais nas sociedades antigas, não vislumbrava, senão, a obediência aos mais velhos, seus ancestrais e ao pai, que era, por assim dizer, o seu primeiro dono, realmente dono de seu destino e para substituí-lo era entregue a alguém escolhido para o seu companheiro, passando, então, a servilo, a ele aos filhos que viesse a ter. Um trecho do Código de Manu, citado por Ralph Lopes Pinheiro, demonstra a preocupação com relação a uma descendência varonil: “Aquele que não tem filho macho 120 Livro Terceiro do Código de Manu - Estipula normas sobre o matrimônio e os deveres do chefe da família; trazendo descrições minuciosas sobre os inúmeros costumes nupciais; o comportamento do bom pai frente à mulher e aos filhos; a obrigação de uma vida virtuosa; a necessidade de excluir pessoas indesejáveis, como, por exemplo, os portadores de doenças infecciosas, os ateus, os que blasfemam, os vagabundos, os parasitas, os dançarinos de profissão, etc. do meio familiar; as oblações que devem ser feitas aos deuses, etc. pode encarregar a sua filha de maneira seguinte, dizendo que o filho macho que ela puser no mundo, se tornará dele e cumprirá na sua honra a cerimônia fúnebre."121 No Egito, a mulher assume uma posição de relativa igualdade com o homem e, par de seu companheiro nas lides do campo, podia ser comerciante, ter indústria e exercer a medicina. Na Grécia as mulheres eram educadas com a única finalidade de criar e educar os filhos, dedicando-se apenas aos trabalhos domésticos, sendo desprezadas aquelas que se dedicassem a outra função, por exemplo, às atividades comerciais. Na Idade Média, período em que se caracterizou a passagem de serviços escravos para o feudalismo, a posição jurídica da mulher continuava a ser a mesma. As profissões estavam organizadas num sistema de corporação, agremiações mais rígidas, cujos membros reconheciam uma certa ordem social e se uniam na defesa de seus interesses. Admitida para trabalhar, a mulher jamais chegava a uma posição de destaque. Era considerada a sua vida inteira como um simples aprendiz, quer nas oficinas de corporação, quer no lar pelo marido. Nessas lutas sociais, na formação de novas classes, a mulher assume um papel mais evidente. Mesmo sendo considerada como ser inferior, já podia exercer determinados ofícios que lhe eram reservados com exclusividade, por exemplo, fiandeira e tecedeira de seda, sem que houvesse qualquer prejuízo no desenvolvimento de uma outra atividade. Muito embora os trabalhos artesanais não lhe dessem fontes de cultura, acendiam em seu interior o interesse por outras atividades que não os afazeres puramente domésticos, tornado-a socialmente produtiva. Na Idade Moderna, com a evolução do sistema econômico, a mulher vai recebendo algumas oportunidades de trabalho, em novas ocupações, passando a colaborar na fabricação de tecidos e objetos que viriam a servir de instrumento de troca por outras utilidades. Tais atividades vinham se industrializando, dando causa ao trabalho assalariado. Segundo Orlando Gomes e Elson Gottschalk: (...) o emprego de mulheres e menores na indústria nascente representava uma sensível redução do custo de produção, a absorção de mão-de-obra barata, em suma, um meio eficiente e simples para enfrentar a concorrência. Nenhum preceito moral ou jurídico impedia o patrão de empregar em larga escala a mão-de-obra feminina e infantil. Os princípios invioláveis do liberalismo econômico e do individualismo jurídico davam-lhe a base ética e jurídica para contratar livremente, no mercado, esta espécie de mercadoria. Os abusos desse liberalismo cedo se fizeram patentes aos olhos de todos, suscitando súplicas, protestos e relatórios (Villermé) em prol de 121 PINHEIRO, Ralph Lopes. História resumida do direito. 10 ed., Rio de Janeiro: Thex, 2001, p.53. uma intervenção estatal em matéria de trabalho de mulheres e menores. Com as primeiras leis que surgiram, em diversos países europeus, disciplinando esta espécie de trabalho, surgiu, também, para o mundo jurídico, a nova disciplina: O Direito do Trabalho. Com efeito, foi o Moral and Health Act, de Roberto Peel, em 1802, a primeira manifestação concreta que corresponde à idéia contemporânea do Direito do Trabalho"122 O desenvolvimento industrial proporcionou a introdução em larga escala do trabalho feminino, até em prejuízo da mão-de-obra masculina, está já abalada pelo aperfeiçoamento da máquina a vapor. A Revolução Industrial, caracterizada pelo surgimento de profissões antes essencialmente femininas, trouxe a disputa sexual do trabalho. Dessa forma, a atividade feminina era caracterizada pela mão-de-obra mais barata e menos produtiva devido às múltiplas ocupações que a mulher se submetia. Segundo Sidney Webb apud Michelle Perrot: “... as mulheres ganham menos que os homens não só por que produzem menos, mas também porque aquilo que produzem é avaliado no marcado de trabalho por um valor inferior”. 123 O Estado não interferia nas relações jurídicas de trabalho, permitindo toda sorte de exploração. As mulheres eram remuneradas ao livre arbítrio dos patrões, eram desprezadas e colocadas em postos inferiores, com menores salários; as menos instruídas eram consideradas aptas somente em certos períodos de sua vida, ou seja, quando jovens e solteiras, exercendo apenas um tipo de atividade sem qualquer profissionalização. Nas áreas qualificadas, como enfermagem, datilografia e escritório, as mulheres eram consideradas adequadas, pois, por meio dessas atividades, elas podiam exprimir a sua delicadeza e submissão, aceitando o custo da mão-de-obra feminina abaixo do que o da masculina. As normas de proteção do trabalho da mulher deram-se com o objetivo de retirar a mesma de certas condições de trabalho. Essas medidas protetivas provocaram um barateamento na força de trabalho e o deslocamento das mulheres para setores não regulamentados em indústrias menos desenvolvidas. A limitação das horas de trabalho e a proibição do trabalho noturno aplicavam-se somente para as trabalhadores no setor fabril. A agricultura, o serviço doméstico, comércio retalhista, lojas e oficinas domésticas eram excluídas dessa proteção. 122 GOMES, Orlando, e GOTTSCHALK, Elson, Curso de Direito do Trabalho. 3. ed. (de acordo com a CF/88), Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 419. 123 WEBB, Sidney In: PERROT, Michelle; GEORGES, Duby. História das mulheres – Século XIX. vol. IV. São Paulo: Ed. Brasil, 1986. Entre a maternidade e trabalho, reprodução e produção, domesticidade e trabalho remunerado, a mulher passou a ser vista como uma patologia social e não no nível de satisfação ou de dificuldade que o trabalho poderia oferecer. Na realidade, a mulher sempre foi vista como de segunda categoria, cujo corpo, capacidade produtiva e responsabilidade social tornavam-na incapaz para o tipo de trabalho que lhe traria reconhecimento econômico e social. A história do trabalho da mulher foi relatada pela divisão sexual do trabalho. A dificuldade apresentava-se quanto à sua feminilidade e a compatibilidade com o trabalho assalariado. Essa diversificação não pode ser considerada legítima ou natural, em relação ao nível de evolução que se deve acompanhar dos acontecimentos atuais. No século XIX, o ingresso da mulher trabalhadora no setor econômico de trabalho contribuiu para reavaliar a posição da mulher no nível de produção, bem como sua posição de categoria secundária frente ao lar e trabalho, reprodução e produção. Com o Decreto 21.417 de 1932, no seu art. 1º, foi regulamentada a força de trabalho da mulher, que além desse artigo, outros também estabeleciam pontos essenciais como a licença remunerada para gestante por quatro semanas antes e quatro depois do parto e a proibição da demissão da gestante pelo simples fato da gravidez. O art. 1º do Decreto mencionado preceitua que: Regula as condições do trabalho das mulheres nos estabelecimentos industriaes e commerciaes. O Chefe do Governo Provisório da Republica dos Estados Unidos do Brasil resolve: Art. 1º. Sem distincção de sexo, a todo trabalho de egual valor corresponde salário egual.124 A mulher trabalhadora foi produto da Revolução Industrial, que fez aflorar as suas potencialidades num capitalismo destrutivo. Em razão do cuidado do lar e da maternidade, a mesma se submetia a baixos salários, em qualquer especialização. Desde o período pré-industrial, a atividade feminina demonstrava êxito entre o trabalho e a família. A problemática da mulher trabalhadora surge num mundo onde o trabalho assalariado e a responsabilidade familiar haviam se tornado ocupações de tempo integral e, por assim dizer, diferenciadas. Essa diferenciação contribuiu para a separação do lar e do trabalho, acentuando a diferença entre o homem e a mulher. 124 Ministério do Trabalho e Emprego. Decreto nº 21.417, de 17 de Maio de 1932, disponível em <http://www.mte.gov.br/Menu/Ministerio/Museu/Conteudo/Decreto21417_txt.asp>, acessado em 11/01/2006. Apesar do princípio da igualdade jurídica dos sexos, constata-se, na prática, que inúmeras restrições impedem e retardam a total equiparação do trabalho da mulher ao do homem. Os direitos e deveres devem ser reconhecidos idênticos para ambos os sexos. Atualmente, a mulher trabalha em diversas atividades, igualando-se ao homem. O trabalho feminino não pode ser aproveitado somente na escassez da mão-de-obra. A atividade feminina deve ter aproveitamento contínuo em todos os ramos da atividade humana. O momento cultural e histórico exige a presença da mulher no processo de globalização e desenvolvimento. É necessário qualificar o trabalho de homens e mulheres em igualdade de condições, num aprimoramento e aperfeiçoamento maior da sociedade contemporânea. 4.2 Origem e Evolução das Medidas de Proteção a Favor da Mulher A Revolução Industrial propiciou o ingresso da mão-de-obra feminina. A introdução de máquinas acarretou novas formas de produção e uma grande concentração de mão-de-obra nas cidades e zonas industriais, constituída, principalmente, por mulheres e crianças. Conforme Heleieth Saffioti, há uma verdadeira "conspiração do silêncio" que cerca essa violência e impede que dados quantitativos e qualitativos possam melhor revelar a magnitude desse fenômeno.125 As precárias condições de trabalho, com baixos salários, embora realizando o mesmo trabalho que o homem, deu causa ao movimento de uma legislação protetiva do trabalho com relação à mulher e a criança. Em 1830 e 1840, houve a necessidade de se questionar uma proteção peculiar para o problema da mulher e da criança. As primeiras manifestações legislativas a respeito do trabalho da mulher surgiram na Inglaterra com o Coal Mining Act, de 1842, proibindo as mulheres em subterrâneos; no Factory Act, de 1844, limitando seu trabalho a doze horas, proibindo-o no período noturno; no Factory and Workshop Act, de 1878, que também proibiu o trabalho da mulher em ofícios perigosos e insalubres.126 125 SAFFIOTI, Heleieth. ALMEIDA Suley de. Violência de Gênero - Poder e Impotência. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 43. 126 BALELA, Juan. Leciones de legislacion Del Trabajo.In: MAGANO, Octávio B. Direito tutelar do trabalho. 2. ed., vol. IV. São Paulo: LTr, 1992, p. 99. Em 1874, a França proibiu o trabalho das mulheres em minas e pedreiras, e em 1892, limitou sua jornada em 11 horas, generalizando-se a restrição ao trabalho noturno na industria às mulheres menores de 21 anos.127 Em 1890, pela Conferência de Berlim, foi criado um Protocolo versando a respeito de medidas para regulamentar as condições de trabalho e, em especial, o trabalho das mulheres. Em 1897, em Zurich, foi celebrado o 1º Congresso Internacional de Proteção Obreira e, concomitantemente, foi realizado um Congresso de Bruxelas dando origem a organizações internacionais, criando a Associação Internacional de Proteção aos Trabalhadores, visando a universalização da norma trabalhadora. No ano de 1906, em Berna, surgiu o primeiro projeto de Convenção Internacional do Trabalho, incluindo a proibição do trabalho feminino à noite, na indústria, excluindo do seu campo de ação a força maior, o trabalho realizado em oficinas de família e serviços com matéria de alteração rápida. Em 25 de janeiro de 1919, houve a Conferência da Paz, dando origem ao Tratado de Versalhes, em cuja parte XII se criava a Organização Internacional do Trabalho (OIT) International Labore Organisation, ficando assegurada à aplicação de leis e regulamentos para a proteção das trabalhadoras. Essa regulamentação se apresenta sob um critério protencionista genérico, seja quanto à duração da jornada de trabalho nas atividades insalubres e perigosas, etc., e em especial, destinada à maternidade, gravidez e prole. Com relação à jornada de trabalho, tal regulamentação se justificou no início, em razão das diferenças físicas da mulher, bem como das múltiplas tarefas a que estava submetida. A limitação para o exercício da atividade da mulher nas condições insalubres e perigosas é devido às agressões que o organismo feminino pode sofrer, ocasionando conseqüências prejudiciais posteriores. As normas protetoras da maternidade visam a garantir melhores condições de cuidar da gravidez, do parto e da primeira infância, dada a importância desses processos para a vida da mãe e da criança. Diversas convenções e recomendações foram adotadas. Entre elas, a Convenção n. 3, de 1919, referente ao emprego da mulher antes e depois do parto. Ela foi ratificada no Brasil através do Decreto n. 51.627, de 18 de dezembro de 1962, sendo revista pela de n. 103, em 1952, que dispunha em seu art. 4º, §§ 4º e 8º, o seguinte: “em hipótese 127 DEVAUD, Marcelle e MARTINE, Levy. Le travail des femmes em France: protection ou egalite? In: MAGANO, Octavio B. Op. cit., p. 99. alguma, deverá o empregador estar obrigado, pessoalmente, a custear as prestações referentes à licença maternidade, a qual ficará a encargo de um sistema de seguro social obrigatório, ou de fundos públicos”.128 A Convenção n. 103 assegura o direito à licença maternidade de doze semanas, com apresentação do atestado médico, sem prejuízos do salário e do emprego, com direito à assistência médica. A Convenção n. 4, de 1919, proibindo o trabalho noturno da mulher foi revista em 1934 pela n. 41, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 1.396, de 19 de janeiro de 1937. Essa Convenção foi revista em 1948, pela Convenção n. 89, ratificada pelo Brasil em 1965 e promulgada pelo Decreto n. 66.875, de 16 de julho de 1970. O protocolo de 1990, da OIT, reviu a Convenção n. 89, vedando o trabalho noturno às mulheres durante o período da licença maternidade, salvo se for afastada tal proibição e desde que não cause prejuízo a sua saúde e a do seu filho. A Convenção n. 171, da OT, foi aprovada em 1990, dispondo sobre o trabalho noturno, compreendendo homens e mulheres, gozando esta última de proteção especial somente em relação à maternidade, em conformidade com o Protocolo. A Convenção n. 45, de 1935, da OIT, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 3.233, de 3 de novembro de 1938, refere-se à proibição do trabalho da mulher no subterrâneo das minas. A Recomendação n. 4, de 1919, trata sobre a intoxicação pelo chumbo. As Convenções n. 13 de 1921, sobre o emprego da cerusita na pintura, e n. 127, sobre os pesos máximos, sendo esta última complementada pela Recomendação n. 128, de 1967. A Convenção n. 136, de 1971, e a Recomendação n. 144, versam a respeito da proteção contra os riscos de intoxicação pelo benzeno, proibindo tais atividades às mulheres grávidas e no período da amamentação. Essa Convenção e Recomendação foram ratificadas pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 76, sendo promulgada em setembro de 1994. A Convenção n. 100, de 1951, da OIT, foi ratificada pelo Decreto n. 41.721, de 25 de junho de 1957, e dispõe a respeito da igualdade de remuneração entre homem e a mulher. A Convenção n. 111, de 1958, foi ratificada pelo Decreto n. 62.150 de 19 de janeiro de 1968 e trata da não discriminação em matéria de emprego e ocupação. A Convenção n. 128 CP/CAJP-1852/01 add. 1. 27 março 2002. Original: espanhol, <http://www.oas.org/consejo/pr/cajp/Documentos/cp09469p06.doc>, acessado em 11/01/2006. disponível em 127/67 foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n. 66.499 de 27 de abril de 1970 e dispõe sobre o peso máximo de carga. A Convenção sobre a “Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher”129, 1979, foi ratificada por meio do Decreto n. 89.460, de 20 de março de 1984, e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. O Ano Internacional da Mulher (1975) tratou da igualdade de direitos entre homens e mulheres, a promoção da plena integração da mulher no desenvolvimento do País e a sua contribuição para a Paz Mundial. Em 17 de maio de 1932, foi expedido o Decreto n. 21.417-A, que versou sobre a situação da mulher trabalhadora, assegurou, entre outras medidas de proteção, a proibição do trabalho noturno, do trabalho nas minerações em subsolo, nas pedreiras e obras públicas e nos serviços perigosos e insalubres, estabelecendo o descanso de quatro semanas antes e quatro semanas depois do parto, com percepção da metade do salário; descansos diários, durante o trabalho, para alimentação. Determinou ainda, que nos estabelecimentos em que trabalhassem pelo menos trinta mulheres com mais de dezesseis anos de idade haveria local apropriado destinado à guarda do filho no período da amamentação. A legislação brasileira proibia o trabalho noturno, o emprego nos trabalhos subterrâneos das minas e o trabalho insalubre e perigoso da mulher trabalhadora. Com a Lei n. 7.855, de 1989, art. 13, foi revogada qualquer proibição, passando a ser permitido pelo ordenamento jurídico o trabalho feminino nessas condições, assegurando algumas normas de proteção, que foram mantidas. Quanto ao transporte de carga, há proibições em função de pesos máximos, justificando-se em razão da estrutura física da mulher. O art. 392, da CLT, dispõe que: “... é proibido o trabalho da mulher grávida no período de 4 semanas antes e oito semanas depois do parto”. Assim, com o advento da Constituição Federal de 1988, este período foi dilatado para 120 dias, tendo uma abrangência maior com relação à duração da licença-maternidade prevista pela Convenção nº. 103 da OIT. 129 Adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 18/12/1979, entrou em vigor em 3/9/1981. Assinada pelo Brasil, com reservas, em 31/3/1981 e ratificada, com reservas, em 1/2/1984, entrou em vigor em nosso país em 2/3/1984. Em 22/6/1994 foi ratificada, sem reservas. Texto publicado no Diário do Congresso Nacional em 23/6/1994. Com a Lei nº. 8.213, de 24 de julho de 1991, art. 71, o salário-maternidade passa a ser devido à segurada empregada, à trabalhadora avulsa e à empregada doméstica, durante vinte e oito dias antes e noventa e dois dias depois do parto.130 De acordo com o princípio da igualdade, o art. 7º, XXX, da Constituição Federal, e o art. 461, da CLT, dispõem que é proibida a diferença de salário, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor, estado civil, para trabalho de igual valor. As normas internacionais influenciaram na legislação brasileira, no tocante à maternidade. A normatização internacional versa a respeito da duração da licença; concessão integral na hipótese de parto prematuro; prorrogação em caso de enfermidade; intervalo para aleitamento; licença em caso de aborto; salário integral durante o afastamento; direito de mudar de função que lhe seja prejudicial e retorno às funções anteriores após o transcurso da licença; e concessão integral na hipótese de parto prematuro. Assim sendo, o art. 393, da CLT, impunha o pagamento do saláriomaternidade ao empregador: Art. 393 - Durante o período a que se refere o art. 392, a mulher terá direito ao salário integral e, quando variável, calculado de acordo com a média dos 6 (seis) últimos meses de trabalho, bem como aos direitos e vantagens adquiridos, sendo-lhe ainda facultado reverter à função que anteriormente ocupava.131 De acordo com Alice Monteiro de Barros132, o dispositivo constitucional gerava comportamento discriminatório, acarretando o desemprego da mulher casada ou que engravidasse, além de implicar em injustiça contra o empregador, já que o encargo relativo ao salário-maternidade deveria ser custeado não apenas por ele, mas pela coletividade, por intermédio de um sistema de segurança social. Nesse sentido, a responsabilidade pelo pagamento do salário-maternidade de doze semanas ficou a cargo da Previdência Social, enquanto perdurar a relação de emprego, sendo esta uma prestação de natureza previdenciária. 130 Na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, da ONU (Organizações das Nações Unidas), realizada em Viena, Áustria, junho de 1993, no artigo 18 de sua Declaração, reconheceu, expressamente, pela primeira vez, que os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais", e que a violência de gênero é incompatível com a dignidade e o valor da pessoa humana. 