Estudos Gramaticais 2º Edair Görski Heronides Moura Período Florianópolis - 2011 Governo Federal Presidência da República Ministério de Educação Secretaria de Ensino a Distância Coordenação Nacional da Universidade Aberta do Brasil Universidade Federal de Santa Catarina Reitor: Alvaro Toubes Prata Vice-Reitor: Carlos Alberto Justo da Silva Secretário de Educação a Distância: Cícero Barbosa Pró-Reitora de Ensino de Graduação: Yara Maria Rauh Müller Pró-Reitora de Pesquisa e Extensão: Débora Peres Menezes Pró-Reitor de Pós-Graduação: Maria Lúcia de Barros Camargo Pró-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da Silva Pró-Reitor de Infra-Estrutura: João Batista Furtuoso Pró-Reitor de Assuntos Estudantis: Cláudio José Amante Centro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a Distância Diretora Unidade de Ensino: Felício Wessling Margutti Chefe do Departamento: Izabel Christine Seara Coordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Sandra Quarezemin Coordenador de Tutoria: Renato Miguel Basso Coordenação Pedagógica: LANTEC/CED Coordenação de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE Comissão Editorial Tânia Regina Oliveira Ramos Mary Elizabeth Cerutti Rizzati Equipe de Desenvolvimento de Materiais Laboratório de Novas Tecnologias - LANTEC/CED Coordenação Geral: Andrea Lapa Coordenação Pedagógica: Roseli Zen Cerny Produção Gráfica e Hipermídia Design Gráfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine Suzuki Coordenação: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins Rodrigues Adaptação do Projeto Gráfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha Oliveira Diagramação: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli Michelon Figuras: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli Michelon Capa: Raquel Darelli Michelon Tratamento de Imagem: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli Michelon Revisão gramatical: Evillyn Kjellin Design Instrucional Coordenação: Vanessa Gonzaga Nunes Designer Instrucional: Maria Luiza Rosa Barbosa Copyright © 2011, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSC Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordenação Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância. Ficha Catalográfica X999y Sobrenome, Nome Título do Livro / Nome Sobrenome, UFSC, UAB.— Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2009. XXXp. : XXcm ISBN XXXXXXXX 1. xxxxxx. 2. xxxxxx. I. xxxxxx. II. xxxxxx. CDD 410 Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina. Sumário Unidade A............................................................................................. 9 1 A pré-história da linguagem.....................................................................11 2 A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino...............................................................................15 3 Língua universal e línguas particulares: da Idade Média ao século XVIII.................................................................23 4 As línguas como produtos da história: a época do Romantismo............................................................................27 5 A busca da origem: do Romantismo ao Método Comparativo..........................................................................31 Unidade B............................................................................................35 6 Concepções de língua(gem).....................................................................37 7 Propriedades das línguas naturais..........................................................43 7.1 Flexibilidade e adaptabilidade......................................................................43 7.2 Arbitrariedade . ..................................................................................................44 7.3 Dupla articulação . ............................................................................................46 7.4 Produtividade......................................................................................................48 7.5 Heterogeneidade...............................................................................................50 8 O que é um estudo científico?..................................................................53 Unidade C............................................................................................57 9 Concepções de gramática..........................................................................59 9.1 Gramática Universal e gramáticas de línguas particulares....................................................................................59 9.2 Gramática prescritiva versus gramática descritiva e explicativa...............................................................63 10 A norma linguística....................................................................................73 10.1 Concepções de norma...................................................................................73 10.2 Variedades da língua e língua padrão do Brasil...................................79 10.3 A questão do “erro” e suas implicações sociais.....................................85 Unidade D...........................................................................................89 11 Princípios e métodos do estudo de gramática................................91 12 Níveis de análise ........................................................................................95 12.1 Nível fonético-fonológico ...........................................................................95 12.2 Nível morfológico ........................................................................................101 12.3 Nível sintático.................................................................................................119 12.4 Nível semântico-pragmático . ..................................................................125 Leia Mais!.......................................................................................... 134 Referências....................................................................................... 135 Apresentação C aros alunos: Este livro-texto trata de dois grandes temas: ӲӲ Fundamentos históricos e filosóficos das noções de linguagem e de gramática. ӲӲ Iniciação aos conceitos e métodos da descrição gramatical segundo as abordagens da Linguística Moderna. Esses assuntos estão organizados em quatro unidades. Na Unidade A trataremos do primeiro tema acima. Faremos uma viagem no tempo para mostrar como a linguagem surgiu e como tem sido analisada ao longo da história. Veremos que o modo de conceber a linguagem e a gramática está associado aos fundamentos históricos e filosóficos de cada período da civilização ocidental (não abordaremos os estudos de outras tradições, restringindo-nos à cultura do Ocidente). A nossa análise histórica vai até o século XIX. A Linguística Moderna será estudada nas demais unidades, que tratam do segundo tema acima destacado. Na Unidade B focalizaremos a Linguística como estudo científico da língua(gem). Na Unidade C trataremos de diferentes concepções de gramática e de norma, de variedades linguísticas e da noção de “erro” e suas implicações sociais. Na Unidade D trabalharemos com princípios e métodos de descrição linguística, aplicando-os aos diferentes níveis gramaticais. Em cada unidade apresentamos uma exposição dos conteúdos, levantamos pontos para reflexão e discussão, e sugerimos leituras complementares. Em relação ao segundo tema (Unidades B, C e D), a palavra-chave é descrição gramatical. Para dar conta dessa proposta, vamos buscar conceitos e métodos na Linguística Moderna. Munidos desse instrumental teóricometodológico e, sobretudo, acionando a nossa intuição de falantes nativos do português, vamos examinar dados linguísticos e confrontá-los com definições gramaticais. Com tal procedimento de análise, podemos avaliar o grau de adequação das definições aos dados. Essa tarefa requer certas habilidades que caracterizam o perfil do pesquisador: capacidade de reflexão, de discernimento e de análise criteriosa, aliada a um espírito crítico. Você vai perceber que, ao longo das Unidades, apresentamos a você diversas situações-problema, como desafios que vão colocar à prova essas habilidades que acabamos de mencionar. Convidamos você a assumir o papel de investigador linguístico e nos acompanhar nessa viagem exploratória pelos domínios da linguagem... Desejamos que você se saia muito bem nesse papel! Edair Görski Heronides Moura Unidade A Uma breve história da linguagem e da noção de gramática Objetivos desta Unidade: ӲӲ Mostrar que a linguagem humana tem sido um tópico de interesse desde a Antiguidade Clássica; ӲӲ Associar o modo de conceber a linguagem e a gramática aos fundamentos históricos e filosóficos de cada período da civilização ocidental; ӲӲ Traçar um panorama amplo dos estudos linguísticos ao longo da história, destacando as principais teorias e os autores fundamentais. No capítulo 1 (A pré-história da linguagem), vamos ver que a linguagem é fruto de uma evolução de dezenas de milhares de anos, e que deve ter surgido com os ancestrais de nossa espécie. O desenvolvimento da linguagem está associado à realização de atividades sociais complexas. Veremos também que a linguagem humana moderna já devia estar plenamente desenvolvida há pelo menos 35.000 anos. No capítulo 2 (A linguagem como expressão do pensamento: o período grecolatino), veremos como houve, na época clássica da Grécia e de Roma, um enorme interesse pela linguagem e pela gramática. Estudaremos em especial duas correntes filosóficas desse período: a platônica e a estoica. No capítulo 3 (Língua universal e línguas particulares: da Idade Média ao século XVIII), veremos que ocorreu, na Europa, uma explosão de gramáticas de diferentes idiomas, depois do predomínio do grego e do latim. Estudaremos como a existência dessa multiplicidade de idiomas afetou as concepções de língua e gramática desse período. No capítulo 4 (As línguas como produtos da história: a época do Romantismo), vamos estudar alguns dos fundamentos filosóficos do Romantismo, que moldaram a concepção de gramática e de língua nesse período. Veremos que as línguas passam a serem vistas como produtos das circunstâncias históricas, e são associadas aos povos e às nações que as utilizam. No capítulo 5 (A busca da origem: do Romantismo ao Método Comparativo), vamos estudar como a busca da origem da linguagem e das circunstâncias históricas do desenvolvimento das diferentes línguas levou à criação do Método Comparativo, que visava comparar diferentes idiomas, a , a fim de estabelecer, de forma científica, relações de parentesco entre eles. A pré-história da linguagem 1 Capítulo A pré-história da linguagem A linguagem humana tem uma história muito longa. Um instrumento de comunicação tão complexo e eficaz não pode ter surgido de um momento para outro. Deve ter surgido e se desenvolvido aos poucos, durante centenas de milhares de anos. Provavelmente, evoluiu a partir de gestos e palavras isoladas. As frases e a sintaxe organizada surgiram muito tempo depois. A origem da linguagem humana deve ter ocorrido com o desenvolvimento cognitivo dos ancestrais do homem moderno, o Homo Sapiens, espécie à qual nós todos pertencemos. O surgimento das primeiras palavras e de estruturas linguísticas elementares, que formam o que alguns linguistas chamam de protolinguagem (cf. DEVLIN, 2006), está certamente associado a atividades sociais complexas, realizadas por grupos de hominídeos. E isso ocorreu muito tempo atrás. Por exemplo, o Homo Erectus, há quase um milhão de anos, já se deslocara da África, em direção à Ásia, numa expedição complexa e arriscada. Isso mostra que essa espécie de hominídeos era capaz de planejamento de atividades em conjunto, que exige processos mentais complexos, e como tal algum tipo de linguagem (cf. FISCHER, 2009, p. 49). No entanto, a linguagem usada pelo Homo Erectus não devia ser igual à nossa; essa espécie não conseguia controlar a respiração de maneira tão fina como nós fazemos, o que nos permite articulações vocais muito ricas e variadas (pense na enormidade de sons da fala e de variações de tom de que somos capazes; tudo isso depende do controle da respiração). Há também o caso interessante dos Neandertais (Homo neanderthalensis), que chegaram a conviver com os humanos modernos na Europa, e que só desapareceram há cerca de 30.000 anos. Segundo os especialistas, os neandertais muito provavelmente dispunham de algum tipo de linguagem verbal articulada. Eles fabricavam ferramentas, enterravam os mortos, usavam adornos corporais... Eles tinham um aparato articulatório (laringe, língua, controle da respiração) adaptado a uma linguagem vocal parecida com a nossa. Enfim, ao contrário da imagem tradicional, os neandertais não eram tão broncos, sendo na verdade parecidos conosco. Eram como primos um pouco diferentes. 11 01 Estudos Gramaticais É possível mesmo imaginar que os neandertais tenham convivido de forma intensa com os humanos, com as duas espécies interagindo numa espécie de bilinguismo (cf. FISCHER, 2009, p. 66). Pesquisas recentes mostram que provavelmente houve reprodução entre as espécies. Imagine só, um humano seduzindo uma Neandertal... Que linguagem ele usou? O que isso tudo mostra é que a linguagem humana tem uma origem muito antiga, e que uma linguagem articulada foi surgindo lentamente nos diferentes ramos de hominídeos (erectus, neanderthalensis e sapiens). Figura 1 – Do Australopithecus ao Homo sapiens sapiens. Sabemos, porém, que essa linguagem inicial era elementar, com palavras isoladas e sintaxe simplificada. A linguagem efetivamente moderna só surgiu muito depois, com o Homo Sapiens moderno (cf. PINKER, 2004, p. 454). Como essa espécie tem mais de 150.000 anos, é razoável supor que a linguagem moderna e altamente evoluída de que dispomos surgiu nesse lapso de tempo. O fato é que, há cerca de 30.000 anos, o Homo Sapiens desfrutou de uma explosão cultural que só é imaginável 12 A pré-história da linguagem com uma linguagem já evoluída. A maravilhosa arte rupestre, os artefatos, o simbolismo da cultura do Homem de Cro Magnon sugerem que essa população (os mais antigos Homo Sapiens modernos encontrados na Europa) já era muito parecida conosco, e usava uma língua que era o antepassado das línguas que hoje existem no globo. Durante essa explosão cultural, o Homo Sapiens moderno criou as bases de nossa cultura, com a invenção dos símbolos, da arte e do pensamento abstrato. Tudo isso só foi possível com uma linguagem complexa que servisse como meio de cooperação social e de articulação do pensamento. Estava criado o pensar “desconectado”, que não depende de estímulos exteriores, e que está na base da linguagem, do sentido do tempo, da capacidade de formular e seguir planos complexos e da simbolização (cf. DEVLIN, 2003, p. 211). Mas podemos afirmar que as línguas modernas derivam diretamente dessa linguagem falada há cerca de 30.000 anos? Infelizmente, não é possível retraçar o percurso da transformação e ramificação das diferentes línguas hoje existentes, a partir de uma data tão distante no tempo. As protolínguas, hoje extintas, das famílias linguísticas modernas existiram no máximo há 10.000 anos. Por exemplo, o português veio do latim, que por sua vez deriva da protolíngua indo-europeia. A protolíngua indo-europeia, que os linguistas conseguiram reconstruir sem nunca ter visto um texto escrito nela, por sua vez deriva de uma língua ainda mais antiga, que já se perdeu na bruma do tempo. Portanto, as descrições das milhares de línguas modernas, pelos métodos atuais de pesquisa, podem contar a história da evolução das línguas até um certo Capítulo A famosa caverna de Lascaux, na França, reúne uma amostra significativa de pinturas rupestres. Você pode obter mais informações e fazer uma visita virtual à caverna acessando: <http://www. lascaux.culture.fr/#/fr/00. xml>. Protolínguas Em síntese, as línguasmãe de línguas aparentadas. Trask (2004, p. 242, grifos do autor) define protolíngua como “O antepassado hipotético de uma família de línguas”. ponto do passado. Não é possível, portanto, reencontrar a “língua original” que deu origem a todas as línguas existentes; mas sabemos, no entanto, que todas as línguas faladas hoje derivam do tipo de linguagem moderna desenvolvida ao longo de centenas de milhares de anos, e que já chegara ao auge há cerca de 30.000 anos. – Pesquise sobre a chamada “explosão cultural” da época de Cro Magnon, e por que a linguagem deve ter sido um elemento vital. 13 01 Estudos Gramaticais – Discuta o assunto com seus colegas. Resumindo o tópico: vimos que a linguagem humana é fruto de uma evolução de centenas de milhares de anos, e que ela deve ter surgido com os ancestrais de nossa espécie. O desenvolvimento da linguagem está associado à realização de atividades sociais complexas, que caracterizam diferentes hominídeos, e em especial a nossa espécie (Homo Sapiens). Inicialmente, houve uma protolinguagem, com sintaxe simplificada. No entanto, vimos também que a linguagem humana moderna já devia estar plenamente desenvolvida, em toda sua complexidade, há pelo menos 30.000 anos 14 A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino 2 Capítulo A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino Os gregos, e depois os romanos, dedicaram muito esforço para compreender como funciona a nossa linguagem. Foram os primeiros, na civilização ocidental, a especular, de maneira sistemática, sobre a natureza das palavras e da gramática. Há duas linhas de pensamento importantes sobre a linguagem na Antiguidade, que iremos abordar aqui: os platônicos e os estoicos. Apesar dos enfoques diferentes dessas duas escolas, ambas visavam compreender a linguagem como uma ferramenta que permite entender a realidade na qual vivemos (cf. WEEDWOOD, 2002). A linguagem era percebida como expressão do pensamento. Platão propôs a divisão da sentença gramatical em dois elementos: ónoma (“nome”) e rhema (“verbo”), o que corresponde à divisão, que fazemos até hoje, entre sujeito e predicado. Aristóteles e os estoicos refinaram posteriormente o conceito de sentença, que os gregos chamavam de logos Platão(c. 428-347 a.C.) e sua escola de pensamento exerceram um imenso fascínio sobre toda a cultura ocidental Aquele que é considerado o texto fundador dos estudos sobre a linguagem é da autoria de Platão: o Crátilo (citaremos aqui a edição brasileira de 2004). Figura 2- Academia de Platão - Mosaico da Vila de Siminius Stephanys em Pompeia (século I). 