131 CLT Legislação. Disponível em <http://www.trt02.gov.br/geral/tribunal2/legis/CLT/TITULOIII.html> Acesso em 18/01/2006 132 Op. cit., 1995. As medidas protetivas do trabalho da mulher, em nível internacional, objetivaram evitar os efeitos competitivos de países que poderiam produzir menores custos, devido à ausência de normas internas de proteção. Em princípio, o tratamento atribuído à mulher era basicamente de cunho tutelar. Com as modificações no País, em nível econômico e social, as normas do direito do trabalho da mulher vêm sofrendo uma flexibilização no sentido de igualar as oportunidades de emprego entre o homem e a mulher. Muito embora essas considerações continuem sendo válidas, a maior parte do trabalho feminino tem evoluído de acordo com a real necessidade econômica em que se apresenta. O trabalho da mulher registra a participação na força mundial de trabalho na ordem de 46%, conforme dados obtidos pela Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílio (PNAD), realizada em 1995 pelo IBGE. Por meio de uma constante luta pela igualdade em todos os níveis, a mulher se impõe no restrito mercado de trabalho, competindo em igualdade de condições tecnológicas e culturais com os homens. É necessário qualificar o trabalho de homens e mulheres em igualdade de condições, num aprimoramento e aperfeiçoamento maior. Quanto mais desenvolvido o país, maior o número de mulheres que trabalham fora. É premente a eliminação das condições desfavoráveis para a mulher trabalhadora. A proteção do trabalho feminino teve origem histórica, ocasionando reações contrárias e motivando as medidas protetivas. No âmbito internacional, o trabalho da mulher foi uma das principais matérias a constituir objeto de regulamentação específica. As normas mais antigas que versavam sobre o trabalho das mulheres tinham o propósito de protegê-las contra a exploração de que eram vítimas no mercado de trabalho e, principalmente, com relação à maternidade. Estas medidas consubstanciaram-se na adoção das Convenções Internacionais e Recomendações, mencionadas anteriormente, dispondo a respeito de normas mínimas sobre a proteção à maternidade. 4.3 A Constituição Federal de 1988 O art. 5º, I, da Constituição Federal de 1988, versa a respeito do princípio da igualdade: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.133 Assim, os mesmos direitos assegurados aos homens devem ser concedidos às mulheres, seja no campo da remuneração, na promoção do trabalho, na política e cultura, no direito à maternidade, etc. De acordo com esse princípio, as medidas de proteção ao trabalho da mulher devem ser afastadas, visando a evitar prejuízos às mesmas, justificando-se somente com relação à maternidade. Segundo Hebe Marinho Nogueira Fernandes134, a Constituição Federal de 1988 acolheu três princípios: igualdade, não discriminação e proteção, que passaram a refletir na legislação ordinária. A Constituição Federal de 1988 silenciou a respeito da proibição do trabalho da mulher em indústrias insalubres, ocasionando, assim, a revogação expressa dos dispositivos que continham restrições ao trabalho da mulher nessas condições. No item XXX, há a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. Assegurou, ainda, a proteção à maternidade e à licença gestante com duração de 120 dias, sem prejuízo do emprego e do salário (art. 7, XVIII), estendendo tais direitos à empregada rural, à doméstica e à trabalhadora avulsa. Criou uma proteção ao trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei (art. 7º, XX). Consagrou para a empregada gestante a garantia de emprego, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, vedando a sua dispensa arbitrária ou sem justa causa (art. 10, b, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias). Previu a licença paternidade de cinco dias (art. 7º, XIX, e § 1º do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Assegurou a aposentadoria privilegiada (art. 202, II). Concedeu assistência gratuita aos filhos menores do trabalhador, desde o nascimento até seis anos de idade, em creches e pré-escolas (art. 7º, XXV). Disciplinou os direitos dos empregados domésticos, concedendo-lhes o acréscimo de 1/3 sobre as férias, salário mínimo, 13º salário, irredutibilidade salarial, repouso semanal remunerado, licençamaternidade, aviso prévio, aposentadoria e licença paternidade. 133 CONSTITUIÇÃO Federal de 1988. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>, acesso em 18/01/2006 134 FERNANDES, Hebe Marinho Nogueira. A relação do emprego e o trabalho da mulher – Synthesis, 12.91. In: ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. Noções atuais do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995. De acordo com alguns autores, a manutenção do art. 376 da CLT, padece de inconstitucionalidade, por se chocar com os princípios consagrados no § 1º, do art. 5º e XXX, do art. 7º da Carta Magna. A Lei n. 9.029, de 13 de abril de 1995, proibiu a exigência de atestados de gravidez e esterilização e outras práticas discriminatórias para efeitos de admissão ou de manutenção de emprego. Previu a possibilidade da empregada reaver os seus direitos em decorrência da prática discriminatória, optar pela reintegração com direito a toda a remuneração devida no período do afastamento ou pelo ressarcimento, em dobro, da remuneração do período de afastamento, tudo corrigido e acrescido de juros legais. No processo de globalização, observa-se que as contradições entre a mão-deobra feminina e masculina são manifestas. Muito embora haja uma mobilidade profissional na atividade feminina, em termos de igualdade de direitos e salários entre os sexos, isso não se verifica. As relações de trabalho e produção, com o desenvolvimento da tecnologia vêm sofrendo profundas transformações. No Brasil, a profissionalização feminina ocorre em razão da divisão sexual do trabalho. O desenvolvimento tecnológico possibilitou a entrada de um número maior de mulheres trabalhadoras no mundo dos negócios. Assim, pode-se concluir que a renda das mulheres deveria aumentar na proporção direta de sua capacitação profissional. Porém, tal fato não ocorre. Na América Latina, a diferença de rendimento entre mulheres e homens com mais de treze anos de escolaridade é ainda mais acentuada do que no caso das mulheres com menor escolaridade. 4.4 Igualdade de Oportunidade e Tratamento no Ambiente de Trabalho O ingresso da mão-de-obra feminina no mercado de trabalho tem possibilitado uma nova visão do desenvolvimento econômico, social, científico e tecnológico do País. A mentalidade, a atitude e o preconceito sócio-cultural revelam ainda a discriminação da mão-de-obra feminina como um fenômeno social. Em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, pela Lei n. 7.353 de 29 de agosto de 1985, que tem o objetivo de garantir os direitos da mulher: Cria o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - C.N.D.M. e dá outras providências. Art 1º Fica criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDM, com a finalidade de promover em âmbito nacional, políticas que visem a eliminar a discriminação da mulher, assegurando-lhe condições de liberdade e de igualdade de direitos, bem como sua plena participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do País. 135 Apesar disso, o protecionismo, adorado pela CLT, tem prejudicado sensivelmente as possibilidades profissionais da mulher, porque o próprio desenvolvimento econômico não pode mais prescindir da mão-de-obra feminina. Em alguns países, como a Suécia e a Dinamarca, há uma inclinação em eliminar totalmente as restrições protetivas, até mesmo com relação à maternidade. A proibição da prorrogação da jornada de trabalho da mulher já não é legítima para o alcance da plena igualdade de direitos do homem e da mulher. Num país onde o nível de desenvolvimento é avançado, se torna irrelevante uma relativa fraqueza física muscular por parte da mulher. Salienta-se que determinadas atividades mediante o emprego de modernos recursos e da automação, poderão diminuir o esforço muscular físico, no qual as engrenagens mecânicas substituirão a força masculina, eliminado o excessivo desgaste físico. Sob um aspecto mais amplo, a legislação dos países desenvolvidos e em nível de desenvolvimento caminham para afastar as medidas de proteção ao trabalho feminino, como forma de evitar maiores prejuízos à mulher, impedindo assim, medidas discriminatórias quanto à mão-de-obra feminina, aproveitando esta larga escala de trabalhadoras. Na atualidade, a preocupação da legislação se limita tão somente à proteção à maternidade, visando dar cumprimento ao princípio da igualdade de direitos do homem e da mulher, bom como em razão do interesse público e social de que está revestida a matéria. A principal função do Direito é regular a vida em sociedade, produzindo regras que imputam vantagens ou direitos a favor de seus titulares e também produzindo normas que inviabilizem práticas ou condutas agressoras ao patrimônio material e moral dos indivíduos, que segundo Maurício Godinho Delgado apud Márcio Túlio Viana, "talvez as mais significativas sejam as dirigidas ao combate à discriminação no contexto social".136 135 DIREITOS da Mulher Lei Nº. 7.353, DE 29 DE AGOSTO DE 1985. Disponível em http://paginas.terra.com.br/compras/mcinformatica/mulher.htm> Acesso em 18/01/2006 136 VIANA, Márcio Túlio. Proteção contra discriminação na relação de emprego. In: Discriminação. et al (Coord.). São Paulo: LTr, 2000, p. 99. No Brasil, existem posições desiguais ocupadas pelos indivíduos nas relações familiares e profissionais. As condições de exercício da atividade profissional da mulher e emprego são fatores que devem ser elucidados. Observa-se que as tarefas domésticas são mal divididas e que as mulheres continuam realizando sozinhas as obrigações dos lares, enquanto aos homens é atribuído apenas e tão somente o trabalho produtivo, não havendo qualquer impedimento em razão do planejamento familiar. A responsabilidade familiar e doméstica limita a disponibilidade das mulheres para o trabalho. Para a mãe trabalhadora, os efeitos da maternidade refletem-se no mercado de trabalho, vindo a sofrer a sobrecarga de tarefas domésticas, impedindo-a de aperfeiçoar-se profissionalmente, aceitando empregos que permitam uma adaptação entre as atividades familiares e as profissionais, como, por exemplo, os serviços domiciliares e domésticos. Sendo assim, o trabalho da mulher não depende apenas e tão somente da demanda do mercado, mas também da sua capacidade de trabalho dentro e fora do lar. Hodiernamente, as mulheres procuram vencer determinadas barreiras e superar preconceitos, representando um dos pilares do funcionamento econômico. Segundo Roland Barthes, a entrada das mulheres no mercado de trabalho, na modernidade do tempo mensurável e disciplinado, acrescenta novos fantasmas a esquizofrenia de tantos outros; o patrão, os clientes, os alunos, os subalternos: Roland Barthes assevera que: Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela mulher, a mulher é sedentária, o homem é caçador, viajante; a mulher é fiel (ela espera), o homem é conquistador (navega e aborda). E a mulher que da forma a ausência: ela tece e ela canta; as tecelãs, as “chansons de toile”137, dizem ao 137 C a n ç õ e s d a s t mesmo tempo a imobilidade (pelo ronron do tear) e a ausência (ao longe, ritmos de viagem, vogas marinhas, cavalgadas).138 E apesar das mulheres serem associadas, há séculos, à intuição, à sensibilidade, elas parecem ter estado historicamente envolvidas em obstáculos ao sonho e ao extraordinário. Para as mulheres que possuem um nível de escolaridade mais elevado, as oportunidades profissionais são maiores na conquista de um emprego mais rentável, compensando a sua saída do lar. Dessa forma, almejando uma efetiva igualdade, a mulher deverá assumir integrais responsabilidades profissionais, nas diferentes áreas da atividade humana. A inserção da mão-de-obra feminina em atividades produtivas requer determinadas medidas, ou seja, que as oportunidades de trabalho para o homem e para a mulher sejam equiparadas, bem como ao nível de profissionalização. Quando se trata da igualdade entre homem e mulher, deve-se analisar em termos de valor, como seres humanos, e se ater ao que se estabelece como normas de proteção ao trabalho da mulher e ao que se visualiza em termos atuais, como parâmetros discriminatórios. e c e l ã s n a I d a d e M é d i a . 138 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1981, p. 27. Faz-se necessário que a ampliação dos serviços comunitários, assistência às mães trabalhadoras e a possibilidade de jornadas flexíveis, facilitando as responsabilidades familiares e profissionais. O cuidado com a casa, família e filhos não deve ser atribuído apenas e tão somente à mulher, mas a ambos os sexos, a fim de que haja uma conciliação. A melhor maneira de ampliar o mercado de trabalho da mulher é fazer uma nova revisão de toda a legislação protetora do trabalho da mulher, para que as medidas protencionistas sejam aplicadas a todos os trabalhadores, sejam eles homens e mulheres. 4.5 Da proteção à Maternidade, no Brasil As normas de proteção à maternidade que versam a respeito do trabalho da mulher estando ela grávida, tornam-se necessárias por que diz respeito tanto a sua função biológica, como a perpetuação e conservação da espécie. O artigo 391 da CLT esclarece que não constitui motivo justo para a rescisão do contrato de trabalho da mulher, o fato dela haver contraído matrimônio, ou encontrar-se em estado de gravidez.139 Esse artigo esclarece que não constitui motivo justo. Seu parágrafo único diz que não são permitidos em regulamentos de qualquer natureza contratos coletivos ou individuais de trabalho, restrições ao direito da mulher no seu emprego por motivo de casamento ou de gravidez. A maternidade possui uma função social, cujas medidas protetivas visam a garantir à mulher a sua função biológica de ser mãe, evitando determinados riscos que poderiam ameaçar a sua saúde e o desenvolvimento da gravidez e da criança. A finalidade do instituto é garantir à mulher a proteção necessária durante a gestação, no período da amamentação e parto. No âmbito internacional, a proteção à maternidade consiste em impedir a atividade da mulher em determinadas circunstancias e durante certo período de tempo. A Convenção n. 3, da OIT, 1919, previu que o pagamento das prestações para a manutenção da empregada e de seu filho, deverá ser feito por um sistema de seguro social ou pelo Estado. 139 CLT - Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-Lei 5.452 de 1º de maio de 1943. Disponível em <http://www.dji.com.br/decretos_leis/1943-005452-clt/clt391a401.htm>, acesso em 18.01.2006. A Convenção n. 103, 1952, reviu a Convenção n. 3 que: “... em caso algum o empregador deverá ficar pessoalmente responsável pelo custo das prestações devidas à mulher que emprega”. A revisão da Convenção n 103 começou em 1999 e, após um processo de dois anos, a Convenção de Proteção à Maternidade, 2000 (n.183), entrou em vigor no dia 7 de fevereiro de 2002. Alguns artigos da Convenção n 183 destacam os maiores ganhos: Art. 2.1: “Esta Convenção se refere a todas as mulheres empregadas, incluindo aquelas que são empregadas em formas atípicas de trabalho dependente”; Art. 4.1: “As mulheres cuja a Convenção se refere devem ter o direito a um período de licença maternidade de não menos que 14 semanas”; Art. 4.4: “A licença maternidade deve incluir um período de seis semanas compulsórias pós-parto”; Art. 6.3: “Onde, sob lei ou execução nacional, os benefícios pagos relativos à licença são baseados nos ganhos anteriores, a quantia de tais benefícios não deve ser menos do que dois terços do salário anterior”; Art. 8.2: “À mulher é garantido o direito de retornar à mesma posição ou em uma posição equivalente, de mesmo salário, no final da sua licença maternidade”; Art. 10.1: “Deve ser fornecido às mulheres o direito de uma ou mais pausas diárias para amamentar ou redução no tempo de trabalho”; Art. 10.2: “Essas pausas ou reduções no tempo de trabalho diário devem ser contadas e pagas como tempo trabalhado”.140 Os direitos são para mulheres que possuem um relacionamento de trabalho com um empregador, incluindo contratos verbais, logo, mulheres autonômas e mulheres com outra forma de trabalho independente, não estão incluídas todas as mulheres, nem, em muitos casos, estão as mulheres que trabalham em firma de família; "atípico” se refere ao trabalho de meio-período, sazonal, etc. O período de licença maternidade é de não menos que 14 semanas ao invés de 12 semanas, estabelecidas na Convenção 103. A Consolidação das Leis do Trabalho contempla, em seu art. 391 e seguintes, as normas reguladoras da proteção à maternidade. A Constituição Federal de 1988 assegura o direito à licença-gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com duração de 120 dias. Segundo Victor Mozart Russomano141, o art. 139, da CLT, equiparou o estado conjugal ao casamento quando dispôs: “não existir um justo motivo para a rescisão do 140 BOLETIM DA IBFAN. Disponível em http://www.ibfan.org/portuguese/news/briefing/ratifyilo-po.html, acesso em 18/01/2006. contrato de trabalho o fato da mulher ter contraído matrimonio ou de encontrar-se em estado de gravidez. A lei, não proibindo a sua despedida, facultou-a apenas”. Sendo a proteção à maternidade um preceito de ordem pública, consagrado pelo ordenamento constitucional, o estado gravídico da empregada não poderá motivar a rescisão do contrato de trabalho. E assim tem sido o entendimento dos Tribunais do país: “Ao direito da trabalhadora grávida corresponde uma obrigação do empregador, que é a de manter na íntegra o pagamento dos salários e garantir a estabilidade no emprego”142. Inicialmente, quem pagava o período de afastamento da empregada gestante era o empregador. Presentemente, a Lei n. 6.136, de 7 de novembro de 1974, transferiu para a Previdência Social a responsabilidade do pagamento da licença gestante, de forma a não existir mais o justo motivo para a dispensa da trabalhadora, provocando, assim, um grande avanço legislativo a respeito da maternidade. Atualmente, os salários-maternidade da empregada afastada são pagos pelo empregador e descontados por ele dos recolhimentos habituais devidos à Previdência Social. O Decreto n 99.684/90 dispõe que são devidas as contribuições ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) durante o período de afastamento por licença-maternidade. A Constituição Federal de 1988 introduziu importante inovação, que consiste em assegurar à gestante, sem prejuízo de emprego e salário, 120 dias de licença, além de vedar sua dispensa arbitrária ou sem justa causa, a partir do momento da confirmação da gravidez e até cinco meses após o parto. Comprovando, por meio de atestado médico oficial, que sofreu aborto, ser-lhe-á garantido repouso remunerado de 2 semanas, além do retorno à função que ocupava antes de seu afastamento. Até o filho completar 6 meses de idade, assiste à mulher, durante a jornada de trabalho, o direito a descansos especiais, de meia hora cada, destinados à amamentação do filho.143 O auxílio econômico somente será devido enquanto existir a relação de emprego, cabendo ao empregador, em caso de despedida injusta, o ônus decorrente da dispensa (art. 1º, § 3º, do Decreto n. 75.207, de 10-01-1975), devendo ser o ato considerado nulo de pleno direito (art. 9º, da CLT). 141 RUSSOMANO, Victor Mozart. Comentários à consolidação das leis do trabalho. vol. 1, 16. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994. 142 Esta é a exegese do art. 7º, XVIII da Carta Política – TST, RR 42.498/92. 5, Ney Doyle, Ac. 2º T. 1.875/94. 143 MINISTÉRIO do Trabalho e Emprego. Disponível em <http://www.mte.gov.br/Trabalhador/QualProf/Default.asp> acesso em 18.01.2006. Dessa forma, o objetivo é a eliminação de toda e qualquer forma de discriminação contra o trabalho da mulher, principalmente, no que se refere à onerosidade da mão-de-obra feminina. O início do afastamento da empregada de seu trabalho será determinado por atestado médico oficial, que deverá ser visado pela empresa. De acordo com Victor Mozart Russomano: (...) a substituição do comprovante médico oficial para o particular ocorrerá quando no lugar de não existir repartição pública encarregada de assuntos de higiene ou quando, existindo tais repartições, por quaisquer motivos regulamentares, não fornecem atestados ao público em geral ou aos trabalhadores em particular. Caso o empregador se recuse a aceitar o atestado, a gestante poderá retirar-se voluntariamente sem que haja o cometimento da justa causa. Excepcionalmente, poderá ocorrer a dilatação do prazo correspondente ao período anterior ou posterior do parto de mais de duas semanas cada um, mediante exibição de atestado médica ao empregador. 