15 02 Estudos Gramaticais O Crátilo é um dos diálogos platônicos. Foi escrito por Platão (nascido em Atenas, entre 428/427 a.C., e falecido também em Atenas, entre 348/347 a.C.) e apresenta como personagem principal o filósofo Sócrates, que havia sido professor de Platão. Os diálogos platônicos são uma forma interessante de fazer filosofia. Os temas são discutidos informalmente por Sócrates e seus amigos e discípulos. No caso do diálogo Crátilo, o tema é a natureza social ou natural da linguagem humana. Hoje em dia, é uma experiência surpreendente, como se entrássemos num túnel do tempo e caíssemos em plena praça pública da Atenas antiga; sentimos plenamente que as indagações refletem o contexto da Grécia Clássica. - Façam a seguinte experiência: leiam o diálogo em voz alta, com colegas e/ou alunos, cada um representando um dos personagens do debate, ou seja, Crátilo, Hermógenes e Sócrates. Vocês vão sentir como esse debate é vivo e natural (embora Sócrates fale demais e os outros muito pouco!). - Sócrates tinha fascínio pela etimologia, mas a maior parte das etimologias propostas por ele estava errada. Procure exemplos atuais (a internet está cheia deles) das chamadas etimologias populares, que propõem origens para as palavras, sem base científica. Depois consulte dicionários etimológicos, para pesquisar as origens verdadeiras. Ex. de etimologia popular: forró viria do inglês for all. As ideias de Sócrates podem às vezes parecer estranhas para um leitor moderno. Na realidade, só parecem estranhas quando comparadas com o que sabemos hoje sobre a linguagem; naquele contexto, faziam todo o sentido. O debate principal do diálogo é a oposição entre naturalismo e convencionalismo no uso das palavras. Conforme observa Weedwood (2002, p. 25), “[...] os gregos se perguntavam se a conexão entre as palavras e aquilo que denotavam provinha da natureza, physei, ou era imposta pela convenção, thesei”. Ou seja, a questão de fundo era se a linguagem fazia parte da natureza ou da cultura. A palavra é uma junção de som e sentido. Os naturalistas achavam que deve existir uma relação entre a forma da palavra e o sentido que ela expressa. Onomatopeias são assim: au-au designa o som que um cachorro faz e tenta-se reproduzir esse som na própria palavra. Onomatopeias são representações naturais dos significados que as palavras expressam. A teoria dos naturalistas é que todas as palavras devem ter 16 A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino Capítulo essa relação natural entre som e sentido. Os convencionalistas, por seu turno, defendem que o som de uma palavra nada tem a ver com o sentido que ela designa; as onomatopeias são apenas exceções a esse princípio. Note-se que o convencionalismo, conhecido modernamente como o princípio da arbitrariedade do signo é hoje aceito como um princípio básico da linguística, e é essa uma das razões que nos levam a estranhar os argumentos defendidos no Crátilo. Sócrates defende o naturalismo, assim como Crátilo; Hermógenes, por sua vez, defende o convencionalismo. É verdade que, no final do diálogo, Sócrates relativiza sua posição e ataca o naturalismo radical, Você vai saber mais sobre a arbitrariedade do signo no capítulo 7 da Unidade B. admitindo alguma forma de convenção no uso linguístico, pois de outra forma a palavra, de tão semelhante à coisa que designa, poderia ser um substituto da coisa em si, o que para ele é inadmissível. Alguns comentadores desse diálogo platônico chegam a dizer que ao cabo Sócrates se mostra convencionalista, mas parece mais razoável afirmar que ele é fundamentalmente um naturalista (refletindo nesse caso a posição de Platão) (cf. SEUREN, 1998; SEDLEY, 2006). Aristóteles, ao contrário de Platão, era um convencionalista. Para ele, a ligação entre som e sentido de uma palavra era arbitrária. O naturalismo de Platão e Sócrates, por absurdo que possa parecer aos olhos modernos – exemplo, quando ele diz que corpo (soma, em grego) vem de sepultura (sema, em grego) – está ligado a uma série de crenças e ideias do platonismo. Entre elas, podemos citar: 1) As coisas e seres, segundo Platão, têm uma essência permanente. Nada mais natural que cada palavra, visando representar as coisas, tente caracterizar pelo menos uma das propriedades da coisa ou ser por ela representada. Portanto, a ligação mais natural não é exatamente entre som e sentido, mas entre o sentido da palavra e a essência atribuída à coisa que a palavra designa. O som apenas ajuda a chegar a esse sentido que leva à essência. No exemplo citado, se corpo (soma) está ligado à sepultura (sema), é porque o corpo é a sepultura da alma. O corpo é essencialmente mortal e encerra nele a alma. Note-se que essa explicação é quase poética, produto de afinidades de sentidos e sons; mas o que importa para Sócrates é investigar o que um conceito, como “corpo” ou “justiça”, realmente significa. O som (soma- 17 02 Estudos Gramaticais sema) pode ser uma pista nessa investigação das essências. 2) A verdade sobre as essências das coisas é absoluta e não varia de acordo com a crença de cada pessoa. O relativismo era defendido pelos sofistas, que Sócrates e Platão combatiam. Uma frase famosa de um sofista, Protágoras, é citada no Crátilo (p. 148): “O homem é a medida de todas as coisas, e por isso, conforme me parecerem as coisas, tais serão elas, realmente, para mim, como serão para ti conforme te parecerem”. Sócrates se insurgia contra esse tipo de afirmação e argumentava que as palavras devem representar necessariamente a essência das coisas. A relação som–sentido não pode ser arbitrária ou convencional, pois dessa forma cada pessoa teria uma apreensão diferente da essência das coisas, o que equivaleria a recair no relativismo sofístico. Como diz Sócrates (p. 149): “[...] (as coisas) não estão em relação conosco, nem na nossa dependência, nem podem ser deslocadas em todos os sentidos por nossa fantasia, porém, existem por si mesmas, de acordo com sua essência natural”. E nomear as coisas é designá-las de acordo com sua essência: “convirá nomear as coisas pelo modo natural de nomeá-las e serem nomeadas, e pelo meio adequado, não como imaginamos que devemos fazê-lo” (p. 151). O diálogo do Crátilo aborda a questão da identidade, que havia sido colocada pela filosofia de Heráclito. De acordo com este filósofo, o mundo está em constante mudança. Nada permanece o mesmo no fluxo do tempo (é desse filósofo a conhecida afirmação de que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio). Mas se é assim, como podemos dar nome a uma coisa? Se uma coisa muda sempre, como podemos dar nome a ela? Aparentemente, o uso da linguagem pressupõe a identidade das coisas ao longo do tempo. É nesse contexto, e em oposição a Heráclito, que Sócrates busca uma essência imutável das coisas, que as palavras se encarregariam de designar. 3) Segundo a opinião de Sócrates e Platão, a verdade e a essência das coisas devem ser estabelecidas pelas pessoas mais justas 18 A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino Capítulo e mais razoáveis de uma comunidade. Essa é a ideia que está por trás da República ideal de Platão, que seria governada por um conselho de sábios, com todos os poderes para legislar (na prática, uma ditadura de sábios). Para esses filósofos, os sábios sabem com justeza o que as palavras devem significar, a fim de representar da melhor maneira possível as coisas que designam (por exemplo, a relação entre corpo e sepultura (soma e sema, em grego, já citada acima). Assim, os sábios devem buscar e definir qual a relação natural entre som, sentido e coisa representada. A convenção seria um artifício, justificando qualquer relação arbitrária. Platão sustenta que os sábios definem o sentido original das palavras. Esse é um dos pontos que causam mais estranheza na leitura do Crátilo. Sócrates reafirma várias vezes que há legisladores sábios que cunharam, em algum momento da história, a relação som–sentido das palavras de uma língua. Essa é a explicação platônica para a criação da linguagem: os homens sábios se reuniram e definiram a forma e o significado das palavras. Por mais estranho que nos pareça hoje em dia, essa posição era moderna e ousada no tempo dos gregos, opondose, implicitamente, à ideia religiosa da criação da linguagem, segundo a qual a linguagem era um dom oferecido ao homem por Deus. No mundo grego da época clássica, a linguagem não era mais vista como assunto dos deuses, mas como negócio dos homens. Quer dizer, não de todos os homens, mas em especial dos sábios (todos do sexo masculino, pois Sócrates não tinha uma opinião muito boa sobre as mulheres, como se pode perceber no Crátilo). Agora vamos falar um pouco dos estoicos (sec. III-II a.C.). Eles deram contribuições muito importantes ao estudo da linguagem. Foram eles que desenvolveram a noção de sentença como unidade significativa, o conceito de classes gramaticais e também de signo linguístico. Sextus Empiricus (Séc. II de nossa era) apresenta a seguinte definição de signo: “O significante, o significado e o referente são todos os três conectados. O significante é o som vocal, como no nome Alcebíades. O significado é o conteúdo do pensamento expresso pelo som Esses filósofos passaram a ser chamados de estoicos quando Zenão de Cítio e outros começaram a discutir filosofia debaixo do Stoa Poikile, “o pórtico pintado”, uma colunata que ficava na Ágora, a grande praça de Atenas. Saussure, no Curso de Linguística Geral (1916), definiu o signo como a unidade linguística que une um significado a um significante. Para ele, os dois elementos do signo são de natureza mental e o referente seria exterior ao signo. Esse conceito será retomado na seção 7. 19 02 Estudos Gramaticais vocal, tal como nós o entendemos quando ele se apresenta ao nosso espírito, ao passo que aqueles que não falam nossa língua não o compreendem até mesmo se escutam o som. Quanto ao referente, é o objeto correspondente exterior, o próprio Alcebíades. Desses três elementos, dois são físicos, o som e o referente, mas o terceiro é não físico, ou seja, o conteúdo do pensamento” (Sextus Empiricus apud Seuren, 1998, p. 14. Tradução de Heronides Moura, com pequenos ajustes). Essa definição de Sextus Empiricus soa incrivelmente atual. Charles Kay Ogden (18891957) era filósofo, também inglês. Ivor Richards (18931979) foi um importante retórico e crítico literário inglês. Ambos propuseram o triângulo semiótico, formado pelo símbolo, o pensamento e o referente. Para os estoicos, a sentença era a expressão de uma representação mental de um estado de coisas no mundo (SEUREN, 1998, p. 10). Note que nessa definição há três elementos vitais da linguagem: a sentença é um signo de um pensamento. Esse pensamento corresponde ao sentido do que é dito; e finalmente, o estado de coisas é o referente da sentença. Podemos assim dizer que os estoicos foram os primeiros a perceber os três elementos (signo, sentido e referente) que dão forma ao processo de significação linguística. Esses três elementos correspondem ao famoso triângulo semiótico proposto por Ogden e Richards, em 1923! A sentença era entendida pelos estoicos como um enunciado significativo, que eles chamavam de logos (cf. WEEDWOOD, 2002, p. 28). Eles faziam uma distinção entre forma e logos: uma palavra isolada tem uma forma (por exemplo, a palavra “dia”), mas não expressa um logos, pois não compõe um enunciado completo. “Já é dia” seria, por sua vez, um logos. Assim, os estoicos perceberam que há, na linguagem, formas; a palavra “dia” tem forma, é um signo que respeita as regras do português, mas uma palavra como “cmtpll” não é uma forma do português. Note que eles perceberam, também, que o significado (o logos) resulta de uma combinação de formas. Os estoicos ajudaram igualmente a formular a noção de classe de palavras, também chamadas de “partes do discurso”. Se o logos expressa um pensamento e é composto de formas, então cada uma dessas formas deve apresentar uma contribuição específica para a formação do pensamento, por meio da sentença gramatical. Foram sendo definidas assim as classes de palavras, como substantivos, adjetivos, verbos, conjunções, 20 A linguagem como expressão do pensamento: o período greco-latino Capítulo etc. cada uma cumprindo uma função na expressão do pensamento. Essas classes de palavras foram definidas em termos de seu significado, embora aspectos formais também fossem considerados, em menor grau. Essas definições das classes de palavras, oriundas da tradição greco-latina, perduram até hoje nas gramáticas escolares que você estudou na escola! Vejam a força da especulação desses filósofos e gramáticos da Antiguidade! Você vai estudar mais sobre aspectos normativos das gramáticas na Unidade C As gramáticas da época clássica tinham muitas vezes um interesse pedagógico e normativo, com o objetivo de ilustrar a elite, por meio do ensino das boas construções, extraídas de obras literárias. Mas a preocupação com a estrutura da linguagem também estava presente. Dionísio, o Trácio, por exemplo, em sua obra intitulada Arte da Gramática, estuda as classes de palavras com base na flexão, em especial a flexão de caso, adotando assim uma abordagem formal da estrutura linguística (cf. Neves, 2001, p. 39). Resumindo o tópico: podemos dizer que para os gregos e romanos da época clássica o estudo da linguagem e da gramática era um meio de entender o pensamento e a realidade. Eles queriam também definir se a linguagem fazia parte da natureza ou da cultura. Sócrates era um naturalista, rejeitando a ideia de que a linguagem fosse uma convenção e como tal fizesse parte da cultura. As teorias do período clássico deram origem a muitas especulações filosóficas, mas também contribuíram para a formação de conceitos fundamentais dos estudos gramaticais, como os conceitos de sentença, de classes gramaticais e de formas linguísticas. Os casos gramaticais são desinências (afixos) flexionais que servem para marcar a função sintática da palavra à qual se juntam. Como exemplo, podemos citar os casos nominativo (que marca o sujeito da sentença) e acusativo (que marca o objeto direto). O grego e o latim apresentavam casos. O português não contém marcação de casos gramaticais. 21 02 Estudos Gramaticais 22 Língua universal e línguas particulares: da Idade Média ao século XVIII 3 Capítulo Língua universal e línguas particulares: da Idade Média ao século XVIII Depois da dissolução do Império Romano, a Europa passou a viver uma situação de intenso plurilinguismo. Os vernáculos começaram a surgir e a se desenvolver, como ocorreu com o português. Por volta do ano mil da era cristã, já havia um leque de línguas nacionais disputando espaço com o latim, que tinha se tornado a língua internacional da cultura no Ocidente, desde a época do Império Romano. O grego já perdera sua força. Havia uma verdadeira situação de Torre de Babel por volta do ano mil, com línguas germânicas convivendo com línguas neolatinas (como o português e o italiano, entre muitas outras), e línguas isoladas, como o basco. Como afirma Umberto Eco (2001, p. 38), “[...] a Europa apresenta-se como uma Babel de línguas novas, e só em seguida como um mosaico de nações”. Vernáculo Línguas nativas de uma população. Trask (2004, p. 304, grifos do autor) define vernáculo como “A fala corrente, do dia-a-dia, numa determinada comunidade”. Este termo é empregado “em contraste com a língua padrão”. Os filósofos e gramáticos tinham agora de lidar com essa enorme diversidade de línguas, e não podiam mais se limitar à descrição dos idiomas de maior prestígio, como o latim e o grego. As respostas que os estudiosos apresentaram a essa nova situação são muito variadas. Uma primeira alternativa foi deixar de lado a especulação sobre a natureza da linguagem humana universal e se dedicar à descrição de línguas particulares . Com isso, elaboraram-se gramáticas descritivas de diferentes vernáculos. Um exemplo é a gramática do provençal, que era uma língua culturalmente importante, falada no sul da França, e que exercia uma grande influência em outras regiões, como a Itália e a Catalunha. A razão dessa disseminação cultural do provençal é que se tratava da língua dos poetas trovadores, que gozavam de muito prestígio na Idade Média. Uma obra que une gramática e poética provençal é o tratado denominado Leys d´Amors, publicado em 1336. Essa oposição língua universal versus língua particular voltará a ser estudada na seção 9.1 da Unidade C. No século XVI, surgiram muitas gramáticas do português. A primeira delas foi a de Fernão de Oliveira (Grammatica da linguagem portuguesa), publicada em 1536. O preconceito contra os vernáculos era muito forte no fim da Idade 23 03 Estudos Gramaticais Muitas vezes, a elite de um país usava uma língua de maior prestígio para se comunicar em momentos mais formais. Por exemplo, na região que hoje é a Alemanha, a elite falava francês no século XVIII, e o alemão era considerado a língua das classes baixas. Isso só mudou com o Romantismo, no século XIX, quando o alemão passou a ser valorizado. Média e ao longo do Renascimento. As línguas clássicas (grego e latim) eram consideradas as únicas verdadeiras; as outras, como italiano, catalão, provençal, inglês, português, alemão, etc., eram vistas como dialetos ou como línguas precárias e sem gramática. A descrição desses idiomas foi, contudo, sendo feita aos poucos, por meio de várias gramáticas descritivas. Leon Battista Alberti, por exemplo, escreveu, em 1450, uma gramática do italiano “[...] com o propósito manifesto de mostrar que o italiano também tinha regras” (WEEDWOOD, 2002, p. 72). Outra vertente era a redação de gramáticas latinas com funções pedagógicas. Como o latim clássico deixara há muito de ser falado nas ruas, os intelectuais lutaram para a sua preservação como língua de cultura, a ser usada nas universidades e nas igrejas. Um exemplo disso, já em pleno Renascimento, é a gramática latina escrita pelo inglês Thomas Linacre (1460-1524). Essa gramática funde características descritivas, com elementos especulativos sobre a natureza da linguagem humana em geral. Mas, à parte essa descrição de línguas particulares, havia outra resposta à Torre de Babel europeia. Começaram a aparecer propostas de representação do que seria uma língua perfeita, que tivesse validade universal. Umberto Eco (2001) argumenta que a Europa nasceu sob o signo da dissolução do latim como língua universal; a confusão linguística estava instalada, e alguns pensadores saíram em busca de uma língua perfeita que pusesse ordem no caos. Na verdade, a ideia de que existia uma língua universal já vinha desde a Idade Média, com os modistas (não eram estilistas de moda; eles falavam dos modos de significação e ficaram conhecidos como os modistas...). No tratado De modis, Boécio de Dácia (séc. XIII) afirma que, de cada idioma, “é possível deduzir as regras de uma gramática universal” (apud ECO, 2001, p. 66). Essa gramática universal seria a língua perfeita, que nos daria acesso à verdade e à essência das coisas. Mas essa língua perfeita havia se perdido no tempo, e o que restava era a Babel das línguas reais. O grande poeta italiano Dante, que escreveu o poema a Divina Comédia no vernáculo de sua terra natal, percebia os vernáculos como línguas imperfeitas, pois a língua ideal havia se perdido. 