144 Mesmo que ocorra a antecipação do parto, a mulher tem garantido o seu direito de descanso de 120 dias. Em casos especiais, será permitida à empregada gestante a alteração de função, pressupondo a existência de motivo grave e comprovado por autoridade médica competente, bem como rescindir o contrato de trabalho, quando for prejudicial à saúde, sem que haja cumprimento do aviso prévio à empresa e, conseqüentemente, o não recebimento da devida indenização. Caso ocorra o parto antecipado, a gestante terá assegurado o benefício, nos termos do art. 392, § 3º, da CLT, e Decreto-lei n. 229, de 23 de fevereiro de 1967. Para Alice Monteiro de Barros: “... a CLT encontra-se em consonância com a norma internacional ratificada pelo Brasil, que garante à gestante a licença maternidade, sem distinção entre o parto normal ou prematuro”.145 A regulamentação do art. 91, § 2º, do Regulamento da Lei dos Benefícios de Previdência Social (Decreto n. 2.172, de 05/03/1997) versa que em caso de parto antecipado ou não, a segurada terá direito assegurado de 120 dias. No que se refere ao aborto, este é considerado legal em casos de risco de vida da mãe e de estupro. Nessas condições, a mulher terá repouso de duas semanas, com direito a retornar à função que ocupava antes do afastamento (art. 392, § 2º, da CLT), ficando a cargo 144 145 Op. cit. art. 392, §§ 1º e 2 º, da CLT. BARROS, Alice Monteiro de. A mulher e o direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995. da Previdência Social o pagamento correspondente, desde que mantida a relação de emprego (art. 95 do Decreto n. 2.172, de 05/03/1997). A Lei n. 8.921, de 25 de julho de 1994, revogou a expressão “não criminoso”. Nesse sentido, a mulher tem assegurado o seu direito, seja este criminoso ou não, mediante o pagamento integral da remuneração. É um direito assegurado ao nível de negociação coletiva. Ressalte-se que a licença maternidade só se destina à gestante e não à mãe adotiva, de acordo com o inciso XVII, art. 7º da Constituição Federal. Porém, já existem acordos e convenções coletivas assegurando o direito da licença para a mãe adotante, como no caso que se segue: Licença Maternidade. Mãe Adotiva. Tratando-se do benefício custeado pela entidade previdenciária oficial, a sua concessão está adstrita ao princípio da legalidade. Não há como se reconhecer esse direito em favor da mãe adotiva, em face da restrição constitucional que confere a gestante.146 A integração da mulher em todos os setores da força produtiva sujeita a mesma às adversidades do trabalho masculino, acrescidas de sua função biológica. Uma das questões relacionadas com a maternidade é o direito da empregada gestante não ser despedida em certo período anterior e posterior ao parto, assegurando à trabalhadora o pagamento correspondente ao tempo de descanso obrigatório. De acordo com Victor Mozart Russomano147, significa dizer que: “a gravidez da mulher cria um regime especial de estabilidade tipicamente transitória”. Segundo o art. 392, da CLT, a gestante, salvo acordo ou convenção coletiva, tinha garantido apenas o descanso de 12 semanas. Esse período foi aumentado pela Constituição Federal de 1988, que estabeleceu um afastamento de 120 dias, sem prejuízo do emprego do salário (art. 71, Lei n. 8.213). Para Octávio Bueno Magano148, esse critério adotado vai ao encontro à regra do art. 10, inciso II, alínea b, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em que a estabilidade no emprego é assegurada à gestante desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. 146 XVIII, art. 7º - Acórdão un. Da 2º T do TRT, 4ª reg. REO e RO 1.300/90, Rel. Juiz Sebastião Alves Messias, j. 24/09/92, conforme Repertório IOB de Jurisprudência n. 15/93, p. 258, ementa 2/7.770. 147 Op. cit. 148 MAGANO, Octávio Bueno. Op. cit. No que se refere ao salário-maternidade, este é uma prestação previdenciária, incluída entre as prestações devidas pela Previdência Social pela Lei n. 6.136, de 7 de novembro de 1974, regulamentada pelo Decreto n. 75.207, de 10 de janeiro de 1975. A Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, dispõe que o período da licençamaternidade será custeado pela Previdência Social, sendo devida à segurada empregada, à trabalhadora avulsa e à empregada doméstica. O salário-maternidade consiste no pagamento de descanso remunerado de 28 dias antes do parto e 92 dias depois do parto, de acordo com os arts. 71 a 73 da Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, e art. 91 do Decreto n. 2.172, de 5 de março de 1997. O benefício será devido independentemente de carência à segurada empregada, a trabalhadora avulsa e a empregada doméstica no prazo de 120 dias, podendo ser prorrogado mediante atestado médico fornecido pelo Sistema Único de Saúde – SUS. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho149, a previsão para o descanso remunerado da gestação, antes e depois do parto, atende a duas finalidades: por um lado, protege o trabalho da mulher, enquanto por outro atende a um elevado objetivo social, qual seja, a defesa da família e da maternidade. Para Victor Mozart Russomano, o empregador, ao contratar a mulher, já deve conhecer presumidamente as conseqüências que daí lhe advirão, devendo responder pelos riscos biológicos – doenças, acidentes de trabalho, maternidade, etc. A dilação da licença gestante de 84 dias para 120 dias gerou posições antagônicas quanto à auto aplicabilidade do art. 7º, inciso XVIII. De um lado, afirmou-se que a licença da empregada de 120 dias e não era auto-aplicável, pois dependia de lei regulamentadora. Segundo essa corrente, a Constituição Federal de 1988 deveria ter previsto o custeio (art. 195, § 5º, da Constituição Federal de 1988), o que não ocorreu. Assim, a diferença no pagamento entre 120 e 84 dias deveria ser encargo do empregador, constituindo um fator de segregação profissional entre o homem e a mulher, tornando o trabalho feminino oneroso. De acordo com a outra corrente, o inciso constitucional seria auto-aplicável e a falta de legislação previdenciária específica não poderia dar ensejo e não concessão imediata do direito, uma vez que o direito já vigorava com a Constituição Federal não compreendia 149 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição de 1967. vol. 3. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 191. apenas estabilidade no emprego pelo período de 120 dias, mas também o pagamento dos salários respectivos. Segundo esse entendimento, o empregador deveria arcar com o ônus correspondente à ampliação da licença-maternidade, cumprimento a função social até que, futuramente, pudesse ser ressarcido. O interesse social não está só em que a mulher tenha condições favoráveis para perpetuar a espécie, mas também para que não perca os efeitos de sua faculdade procriadora. A legislação a respeito da produção à maternidade está num processo de plena reformulação. Retroceder, onerando o empregador com a diferença do salário-maternidade, acarretaria uma discriminação quanto ao critério de admissão. O entendimento prevalecente é que, com a Lei n. 7.787, de 30 de junho de 1989, que promoveu alterações na legislação do custeio da Previdência Social, o inciso constitucional passava a ser aplicável, posto que, assim, previu o custeio (art. 59, ADCT) com a conseqüente majoração. A Lei n. 8.213/91 previu o custeio específico para o salário-maternidade, permanecendo a discussão apenas quanto ao período anterior da vigência da referida lei. No artigo 201 da Constituição Federal de 1988, na redação dada pelo art. 1º da Emenda Constitucional n. 20, de 1998, dá nova forma à organização da previdência social, como segue: Art. 201. A previdência social será organizada sob forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: II - proteção à maternidade, especialmente à gestante.150 A Lei n. 10.710 alterou a Lei n. 8213, para restabelecer o pagamento, pela empresa, do salário-maternidade devido à segurada empregada gestante. Art. 1º - A LEI N. 8.213, DE 24 DE JULHO DE 1991, passa a vigorar com as seguintes alterações: Art. 71. O salário-maternidade é devido à segurada da Previdência Social, durante 120 (cento e vinte) dias, com início no período entre 28 (vinte e oito) dias antes do parto e a data de ocorrência deste, observadas as situações e condições previstas na legislação no que concerne à proteção à maternidade.151 150 LEI Nº 8.213, DE 24 DE JULHO DE 1991 - DOU DE 14/08/98 - (Atualizada até julho/2005). Disponível em <http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1991/8213.htm> Acesso em 18/01/2006. 151 LEI N. 10.710 - DE 5 DE AGOSTO DE 2003 - DOU DE 6/08/2003. Disponível em <http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/2003/10710.htm> Acesso em 18.01.2006. A Constituição Federal de 1988 trouxe vantagens para a empresa contratante e, principalmente, para a mulher no campo de trabalho, ao dispor que a licença deverá ser paga pelo empregador, que efetivará sua compensação junto à Previdência Social, quando do recolhimento das contribuições sobre as folhas de salário. Quanto à amamentação, a legislação brasileira em seu art. 396 da CLT menciona que até que a criança atinja seis meses de idade, a mãe terá direito a dois descansos especiais, de meia hora cada um, para a amamentação. A proteção à maternidade não termina com o parto, nem com o restabelecimento da gestante, quando do seu retorno, pode continuar com os filhos por alguns meses. O período de seis meses para a amamentação poderá ser dilatado, quando o exigir a saúde do filho, a juízo de autoridade competente. A prorrogação do prazo é apurada pela perícia, por meio do médico. O médico oficial deverá assinar o atestado (arts. 392 e 395, da CLT). Esse comprovante médico será exibido a autoridade administrativa, à qual cabe a fiscalização, na forma do art. 401, da CLT. Em face do pronunciamento do médico é que a autoridade administrativa do Ministério do Trabalho concederá ou não a dilatação do prazo (art. 389 CLT). A não concessão do intervalo para a amamentação constitui infração administrativa, resultando ainda no pagamento como hora extraordinária, por se tratar de descanso especial. A exigência contida no art. 389, § 1º, da CLT, poderá ser suprida por meio de creches distritais mantidas, diretamente ou mediante convênios, com outras entidades públicas ou privadas, pelas próprias empresas, em regime comunitário, ou a cargo do SESI, SESC, LBA e outras entidades públicas destinadas à assistência a infância, que manterão e subvencionarão escolas maternais e jardins de infância, distribuídos nas zonas de maior densidade de trabalhadores, destinados especialmente aos filhos das mulheres empregadas. Ao trabalho da mulher aplicam-se as normas gerais estabelecidas na CLT e as normas específicas previstas nos arts. 372 a 401 do mesmo diploma legal. Até o advento da Lei n. 5.859, de 11 de dezembro de 1972, a classe de trabalhadores domésticos era excluída da proteção legal de toda a relação de trabalho. Por meio dessa lei, foi atribuída ao doméstico a filiação obrigatória à Previdência Social, além do direito a férias de 20 dias úteis, assegurando uma proteção relativa. Para Orlando Gomes e Élson Gottschalk152, o serviço doméstico é doméstico quando prestado com a finalidade de auxiliar a vida íntima das famílias. O parágrafo único, do art. 7º da Constituição Federal de 1988, concede aos trabalhadores domésticos os seguintes direitos: salário-mínimo, sendo lícito ao empregador descontar da remuneração as parcelas referentes à alimentação e moradia; irredutibilidade salarial, ressalvando-se disposto em convenção ou acordo coletivo, sendo indispensável à presença dos sindicatos representativos tanto dos empregados como dos empregadores; 13º salário, resguardada da Lei n. 4.090, de 13 de julho de 1962; repouso semanal remunerado, de acordo com a Lei n. 605, de 5 de janeiro de 1949; um terço das férias anuais, de acordo com o art. 7º, XVII, da Constituição Federal de 1988, com direito a 20 dias de férias; licença a gestante , com direito a 120 dias; licença-paternidade. Salienta-se que, como a Constituição Federal, no inciso XIX, e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, no art. 10, são silentes quanto à remuneração dessa licença, não pode ser ela exigida do empregador, até que sobrevenha lei ordinária dispondo contrariamente; aviso prévio no mínimo de 30 dias em caso de rescisão do contrato de trabalho sem justa causa e aposentadoria. O limite de contribuição de 3 salários mínimos foi preservado pela Nova Carta, embora o legislador ordinário possa colocar o doméstico em pé de igualdade com os demais assegurados, cujo limite é de 20 salários mínimos. O direito preexistente integrou o doméstico na Previdência Social urbana. 4.6 - Da Importância Econômica do Trabalho Feminino e a da Igualdade de Remuneração No século XIX, segundo a lei da oferta e da procura, o salário era considerado uma mercadoria, sem que houvesse qualquer controle pelo Estado. Ao trabalho da mulher era impostas determinadas condições, com baixíssimos salários, ocasionando a 152 GOMES, Orlando e GOTTSCHALK, Élson. Curso de Direito do Trabalho. 12 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991. crise do desemprego. A igualdade salarial seria uma das medidas para se evitar essas diferenças entre mão-de-obra masculina e feminina. Em 6 de junho de 1951, a Convenção n. 100 consagrou o princípio da igualdade de remuneração “... para mão-de-obra masculina e feminina por um trabalho de igual valor”. De acordo com Elizabeth Reid “o princípio da igualdade salarial é insuficiente para que se faça justiça, há necessidade de uma nova reivindicação, ou seja, igualdade de oportunidade de emprego, de formação e de promoção”. 153 A Convenção n. 117, de 1962, ratificada pelo Brasil, trata a política social, da supressão de toda a discriminação contra os trabalhadores por motivo de raça, cor, sexo, crença, filiação, às condições de trabalho, inclusive com relação à remuneração (art. XIV). A OIT, em 3 de junho de 1981, aprovou a Convenção n. 156, dispondo sobre a igualdade de oportunidade e de tratamento entre homens e mulheres, bem como entre aqueles com obrigações familiares. Recomenda o emprego de todos os processos de informação e de educação, para que a opinião pública seja orientada no sentido de ter maior compreensão sobre os problemas que enfrentam os assalariados, de ambos os sexos, responsáveis pelo sustento do grupo familiar. O Brasil ratificou a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, pelo Decreto n. 89.460, de 20 de março de 1984. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, estabeleceu o direito de todos os trabalhadores a salário eqüitativo e igual, desde que o trabalho seja igual, sem qualquer distinção, devendo ser aplicada à igualdade ao trabalho feminino em relação ao homem. A Convenção n. 108, da OIT, preceitua que todo membro deverá, empregando meios adaptados aos métodos vigentes de fixação de remuneração, promover e, na medida em que seja compatível com esses métodos, garantir a aplicação a todos os trabalhadores, do princípio da igualdade de remuneração entra a mão-de-obra masculina e a feminina, por um trabalho de igual valor. O princípio da isonomia salarial (art. 5º, CLT) é assegurado pela legislação, com a finalidade de impedir que haja discriminação salarial contra a mulher. O art. 461, da CLT, trata do princípio antidiscriminatório do trabalho feminino, no que diz respeito à questão salarial, dispondo a respeito do quadro organizado em 153 REID, Elizabeth. Revista do Direito do Trabalho, nº. 14. Revista dos Tribunais, ano III, jul/ago/1978, pp. 5354. carreira, não se podendo falar em equiparação salarial. O § 4º, do mesmo artigo, estabelece que o trabalhador readaptado em função, por motivo de deficiência física ou mental atestada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), não servirá de paradigma para fins de equiparação salarial, tendo em vista que a condição de trabalho é distinta. O art. 7º, XXX, declara a: “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, cor ou estado civil”. Segundo estatísticas levantadas, no Brasil, em 1970 e 1980, as mulheres recebiam, respectivamente, 46% e 33% do salário pago aos homens, apesar de possuírem nível de instrução mais elevado. Essa discriminação deve-se a diversos fatores relacionados com a vida econômica, política e social do país, ao sistema normativo e aos meios de comunicações. Conforme Adolfo Sachsida e Paulo Roberto Loureiro, estimam uma elasticidade-preço cruzada da demanda por trabalho feminino negativa (o que significa que um aumento do salário médio dos homens causa redução no nível de emprego das mulheres), sugerindo complementaridade no mercado de trabalho formal brasileiro para todos os níveis educacionais. Os autores, contudo, interpretam esse resultado como evidênciada discriminação no mercado de trabalho: homens e mulheres seriam de fato substitutos mas as firmas, num gesto discriminatório, não os tratariam como tal.154 A redução da participação da mulher nos cursos de formação e aprendizagem que favorecem o aperfeiçoamento a nível profissional, traduz-se em menores salários e, conseqüentemente, menores oportunidade de emprego. Ainda, são muitas as mulheres que deixam o trabalho enquanto os filhos são pequenos, esquecendo-se, até certo ponto, da experiência, anteriormente, adquirida e perdendo direitos que pressupõem a antiguidade. Logo, quando retornam ao trabalho, evidentemente irão receber salários inferiores aos pagos aos homens. A ausência de creches e de locais adequados para as crianças, vem obrigando as mães trabalhadores a maiores sacrifícios, inclusive suportar a dupla carga de trabalho, no emprego e em casa. O planejamento familiar e a de uma infra-estrutura social, com a manutenção de berçários e creches, possibilitam melhores condições para o desempenho do trabalho da mulher e, conseqüentemente, maiores oportunidades de emprego. 154 SACHSIDA, Adolfo; LOUREIRO, Paulo Roberto. Homens x mulheres: substitutos ou complementares no mercado de trabalho? Rio de Janeiro: IPEA, out. 1998 (Texto para Discussão, p. 595). CAPÍTULO V – A MULHER E O DIREITO CIVIL BRASILEIRO 5.1 Do Código Civil de 1916 A Constituição de 1824, em seu artigo 179, N°. 18, dispôs sobre a organização de uma Lei Civil “quanto antes”, fundada nas “sólidas bases da justiça e equidade”. Já se podia notar, porém, desde então, a tendência para o desrespeito ao texto Constitucional. De tal forma que somente 92 anos depois, o Código Civil foi promulgado sem que se atendesse a recomendação relativa à justiça e eqüidade no tocante à situação da mulher na sociedade conjugal. O Brasil viu chegar a República sem essa codificação a despeito de todas as tentativas feitas para o cumprimento da determinação constitucional. Aquela reforma legislativa de base, aspirada desde a Proclamação da Independência, não se realizara ainda. Falharam as três tentativas feitas nesse sentido: a de Teixeira de Freitas, em 1859, a de Nabuco de Araújo, em 1872, e a de Felício dos Santos, em 1881.155 Já em 1855, o Governo Imperial, tendo em conta o estado caótico da legislação, incumbiu o eminente jurista, Teixeira de Freitas, na consolidação das leis civis, com a obrigação de coligir e classificar toda a legislação pátria bem como a de Portugal, anterior à Independência do Brasil. Este realizou com propriedade a tarefa, reduzindo a proposições claras e sucintas as disposições, em vigor, citando, em nota, a lei que autorizava cada preceito ou declaração de costume que estivesse estabelecido contra ou além do texto. Trata-se de obra monumental que serviu como etapa preparatória da codificação, “feita com a competência do autor, que foi, na sua época, o maior nome do direito Civil na América”.156 Nota-se, ainda, a influência de Teixeira de Feitas por meio do Esboço que, apesar de não ter sido aproveitado, no Brasil, como o foi em outras nações ibero-americanas, inspirou numerosas disposições do Código Civil, notadamente da parte geral, do Direito das obrigações e de certos institutos do direito das coisas.157 Com a Proclamação da República, Coelho Rodrigues foi encarregado de apresentar um novo projeto de Código Civil que também não teve andamento, apesar de tratar-se, na opinião de Washington de Barros Monteiro, “de trabalho de incontestável merecimento, em condições de converter-se em lei”.158 Em 1899, no Governo Campos Salles, sendo ministro da Justiça Epitácio Pessoa, foi convidado Clóvis Beviláqua, da Faculdade de Direito do Recife, para elaborar um Projeto de Código Civil. Iniciado em abril, ficou concluído em novembro. Antes mesmo, 155 BICUDO, Hélio Pereira. O direito e a justiça no Brasil: uma análise crítica de cem anos. São Paulo: Símbolo, 1978, p. 137. 156 MlRANDA, Francisco Pontes de. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 76. 