24 Língua universal e línguas particulares: da Idade Média ao século XVIII Capítulo Na verdade, apesar dessa busca de uma língua internacional artificial (busca que chega até nossos dias com o esperanto), o que temos mesmo são as diferentes línguas reais, com as possíveis imperfeições e dificuldades que apresentem. A língua perfeita (seja o que isso for) é apenas uma utopia. Além dessas duas alternativas que já examinamos (descrição de línguas particulares e busca de uma língua perfeita), uma outra resposta à multiplicidade de idiomas foi o racionalismo. A ideia era que as diferentes línguas reais poderiam ser descritas a partir de princípios comuns a todas elas. Não se trata de buscar a língua ideal, mas sim de identificar as propriedades das línguas que podem ser inferidas a partir de princípios descritivos bem definidos. Um dos maiores exemplos de gramática racionalista é a Gramática de Port-Royal, escrita por Arnauld e Lancelot e publicada em 1670. Os gramáticos de Port-Royal tentaram “[...] demonstrar que a estrutura da língua é um produto da razão e que as diferentes línguas são apenas variedades de um sistema lógico e racional mais geral” (LYONS, 1979, p. 17). Port-Royal era um monastério jansenista situado em Paris, que abrigava religiosos e eruditos. Os autores argumentam que há, na mente humana, três operações básicas: conceber, julgar e raciocinar. Essas operações estão na base da constituição da gramática de qualquer língua. Weedwood (2002, p. 99) observa que [...] as operações mentais foram transformadas na base das distinções gramaticais: as três operações primárias – formar um conceito como “redondo”, fazer um julgamento como “a terra é redonda”, e raciocinar – forneciam um arcabouço para distinguir as várias partes do discurso e para o estudo da sintaxe. Como essas operações e as suas consequências linguísticas são universais, elas podem ser exemplificadas por meio de qualquer língua, e o francês e o latim oferecem a maioria dos exemplos. Dessa maneira, a célebre análise da oração “Deus invisível criou o mundo visível” mostra simplesmente como três proposições mentais distintas – que Deus é invisível, que Ele criou o mundo, e que o mundo é visível – estão incluídas nesta única proposição verbal. A ideia desses gramáticos é que a estrutura gramatical reflete uma estrutura lógica subjacente. Essa lógica corresponde à articulação dos pensamentos. No exemplo citado, se Deus é invisível e o mundo é visível, e se Deus criou o mundo, então o “Deus invisível criou o mundo 25 03 Estudos Gramaticais visível”. A percepção da linguagem humana como fruto da razão exerceu uma forte influência nos estudos linguísticos, que se fazem sentir até hoje em dia. Autores como Leibniz, no século XVIII, Frege, no século XIX, e Chomsky, no século XX, entre muitos outros, deram continuidade a essa tradição racionalista, criando modelos lógicos e/ou gramaticais sofisticados que tentam reproduzir o sistema de regras que produzem as sentenças gramaticais das línguas humanas. Sugerimos que você pesquise sobre como línguas que são hoje importantes foram se afirmando como línguas nacionais a partir da Idade Média (por exemplo, o português, o francês, o italiano, o inglês, etc.). Resumindo este tópico: no século XI da era cristã, a Europa havia se convertido num grande caldeirão de línguas, com enorme variedade de idiomas, falados por diferentes populações. Isso influenciou o tipo de teoria gramatical que se elaborou desde essa época, até o século XVIII. Desde o final da Idade Média, e em especial no Renascimento, houve uma explosão de gramáticas de línguas nacionais da Europa. A primeira gramática do português, por exemplo, é de 1536. Por outro lado, com o fim do domínio do latim, alguns autores especularam sobre a existência de uma língua perfeita, que pudesse dar ordem ao caos linguístico europeu. Finalmente, a partir do Renascimento, começaram a surgir gramáticas com fundamentos racionalistas, que tentavam buscar os princípios universais que estão por trás de todas as línguas humanas. Um bom exemplo desse tipo de estudo é a Gramática de Port-Royal. 26 As línguas como produtos da história: a época do Romantismo 4 Capítulo As línguas como produtos da história: a época do Romantismo A partir da segunda metade do século XVIII, e em especial na primeira metade do século XIX, houve um grande movimento de ideias, denominado de Romantismo, que significou uma reação ao racionalismo. O racionalismo sustentava que a linguagem era fruto de princípios racionais universais. Como tal, o racionalismo se opunha ao empirismo e ao historicismo. Para os empiristas, a aquisição do saber se dá através dos sentidos, que organizam e esquematizam os dados de nossa experiência. Para os historicistas, por sua vez, os sistemas simbólicos humanos, como língua e cultura, mudam profundamente ao longo do tempo, não refletindo apenas princípios racionais universais e imutáveis. Os autores românticos sustentavam que as línguas humanas são o produto das circunstâncias históricas de uma civilização, e como tal sofrem enorme variação em função da historicidade. Além disso, esses autores pensavam que a língua não exprime apenas princípios racionais, mas está ligada aos sentidos e à imaginação dos seres humanos. O movimento romântico serviu também para fortalecer a ideia de cultura nacional, na medida em que os vernáculos eram entendidos como expressão da alma de um povo. Com isso, houve a valorização, em especial a partir do século XIX, de línguas como o alemão e o italiano, entre outras. A Torre de Babel não era vista mais como algo necessariamente negativo, pois a expressão cultural só podia dar-se por meio da diversidade das línguas nacionais. Figura 3 - A Torre de Babel, de Peter Brueghel, o velho (1563). Vamos citar aqui a obra de três autores importantes que ajudaram a constituir a ideologia romântica: Vico, Rousseau e Humboldt. 27 04 Estudos Gramaticais Para o filósofo italiano Vico (1668-1744), a visão racionalista e cartesiana da ciência não se aplicava ao saber sobre o homem. Línguas, símbolos e culturas devem ser descritas não a partir de princípios gerais abstratos, mas a partir de uma descrição detalhada de como essas realidades simbólicas foram construídas ao longo do tempo. A realidade humana, psicológica ou social, não se enquadrava, como objeto de saber, na visão da ciência cartesiana. Vico defendia que a linguagem surgiu e foi evoluindo conforme as necessidades dos seres humanos, e associa a cada época da sociedade certa forma de linguagem. Ele descreve o ciclo da história com o que ele chama de três idades: a primeira, a idade dos deuses, em que a linguagem do homem era poética, servindo para descrever os fenômenos naturais e as ações cotidianas; a segunda, a idade dos heróis, em que a fantasia ainda prevalecia sobre a reflexão e a imaginação se confundia com a realidade (por exemplo, a linguagem de Ilíada e do Antigo Testamento); e a terceira, a idade dos homens, corresponde à cultura europeia da época de Vico, e está ancorada na literatura filosófico-científica de base conceitual e não mais imaginativa. Para Vico, imaginação e reflexão são os dois lados da atividade simbólica do homem. As estruturas simbólicas são dotadas de um valor específico, e não universal. Esse sentimento da história ajudava a entender a enorme variação das línguas e das culturas, que se manifestou fortemente no século XIX, quando o Romantismo atingiu o seu auge. Serviu também para valorizar a língua e a cultura populares: [...] o gênio popular é o criador da verdadeira poesia, que não seria produto de civilizações altamente desenvolvidas, mas obra do instinto e da imaginação livres, sendo mais espontânea e genuína nos períodos primitivos. Em tais períodos, o instinto, a imaginação e a tradição oral eram mais fortes que a razão e a reflexão, fazendo da poesia a língua natural dos homens. (HERDER, Johann Gottfried; GOETHE, Wolfgang apud FICKER, 1994.). Outro precursor do Romantismo foi o filósofo francês Rousseau (1712-1778). Em seu Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau argumenta que as paixões, e não as necessidades humanas, foram o motor do desenvolvimento de nossa faculdade de linguagem. Ele associa o desen- 28 As línguas como produtos da história: a época do Romantismo Capítulo volvimento da linguagem verbal a uma maior expressão das emoções humanas no meio social. Afirma, ainda, que os homens primitivos satisfaziam plenamente suas necessidades práticas sem o recurso da linguagem, comunicando-se apenas por gestos e sons inarticulados. A linguagem articulada serviu, segundo ele, para tirar o homem primitivo de seu isolamento físico e espiritual. O efeito da linguagem sobre os homens foi duplo: em primeiro lugar, ofereceu a eles uma percepção melhor da realidade dos outros. A linguagem deu-lhes a imaginação e “[...] quem não imagina não sente mais do que a si mesmo: encontra-se só no meio do gênero humano” (ROUSSEAU, 1987, p. 175). Em segundo lugar, a linguagem deu ao ser humano a capacidade de conhecer-se a si mesmo, de voltar-se para seu interior, com uma expressão mais desenvolvida de suas emoções. Contrariando o senso comum de que Rousseau pregava um retorno ao mundo primitivo e não civilizado, essas ideias sobre a linguagem mostram que ele não desprezava a importância da civilização; o estado social deu ao homem uma “[...] ampliação dos horizontes intelectuais, enobrecimento dos sentimentos e elevação total da alma” (ARBOUSSEBASTIDE; MACHADO, 1987, p. 14). Para Rousseau, assim como para Vico, as línguas estão sujeitas a uma grande variação ao longo da história, e a estrutura da gramática de uma língua reflete a sociedade e a imaginação de uma dada época. Isso se opõe, por certo, ao racionalismo preconizado pela Gramática de Port-Royal. Outro nome importante associado ao romantismo é o de Humboldt (1767-1835). Ele argumentava que é o ‘destino interno’ de uma nação que determina o tipo de linguagem que essa nação vai criar. Mas não se trata apenas de razão ou conceitos, pois uma língua exprime também emoções, atitudes e imaginação. Enfim, Humboldt, ao contrário dos racionalistas, via a língua como a emanação do espírito integral de um povo. Como outros precursores do romantismo, entre eles Herder e Vico, Humboldt tinha um enorme interesse pela questão da origem da linguagem, e argumentava, juntamente com aqueles autores, que essa 29 04 Estudos Gramaticais A questão da origem da linguagem estava na moda desde a segunda metade do século XVIII. Em 1769, a Academia de Berlin instituiu um prêmio para a melhor dissertação sobre o tema. Quem ganhou foi Herder. 