157 GOMES, Orlando. Op.cit., p. 19. 158 MIRANDA, Pontes de. Op. cit., p. 84. porém, de acabado o trabalho, o Projeto foi veemente combatido por Rui Barbosa e Inglês de Souza. Clóvis Beviláqua era para a época um jurista de idéias avançadas e outros juristas importantes participavam ativamente da elaboração e discussão da lei civil. Duas fortes correntes, conservadora e reformista, se chocaram nesta tarefa; os conservadores garantiram que não se rompessem completamente os costumes e tradições do passado, enquanto os reformistas deram o avanço necessário à evolução social da época. Depois de revisto, com a introdução de numerosas inovações, o Projeto foi remetido ao Congresso Nacional mediante mensagem de 1900. A Câmara, depois de debatêlo durante dois anos, enviou ao Senado o então chamado projeto da Comissão. Durante dez anos ficou o Projeto estagnado no Senado. Finalmente, em 29 de dezembro de 1912, o Diário do Congresso publica a redação final das Emendas do Senado. Eram nada menos de 1.736. As que modificaram a substância do Projeto não chegavam a duzentos (200). Só em 1915, foram votadas as emendas do Senado. Finalmente, as comissões reunidas do senado e da Câmara prepararam a redação final, sendo o Projeto aprovado em dezembro de 1915, sancionado e promulgado no ano seguinte. Era a Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916, que tinha a arcaica mentalidade do século passado. O Código Civil Brasileiro era considerado uma das mais valiosas obras de direito de origem romano - germânica. Já nasceu velho, porém, e a exigir reparos quanto a certos dispositivos do direito de família. Clóvis Beviláqua159, em seus comentários lançados em seguida à vigência do Código, não só afirmava que “o Projeto primitivo não consagrava a incapacidade da mulher”, mas dizia: “A concepção da sociedade, no momento presente, não exige mais como outrora, que a família se apóie sobre a base egoística da autoridade; parece mais sólida, mais resistente e eficaz a base altruística do amor e do respeito mútuo”. Há pouco tempo, podia-se confirmar essa afirmação, embora o Código Civil de 1916 tenha mantido e consagrado, na sociedade conjugal, o predomínio da autoridade marital, nela apoiando-se para regular os direito de família apesar da manifestações contrárias como as citadas anteriormente. No que se refere à família, Clóvis Beviláqua era considerado um jurista liberado dos preconceitos de outrora, que teria levado a uma fase de transição. O conceito de direito, que reconhecia ao varão superioridade jurídica, em razão do que as mulheres 159 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. Rio de Janeiro: Edição Histórica Editora Rio, 1975, v. I, p. 189 e 190. padeciam de condições inferiores intrínsecas “propter sexus infirmitatem et ignorantiam verumforensium”160 cedia para um fase em que, teoricamente, Beviláqua considerava de libertação da mulher de uma inferioridade que não mais se compadecia com a concepção atual da vida. O Projeto de Clóvis Beviláqua não consagrava expressamente a incapacidade da mulher casada, mas a comissão revisora não aceitou a inovação e recusou sem discutir. Além da influência do Direito Alemão, o Código trouxe ainda o espírito do Código de Napoleão que, embora tivesse se constituído num monumento jurídico de seu tempo, estava fortemente ligado ao Direito Romano com sua concepção patriarcal da família, em que o pater familiae tinha o direito de vida e morte sobre os seus familiares e dependentes. Há quase 30 anos, porém, Orlando Gomes161 como que nos alertava, afirmando: “Nossas idéias sobre a família, sendo mais liberais, são também mais sãs porque mais realistas e mais verdadeiras”. Todavia, o Código de 1916, ao contrário de idéias liberais, consagrou princípios altamente conservadores. Era possível ver a sociedade conjugal tendo um chefe que é o marido, a quem compete administrar os bens particulares da mulher, fixar e mudar o domicílio da família, além de ter o direito expresso de autorizar a profissão da esposa. A mãe bínuba perde o pátrio poder quanto aos filhos do leito anterior. O regime legal é o da comunhão universal de bens. Em relação aos direitos da mulher, o antigo direito sofreu modificações superficiais. Assim, sua personalidade que padecia de restrições de toda a ordem, algumas até humilhantes, obteve um pouco mais de consideração jurídica, mas continuou, ainda, subordinada, na sociedade conjugal, à autoridade do marido. Clóvis Beviláqua em seus comentários ao Código Civil, tentava justificar a consagração da incapacidade da mulher casada, afirmando que embora o Código a tivesse mantido era quase meramente formal 162 . Como quem se defende, o autor do Projeto alega que, primitivamente, tal disposição não fora consagrada, e responsabiliza a Comissão Revisora, nomeada pelo Governo, de tê-la incluído sem discussões. O renomado doutrinador Clóvis Beviláqua dizia que a mulher realmente possui capacidade mental equivalente à do homem e merece igual proteção do direito. Já é um sacrifício a justiça submetê-la à autoridade do marido pela necessidade de harmonizar as 160 PEREIRA, Caio Mário Silva. Direito de Família face ao Projeto do Novo Código Civil. Jornal do advogado agosto/setembro, 1984. 161 GOMES, Orlando. A crise no direito matrimonial. Sergipe, Separata n.o 02 da Revista da Faculdade de Direito de Sergipe, 1954, p. 4. 162 BEVILAQUA, Clóvis. Op. cit., p. 189. relações da vida conjugal. Revoltante seria, em nossa época, cercear-lhe direitos, com fundamento de uma falsa doutrina sobre o valor psíquico do sexo feminino. Não é inferioridade mental a base da restrição imposta à capacidade da mulher, na vida conjugal, é a diversidade das funções, que os consortes são chamados a exercer. Mas a diversidade das funções dava-se em razão da lei que dispunha diferentemente em relação aos membros de uma sociedade que se formara pelo consenso de ambas as partes. E a harmonia da vida conjugal não poderia, como não pode, estar sobre as bases puramente legais. Como o próprio Clóvis Beviláqua afirma: “parece mais sólida, mais resistente e eficaz a base altruística do amor e do respeito mútuo”.163 O Código Civil partiu para o predomínio da autoridade marital e limitação dos direitos da mulher casada, logo no primeiro Livro ao tratar das pessoas naturais, dispondo: “Art. 6.° - São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, nº. 1) ou à maneira de os exercer: As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal”. Foi desta forma que o legislador viu a mulher casada. Foi a essa condição que a submeteu com o casamento. E é tão patente a arbitrariedade da lei que a tal incapacidade relativa não atingia, como visto anteriormente, as mulheres de modo geral, mas tão somente as mulheres casadas, enquanto subsistisse a sociedade conjugal. A inclusão do item II, do art. 6.°, no Código Civil, foi fatal para a mulher casada. A incapacidade relativa que a lei consagrava, ajustavam-se todas as restrições feitas aos seus direitos, enquanto membro da sociedade conjugal. Neste aspecto, o Código Civil, além de não evoluir, consagrou expressamente uma regra que as Ordenações Filipinas e o Decreto nº. 181, de 1890, apenas deixavam transparecer. Seguindo a mesma orientação da legislação anterior, o Código Civil, no art. 9.°, § 1.°, I, concedia mais um privilégio ao marido na constância do casamento, desta vez, em relação ao filho menor, dispondo: “Art. 9º. Aos 21 anos completos, acaba a menoridade, ficando habilitado o indivíduo para todos os atos da vida civil. § 1.° Cessará, para os menores, a incapacidade: I - Por concessão do pai, ou, se for morto, da mãe, e por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver 18 anos cumpridos”. O Direito de emancipar o filho cabia ao marido como regra coerente com o que lhe concedia o exercício primitivo do pátrio poder (art. 380). 163 Id. Ibid., p. 190 Se permanecesse viúva, dada a regra do art. 393, do mesmo diploma legal pela qual a mãe que contrai novas núpcias perde o direito ao pátrio poder. O predomínio da autoridade paterna é atestado em todas as questões, embora, em certas ocasiões, o legislador tenha usado de sutileza, chegando a transmitir a idéia de que a autoridade materna tinha o mesmo poder de decisão que a do pai. Assim, vê-se na questão do consentimento para o casamento de menores de 21 anos. Art. 185. Para o casamento de menores de 21 anos, sendo filhos legítimos, é mister o consentimento de ambos os pais. Mas o espírito conservador da lei não poderia deixar de amparar-se na superioridade jurídica do cônjuge varão. Destarte, retomando os princípios da lei anterior dispõe a seguir: “Art. 186. Discordando eles entre si, prevalecerá a vontade paterna, ou, sendo separado o casal por desquite, ou anulação do casamento, a vontade do cônjuge com quem estiverem os filhos”.164 O legislador concedeu ao pai o exercício do pátrio poder, tal qual o Decreto 181, em seu art. 94: Art. 380. Durante o casamento exerce o pátrio poder o marido, como chefe de família (art. 233) e, na falta ou impedimento seu, a mulher. A mulher somente poderia exercitar esse direito em caso de morte do marido e desde que permanecesse viúva, como na lei anterior (art. 94 do Decreto n. 181). A única alteração, consagrada pelo legislador de 1916, foi que poderia recuperar tais direitos se enviuvasse, consoante o disposto no art. 393. Art. 393. A mãe, que contrai novas núpcias, perde, quanto aos filhos do leito anterior, os direitos do pátrio poder (art. 239); mas enviuvando, os recupera. Ao reproduzir o sistema antigo, alegou-se fazê-lo em razão tão-somente da incapacidade em que recaía a mulher com o casamento, e pela preocupação com possíveis conflitos de interesses entre as duas famílias. Em conseqüência, o poder de administrar os bens dos filhos estava com o pai, só o exercendo a mãe, em sua falta. 5.2 Do Estatuto da Família 164 INDICE Fundamental do Direito. Disponível <http://www.dji.com.br/codigos/1916_lei_003071_cc/cc0183a0188.htm >Acesso em 18/01/2006. em Autorizado pela Constituição Federal de 1937 no artigo 180 que faculta ao presidente da República expedir decretos - leis, o Sr. Getúlio Vargas veio atender à situação de real miséria de milhares de famílias, assegurando-lhes a efetiva proteção do Estado. Francisco Galvão e José de Segadas Vianna fazem os seguintes comentários no livro “Lei de proteção à Família”: Nenhuma lei no Brasil teve a transcendental importância do decreto-lei 3.200. Nenhum governo conseguiria que esse conjunto de disposições da mais alta relevância e interesse para a nação vencesse os óbices tão comuns no antigo legislativo, onde interesses de grupos, de agremiações, de governos estaduais eram capazes de protelações que impediriam sua votação. De finalidades extensas, constituindo um passo avançado na legislação brasileira, adotando e aperfeiçoando princípios e métodos já experimentados em outros países, a Lei de proteção à família não tem, pelo seu alcance, pelas suas finalidades, outra que se lhe aproxime, quer na Europa, quer na América.165 O Decreto – Lei n. 3.200 foi recebido em todo País com manifestações de entusiasmo e também no exterior foi aplaudida calorosamente essa medida governamental. Para a proteção da família, estabeleceu-se, entre outros pontos: a) auxílio financeiro às famílias com mais de 8 filhos; b) 15% de aumento no imposto sobre a renda dos solteiros; c) 10% de aumento aos casais sem filhos; d) preferência aos empregados públicos com filhos; e) empréstimo para contrair matrimônio; f) reconhecimento do casamento religioso com o mesmo efeito legal do civil; g) permissão para contrair matrimônio aos primos terceiros. Foi uma transformação fundamental, uma ordem nova no setor da vida familiar na época. Fica evidente o rigoroso sentido nacionalista do decreto analisado. O Estado com o Decreto n. 3.200, de 19 de abril de 1941, além de facilitar o casamento como base da organização da família, rodeou de toda facilidade a vida em comum dos cônjuges, consentindo mesmo na união legal dos colaterais, o que estava vedado pelo código Civil. O Código Civil, assim como concede ao pai o direito de prestar alimentos até mesmo aos filhos espúrios, instituiu o mesmo direito à mãe. A ela não se refere claramente o 165 VIANNA, José de Segadas e GALVÃO, Francisco. Lei de Proteção da Família. Rio de Janeiro: Livraria Jacinto Editora, 1942, p. 9. Código porque por um lado, a maternidade é de prova mais simples, e, por outro, haverá raras oportunidades se atendermos o lado sentimental de um filho reclamar alimentos de sua mãe. No artigo 17 do Decreto n. 3.200, a sucessão de estrangeiro casado com mulher brasileira, em qualquer regime que exclua a comunhão de bens, evitando-lhe o desamparo, o que se observava antigamente, estabelecendo, por isso, a lei, o seu direito ao usufruto da quarta parte dos bens do marido estrangeiro, se existirem filhos brasileiros, e de metade, se não existirem. A mulher brasileira pela lei, antigamente, não tinha direito à herança que se desenvolvia, de acordo com a lei nacional do de cujus, o que se procurou evitar com o presente decreto. Dessa maneira, os tribunais consideravam como comuns os bens adquiridos na constância do casamento. Essa lei foi classificada como justa e humana, colocando a família sob a proteção especial do Estado. Segundo as críticas da época, uma nação forte e que se julga capaz de cumprir seus altos destinos históricos, que deseja ser respeitada, respeitando-se a si mesma, tem como programa fundamental, como principal fundamento o fortalecimento dos lares e a proliferação da raça. É também a realização de um postulado social essencial a todos os povos que desejam subsistir e perpetuar-se. 5.3 O Estatuto da Mulher Casada Foi com o Estatuto da Mulher Casada, em 1962, que ocorreu a primeira grande modificação do direito de família no Código Civil. Até a edição da Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962, que dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada, a mulher era considerada incapaz para a prática de determinados atos, reservados ao marido, a bem da unidade de direção da sociedade conjugal. Na época da promulgação de nosso Código Civil, esclarece Silvio Rodrigues166, ele representava o que se conhecia de mais completo no campo do direito, mas para ilustrar, vale lembrar que, já se encontrava profundamente abalado o preconceito contra as aptidões da mulher para o desempenho de ocupações até então consideradas exclusivamente masculinas, em razão do conflito bélico iniciado, em 1914, que mobilizou grandes contingentes masculinos para as frentes de combate, tornando compulsório, na 166 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 6. ed., São Paulo: Saraiva, 1976, p. 13-14. Inglaterra, o registro das mulheres, entre 18 e 50 anos, independentemente de seu estado civil, para cobrir vagas de empregos deixados pelos homens com a guerra. Aos poucos, o conservadorismo de nosso Código Civil foi vencido pela emancipação econômica e social da mulher, e isto tem causado repercussões na vida familiar. Não obstante a luta empreendida pelas primeiras feministas brasileiras somente 45 anos após entra em vigor o nosso Código Civil, que ao ser promulgado, já estava ultrapassado em certos dispositivos de direito de família, a mulher casada viu sua situação jurídica ser alterada substancialmente pela Lei n. 4.121/1962, que suprimiu da letra do Código certas disposições injustas e introduziu algumas alterações há muito reclamadas pelas mulheres brasileiras. O Estatuto da Mulher Casada, Lei n. 4.121/1962, se constituiu em um marco positivo e decisivo na história da evolução dos direitos civis da mulher brasileira. Até a data de vigência do referido Estatuto, algumas leis foram editadas modificando certos dispositivos do Código Civil e do Direito de Família, mas em nada alterando a inferior situação jurídica da mulher na sociedade conjugal. Ver-se-ão a seguir, as modificações mais importantes que registramos: “Em 1949, a Lei n. 883, de 21 de outubro, ao dispor sobre o reconhecimento de filhos ilegítimos, alterou o artigo 358 do Código Civil que, expressamente, lhes impedia o reconhecimento”.167 O Decreto-Lei n 9.701, de 03 de setembro de 1946, regulamentou a questão da guarda dos filhos menores no desquite judicial, na hipótese de não serem entregues aos pais, assegurando-lhes o direito de visita. O reconhecimento dos efeitos civis ao casamento religioso foi regulado definitivamente pela Lei n. 1.110, de 23 de maio de 1950.168 Não obstantes tais modificações, a situação jurídica da mulher casada permaneceu inalterada até que a Lei 4.121 lhe viesse amenizar as injustiças cominadas pela codificação civil. 5.4 O Novo Código Civil Após duas décadas de debates, apreciações, engavetamentos, desarquivamentos do Projeto, bem como outros óbices regimentais que terminaram por atrasar a edição final do Projeto de Código Civil resultante da proposta do Jurista Miguel Reale, filtrado o texto final pelo acirrado debate de toda a sociedade, tanto pelos 167 Brasil. Lei 3.071 de 01 de janeiro de 1916. “Art. 358. Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos”. 168 FERREIRA, Valdemar Viera Casas. Op. cit., p. 55. representantes do povo que naquele momento histórico compunham o Congresso Nacional, quanto por sugestões de todo naipe vindas de Associações, Institutos e segmentos específicos da sociedade civil, veio a lume a lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002, fruto de consenso de redação final que, apesar do espaço que terminou por ganhar na imprensa falada e escrita, na verdade não acompanhou inteiramente as alterações de comportamento da comunidade e da própria realidade social que hoje está estabelecida. No que se refere à igualdade de direitos entre homem e mulher, não se trata de uma idéia nova, implantada que está há décadas em diversos países, e no Brasil, amparada a condição feminina pelo Estatuto da Mulher Casada desde idos de 1962, veio a evoluir junto com os costumes, terminando por ser garantida pela Constituição Federal de 1988, consoante se aufere do artigo 5º, inciso I (homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição). Este é o parâmetro geral para todos os aspectos da vida em sociedade. Em seqüência a esta linha de pensamento, a Constituição Federal estabelece, no artigo 226, § 5º, que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Sobre as desigualdades dos direitos entre o homem e a mulher, Joan Wallach Scott fala em gênero, a referência que se faz é ao discurso da diferença dos sexos. Este termo não se refere apenas às idéias, mas também às instituições, às estruturas, às práticas cotidianas, como também aos rituais e a tudo que constitui as relações sociais. Portanto, o gênero é a organização social da diferença entre os sexos. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas constrói o sentido dessa realidade.169 O Código Civil de 2002 não poderia trilhar caminho diverso, de forma que especificamente na parte que cuida do direito de família, dispõe no artigo 1511 que “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”, questão que vem realçada pelo artigo 1564 nos seguintes termos: “pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família”. Destarte, é fácil perceber que toda a legislação agora existente impõe seja elevada a mulher ao mesmo patamar em que colocados os homens, em direitos e obrigações, abolida a antiga e romântica imagem de fiel escudeira ou mera colaboradora nos afazeres da vida doméstica ou familiar. 169 GROSSI, Miriam; HEILBORN, Maria Luiza; RIAL, Carmen. Entrevista com Joan W. Scott. Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), v.8, n.1, 1998, p. 115. A partir desta premissa, o entendimento das novas regras inseridas no Código Civil que recentemente entrou em vigor passa a ser questão de mera coerência, e que deverá extrapolar os limites da lei civil para a imediata implantação concreta em outros setores (reversão da situação existente no campo trabalhista, por exemplo, no qual a mulher, embora concorra em todos os postos em igualdade de condições com os homens, muitas vezes recebe pelo mesmo cargo remuneração visivelmente inferior). No que tange ao casamento, neste aspecto, andou bem o legislador quanto à redação dada ao artigo 1511, retro mencionado, porque a redação originalmente proposta no projeto de Lei da Câmara n. 634/75-C, de 1975, e que no Senado tomou o nº 118 de 1984, (observada a emenda ER-445-R) dispunha em seu artigo 1509 que “o casamento estabelece a comunhão plena de vida, com base na igualdade dos cônjuges e institui a família”. Esta expressão final vinha a violar frontalmente disposição constitucional que modificou, atendendo à realidade social brasileira, o conceito legal de família, posto que atualmente a família não é somente instituída pelo casamento, tanto quanto não tem como chefe apenas o homem (considerado o varão e não o ser humano), mas contemplando a Constituição Federal, e agora o Código Civil por meio da incorporação do mesmo conceito, as entidades familiares, compostas muitas vezes pelos ex-cônjuges separados ou divorciados que mantêm a posse e guarda da prole, ou mesmo por pessoas não casadas que geram filhos legítimos havidos em união estável, legalmente reconhecidos, e que por algum motivo tornaram a se separar (célula formada por quaisquer dos pais e seus descendentes), ou ainda, tão-somente formada a célula familiar pelos irmãos que remanescem juntos. Algumas mudanças foram feitas no Novo Código Civil sobre o casamento. Entre elas (resumidamente) pode-se destacar: • O novo código estabelece que todas as custas do casamento são gratuitas para as pessoas que se declararem pobres. • O casamento religioso, para que tenha efeito civil, deve ser registrado em até 90 dias (e não mais em 30). • Se desejar, o marido poderá adotar o sobrenome da mulher. Antes, somente a mulher podia adotar o sobrenome do marido (ou manter o seu de solteira). • O Novo Código permite que o casal mude o regime de bens durante o casamento. Os três regimes já conhecidos: comunhão universal, comunhão parcial e separação de bens foram mantidos e foi criado um novo: a participação final nos aquestos (bens adquiridos). Segundo o novo regime, os bens comprados durante o casamento pertencem a quem os comprou, mas eles são divididos na separação. O novo regime dá autonomia a cada cônjuge, que poderá administrar seu patrimônio autonomamente.170 170 DIREITONET. Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/19/60/1960/>. Acesso em 18/1/2006. Em relação a idade núbil, esta é, tanto para o homem, quanto para a mulher, de 16 anos com autorização dos pais (ambos) ou seus representantes legais – (até porque o Código estabelece agora uma única forma de menoridade: do nascimento aos 16 anos, época de vida em que os infantes são considerados absolutamente incapazes, fazendo desaparecer a antiga divisão legal e doutrinária sobre menores impúberes, conforme artigo 3º do Código Civil de 2002; mas o Código considera no artigo 4º a existência dos relativamente incapazes, isto é, aqueles maiores de 16 anos e menores de 18 anos) - sendo desnecessária qualquer autorização se atingida a maioridade civil, que agora não mais é de 21 anos, mas tão somente de 18 anos, para ambos os sexos. A lei, quando fala em consentimento dos pais, impõe seja colhido o assentimento de pai e mãe, sendo certo que na hipótese de recusa de um dos genitores em anuir ao casamento, poderá ser pleiteado o suprimento de outorga ao Poder Judiciário, desde que provada que a negativa de anuência ou autorização é despropositada ou injusta (artigo 1519), hipótese em que será obrigatório o regime de separação de bens (art. 1641, inciso III), podendo a autorização para o casamento ser revogada até o momento da celebração (art. 1518). Esta matéria não é nova visto que já existia na lei anterior (Código Civil de 1916, artigo 187), valendo consignar que realizado o casamento, fica impossibilitada a revogação porquanto o casamento, dentre seus efeitos, faz cessar a menoridade, ou em termos técnicos, faz cessar a incapacidade dos menores, curatelados e tutelados, fazendo cessar, por conseqüência, o poder familiar dos pais (artigo 1635, inciso III), bem como o poder dos tutores e dos curadores (artigos 1763, inciso III, e artigos 5º, inc. II, cumulado com 1763, inciso I, 1781 e 1775). Quanto ao aspecto virgindade, na lei anterior, o defloramento da mulher, constatado pelo marido logo após o matrimônio, poderia ensejar a nulidade do casamento se pleiteada (e provada) no decêndio subseqüente. Atualmente, esta regra não mais existe, de forma que o aspecto perdeu em importância e sequer merece maiores considerações. Aliás, o texto atual apenas espelhou a evolução dos costumes consoante retratado por diversos julgados anteriores ao Código Civil de 2002: Ap. 10.078/4, TJMG, rel. Des. Garcia Leão, j. em 21/9/93, e mais recentemente, Ap. 879, TJPR, rel. Des. Carlos Hoffmann, j. em 6/5/96. Perfeitas as palavras de Arnaldo Rizzardo171 a respeito do tema, “in verbis”: 171 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família. Rio de Janeiro: Aide, vol 1, 1994, p. 152. Diante das inúmeras reformas procedidas em vários institutos do Código Civil, não poderia o legislador ter olvidado esta vetusta disposição que retira da mulher a própria condição de pessoa, para colocá-la em situação de inferioridade, como que devendo ficar preservada sua liberdade pessoal ao futuro marido. Evidencia-se uma chocante violação do princípio jurídico básico da dignidade do ser humano. Mas, diante da igualdade jurídica entre o homem e a mulher que a atual Constituição impõe, incluindo o mesmo tratamento quanto aos direitos e deveres – art. 5º, inc. I, e 226, § 5º, não mais pode preponderar esta aberração, porquanto não se dispôs restrição à liberdade sexual do homem. Conclusivamente: é o corolário da igualdade constitucional e infraconstitucional entre homens e mulheres, a respeito do que já se discorreu alhures. Resumidamente, o Novo Código Civil dispôs sobre a virgindade da seguinte forma: acaba com o direito do homem de mover ação para anular o casamento se descobrir que a mulher não era mais virgem. Da mesma forma, o texto acaba com o dispositivo que permite aos pais utilizar a “desonestidade da filha que vive na casa paterna” como motivo para deserdá-la.172 A polêmica relativa ao nome dos cônjuges após o casamento, realmente não tem razão de ser. Com efeito, o parágrafo primeiro do artigo 1565 reza que “quaisquer dos nubentes, querendo, poderá acrescentar ao seu o nome do outro”. Aqueles que viram em tal dispositivo alguma novidade, pode-se serenamente afirmar que a previsão é decorrência exclusiva do já mencionado artigo 5º, inciso I, da Constituição da República – princípio da igualdade –solução que vinha sendo utilizada pela população com amparo dos Pretórios pátrios, até porque não há motivo plausível para impedir o homem de adotar, quando do casamento, o patronímico da mulher, tal qual a esta era possibilitado pela legislação anterior à Constituição de 1988. Não existe mais a figura do pátrio poder tal e qual conhecido antigamente, passando o novo instituto que o substituiu a intitular-se poder familiar, constituindo-se em um feixe de obrigações e deveres acometidos aos pais igualitariamente (e não mais somente ao pai e subsidiariamente à mãe), tendentes a dar aos filhos menores condições de crescimento e desenvolvimento até que atinjam a maioridade e tenham condições de enfrentar a vida com suas próprias forças. Vale dizer: não encerra poder, mas dever quanto ao bem estar dos filhos, 172 DIREITONET. 18/01/2006. Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/19/60/1960/>. Acesso em havidos no casamento ou fora dele, desde que legalmente reconhecidos, porque é o reconhecimento que estabelece e cria juridicamente o parentesco. As regras referentes à questão estão inseridas nos artigos 1.630 e seguintes, não trazendo muitas alterações quanto ao direito anterior relativamente ao conteúdo, tendo o legislador inserido regra que permite a perda do poder familiar, por ato judicial, quanto ao pai ou à mãe que castigar imoderadamente o filho, deixá-lo em abandono, praticar atos atentatórios à moral e aos bons costumes, ou reiteradamente abusar de sua autoridade, faltando aos deveres que lhe são inerentes ou arruinando os bens dos filhos, ou vier a ser condenado por sentença irrecorrível em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão (artigos 1637 e 1638). Uma grande questão a ser analisada é a guarda dos filhos menores, atributo direto do poder familiar e, ainda que colocados os menores que se encontrem em situação irregular em família substituta, remanesce o poder familiar dos pais biológicos. Enquanto juntos os pais, casados ou mantida a união estável, nenhum problema maior oferece a questão. Todavia, separados os pais, pela separação judicial ou pelo divórcio, “sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições de exercê-la” – é o que estabelece o artigo 1.584. Ora, a despeito da legislação anterior, esta solução não estabelece nenhuma novidade, porquanto o acordo dos pais sempre foi respeitado quando da separação do casal, e inexistindo acordo, submetida a pendenga ao crivo do Poder Judiciário, a guarda era deferida àquele que melhores condições apresentasse para a criação e educação da criança, observados aspectos morais e materiais, bem assim a idade do infante. Conquanto a lei assim não dispusesse, enfaticamente, a jurisprudência há anos norteava-se por tais critérios, observados os interesses do menor. A questão é sempre de bom senso, inclusive no que se refere à expressão utilizada pelo legislador: melhores condições – evidente que aquele que tem boas condições financeiras pode oferecer bens materiais aos filhos, conforto, etc, todavia o conceito de “melhores condições” transcende o mero aspecto financeiro e econômico, enfeixando uma série de outras características imateriais, tais quais: moral, cultura, paciência, tempo para dedicação aos menores, a diferença de idade entre os filhos e o genitor que pleiteia sua guarda, aspectos como a utilização de bebida alcoólica ou outros fatores que levam ao mau exemplo e ao descaminho, e, claro, a afetividade e afinidade que evidentemente o menor mantém com o guardião que lhe disputa a guarda. Confira-se, a respeito, o seguinte julgado: Divórcio direto – Guarda de menor – Modificação – Relatório social desfavorável – Interesse do infante – Importa manter-se a guarda paterna, embora o pai registre antecedente clínico de depressão, quando evidenciado que a criança está adaptada a esse convívio, deseja sua manutenção e recebe do seu pai o zelo, o cuidado e o afeto necessários à sua formação.173 A guarda assim entendida pode ser modificada no interesse dos filhos, e aquele que não remanescer com a guarda poderá tê-los em sua companhia, visitando-os e fiscalizando sua manutenção e educação. Aqui reside, a meu ver, a guarda compartilhada: manter o filho, custear-lhe o necessário, fiscalizar sua educação e saúde, e não como pensaram alguns, manutenção de dois lares onde o menor residiria indistintamente, ora com o pai, ora com a mãe. Esta última solução não se apresenta tecnicamente adequada, porque os menores devem ter um único local para residir, onde façam lição, estudem, voltem depois da escola e outras atividades, nada obstante possa ocorrer ao genitor que não lhe detém a guarda física pleiteando ajuda na solução de problemas, ainda que corriqueiros. Vale anotar que o direito de visitas daí decorrente mais se apresenta como um dever de visitas, porque representa uma forma de o menor manter os laços tradicionais com o genitor com o qual não convive (é um direito do menor e, portanto, um dever do genitor que não detém a guarda), afastado o pseudo direito pretendido por alguns genitores que na prática abusavam da visitação com evidente espírito emulativo em relação ao excônjuge, chegando mesmo a atrapalhar a vida normal da criança, seu equilíbrio e bem estar. Para finalizar o tópico, cabe comentar que o Código Civil não prevê direito de visitas dos avós aos netos; não proibindo, contudo, permite que cada caso concreto venha a ser avaliado individualmente se litígio houver, observados sempre os interesses do menor, aplicáveis as regras supra-enumeradas, porquanto aos avós não caberão jamais obrigações ou direitos maiores do que aqueles fixados aos genitores. Ressalte-se que há ainda outras considerações possíveis de serem tecidas referentes a alguns assuntos que interessam ou afetam à mulher frente às novas disposições inseridas no Código Civil de 2002. CAPÍTULO VI – A MULHER E O DIREITO DE PERSONALIDADE 6.1 Conceito de Personalidade 173 TJRO – Câm. Cível; AC. nº 02.003313-3-Porto Velho – RO; rel. Des. Renato Mimessi; j. em 12/11/2002, v.u. O sentido atribuído à noção de pessoa como subjetividade humana surgiu primeiramente sob a influência cristã, sendo abordado mais tarde no período medieval, o sentido de pessoa está em um ser completo, independente e intransferível, persona como per se una. Sendo acrescido, a tal conceito, o elemento da dignidade humana no período renascentista. Por volta de 1770, na França, na Idade Moderna, surge a expressão "direitos fundamentais" no âmbito jurídico, refletindo as mudanças ideológicas que se processavam no interior da sociedade e no âmbito internacional cunhou-se a expressão "direitos humanos"174. Conforme o Prof. Diogo Leite de Campos, somente eram tidos como pessoas individualizadas em sua subjetividade na sociedade antiga aquelas que ocupassem os primeiros papéis na sociedade, ou fossem os grandes heróis das guerras ou os vencedores dos Jogos.175 Os direitos e garantias individuais sempre foram consagrados pelas constituições brasileiras, em menor ou maior escala. Atribui-se mesmo à nossa primeira constituição, de 25 de março de 1824, a primazia mundial na subjetivação e positivação dos direitos do homem, embora tal título seja contestado em favor da constituição belga de 1831.176 As pessoas possuem por natureza os direitos atinentes à sua própria personalidade. Segundo Rubens Limongi França, são direitos que dizem respeito às faculdades jurídicas, cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, suas emanações e prolongamentos.177 O início da personalidade jurídica, em Roma, na Itália, se dava pela observância de alguns fatores: nascimento com vida, forma humana e a presença de viabilidade fetal, ou seja, perfeição orgânica para continuar a viver. Em alguns casos, todavia, se antecipava o começo da existência para a data da concepção. A pessoa, ainda devia reunir o status libertatis, o status familiae e o status civitatis. 178 174 Souza, Carlos Afonso Pereira de; Calixto, Marcelo; Sampaio, Patrícia Regina Pinheiro. Os Direitos da Personalidade – Breve Análise de sua Origem Histórica. Disponível em http://www.pucrio.br/sobrepuc/depto/direito/pet_jur/cafpatdp.html. Acessado em 18/01/2006. 175 CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de Direito de Personalidade. In Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXVII, Universidade de Coimbra, 1991, p. 134. 176 SILVA, José Afonso da. Curso do Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 169. 177 FRANÇA, Rubens Limongi. Apud ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A pessoa jurídica e os direitos de personalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 61. 178 Alves, José Carlos Moreira. Direito Romano. Vol. I. 13. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 97-111. A personalidade estende a todos os homens o conceito da ordem jurídica, garantindo-a na legislação civil e nos direitos constitucionais de vida, liberdade e igualdade. Os valores mais importantes da vida do homem é a própria vida, a honra, o nome, a integridade física e moral, entre outros. O ordenamento jurídico não confere apenas às pessoas naturais a qualidade de ser parte numa relação jurídica; entes fictícios, igualmente são destinatários de direitos subjetivos, inclusive os de personalidade, desde que obtenham o reconhecimento de sua personalidade pelo direito positivo.179 Esses direitos são absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis. Decorrem, evidentemente, de previsão constitucional, cujas normas e princípios têm aplicação direita, e das leis especiais que, pontualmente, fornecem elementos normativos capazes de permitir sua configuração dogmática.180 Os artigos 1º, III, e 5.º, X, XI, e XII da Constituição da República, dispõem sobre: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.181 A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, superou o individualismo, passando a eleger a pessoa, na sua dimensão humana, como centro da tutela do ordenamento jurídico. 179 ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A pessoa jurídica e os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p.38. 180 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 15.ed. rev., São Paulo: Saraiva, 1999, v.1, p. 100-101. 181 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm> Acesso em 18/01/2006 Do mesmo modo, o art. 220 da Constituição dispõe: “Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”, em conformidade com o art. 5.º, IV e V, do rol das garantias fundamentais, bem assim a Lei n 9.934, de 4 de fevereiro de 1997 e seu regulamento (Decerto n 2.268/97) que respondendo ao comando do art. 199, § 4º, da Constituição, regula o transplante de órgãos; o art. 5.º, XXVII e XVII, e a Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que atualizou e consolidou a legislação sobre direitos autorais.182 Segundo Rubens Limongi França, a Lei é insuficiente para definir as mais variados formas de expressão do direito, sendo certo que vários direitos da personalidade somente são reconhecidos pelo costume ou pela ciência, tendo alicerce primeiro no direito natural que é fonte e princípio inspirador do direito na elaboração da lei. E conclui dizendo que os princípios básicos do direito natural, honeste vivere, revivem laedere, suum cuique tribuere, seriam o ponto de partida de onde a razão juntamente com os dados da experiência, sai a campo para aperfeiçoar e formular o sistema de normas positivas, sendo qualquer pessoa capaz de reconhecer a necessidade de se fazer o bem e evitar o mal.183 As pessoas físicas como também as jurídicas são titulares de direitos da personalidade. Estas últimas não se equiparam integralmente às pessoas físicas, sendo-lhe aplicável tão somente os direitos da personalidade compatíveis a sua própria essência. Segundo Norberto Bobbio, os direitos do homem passou por três fases distintas: 1. Direito de Liberdade: são todos os direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação a ele; 2. Direitos Políticos: tiveram como conseqüência a participação cada vez mais ampla, generalizada e freqüente dos membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no Estado); 3. Direitos Sociais: expressam o amadurecimento de novas exigências como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, mas que se pode chamar de liberdade através ou por meio do Estado.184 182 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 15. ed. rev., São Paulo: Saraiva, 1999, v.1, p. 100-101. 183 FRANÇA apud ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. Op. cit., p. 63. 184 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 33. 6.2 Direitos da Personalidade Os direitos da personalidade podem ser conceituados como sendo aqueles direitos inerentes à pessoa e à sua dignidade. Surgem cinco ícones principais: vida/integridade física, honra, imagem, nome e intimidade. Segundo o Prof. Gustavo Tepedino: (...) a categoria dos direitos da personalidade é fruto de elaborações doutrinárias germânica e francesa da segunda metade do século XIX, compreendendo os direitos inerentes à pessoa humana, considerados essenciais a sua dignidade e integridade.185 O objeto do direito de personalidade é o bem jurídico da personalidade, a titularidade de direitos e deveres que qualquer pessoa tem. Os direitos da personalidade seriam direitos de alguém sobre sua própria pessoa. O ilustre Prof. Gustavo Tepedino assevera: (...) quando falamos em direitos da personalidade, não estamos identificando aí a personalidade como a capacidade de ter direitos e obrigações, estamos então considerando a personalidade como um fato natural, como um conjunto de atributos inerentes à condição humana, estamos pensando num homem vivo e, não, nesse atributo especial do homem vivo, que é a capacidade jurídica, em outras ocasiões identificada por nós como a personalidade.186 Assim sendo, a doutrina admite os direitos de personalidade como direitos subjetivos, com projeções físicas, psíquicas e morais do homem. Segundo o Prof. Orlando Gomes, os direitos da personalidade divide-se em duas categorias: a) relativos à integridade física, incluindo neste grupo o direito à vida, ao próprio corpo, e ao cadáver; b) à integridade moral, incluindo o direito à honra, à liberdade, ao recato, segredo, imagem e ao nome.187 Os direitos fundamentais do homem são absolutos, caracterizando-se pela sua irrenunciabilidade, extrapatrimonialidade, impenhorabilidade, inalienabilidade e, intransmissibilidade, por isso mesmo, imprescritibilidade, sendo chamados de personalíssimos. 185 TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro. In: Temas de Direito Civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 24. 186 TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 25/26. 187 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 153. No Novo Código Civil, a Lei n. 10.406/2002, Livro I – Das Pessoas, Título I ´Das Pessoas Naturais, Capítulo II – Dos Direitos da Personalidade, dispõe em 11 artigos sobre os direitos essenciais da pessoa. Acredita-se o novo Código Civil não supre todo o tratamento esperado em relação aos direitos da personalidade, que sequer podem ser concebidos dentro de um modelo ou rol taxativo de regras e situações. De qualquer forma, os onze artigos que constam da atual codificação privada já constituem um importante avanço quanto à matéria, merecendo estudo aprofundado pelos aplicadores do direito. 6.3 A Mulher e o Direito de Personalidade A mulher tem direito a ter filhos. Um ser humano que está sendo gerado tem direito à vida. O ordenamento jurídico tutela, desde a concepção, os direitos do nascituro (CC/16, art. 4º in fine)188. Assim, alguns juristas, como Clóvis Beviláqua, estatuíram que a teoria da personalidade condicional fora adotada pelo sistema pátrio. Preconizam os adeptos desta teoria que o nascituro possui direitos sob condição suspensiva.189 Para alguns juristas, o início da personalidade ocorre no momento da concepção, atribuindo ao nascituro, desde a concepção, o status de sujeito de direitos, sendo assim, considerado pessoa. O direito à identidade pessoal é um direito absoluto. O nome é um dos elementos que individualizam a pessoa, na sociedade. A mulher tem direito de usar o sobrenome do marido. O Prof. Francisco Amaral dá algumas possibilidades para aquisição e formação do nome: • adquire-se o prenome e o nome com o assento do nascimento no Registro Civil das Pessoas Naturais (LRP, art. 54, § 4º); • a mulher assume com o casamento, se quiser, o nome do marido (CC, art. 240, parág. único), podendo conservar o seu de família; e o marido pode assumir o da mulher (CF, art. 226, § 5º); • os filhos reconhecidos assumem o nome de família de ambos os pais; 188 PROCESSO CIVIL. Preliminar. Natureza. Nascituro. Gestante. 1. (...) 2. (...) 3. O ordenamento positivo assegura proteção de alguns direitos de que, ao nascer com vida e adquirir a personalidade civil, a pessoa provavelmente será titular (art. 4 do CC). E, diante da ausência de personalidade civil, impede o nascituro de estar em Juízo, atribui-se à gestante a legitimidade para, em nome próprio, perseguir a defesa desses direitos”, Agravo de Instrumento, processo n.º 1999.002.12142, julgado pela Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 22/02/2000, relator Des. Milton Fernandes de Souza, votação unânime, in www.tj.rj.gov.br em 03/11/2001(grifei). 189 GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, vol. I. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 91. • o filho adotivo pode conservar apenas o seu nome de família, acrescentar a este o da família do adotante (Lei 3.133 de 8 de maio de 1957, art. 2º). No regime de adoção assume o nome do adotante e, a pedido deste, poderá determinar-se a modificação do prenome, para maior integração do adotado na família adotiva (ECA, art. 47, par. 5º); • a mulher solteira, desquitada ou viúva, que viva com homem solteiro, desquitado ou viúvo poderá requerer averbação do patronímico de seu companheiro, desde que haja impedimento legal para o casamento, decorrente de estado civil de qualquer das partes (LRP, art. 57, §§ 2º, 3º e 4º)”.190 Com esse direito garantido por lei, a mulher pode colocar o nome do marido, se quiser, e se não quiser, pode continuar com o seu nome de solteira. Segundo o Prof. Silvio Rodrigues, “note-se que a lei não permite que a mulher, ao casar-se, tome o patronímico do marido, abandonando os próprios. Apenas lhe faculta acrescentar, ao seu, o nome de família de seu esposo”.191 Se a mulher se separar judicialmente, ela pode decidir se quer continuar com o nome de casada ou não. O cônjuge considerado ‘culpado’ terá que voltar a usar o nome de solteiro. O cônjuge ‘vencedor’ ou ‘inocente’, pode usar o nome de casado. Se a separação for amigável ou consensual, o casal pode acordar sobre o uso ou não do nome de casado. (Lei n. 6.515/77, art. 17, § 2º). Segundo Maria Berenice Dias, (...) indevida a interferência na identidade da pessoa, impondo penalidade sem que haja qualquer motivo que a justifique, o que revela clara afronta ao princípio do respeito à dignidade humana. Tão draconiano é este imperativo que, mesmo quando os cônjuges, de forma expressa, concordam com a inalterabilidade do nome, a perda é decretada contra a vontade das partes.192 O renomado Prof. Gustavo Tepedino acentua: (...) a perda do nome de família, portanto, no divórcio, a partir da Lei n.º 8.408/92, desvincula-se da idéia de culpa, embora pudesse ser questionada a constitucionalidade da solução legal que, em última análise, viola o direito à identidade pessoal da mulher. Afinal, com o casamento, o nome de família integra-se à personalidade da mulher, não mais podendo ser considerado como nome apenas do marido. Muitas vezes poderá ser difícil à mulher demonstrar uma das hipóteses previstas nos incisos acima enumerados, embora a alteração do seu sobrenome - que, de resto, a identifica com os 190 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 4. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 268. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. vol. VI. 18. ed., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 154. 192 DIAS, Maria Berenice. Da Separação e do Divórcio. In: Direito de Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte, Del Rey, 2001, p. 73. 191 filhos do casamento desfeito -, altere necessariamente a sua identificação pessoal, atributo de sua personalidade, cuja eventual alteração deveria ser, por isso mesmo, a ela exclusivamente facultada.193 O Novo Código Civil trouxe muitas vantagens para a mulher. Uma delas foi o instituto da União Estável. O art. 1.735 do novo Código reconhece como entidade familiar a união entre homem e mulher que vivem como se fossem casados por mais de cinco anos. Em havendo filhos, o prazo para o reconhecimento da união estável passa a ser de três anos. O regime de bens que regula essa união é o da comunhão parcial de bens, a não ser que os companheiros façam outro ajuste. Antigamente, a mulher tinha muitos problemas por não ser casada, e em conseqüência disso, seus filhos eram tidos como ilegítimos, sem direitos. O direito ao nome cabe aí, pois a mulher ganhou o direito ao nome do marido, mesmo sem ser casada oficialmente. Esse é um direito de personalidade que foi reconhecido. Exames de DNA para comprovação de paternidade - A partir da entrada em vigor do Novo Código Civil, aquele que se negar a fazer o exame para comprovação de paternidade será presumido como pai. O direito da mulher de provar a paternidade de seu filho está garantido por lei. O pai tem que reconhecer seu filho legítimo. Esse direito que o Novo Código Civil trouxe para as mulheres são direito de personalidade, pois toda pessoa tem direito de usar o nome do seu pai e mãe. Conforme Gerard Cornu, o nome tende a se "integrar à pessoa até se tornar o suporte dos outros elementos, o anteparo da identidade da pessoa, a sede do seu amorpróprio". O direito ao nome compreende as faculdades de usá-lo e defendê-lo. Usar o nome consiste em "se fazer chamar por ele"; defendê-lo consubstancia-se no "poder de agir contra quem o usurpe, o empregue de modo a expor a pessoa ao desprezo público ou recuse chamar o titular por seu nome".194 Na Constituição Federal, em seu inciso X do artigo 5º, a Constituição Federal de 1988 pontifica: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Aí nota-se uma proteção também para a mulher, pois seu direito de personalidade 193 TEPEDINO, Gustavo, O papel da Culpa na Separação e no Divórcio. In: Temas de Direito Civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 377. 194 CORNU, Gerard. Droit Civil: La Famille. 8e. édition. Paris: Montchrestien, 2003, p. 324-6. de ser respeitada nas mais diversas situações da vida, principalmente no trabalho, está evidente neste artigo da Constituição. O direito à intimidade sexual é outro direito de personalidade, que dá segurança quanto à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, que é a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual. É um direito personalíssimo, inerente à pessoa humana. Antigamente, a mulher era vista como utilidade para procriar. Hoje, a mulher tem o direito de ter sua opção sexual e ter ato sexual prazeroso. Indivíduos de ambos os sexos passaram a ter a opção de tecer e suster uma relação sexual além da simples necessidade de reprodução, inclusive com pessoa do mesmo sexo, o que não afronta os conceitos das sociedades historicamente desenvolvidas. Conforme o § 2º do art. 5º da Constituição Federal195, são recepcionados por nosso ordenamento jurídico os tratados e convenções internacionais, A ONU tem entendido como ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais adultos, seja com base no princípio de respeito à dignidade humana, seja pelo princípio da igualdade. Ainda há muito a se percorrer para que se converta em prática social constante o direito de personalidade da mulher, consolidando a comunhão de vida, de amor e de afeto, no plano da igualdade, da liberdade e da responsabilidade recíprocos, que preside o relacionamento conjugal em nossa sociedade hodierna. O Novo Código Civil, no art. 23, estabelece que são deveres de ambos os cônjuges: I - Fidelidade recíproca. II - Vida em comum no domicílio conjugal. III - Mútua assistência. IV - Sustento, guarda e educação dos filhos A igualdade de direitos e obrigações entre homem e mulher, nas relações conjugais e de união estável, acompanhou a evolução do princípio da igualdade no âmbito dos direitos fundamentais, incorporados às Constituições dos Estados democráticos contemporâneos. O princípio apresenta duas dimensões: 195 § 2º do art. 5º da Constituição Federal: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. A primeira dimensão é igualdade de todos perante a lei, a saber, a clássica liberdade formal, que afastou os privilégios medievais dos estamentos e dos locais sóciojurídicos (corporações de ofício ou guildas), e dotou todos os homens de direitos subjetivos iguais, ou seja, aqueles que a lei considera iguais; A segunda é igualdade de todos na lei, amplificando o alcance, para vedar a discriminação na própria lei, por exemplo, a diferenciação entre direitos e deveres de homem e mulher, na sociedade conjugal. Nesta dupla dimensão, o princípio da igualdade não apenas se revela como diretiva essencial da aplicação do direito, mas igualmente da produção do direito. O aplicador não pode interpretar a lei de modo a gerar desigualdades entre os potenciais titulares dos direitos por ela assegurados. A lei não pode criar direitos desiguais para os titulares, segundo distinções que a Constituição (artigos 3°, inciso IV e 5°, caput) veda, a saber, em virtude do sexo, da crença, da origem, da raça, da cor. 6.3.1 A questão do Patronímico Familiar O nome atribuído à pessoa é um dos principais direitos incluídos na categoria de direitos personalíssimos e sua importância, situa-se no mesmo plano de seu estado, de sua capacidade civil e dos demais direitos inerentes à personalidade. A pessoa ao nascer recebe o nome, como marca distintiva dentro da sociedade, e mesmo após a morte, a pessoa continua a ser lembrada e a ter influência pela atividade que desempenhou em vida, permanecendo seu nome na lembrança daqueles que lhe quiseram bem. O nome é, portanto, uma forma de individualização do homem na sociedade, e é por ele que o Estado encontra estabilidade e segurança para identificar as pessoas. Desde o tempo em que o homem passou a verbalizar seus conceitos, começou a dar denominação às coisas e a seus semelhantes. Nos primórdios, um único nome era suficiente para distinguir o indivíduo no local. Todavia, a medida que a civilização tornou-se mais numerosa, começou a necessidade de complementar o nome individual com algum restritivo que melhor identificasse as pessoas. Entre os hebreus, a princípio usava-se um único nome, como Moisés, Jacó, mas já se acrescentavam ao nome a profissão, a localidade, algo que pudesse distinguir a pessoa, como exemplo o próprio Jesus que era conhecido como Jesus de Nazaré. Os gregos também inicialmente possuíam um único nome. Posteriormente com a complexidade das sociedades, passaram a deter três nomes, desde que pertencessem as famílias antiga e regularmente constituídas: um era o nome particular, o outro o nome do pai e o terceiro o nome de toda a gens. Para os romanos, a formação do nome era bastante complexa e envolvia três nomes próprios para distinguir a pessoa: o prenome, o nome e o cognome. O nome único ou com dois elementos, no máximo, eram próprios da plebe, onde se tinha o nome, com o acréscimo, do prenome do dono. Na Idade Média, retornou-se ao costume de nome único e por influência da Igreja, passou-se a dar nome de santos às crianças, mas com o aumento da população, surgiu a necessidade de se acrescentar um sobrenome. A Lei dos Registros Públicos declara como requisito obrigatório do assento de nascimento “o nome e o prenome, que forem postos à criança”. Entretanto, o Código Civil de 1916 não trazia uma técnica uniforme, ora usava termo nome, significando nome por inteiro, ora era usado nome e prenome. Vislumbra-se que o prenome ou patronímico se refere aos apelidos de família, determinando a qual família pertence aquele indivíduo. O nome, englobando o nome e o prenome, forma a própria individualidade da pessoa e é um bem que não pode ser negociado, sendo considerado, por muitos autores, o único direito realmente da personalidade, pois inerente à pessoa, à identificação pessoal e à cidadania. Com o casamento, muitas vezes, o nome do cônjuge, principalmente o da mulher, sofre alteração, e isso tem ensejado discussões nos tribunais e na vida cotidiana, sobre a obrigatoriedade desse acréscimo do patronímico da família do marido. 6.3.2 Na Lei do Divórcio ficou Facultativo O Código Civil de 1916 (Lei 6.515/1977) estabelecia em seu art. 240, que a mulher assumia pelo casamento “os apelidos do marido”. Portanto, a mudança do nome da mulher, assumindo o do marido era obrigatória devendo ela ter seu nome averbado no registro, bem como retificados todos os documentos. Antes da Lei do Divórcio, a Lei 6.015/1973, que regra os Registros Públicos no Brasil, trazia em seu art. 70, item 8º, que emana a ordem de que o assento do matrimônio traga o nome, que passa a ter a mulher, em virtude do assento do casamento. Posteriormente, com a Lei do Divórcio, o art. 240 do Código Civil passou a ter outra redação, estabelecendo que a mulher “poderá” assumir os nome do marido. Havia, assim, a faculdade de a mulher usar ou não o nome do marido. Se quisesse poderia manter seu nome de solteira. Clóvis Beviláqua assevera que “a adoção do nome era um costume, que não significava que a mulher ficasse com sua personalidade absorvida”. 196 6.3.3 No Novo Código, tanto o Homem como a Mulher pode Colocar o Sobrenome do Outro O Novo Código Civil fez uma verdadeira miscelânea relativamente ao nome dos cônjuges, seja quando da formação da sociedade conjugal, seja quando de sua dissolução. No Capítulo que trata da eficácia do casamento, dispôs acerca da possibilidade de um cônjuge adotar o sobrenome do outro, assim: Art. 1.565 – (...) §1.º - Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro. Com isso, confortou o princípio constitucional da igualdade dos cônjuges, ou seja, atualiza a legislação civil aos termos do art. 226, § 5.º, da CF/88, oportunizando a que tanto o homem, quanto a mulher, ao enlace matrimonial, na mudança do seu estado civil, possam acrescer ao seu o sobrenome do outro. Manteve-se, portanto, o arbítrio de qualquer dos contraentes a respeito da matéria, solvendo-se já antiga discussão a respeito de o homem poder assumir o sobrenome da mulher. Silvio de Salvo Venosa assevera que: (...) Essa faculdade não é somente da mulher, pois ambos os cônjuges possuem o mesmo direito no novo Código (art. 1.656, § 1º): o marido também pode acrescer o seu sobrenome da esposa, embora esse não seja nosso costume.197 196 197 BEVILÁCQUA, Clóvis. Código Civil dos EUB. Vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1988, p. 601. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p.220. Entretanto, a atual disposição, fatalmente irá trazer algumas polêmicas, desacertos ou diversos entendimentos, principalmente, registrais. Dentre eles, pode-se questionar: a) pode haver acréscimo concomitante de sobrenome, ou seja, na ocasião do casamento o homem adota o sobrenome da mulher e esta o daquele, numa espécie de troca? e b) qual o sobrenome que seguirá, logo em seguida do prenome (?), ou seja, a mulher pode manter o seu sobrenome ao final do nome, pode suprimi-lo, ou o sobrenome adotado deve vir ao final do seu nome completo? Salienta-se que a lei parece clara quando permite o acréscimo do sobrenome de um cônjuge ao outro: poderá acrescer AO SEU o sobrenome do outro. Assim, deve ser mantido no nome do cônjuge o sobrenome original, de família, sem qualquer supressão de patronímico, ou seja, o sobrenome original do cônjuge ficará sempre revelado, disfarçado, apenas, com o acréscimo do nome de família do consorte. Referente à questão, se a mulher chamar-se Maria do Carmo dos Santos e o marido Pedro Augusto Camargo, aquela pode adotar o nome de Maria do Carmo dos Santos Camargo e o homem pode adotar o nome de Pedro Augusto Camargo dos Santos. A doutrina entende que pode haver troca, porque não há impedimento legal quanto a isso, desde que se faça por ocasião do enlace e não posteriormente. Ademais, se há prevalência do princípio da igualdade conjugal, este deve prevalecer na vontade dos cônjuges, que não é vedada em lei. CAPÍTULO VII – A QUESTÃO DA IGUALDADE JURÍDICA 7.1 O Princípio da Igualdade Sólon já idealizava a igualdade, na época de 640 a 560 a.C. Num dos discursos, na célebre Oração Fúnebre de homenagem - a oração aos mortos da guerra do Peloponeso -, proferiu que a igualdade impunha tratamento idêntico nas relações entre os particulares e na vida pública a abolição da pobreza, o acesso aos cargos de governo e a consideração do mérito.198 No entanto, foi Platão (429 a 347 a.C.) um dos primeiros a tratar da igualdade. Na sua obra República, defendeu a igualdade de oportunidades. Para esse filósofo, a igualdade consistia o fundamento da democracia. Distinguia dois tipos de igualdade - a igualdade absoluta e a igualdade proporcional.199 A primeira consistia nas mesmas oportunidades de acesso aos cargos públicos, enquanto a igualdade proporcional implicava o governo de acordo com os méritos. No que diz respeito à igualdade, Platão adverte que a igualdade, quando conferida a coisas desiguais, teria por resultado a desigualdade. Já o filósofo grego Aristóteles vinculou a idéia de igualdade à idéia de justiça. A respeito do período em que viveram esses filósofos gregos, Martim Albuquerque ensina que o mundo antigo, a despeito da afirmação da desigualdade natural por Aristóteles e da admissão da escravatura, legou à humanidade, como parte nuclear do seu patrimônio moral e intelectual, em matéria de igualdade, uma aportação que se traduz nas proposições seguintes: a) todos os homens são naturalmente iguais; b) a igualdade é essência da Justiça; c) a igualdade pressupõe a comparação e não tem sentido entre coisas não comparáveis; d) a igualdade obriga a tratar igualmente, o igual e desigualmente o desigual; e) a igualdade é a base da democracia; a igualdade não é necessariamente aritmética, podendo (e devendo) em certos casos ser geométrica; f) a igualdade contém um componente de adequação aos fins; g) a igualdade implica participação das oportunidades.200 198 ALBUQUERQUE, Martim de. Da Igualdade: introdução à jurisprudência. Coimbra: Almedina,. 1993, p. 11. PLATÃO. A República. Bauru: Edipro, 1994. 200 ALBUQUERQUE, Martim de. Op. cit., p. 15. 199 Os grandes textos jurídicos romanos também trouxeram as idéias de igualdade. Ulpiano escreveu que! "no tocante ao direito natural, todos os homens são iguais".201 Cícero, em sua obra De Legibus declara que "não há na natureza igualdade tão completa como a existente entre os homens. Nas Instituições, reconhece-se que, por direito natural, todos os homens nascem livres. Minúcio Felix defende que "todos os homens, sem diferença de idade, sexo ou posição, são dotados de capacidade, poder de razão e sentido, e obtêm a sabedoria, não pela fortuna, mas pela natureza". 