30 origem era poética e imaginativa, e não racional. Origem e finalidade se completavam: a arte era o destino maior da linguagem, pensava Humboldt. Ele também defendia que uma língua era uma atividade (energeia) e não um produto (ergon), o que implica que uma língua envolve um intercâmbio dinâmico entre estrutura, pensamento e cultura. Resumindo este tópico: desde a segunda metade do século XVIII, e durante todo o século XIX, os estudos gramaticais foram influenciados pelas ideias do romantismo. Essa linha de pensamento favoreceu o estudo histórico sobre as línguas e sobre a relação delas com as diferentes etapas de uma civilização. As línguas nacionais passaram a ser valorizadas, e começam a adquirir o prestígio intelectual antes atribuído a apenas algumas línguas internacionais, como o latim e o francês. Fatores psicológicos e culturais passaram a ser considerados importantes no estudo da linguagem. A busca da origem: do Romantismo ao Método Comparativo 5 Capítulo A busca da origem: do Romantismo ao Método Comparativo O Romantismo, com sua obsessão pela origem da linguagem e a valorização das diferenças culturais, terminou criando um ambiente propício para o desenvolvimento do Método Comparativo, que buscava estabelecer famílias de línguas a partir da comparação de palavras e estruturas de diferentes idiomas. Se um grupo de línguas apresentava uma série de palavras semelhantes no som e no sentido, então se podia estabelecer com segurança um parentesco entre elas. As variações de sons entre os radicais dos vocábulos de línguas de uma mesma família não eram casuais, mas definidas por regras fonéticas bem estabelecidas. Dessa forma, foram estabelecidas correlações entre línguas muito distantes geograficamente. Descobriu-se, por exemplo, que línguas tão diferentes quanto o sânscrito (língua clássica e religiosa da Índia), o persa, o armênio, o grego, o latim, o antigo germânico, o romani (língua dos ciganos), entre outras línguas, derivavam de uma língua ancestral comum, o indo-europeu, cuja existência não pode ser atestada diretamente, mas inferida a partir da comparação entre as línguas derivadas dessa língua-mãe mais antiga. Assim, cada família de línguas derivaria de uma mãe específica mais antiga. De uma maneira mais científica e objetiva, satisfazia-se o desejo de recuperar a origem das diferentes línguas, e, por tabela, a cultura que cada uma carrega. A descoberta inicial mais importante e extraordinária foi a do inglês Sir William Jones, que fora indicado juiz da Suprema Corte de Justiça em Calcutá, na Índia. Neste país, na época colônia da Inglaterra, ele se aperfeiçoou nos estudos do sânscrito, a língua sagrada da Índia. Numa famosa palestra, em 1786, ele afirmou o seguinte: O sânscrito, seja qual for sua antiguidade, tem uma estrutura maravilhosa; mais perfeito que o grego, mais copioso que o latim, e mais primorosamente refinado que ambos, embora mantenha com eles tamanha afinidade, tanto nas raízes dos verbos como nas formas da gramática, que é impossível pensar que isso se deu por acidente; a afinidade é de 31 05 Estudos Gramaticais fato tão forte que nenhum filólogo poderia examinar as três línguas sem pensar que elas tenham brotado de alguma fonte comum que, talvez, não mais exista. (JONES apud PINKER, 2004, p. 321). Essa fonte comum seria o indo-europeu, extinto há muito tempo, uma língua-mãe (também chamada de protolíngua) que devia ser falada inicialmente na Ásia, talvez na atual Turquia, cujos falantes migraram, em parte para a Índia, em parte para a Europa. Eis a razão pela qual as línguas se diversificam: as migrações humanas. Quando membros de um agrupamento humano, que inicialmente falam uma mesma língua, deslocam-se para uma região distante, ao longo do tempo, introduzem mudanças inconscientes na sua língua de origem, ao ponto de criarem Também chamado de filologia comparativa ou comparativismo. Um comparatista importante, o francês Ernest Renan, defendeu teorias equivocadas ao comparar línguas. Para ele, as línguas analíticas (como o francês) são mais evoluídas que línguas como o chinês. Ele sustentava também que línguas semíticas (como o hebraico) tinham certas limitações, dificultando, por exemplo, o raciocínio abstrato nessas línguas! línguas bem distintas, como são o grego e o sânscrito. Mas um exame acurado mostra identidades lexicais e estruturais importantes, e o parentesco pode ser estabelecido. O método comparativo representou uma metodologia de trabalho empírico que pôde satisfazer a necessidade de se encontrar a língua original da qual teriam advindo as línguas modernas. Assim, podia-se realizar o sonho que esteve no auge durante o Romantismo: investigar a origem da linguagem, agora em bases concretas, sem depender apenas da intuição e da especulação. Essa ênfase na história favoreceu o estudo de línguas exóticas, como as línguas asiáticas. No entanto, paralelamente, a comparação entre línguas de famílias distantes podia conduzir a novos preconceitos. Humboldt, por exemplo, defendia a superioridade das línguas europeias em relação às línguas da Ásia (cf. SEUREN, 1998). Hoje sabemos, todavia, que não há línguas superiores a outras, e diferenças gramaticais não podem ser interpretadas como diferenças de qualidade da estrutura linguística. O interesse pela história comandou as descobertas do método comparativo. Na verdade, muitos comparatistas acreditavam, no início, que o ariano, a língua-mãe da família indo-europeia, seria a língua original da raça humana, tendo existido há cerca de 6.000 anos. Mas isso logo se mostrou falso, pois existem outras famílias de línguas tão ou mais antigas. Como vimos aqui, hoje se sabe que a origem da linguagem deve ter ocorrido há cerca de 100.000 anos. O mistério da origem da linguagem 32 A busca da origem: do Romantismo ao Método Comparativo Capítulo continua. Pesquise sobre a obra de autores importantes do Método Comparativo e sobre as contribuições que eles deram. Resumindo o tópico: o ambiente romântico, voltado para a história das línguas, favoreceu o desenvolvimento do método comparativo, que visa comparar línguas diferentes, a fim de estabelecer relações de parentesco entre elas. A comparação entre idiomas de diferentes continentes estimula a descrição de línguas pouco estudadas antes, mas muitas vezes os comparatistas continuaram a defender preconceitos sem nenhuma base científica, como o de que as línguas europeias são melhores que as asiáticas. Fechando a Unidade Esperamos que esse passeio no tempo tenha ajudado você a perceber como o estudo da linguagem sempre foi um tópico de muito interesse, e que os fundamentos filósofos e históricos são importantes para se entender como os estudos gramaticais foram se desenvolvendo nas diferentes etapas da civilização ocidental. Paramos a nossa viagem no século XIX, pois a partir daí começa a chamada linguística moderna, cujos fundamentos você vai estudar nas unidades seguintes. 33 05 Estudos Gramaticais 34 Unidade B A linguística como estudo científico da língua(gem) Objetivos desta Unidade: A depender da perspectiva teórica assumida, alguns autores não fazem distinção entre “linguagem” e “língua”. Por isso a opção de representar ambas as noções numa única palavra: língua(gem). ӲӲ Apresentar diferentes concepções de língua(gem); ӲӲ Identificar propriedades caracterizadoras das línguas naturais; ӲӲ Perceber o caráter de cientificidade da Linguística Moderna versus a Gramática Tradicional. Nesta segunda Unidade, apresentamos a você a Linguística como estudo científico da língua(gem). Veremos, inicialmente, diferentes concepções de língua(gem), baseadas ora numa função cognitiva ora numa função social; em seguida, passaremos às principais propriedades que caracterizam as línguas naturais; fechando a Unidade B, traremos à baila a questão da cientificidade nos estudos da língua(gem). Concepções de língua(gem) 6 Capítulo Concepções de língua(gem) Vamos introduzir este capítulo com a seguinte passagem extraída de uma entrevista com o professor Ataliba Castilho, no livro Conversas com lingüistas: virtudes e controvérsias da linguística: – Que é lingüística? – Bom, eu, quando dou aula na graduação, costumo dizer para os alunos: se você quer entender o que é lingüística e o que é seu objeto, você precisa pensar um pouco na fábula dos três cegos apalpando o elefante. Cada um apalpava um pedaço do elefante e definia o elefante por aquele pedaço. Então, o que pegava a perna do elefante dizia “o elefante é assim um cilindro muito duro, rígido, é um animal com formato de cilindro e que é estático, parece que esse animal não se mexe e é um animal que ocupa posição vertical no espaço”. O outro que mexia lá na tromba, naturalmente discordava, não só quanto à disposição no espaço, quanto à rigidez ao tato, tanto quanto à falta de mobilidade. Imagino até que algum desses cegos, tocando em outros lugares, concebeu a idéia de categoria vazia. Então, a língua e a lingüística não são; elas são o que para cada um de nós parecem ser. Figura 4 - Ilustração “Elefante e cegos” (CASTILHO, 2003, p. 55). Esse trecho apresenta de forma bem-humorada o tópico central da Unidade B. É da definição de linguística e de seu objeto que vamos tratar agora, contrapondo, brevemente, a Linguística Moderna à Gramática Tradicional no que diz respeito ao caráter científico de ambas. À pergunta: Que é linguística?, costumamos encontrar a seguinte resposta: A linguística é o estudo científico da língua(gem) humana. Mas essa resposta nos coloca outras indagações: ӲӲ O que é a língua(gem)? ӲӲ O que é um estudo científico? Vamos tratar dessas questões a seguir. 37 06 Estudos Gramaticais As definições de língua(gem) são diversas, variando conforme o ponto de vista adotado pelo autor. Vejamos algumas: (1) Linguagem é a capacidade específica à espécie humana de comunicar por meio de um sistema de signos vocais (ou língua), que coloca em jogo uma técnica corporal complexa e supõe a existência de uma função simbólica e de centros nervosos geneticamente especializados. Esse sistema de signos vocais utilizado por um grupo social (ou comunidade lingüística) determinado constitui uma língua particular (DUBOIS et al., 1973, p. 387). Figura 5 – Ilustração “O cérebro humano” (2) O termo [linguagem] se aplica àquela aptidão humana para associar uma cadeia sonora (voz) produzida pelo chamado aparelho fonador a um conteúdo significativo e utilizar o resultado dessa associação para a interação social uma vez que tal aptidão consiste não apenas em produzir e enviar, mas ainda em receber e reagir à comunicação. Compreendida dessa maneira, a linguagem aparece como o mais difundido e o mais eficaz instrumento natural de comunicação à disposição do homem (BORBA, 1991, p. 9-10, grifos do autor). (3) [A língua] não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotada pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. [...] A língua é de natureza homogênea, e constitui-se num sistema de signos (SAUSSURE, 1971, p. 17, 23). (4) A faculdade de linguagem é uma estrutura cognitiva inata, humana e universal, e faz parte da herança genética de cada membro da espécie humana, do mesmo modo que a visão é parte dessa herança. Essa estrutura, no que tange à linguagem, é o estado mental inicial [chamado de Gramática Universal ou GU]. Passando por estágios sucessivos, esse estado inicial se desenvolve, Figura 6 – Ilustração “Linguagem como ação interindividual” seguindo um processo de maturação que sofre a influência do meio e das experiências pessoais, do mesmo modo como a visão, até atingir um estágio estável (LOBATO, 1986, p. 38). 38 Concepções de língua(gem) Capítulo (5) A linguagem [é vista] como atividade, como forma de ação, ação interindividual finalisticamente orientada; como lugar de interação que possibilita aos membros de uma sociedade a prática dos mais diversos tipos de atos, que vão exigir dos semelhantes reações e/ou comportamentos, levando ao estabelecimento de vínculos e compromissos anteriormente inexistentes (KOCH, 1992, p. 9-10, grifos da autora). Os trechos apresentados anteriormente evidenciam duas diferentes concepções de linguagem/língua: ӲӲ uma centrada na função comunicativa/social, que vê a linguagem/língua como instrumento de comunicação e forma de interação; ӲӲ e outra centrada na função cognitiva/biológica da linguagem. – Leia novamente as cinco definições apresentadas atentando para essa diferenciação. Não é nosso propósito, neste momento, aprofundar uma discussão sobre concepções de linguagem/língua, e sim apenas chamar a atenção para o fato de que diferentes pontos de vista criam diferentes objetos, ou, nos termos de Saussure, de que “é o ponto de vista que cria o objeto” (1971, p. 15). Assim, vamos reter por ora que a linguística se ocupa da linguagem/ língua em qualquer das acepções mostradas acima, o que vai se refletir, naturalmente, em diferentes abordagens teóricas do fenômeno linguístico. O mesmo objeto pode ser analisado sob diferentes ângulos, a partir de diferentes pressupostos que podem ser complementares ou conflitantes. (Lembra da fábula dos cegos apalpando o elefante na introdução desta unidade?) Ao longo do curso de Letras, você terá oportunidade de estudar diferentes abordagens teóricas. Vai ver que existem teorias formais e teorias funcionais da língua; que existem abordagens essencialmente linguísticas e abordagens interdisciplinares, como, por exemplo, a sociolinguística (que se ocupa da relação entre linguagem e sociedade), a psicolinguística (que se ocupa das questões de processamento e aquisição da linguagem), a etnolinguística (que se ocupa da relação entre linguagem e cultura), e assim por diante. Ferdinand Saussure é um linguista suíço a quem se credita a atribuição de estatuto científico à linguística, no início do século XX. Pode-se dizer que Saussure, com sua obra Curso de linguística geral, inaugurou a Linguística Moderna. É a partir de Saussure que os estudos linguísticos passam a adquirir um caráter mais sistemático e abstrato, e a língua é estudada sincronicamente, desvinculada de sua história. A ele se deve o início de uma corrente linguística denominada ‘estruturalismo’. 39 06 Estudos Gramaticais Até agora focamos nossa atenção em duas diferentes concepções de língua(gem): comunicativa ou cognitiva. Vamos atentar agora para certas diferenças entre linguagem e língua. Observe a distinção estabelecida no excerto a seguir. Os Parâmetros Curriculares Nacionais são documentos oficiais do MEC que orientam o planejamento pedagógico nas escolas brasileiras Com relação ao objeto de estudo da lingüística, deve-se dizer que esta ciência lida tanto com línguas particulares, isto é, entidades individuais, como com a natureza geral destas mesmas línguas particulares, tentando responder a dois tipos de pergunta: (a) o que as diferentes línguas têm em comum e o que as diferencia entre si?; (b) o que há nas línguas humanas que lhes atribui caráter único e as distingue dos demais sistemas de comunicação? Considerando que a linguagem será definida como o que há de comum às diferentes línguas, conclui-se que a lingüística tem um duplo objeto: o estudo da linguagem em geral e o estudo das diferentes línguas (ou, mais especificamente ainda, da gramática das diferentes línguas). (LOBATO, 1986, p. 34). Para refletir 1) Tente responder, conforme sua intuição de falante, as questões a) e b) apresentadas no excerto de Lobato (1986). 2) Identifique a concepção de linguagem/língua (como função comunicativa/social ou cognitiva/biológica) presente nas seguintes definições extraídas dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998b, p. 20): Linguagem: ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos de sua história. Língua: sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade. Figura 7 – Capa dos PCNs de Língua Portuguesa. 40 Concepções de língua(gem) Capítulo Resumindo este tópico: A linguística é o estudo científico da língua(gem) humana. Existem diferentes concepções de linguagem e/ ou de língua: uma centrada na sua função comunicativa/social – como instrumento de comunicação e modo de interação; e outra na função cognitiva/biológica – como representação do pensamento. Cada uma dessas concepções vai se refletir em diferentes abordagens teóricas do fenômeno linguístico. Nesse sentido, podemos dizer que “o ponto de vista é que cria o objeto”. 41 06 Estudos Gramaticais 42 Propriedades das línguas naturais 7 Capítulo Propriedades das línguas naturais As línguas naturais são línguas humanas que se opõem às línguas formais construídas por matemáticos e lógicos, e às línguas artificiais como o esperanto. São exemplos de línguas naturais: o português, o italiano, o inglês, a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Vale lembrar, ainda, que a linguística se ocupa das línguas naturais. As propriedades descritas a seguir caracterizam e particularizam as línguas naturais. 