202 O Cristianismo trouxe uma ampliação ao conceito de igualdade. A igualdade passou a ser considerada como igualdade de todos os homens perante Deus. Curioso que os Santos Padres entenderam que a escravatura e o poder político não eram instituições de direito natural, mas simples conseqüências do pecado, para punição dos homens. Nesse sentido, entenderam Santo Agostinho, Santo Ambrósio e Santo Isidoro de Servilha. São Paulo escreveu na Epístola aos Gálatas o sentido da igualdade: (...) todos são um em Cristo; pois todos os que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há judeu nem grego; não há servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo. 203 A propósito da explanação desse apóstolo, Andrade Bezerra ensinava: (...) com o Cristianismo, nos encontramos pela primeira vez, com uma religião que abstrai de: toda diferença de nação, de raça e de língua e até de condição livre do homem. Para o Cristianismo todos os homens são iguais, não quanto à sua participação efetiva nas honras ou nos bens desta vida, mas quanto ao conhecimento de sua qualidade de homem.204 A filosofia escolástica entendia haver apenas dois tipos ou espécies de justiça particular: a justiça comutativa ou sinalagmática e a justiça distributiva. Dalmo de Abreu Dallari assinala que a Carta Magna da Inglaterra, de 1215, é o documento mais remoto das Declarações de Direitos, que limitou os direitos dos barões e prelados ingleses em face da monarquia absolutista, vigente na época, e que dizia que nenhum 201 Ibid., p. 16 Ibid. 203 Biblia Sagrada. Carta de São Paulo aos Gálatas, 3:27, 3:28, 3:29. 204 BEZERRA, Andrade. O Renascimento do direito natural. In: Revista Jurídica. Recife, 1931, vol.1, p. 07 202 homem livre poderia ser preso ou privado de seus bens ou, de alguma forma molestado, serão através de julgamento regular pelos seus pares ou conforme a lei do país.205 No século XVIII, por meio do jusnaturalismo, os textos jurídicos passam a contemplar a idéia de igualdade. Nos movimentos doutrinais e políticos do século XVIII e do século XIX encontra-se um patrimônio cultural riquíssimo, formado por idéias de, entre outros, Rousseau e André Delaporte. Rousseau admitia duas espécies de desigualdades entre os homens: Uma que chamava natural ou física, porque estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens, conforme Jean Jacques Rousseau.206 No entanto, foi na América que, pela primeira vez, os textos históricos consagraram constitucionalmente a igualdade. A Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 4 de julho de 1776, dizia: “Nós sustentamos como evidentes por elas mesmas estas verdades: que todos os homens foram criados iguais, que eles foram dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que, entre estes, estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade”, que “todos os O Sill ar: Rights da Virgínia, aprovado em 12 de junho de 1776, diz homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm certos direitos inerentes, dos quais ao entrarem em sociedade não podem, por qualquer forma, privar ou desinvestir a sua posteridade”. Referido documento deu-se em razão do movimento da independência das colônias. A Constituição do Estado da Carolina do Norte vem negar a qualquer homem ou grupo de homens direitos a privilégios distintos ou exclusivos. A do Estado de Massachusetts de 1780 diz, em seu art. 1 °: Todos os homens nasceram livres e iguais, e têm certos direitos naturais, essenciais, e inalienáveis, e entre eles se deve contar primeiramente o direito de gozar de vida e liberdade, e o de defender uma e outra; depois destes, o direito de adquirir propriedades, possui-Ias, e protegê-las, enfim o direito de obter a sua segurança e a sua felicidade.207 205 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do estado. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 180. ROUSSEAU, Jean Jacques, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens São Paulo: Nova Cultural, 2000, p 51. 207 Enciclopédia Wikipédia, disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Massachusetts>, acessado em 11/01/2006. 206 A Constituição norte-americana de 1787, votada por ocasião da Convenção de Filadélfia, apenas aboliu os títulos de nobreza (art. 1°, secção 9). O direito público francês é que formalizou, em primeiro lugar, a idéia jurídica da igualdade, quando no artigo 1° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, reza que: “Os homens nascem livres e iguais em direitos”. Também no artigo 6° trata do princípio da igualdade. Portanto, o princípio da igualdade recebeu glorificação com o referido documento. Consta ainda da Declaração de direitos de 1789 que: (...) todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades. A todos os lugares e cargos públicos, segundo as suas capacidades, e sem outra distinção que a das suas virtudes e talentos. (artigo 6°).208 Tocqueville considerou a Revolução Francesa um movimento mais próximo dos grandes movimentos religiosos do que das revoluções políticas e assim asseverou: (...) Vimo-la (a Revolução Francesa) aproximar ou separar os homens, a despeito das leis, das tradições, dos temperamentos, da língua, transformando por vezes os compatriotas em inimigos e os estrangeiros em irmãos; ou antes, ela formou, acima de todas as nacionalidades particulares, uma pátria intelectual comum, da qual os homens de todas as nações puderem tornar-se cidadãos.209 As idéias da Revolução Francesa influenciaram inúmeras partes do mundo além da Europa, a índia, a Ásia e a América Latina. Fábio Konder Comparato informa que: A Revolução Francesa desencadeou, em curto espaço de tempo, a supressão das desigualdades entre indivíduos e grupos sociais, como a humanidade jamais experimentara até então. Na tríade famosa - liberdade, igualdade e fraternidade, foi sem dúvida a igualdade que representou o ponto central do movimento revolucionário.210 Portanto, posteriormente, se percebeu que a Revolução Francesa tinha como objetivo a supressão das desigualdades estamentais. A Constituição francesa de 1791 aboliu as instituições que ofendiam a liberdade e a igualdade de direitos. Foi nessa data, na Europa, que ocorreu a emancipação dos judeus e a abolição de todos os privilégios religiosos. 208 Enciclopédia Contemporânea. Disponível em <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=180>, acessado em 11/01/2006 209 TOCQUEVILLE, Alexis de Democracia na América. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p 385. 210 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, p 117. Referidos movimentos igualitários não conseguiram acabar com a desigualdade entre os sexos. A Declaração de 1793 e a respectiva Constituição Francesa desse mesmo ano trataram do princípio da igualdade. A carta constitucional de 1814 da França foi pródiga quanto à igualdade e traz a seguinte asserção: “todos os franceses são iguais diante da lei, sejam quais forem os seus títulos ou classes”. No direito português, Constituições as do século XIX, influenciadas pelas Revoluções Americana e Francesa, trataram do princípio da igualdade. A Constituição portuguesa de 1822 continha, no seu título I, artigo 9°: “Dos Direitos e Deveres Individuais dos Portugueses”- a asserção de que: “A lei é igual para todos”. E, portanto, conforme assevera Martim de Albuquerque: “não se devem tolerar privilégios do foro nas causas cíveis ou crimes, nem comissões especiais”. A Carta Constitucional de 1826 dispunha, no artigo 145, § 12: “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Martim de Albuquerque ensina que “as constituições portuguesas novecentistas em sede de igualdade prolongam, essencialmente, a linhagem constitucional americana e francesa e não se podem dizer grandemente inovadoras”.211 Apesar disso, até o século XVIII as Constituições só tratavam da igualdade formal. Da análise dos textos das modernas Declarações de Direitos diz que a igualdade tinha caráter meramente formal e sua procedência estava ligada às doutrinas contratualistas que defendiam a absoluta igualdade de nascimento entre os homens. Durante muito tempo a humanidade caminhou tratando os homens de forma desigual, dividindo-os em livres e escravos, nobres e plebeus, negando a algumas classes a condição de pessoa, e chegando a tratá-los como objetos e animais. Desde épocas muito antigas, portanto, já existiam os excluídos. Mas é a partir do século XIX que se passou a questionar o princípio da igualdade formal, pois os homens são essencialmente iguais; no entanto, existem diferenças que são decorrentes de fatores naturais ou sociais. Os homens possuem diferente capacidade física e intelectual, em inteligência e caráter. Todos os homens considerados, quanto à sua natureza, são iguais e desiguais. Iguais quanto à liberdade, o direito aos socorros públicos, e o direito de defesa, entre outras prerrogativas. Se a lei tratasse igualmente fatos desiguais seria injusta e desigual. 211 ALBUQUERQUE, Martim de. Op. cit., p. 58. As idéias que resultaram desses movimentos propiciaram a organização do Estado, Democrático, fundado em três aspectos básicos: a supremacia da vontade popular, a preservação da liberdade e a igualdade de direitos.212 Referidos documentos influenciaram o Constitucionalismo, e após seguiramse outras manifestações. Finda a Segunda Guerra Mundial, em 26 de junho de 1945, foi emitida a Carta das Nações Unidas, com vistas a uma constante atividade dos países em busca da paz mundial. Em 1948, as Nações Unidas editaram a Declaração Universal dos Direitos do Homem, e proclamaram os direitos fundamentais dos seres humanos. Referida Declaração elencou os direitos fundamentais, ao dizer que todo homem tem direito à segurança social e à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais essenciais e também ao desenvolvimento de sua personalidade. A Constituição norte-americana, na emenda XIV, menciona igual proteção, baseando-se na igualdade de condições. Várias Constituições dos séculos XIX e XX trazem em seus textos a garantia da igualdade, mencionando apenas cidadãos. Dentre elas, estão o Estatuto Fundamental do Reino da Itália de 1848, a Constituição da Prússia, a Constituição da Suíça de 1874 e a Constituição de Weimar de 1919. 7.2 Da Igualdade Formal e Material O princípio da igualdade, também chamado de princípio da isonomia, consiste na igualdade jurídico-forma de todos diante da lei – “todos são iguais perante a lei”. Ensina Pinto Ferreira que “o princípio da igualdade deve ser apreciado como uma dupla perspectiva: igualdade na lei e igualdade perante a lei, esta pressupondo a lei elaborada”.213 A igualdade diante da lei surgiu na Inglaterra por meio de seus costumes, e também assegura que todos os cidadãos têm o direito de receber tratamento idêntico pela lei. A Constituição brasileira de 1988, no capítulo dos direitos individuais, consagra o princípio de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (artigo 5º, caput), e que esse princípio constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, pois no artigo 3°, da Constituição Federal, incisos 111 e IV, assim dispõe: 212 JUCOVSKY, Vera Lúcia R S. Representação política da mulher. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2000, p. 46. 213 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. Vol 1, São Paulo Saraiva, 1989, p. 62. Artigo 3° - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) III - Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.214 Manoel Gonçalves Ferreira Filho215 ensina que o Estado de Direito é composto por três princípios: princípio da legalidade, princípio da igualdade e princípio da justicialidade. A Constituição Portuguesa, em seu artigo 9° diz: “uma das tarefas fundamentais do Estado é a promoção da igualdade real entre os portugueses”. Constitucionalistas portugueses, como José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira asseveram, quanto ao princípio da igualdade: Embora não esteja explicitamente autonomizado em nenhum preceito específico do capítulo introdutório da CRP, ele é seguramente um dos princípios estruturantes do sistema constitucional. Ele constitui naturalmente o elemento essencial da 'sociedade justa' a que se refere o artigo 1i.216 José Afonso da Silva217 ensina que o sentido da expressão “igualdade perante a lei” significa que o princípio da igualdade tem como destinatários o legislador e os aplicadores da lei. Nesse mesmo sentido, o entendimento de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior: “O princípio da isonomia deve constituir preocupação tanto do legislador como do aplicador da lei”. 218 Giorgio Balladore Palliere, em relação ao princípio da igualdade, salienta que: (...) princípio não obriga a tratar com igualdade situações de fatos desiguais, proibindo apenas o arbítrio diante de diferenciações fundamentadas em qualidades pessoais do indivíduo, tais como raça, riqueza, sexo, profissão, classe, etc..219 214 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Art. 3º, Incisos 111 e IV, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm, acessado em 10/01/2006. 215 FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 109. 216 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 81. 217 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 210. 218 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 67. 219 PALLlERE, Giorgio Balladore. Oiritto Costituzionale. Milano. p. 303-304, apud, FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira.Vol 1, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 62. O texto da Constituição proíbe qualquer diferença de tratamento que provenha do Legislativo, Executivo e do Jurídico, por motivo de raça, nascimento, classe social, riqueza e sexo. Conforme já foi mencionado, as nossas Constituições, desde a primeira, no Brasil Imperial, inscreveram o princípio da igualdade perante a lei. Vale dizer, o princípio da igualdade formal. Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que eles se desigualam, é o princípio da igualdade. Entretanto, saber quem são os iguais e os desiguais e definir em que circunstâncias é constitucionalmente legítimo o tratamento desigual é o cerne da questão. A Constituição Federal Brasileira desequipara as pessoas com base em múltiplos fatores, que incluem sexo, renda, situação funcional, nacionalidade, dentre outros. Conforme Luís Roberto Barroso sustenta, “o tratamento desigual há de encontrar limites de razoabilidade para que seja legítimo. Este limite poderá vir expresso ou implícito no texto constitucional, e a conciliação que se faz necessária exige a utilização de um conceito flexível, fluido, como o de proporcionalidade”.220 A Constituição Federal de 1988, no seu artigo. 5°, de outro modo insculpe em seu texto a tão esperada igualdade material, que deve ser interpretada em consonância com outras disposições constitucionais, a fim de que ocorra a redução das desigualdades. Florisa Verucci ensina que: “o princípio da igualdade formal é o princípio da igualdade perante a lei, porém o princípio da igualdade material é o princípio da redução das desigualdades.”.221 A Constituição Federal de 1988 traz em seu texto vários artigos que fazem referência expressa ao princípio da igualdade material: No Título I - Dos Princípios Fundamentais, traz: “Artigo 3° - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: III - Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir desigualdades sociais e regionais”. Também na questão da ordem econômico-financeira, volta-se à consecução da igualdade: Artigo 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre Iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, 220 BARROSO, Luís Roberto, A Igualdade perante a Lei. Algumas Reflexões. In: Temas Atuais do Direito Brasileiro, 1987 apud BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 213-215. 221 VERUCCI, Florisa. O direito da Mulher em mutação: os desafios da igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 57. conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VII - Redução das desigualdades regionais e sociais.222 Outro dispositivo, o artigo 5º, ao dispor sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, além de proclamar em seu caput que: (...) todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...), também regulamenta em seu inciso XLI que a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais, e no inciso XLII, que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.223 Celso Ribeiro Bastos preleciona em relação à igualdade substancial o seguinte: A igualdade substancial postula O tratamento uniforme de todos os homens. Não se trata, como se vê, de um tratamento Igual perante o direito, mas de uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida.224 Preleciona ainda o ilustre jurista em relação à igualdade material: Essa igualdade, contudo, a despeito da carga humanitária e idealista que traz consigo, até hoje nunca se realizou em qualquer sociedade humana. São muitos os fatores que obstaculizam a sua implementação: a natureza física do homem, ora débil, ora forte; a diversidade da estrutura psicológica humana, ora voltada para a dominação, ora para a submissão, sem falar nas próprias estruturas político-sociais, que na maior parte das vezes tendem a consolidar a até mesmo a exacerbar essas distinções, em vez de atenuá-las.225 Há que se questionar se a Constituição trata o princípio da igualdade formal no mesmo nível hierárquico do princípio da igualdade material, e se existe conflito entre ambas; e, em havendo, qual deles é absoluto. Florisa Verucci, ao tratar do assunto da igualdade, esclarece o assunto: A Constituição trata o princípio da igualdade formal no mesmo nível hierárquico do princípio da igualdade material. Ambos são normas constitucionais que devem ser implantadas e obedecidas. A questão é saber se existe conflito entre elas e se o princípio da igualdade formal é um princípio absoluto que, como tal, exclua o princípio da igualdade material, que é o princípio que rege a redução das desigualdades sociais.226 222 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Art.170, disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>, acessado em 11/01/2006 223 Id. Ibid. art. 5º. 224 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 165. 225 Ibid. 226 VERUCCI, Florisa. Op. cit., p. 58. Nessa linha de pensamento, a mesma autora prossegue na construção da igualdade material implica tratamento prioritário, em determinadas circunstâncias, dos segmentos da população carentes de igualdade. A intervenção das normas e das ações públicas no tratamento das prioridades é a condição para a criação da igualdade material, derivada da obrigação constitucional. 227 Carlos Roberto de Siqueira Castro, ao comentar sobre a igualdade material, assevera o seguinte: (...) Tal se explica porque a igualdade real ou material entre os homens no convívio' social depende em grande parte do modelo político-econômico adotado pelas nações, e não do fato de o Estado estar subordinado a uma ordem jurídica que imponha de forma abstrata o ideal isonômico e sem indicações dos meios necessários à sua concreção, como também não depende do fato de sujeitar-se esse regime de igualdade formal à tutela de órgãos de controle da legalidade, em particular aqueles do Poder Judiciário, com competência para invalidar os atos do poder público acaso conflitantes com tal regime igualitário sem conteúdo determinado.228 No magistério de Carlos Roberto de Siqueira Castro consta que: (...) Existindo imposições de cunho igualitário, seja de conteúdo negativo ou positivo, vinculantes ao legislador ordinário e, por força delas, um regime de igualdade fundamental, não pode o Estado, por seus órgãos e agentes de toda sorte, dar causa a desigualdades não toleradas pela Lei maior, seja editando norma discriminatória contrária à Constituição, seja aplicando de maneira discriminante e inconstitucional norma originalmente válida ou, ainda, deixando de promover as condições de igualdade social, econômica e política, de cuja promoção o legislador constituinte tenha incumbido os órgãos de governo.229 Toda vez que o legislador ordinário der causa a desigualdades não aceitas pela Lei Maior, quer editando normas de conteúdo discriminatório que a contrariam, quer aplicando a norma de forma discriminatória e inconstitucional, ocorrerá ruptura da ordem jurídica. O autor assevera que a edição de norma discriminatória contrária à Constituição afetará a, norma jurídica no seu nascedouro, uma vez que a matéria apresenta incompatibilidades com a isonomia assegurada na Constituição. San Tiago Dantas ensina que: 227 Ibid. CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 43. 229 Ibid., p. 23. 228 Quanto mais progridem e se organizam as coletividades, maior é o grau de diferenciação que atinge seu sistema legislativo. A lei raramente colhe no mesmo comando todos os indivíduos, quase sempre atende a diferenças de sexo, de profissão, de atividade, de situação econômica, de posição jurídica, de direito anterior; raramente regula do mesmo modo a situação de todos os bens, quase sempre os distingue conforme a natureza, a utilidade, a raridade, a intensidade da valia que oferecem a todos, raramente qualifica de um modo único as múltiplas ocorrências de um mesmo fato (...). Todas essas distinções, inspiradas no agrupamento natural e racional dos indivíduos e dos fatos, são essenciais ao processo legislativo, e não ferem o princípio da igualdade.230 O princípio da isonomia consiste, como já foi pormenorizado, em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Portanto, o princípio da igualdade é um princípio que apresenta relatividade, porque há uma certa desigualdade no tratamento. Nesse sentido, o entendimento de Carlos Roberto de Siqueira Castro: (...) A lei pode tratar igualmente os iguais e os desiguais, ou desigualmente os desiguais; só não pode é tratar de modo desigual os iguais, ou seja, dar tratamento discriminante a situações idênticas, o que confere ao legislador uma amplíssima margem de discrição político-Iegislativo para corrigir, minorar ou até agravar os desajustes sociais, de acordo com as prioridades e os modelos de política econômica que cada país possa adotar.231 O princípio da isonomia tem por objetivo a igualdade de tratamento para situações de fato idênticas a pessoas que apresentem as mesmas condições. 7.3 A Igualdade Constitucional Delimitado o conceito de igualdade, de forma a compreendê-la relativamente, é possível classificações sem que haja ofensa ao seu comando. Existem normas jurídicas que contêm distinções, porém, não estão, necessariamente, eivadas de inconstitucionalidade, uma vez que a legislação pode estabelecer tratamentos desiguais. A diferenciação que se fez entre as duas espécies de igualdade não esgotou o tema, e, portanto, não se precisou completamente o preceito da igualdade. Necessário, pois, que se fixe um critério para determinar se a norma jurídica discriminadora viola o princípio da igualdade, ou se dele não diverge. Celso Antônio Bandeira de Mello questiona: 230 DANTAS, San Tiago Problemas de direito positivo. Rio de Janeiro: Forense, 1953, p. 56, apud, CASTRO. Op. cit. p. 47. 231 CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. Op. cit, p. 49. (...) O que permite radicalizar alguns sob a rubrica de iguais e outros sob a rubrica de desiguais? Portanto: qual o critério legitimamente manipulável sem agravos à isonomia - que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos? Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos contidos no princípio constitucional da isonomia?.232 Para resolução do problema, é insuficiente recorrer aos critérios tradicionais de sexo, raça, trabalho, credo religioso, convicções políticas, apresentando-se como se fossem proibições absolutas e ilimitadas para as discriminações jurídicas, uma vez que forneceriam apenas uma solução incompleta e insuficiente para o problema da igualdade. Inúmeras regras de Direito, inclusive na própria Constituição, tratam diversamente homens e mulheres ou trabalhadores de ofício diferentes, e, no entanto, não agridem o princípio da isonomia. Defende, porém, Aristóteles, (notas de rodapé) a desigualdade natural essencial dos homens, uma vez que alguns são capazes de se determinarem por um fim racional e outros não. A verdadeira igualdade deve observar a sua natureza e o fim para o qual a desigualação deve ser feita. Rudolph Von Thering ensina que: (...) a exigência de igualdade parece ter seu fundamento último em uma feia característica do coração humano, na inveja. Ninguém deve ser melhor ou melhor do que eu; se eu for um miserável, também o sejam os outros.233 Lopes Praça tece considerações importantes, as quais culminam com uma diferenciação entre igualdade social e igualdade legal. E questiona: “Em que consiste propriamente o direito de igualdade?”.234 Este direito tem dado lugar a grandes abusos e a sofismas de todo o gênero, a objeções e a divergências sem número. Os que deduzem o nivelamento das fortunas do direito de igualdade cometem um erro tão crasso e prejudicial, como se admitissem que todos e cada um dos homens têm igual aptidão, para todos e cada um dos misteres ou trabalhos necessários para a sua existência e perfectibilidade individual e social. 232 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 11 233 THERING, Rudolph Von Der Zwick. leipzigs: Breirkopf und Hartel, 1884, apud, REIS, Carlos David S. Aarão. A família e a igualdade: a chefia da sociedade conjugal em face da Nova Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, p.21. 234 ALBUQUERQUE, Martim de. Da igualdade: introdução à Jurisprudência. Coimbra: Almedina, 1933, p 66. Para Flávia Piovesan, a igualdade formal diz respeito a que “todos são iguais perante a lei”. E, portanto, isto significou um decisivo avanço histórico decorrente das modernas Declarações de Direitos do final do século XVIII. Segundo ela, “o discurso liberal da cidadania nascia no seio do movimento pelo constitucionalismo e da emergência do modelo de Estado Liberal, sob a influência das idéias de Locke, Montesquieu e Rosseau”.235 Complementa a autora que, nessa época, “torna-se necessário repensar o valor da igualdade, afim de que as especificidades e as diferenças sejam observadas e respeitadas”.236 Somente assim se tornará possível a transição da igualdade formal para a igualdade material ou substantiva. A Constituição Federal de 1988 instituiu o princípio da igualdade formal que consiste no princípio da igualdade perante a lei, constante do artigo 5° que diz: “todos são iguais perante a lei” E, no primeiro dos incisos desse artigo, regra que “homem e mulher são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Dessa forma, deve ser mantida a igualdade, mesmo que em situações peculiares seja determinada certa desigualdade. 7.4 As Desigualdades Admissíveis pela Constituição Federal Inúmeras regras de Direito, até mesmo contidas na Constituição, tratam de forma diversa homens e mulheres ou trabalhadores de ofícios diferentes, e que, no entanto, não agridem o princípio da igualdade. Celso Antônio Bandeira de Mello menciona vários casos de discriminações baseados no sexo, raça, confissão e até cor dos olhos ou compleição física. E ao final ensina: (...) Então, percebe-se, o próprio ditame constitucional que embarga a desequiparação por motivo de raça, sexo, trabalho, credo religioso e convicções políticas, nada mais faz que colocar em evidência certos traços que não' podem, por razões preconceituosas mais comuns em certa época ou meio, ser tomados gratuitamente como ratio fundamentadora de discrimine. O artigo 5°, caput, ao exemplificar como as hipóteses referidas, apenas pretendeu encarecê-las como insuscetíveis de gerarem, só por só, uma discriminação. Vale dizer: recolheu na realidade social elementos que reputou serem possíveis fontes de desequiparações odiosas e explicitou a impossibilidade de virem a ser destarte utilizados.237 235 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p.127. Ibid., p.129. 237 MELLO, Celso Bandeira de. Op. cit., p. 17-18. 236 Verifica-se que aqueles fatores mencionados não podem servir como fundamento de desigualdades legislativas, mas podem em princípio servir de critérios para discriminações, desde que racionalmente fundamentados. Portanto, deve-se encontrar outro critério para distinguir as desigualdades constitucionais das inconstitucionais. Há que se examinar a compatibilidade de regras jurídicas com a Lei Fundamental em relação ao princípio da igualdade. e, portanto, torna-se necessário examinar o ponto de referência a partir do qual se criou a diferenciação. No entanto, ainda não se tem uma solução, uma vez que se pode indagar qual o significado de relevância. Vale dizer, quando existe fundamento para a desigualdade? Antes do período da II Guerra Mundial, Gerhard Leibholz propôs um critério de distinção que também pode ser encontrado, contemporaneamente, na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Após 1954, o Tribunal Constitucional Federal alemão esclareceu o princípio da isonomia: (...) o postulado da igualdade só proíbe que o essencialmente igual se trate de maneira deferente, mas não, ao contrário, que o essencialmente desigual se trate de maneira diferente em correspondência com a desigualdade existente. Viola-se o princípio da igualdade quando não se pode encontrar para a diferenciação ou equiparação legais um argumento razoável, que surja da natureza as coisas e seja materialmente evidente, em resumo, quando a determinação há de ser qualificada como arbitrariedade.238 Agora, portanto, pode-se elaborar um critério medianamente seguro para examinar se a norma jurídica, tratando de uma desigualdade, ofende ou não o princípio da isonomia. Logo, o ponto de referência escolhido pela norma para o tratamento desigual, deve ser relevante; necessário se faz tenha a discriminação um fundamento. Não se pode admitir a discriminação arbitrária ou caprichosa. Nesse sentido, há que se mencionar o critério proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello, na monografia sobre o tema da igualdade e que, de certo modo, guarda congruência com o que foi mencionado até agora: (...) Aquilo que é, em absoluto rigor lógico, necessária e irrefragavelmente igual para todos, não pode ser tomado como fator de diferenciação, pena de hostilizar o princípio isonômico. Diversamente, aquilo que é diferenciável, que é, por algum traço ou aspecto, desigual, pode ser diferençado, fazendose remissão à existência ou à sucessão daquilo que dessemelhou as situações: (...) cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o critério 238 FORSTHOFF, Ernest. EI Estado de Ia Sociedad Industrial. Tradução de Luis López Guerra e Jaime Nicolás Muniz. Madri: Instituto de Estúdios Políticos, 1975, p. 226-227. especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica - a dizer: o fator de discriminação - pode ser qualquer elemento radicado neles: todavia, necessita inarredavelmente, guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta.239 O discrimen, ou fator de discriminação, não pode ser aleatório ou casual. Deve-se buscar a pertinência lógica entre o critério adotado, a diferenciação realizada e o objetivo perseguido. Do contrário, resultará discriminação arbitrária conseqüentemente Contrária ao Texto Constitucional. É o que esclarece o mesmo autor, na continuidade de sua lição: (...) Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia.240 A tentativa de formular um critério para precisar a noção de igualdade tem sido criticada por muitos, alegando alguns autores o fato de não se ter alcançado um estado de ampla segurança jurídica. Alcançar uma segurança jurídica completa é algo talvez inatingível, mas, pode-se buscar uma aproximação razoável, diminuindo ao menos, sensivelmente o grau de incerteza contido na noção de igualdade a um nível aceitável. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Carlos Roberto de Siqueira Castro menciona o seguinte: (...) Nessa linha de idéias, poder-se-ia estabelecer, por exemplo, e por absurdo que pareça, tratamento legislativo distinto entre proprietários de automóveis verdes e proprietários de automóveis amarelos, ou entre o tipo de penteado das pessoas, ou entre canhotos e direitos, isto para fins de habilitação em concurso para preenchimento de cargos burocráticos no serviço público, ou para fins de obtenção de financiamento imobiliário junto ao Sistema Financeiro de Habitação, o que, á evidência, não guarda a mais mínima correlação com tais critérios classificatórios.241 Por isso é que se proíbem as diferenças, constitucionalmente, baseadas em raça, sexo, religião, etc. Vale dizer que a norma não deve ser arbitrária, irrazoável. Nesse sentido, o entendimento de Carlos Roberto de Siqueira Castro: 239 MELLO, Celso Bandeira de. Op. cit., p. 32-39. Ibid. 241 Op. cit., p. 69. 240 “Daí por que, modernamente, se tem exigido em sede tanto doutrinária quanto jurisprudencial, sobretudo alhures, que a classificação legislativa não adote, em primeiro lugar, diferenças constitucionalmente vedadas (como raça, sexo, religião, etc.), e que, além disso, seja a diferenciação normativa. razoável. revestindo-se de adequada racionalidade. Isto quer dizer que a norma classiticatória não deve ser arbitrária, irrazoável ou caprichosa, mas que, ao revés, deve operar como meio idôneo, hábil e necessário ao atingimento de finalidades válidas do ponto de vista constitucional. Para tanto, há de existir necessariamente um mínimo de compatibilidade e congruência entre a classificação em si e o fim a que ela se destina" .242 O acerto ou desacerto no atingimento do fim culminado, e a existência ou não de um mínimo de compatibilidade dessas finalidades com a classificação praticada definirá o cumprimento cabal do princípio da igualdade ao se proceder à diferenciação, ou a sua frontal violação. 242 Ibid. CONCLUSÃO Desde muitos séculos, a mulher é relegada à condição de subserviência. Por este motivo foi proposto um estudo que apresentasse e analisasse os aspectos evolutivos do direito da mulher no direito positivo brasileiro. 1. Este fato se deveu, sobretudo, a uma sociedade patriarcal, onde o poder marital era absoluto. De tal modo, que era permitido, por exemplo, aos maridos castigarem suas mulheres com a proteção da lei. A história das mulheres sempre foi contada por homens, pois além da força física, eles detinham o prestígio moral, o controle intelectual e econômico. As mulheres que conseguiram algum espaço foi em decorrência de que os homens que a cercavam estavam dispostos a conceder tais privilégios. Assim sendo, comprovou-se a lentidão que envolveu a luta da mulher para assumir o seu espaço e seu verdadeiro papel na sociedade, uma vez que a conquista das reivindicações feministas demandou mais de um século e meio em todo o mundo. Tal luta, consolidou-se no cenário mundial através de um processo progressivo. A evolução milenar dos direitos da mulher, porém, foi produto de ásperas lutas, de transformações sociais tão intensas que o homem foi compreendendo que não podia mais relegá-la a condição de mera servidora e elemento procriador, a fim de perpetuar a família, dando lhes um sucessor que viesse a cuidar do seu nome. 2. No Brasil, a condição da mulher não era muito diferente do que no resto do mundo. A mulher negra e a mulata, sofriam grandes privações, desde a instrução básica, que não lhes era possibilitado receber. A liberdade de deslocamento dessas mulheres, empregadas domésticas em sua maioria, era controlada, assim como o seu modo de vestir. A mulher branca – no período colonial do Brasil e mesmo na República – casava por conveniência econômica, quase sempre com parentes, para reforçar os laços familiares, mas especialmente para preservar o patrimônio da família. Assim sendo, aquelas mulheres que não desejassem participar desse pacto familiar eram enviadas para os conventos, para evitar casamentos inter-raciais. Com o passar do tempo, pouco a pouco a mulher conquistava o seu espaço, ainda que fosse apenas como participante de atividades eclesiásticas, mas já tinham uma participação publica, buscando cada vez mais seu espaço na sociedade. 3. Têm-se relatos de que a primeira manifestação legal, no Brasil, veio com a Constituição de 1824. A partir de então, as demais Constituições outorgadas, paulatinamente viriam a tornar iguais os direitos entre o homem e a mulher. É necessário ressaltar que o conceito da igualdade jurídica não deve ser analisado no sentido de uma igualdade absoluta, igualitária, no critério matemático, sem distinções, mas sim no sentido de uma igualdade relativa e proporcional. Nesse sentido, não se deve criar uma falsa idéia da igualdade absoluta, como se todos fossem iguais em tudo. 4. Dentre tantas explanações acerca da evolução dos direitos da mulher, foram apresentadas questões referentes ao direito do trabalho. O Estado não interferia nas relações jurídicas de trabalho, permitindo toda sorte de exploração. As mulheres eram remuneradas ao livre arbítrio dos patrões, eram desprezadas e colocadas em postos inferiores, com menores salários; as menos instruídas eram consideradas aptas somente em certos períodos de sua vida, ou seja, quando jovens e solteiras, exercendo apenas um tipo de atividade sem qualquer profissionalização. O que trouxe, de certa forma, a conclusão de que a legislação protetiva do trabalho da mulher vem sofrendo um processo de reformulação que se reflete, significativamente, no seu acesso ao emprego e no nível de produção do país. Desde a antiguidade, a mulher sempre contribuiu com sua força de trabalho, quer nos encargos familiares, quer no auxílio ao seu companheiro. 5. Ao dissertar sucintamente sobre o Código Civil de 1916 e também sobre o Novo Código Civil, é possível observar mudanças no que se refere ao direito feminino. É importante, porém, ressaltar que questões polêmicas e necessárias a qualquer legislação atualizada infelizmente não foram tratadas pelo legislador federal, que se limitou a acompanhar a evolução dos costumes já existentes há décadas no seio social, rebocado que foi pelo turbilhão da evolução humana, perdendo a fabulosa oportunidade de criar algo de fato novo. Vale dizer que a nova legislação traduziu e regulamentou fatos e situações que já vinham ocorrendo “in concreto”, reconhecidas, muitas vezes, pelos próprios Tribunais do País mediante provocação da sociedade. Todavia, discorrer a respeito da alteração do Código Civil e comparações entre o antigo e o novo, levaria ao desenvolvimento de um outro estudo, visto a sua complexidade, críticas e questões verdadeiramente polêmicas que ainda estão sendo discutidas por juristas, atualmente. 6. No que se refere aos direitos da personalidade, a Constituição Federal preceitua que todos são iguais em direitos, tutelando da mesma forma para o homem e a mulher, o direito à vida, à honra, à identidade pessoal, à intimidade, dentre outros. O direito à intimidade sexual é direito de personalidade, que dá segurança quanto à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, que é a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual. É um direito personalíssimo, inerente à pessoa humana. Antigamente, a mulher era vista como utilidade para procriar. Hoje, a mulher tem o direito de ter sua opção sexual e ter ato sexual prazeroso. Indivíduos de ambos os sexos passaram a ter a opção de tecer e suster uma relação sexual além da simples necessidade de reprodução, inclusive com pessoa do mesmo sexo, o que não afronta os conceitos das sociedades historicamente desenvolvidas. O novo Código Civil trouxe uma inovação no que se refere aos direitos da personalidade e a mulher, quando dispõe que no enlace matrimonial tanto o homem, quanto a mulher, podem acrescer ao seu sobrenome o do outro cônjuge. A mulher sempre acrescentou o apelido de família do marido ao seu quando da mudança do seu estado civil, não cabendo ao marido a mesma situação, o que gerava discussões na vida cotidiana, sobre a obrigatoriedade desse acréscimo. Todavia, o Código Civil, trouxe a facultatividade para acréscimos do apelido de família e também oportunizou igualmente o direito, podendo o marido acrescer ao seu nome, o apelido de família da mulher. 7. Durante muito tempo a humanidade caminhou tratando os homens de forma desigual, dividindo-os em livres e escravos, nobres e plebeus, negando a algumas classes a condição de pessoa, e chegando a tratá-los como objetos e animais. Desde épocas muito antigas, portanto, já existiam os excluídos. Mas é a partir do século XIX que se passou a questionar o princípio da igualdade formal, pois os homens são essencialmente iguais; no entanto, existem diferenças que são decorrentes de fatores naturais ou sociais. Os homens possuem diferente capacidade física e intelectual, em inteligência e caráter. Todos os homens considerados, quanto à sua natureza, são iguais e desiguais. Iguais quanto à liberdade, o direito aos socorros públicos, e o direito de defesa, entre outras prerrogativas. Se a lei tratasse igualmente fatos desiguais seria injusta e desigual. A mulher em toda sua evolução sempre buscou essa igualdade, para que fosse tratada quanto aos direitos fundamentais e da personalidade da mesma forma que homem. Toda vez que o legislador ordinário der causa a desigualdades não aceitas pela Lei Maior, quer editando normas de conteúdo discriminatório que a contrariam, quer aplicando a norma de forma discriminatória e inconstitucional, ocorrerá ruptura da ordem jurídica. Dessa forma, atingiu-se o objetivo proposto, que consistiu em demonstrar que durante anos, praticamente desde os primórdios da civilização, a mulher foi cerceada em seus direitos. REFERÊNCIAS ABRANTES, Vitor de Toledo. Suprema Crueldade entre os Índios. In: Catolicismo. São Paulo. Artigo publicado nº 639 de março de 2004 ALBUQUERQUE, Martim de. Da igualdade introdução à jurisprudência. Coimbra: Almedina, 1993. ALENCAR, José de. Lucíola. 11. ed., São Paulo: Ática, 1987. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A pessoa Jurídica e os Direitos de Personalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. ALVES, Francisco. As Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais. AMARAL, Francisco. Direito Civil. São Paulo: Renovar, 2002. ANDRADE, B. O Renascimento do direito natural. In Revista Jurídica. Recife, 1931. ANTONIL, André João. Cultura e Opulência no Brasil. São Paulo: Forense, 1967. 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