7.1 Flexibilidade e adaptabilidade Nós podemos usar a língua para produzir inúmeros atos de fala: externar nossos pensamentos e sentimentos, fazer perguntas ou declarações, fazer pedidos ou dar ordens, fazer ameaças ou promessas etc. Assim, a linguagem humana pode desempenhar inúmeras funções, de natureza cognitiva ou comunicativa. Considerando-se quem fala, de que se fala e com quem se fala, temos três funções: uma que procura traduzir a atitude do falante naquilo que ele está transmitindo (função emotiva), outra centrada no contexto ou no conteúdo transmitido (função referencial), e uma terceira centrada no ouvinte (função conativa). Como ampliação dessas funções básicas, temos ainda: uma que focaliza a própria mensagem dando-lhe relevo (função poética), outra que checa o canal pelo qual falante e ouvinte entram em contato (função fática) e uma última que se centra no código, ou seja, na própria língua, usando-se a língua para falar sobre a própria língua (função metalinguística). O esperanto é uma língua criada pelo médico polonês Ludwig Lazar Zamenhof, por volta de 1887, para ser língua de comunicação internacional. Possui uma gramática regular e utiliza raízes latinas e gregas, além de raízes das línguas europeias mais faladas. Ato de fala é uma atividade comunicativa que considera as intenções do falante e os efeitos que consegue provocar no ouvinte. Você poderá saber mais sobre as funções da linguagem lendo o capítulo ‘A comunicação humana’, de Diana P. de Barros. In: FIORIN, J. L. et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 32-41. Essas seis funções foram propostas por Jakobson, considerando a natureza social da linguagem. No quadro a seguir podemos visualizar melhor e relação entre as funções da linguagem e os elementos que constituem a comunicação: 43 07 Estudos Gramaticais Roman Jakobson é um dos mais importantes representantes da Escola de Praga, movimento linguístico que surgiu na década de 1920. No Círculo Linguístico de Praga começaram a germinar as ideias que vieram a constituir a corrente denominada ‘funcionalismo’. Contexto/conteúdo/referente Função referencial Remetente/falante Função emotiva Mensagem Função poética Destinatário/ouvinte Função conativa Contato/canal Função fática Código Função metalinguística É importante observar que cada texto não tem apenas uma função, mas várias delas. O que ocorre é que existe uma ou outra que predomina. Por exemplo, no texto publicitário predomina a função conativa, centrada no interlocutor (ouvinte/leitor). São formas linguísticas típicas da função conativa: pronome de segunda pessoa, verbo no modo imperativo, perguntas – para produzir o efeito de persuasão. Outro exemplo: nas definições do dicionário predomina a função metalinguística. Veja a definição da palavra ‘metalinguagem’ no dicionário Houaiss: “linguagem (natural ou formalizada) que serve para descrever ou falar sobre uma outra linguagem, natural ou artificial”. Como exemplo de função fática, temos o estabelecimento de contato social por meio do uso de expressões como bom dia! alô!. A propriedade de flexibilidade e adaptabilidade da língua, além de (i) servir para produzirmos diferentes atos de fala, permite (ii) nos reportar no tempo: ao passado, ao presente e ao futuro, (iii) nos referir a coisas que não existem no mundo real; e assim por diante. 7.2 Arbitrariedade A língua não é um conjunto de rótulos, ou uma nomenclatura, que se aplica a uma realidade preexistente. A realidade só passa a ter existência para os homens quando é nomeada, de modo que só percebemos no 44 Propriedades das línguas naturais mundo o que nossa língua nomeia. A realidade é apreendida e nomeada através de signos linguísticos. Não existe um vínculo natural entre a forma das palavras (seja a cadeia fônica, seja a representação escrita) e o seu sentido ou significado. O vínculo - Releia a seção 2 da Unidade A, que trata dessa questão sob o ponto de vista histórico - é convencional ou arbitrário e é estabelecido social e culturalmente. É uma espécie de acordo coletivo entre os falantes. O signo linguístico é, portanto, arbitrário e cultural. Por exemplo, nada há que determine que a ideia que temos de ‘lar’ e ‘moradia’ seja representada pela palavra ‘casa’. O que ocorre é um processo de simbolização, que constitui uma espécie de filtro da realidade. A linguagem categoriza a realidade, ou seja, classifica-a em categorias na medida em que representa essa realidade. Em outras palavras: A atividade lingüística é uma atividade simbólica, o que significa que as palavras criam conceitos e esses conceitos ordenam a realidade, categorizam o mundo. Por exemplo, criamos o conceito de pôr-do-sol. Sabemos que, do ponto de vista científico, não existe pôr-do-sol, uma vez que é a Terra que gira em torno do Sol. No entanto, esse conceito criado pela língua determina uma realidade que encanta a todos nós. Uma nova realidade, uma nova invenção, uma nova idéia exigem novas palavras, mas é sua denominação que lhes confere existência. Apagar uma coisa no computador é uma atividade diferente de apagar o que foi escrito a lápis, à máquina ou à caneta. Por isso, surge uma nova palavra para designar essa nova realidade, deletar. No entanto, se essa nova palavra não existisse, não se perceberia a atividade de apagar no computador como uma coisa diferente. (FIORIN, 2002, p.56). Por outro lado, a relação entre a forma da palavra (o significante) e o seu valor ou conteúdo (o significado), embora arbitrária, é necessária e não depende da livre escolha do falante. Veja-se, por exemplo, o dicionário. A significação ou os valores atribuídos a cada palavra estão registrados como diferentes acepções de uso. Qualquer novo significado que a palavra venha a receber só vai ser dicionarizado após se regularizar no uso dos falantes, ou seja, de um grupo social. O caráter necessário do vínculo entre significante e significado se deve a, pelo menos, dois motivos: Capítulo Signo linguístico é um objeto linguístico dotado simultaneamente de forma e sentido. A forma é chamada por Saussure de significante; e o sentido, de significado. Por exemplo, a palavra ‘cinamomo’ tem uma forma particular constituída de uma sequência de oito fonemas (sons da fala representados graficamente por letras), e também de um sentido particular (um tipo específico de árvore). Os dois juntos formam um signo linguístico. Assim, o signo é constituído de significante + significado. Você poderá saber mais sobre esse assunto lendo o capítulo ‘Teria dos signos’, de J. L. Fiorin. In: FIORIN, J. L. et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 55-65. a) o significante sem o significado (e vice-versa) não tem valor 45 07 Estudos Gramaticais linguístico; b) uma vez estabelecido um vínculo convencional entre um significante e um significado, esse valor passa a ser repetido pelos falantes e se regulariza na língua. Se ficarmos inventando livremente novos sentidos para palavras já conhecidas da língua portuguesa, corremos o risco de não sermos entendidos pelos nossos interlocutores. 7.3 Dupla articulação Em Linguística, o termo ‘articulação’ é usado no sentido de segmentação, subdivisão de palavras em partes, que podem se recombinar em outros contextos. A língua pode ser decomposta em unidades mínimas de duas ordens: os morfemas – unidades mínimas significativas; e os fonemas – unidades mínimas não significativas. Essas unidades podem se combinar e recombinar indefinidamente. Dupla articulação da linguagem Morfemas: unidades da primeira articulação – com conteúdo semântico. Fonemas: unidades da segunda articulação – sem conteúdo semântico. Por exemplo, a palavra ‘refazer’ pode ser segmentada em quatro morfemas: re/faz/e/r. Esses morfemas significam, respectivamente: ӲӲ duplicação (prefixo re–), ӲӲ ‘realizar’ (radical faz–), ӲӲ 2a conjugação (vogal temática –e–), ӲӲ infinitivo (desinência modo-temporal –r). Os morfemas aparecem em novas combinações como em: 46 Propriedades das línguas naturais Capítulo ӲӲ re/ler, re/contar, re/plantar, ӲӲ faz/ia, faz/endo, faz/edor, ӲӲ canta/r, faze/r, sorri/r. A mesma palavra ‘refazer’ é constituída por sete fonemas: r/e/f/a/ z/e/r. Os fonemas também aparecem em novas combinações, como em: ӲӲ r/e/z/a/r, f/e/z, r/e/f/a/z. Assim: ӲӲ numa primeira etapa de análise, isolamos unidades significativas de natureza mórfica ou morfológica (1a articulação). Os morfemas são unidades significativas porque cada segmento da palavra apresenta um determinado valor: radical, vogal temática (1ª, 2ª ou 3ª conjugação dos verbos), marca de gênero (masculino ou feminino) ou de número (singular ou plural), desinência verbal número-pessoal ou modo-temporal etc.; ӲӲ numa segunda etapa de análise, identificamos unidades distintivas de natureza fônica ou fonológica (2a articulação). Os fonemas são unidades distintivas, embora não dotadas de significação, porque funcionam para distinguir palavras, como por exemplo: /pala/ versus /bala/ versus /mala/. A articulação da linguagem é facilitada pelo caráter linear do significante; ou seja, o significante se desenvolve numa dimensão temporal (como numa linha), no caso da fala, ou espacial, no caso da escrita. Por linearidade, entende-se a disposição dos signos, uns depois dos outros, sem que se possa produzir mais de um elemento linguístico de cada vez. Você poderá saber mais sobre a dupla articulação da linguagem lendo o capítulo ‘A língua como objeto da Lingüística’, de Antonio V. Pietroforte. In: FIORIN, J.L. et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 91-92. Para refletir – Por que se diz que a dupla articulação da linguagem é um fator de economia linguística? – Discuta essa questão com seus colegas. 47 07 Estudos Gramaticais 7.4 Produtividade A produtividade é uma propriedade da língua que permite que uma dada regra seja estendida a novos casos. Assim, a partir de um número reduzido de regras combinatórias, podemos produzir um número ilimitado de novas palavras e enunciados. A noção de produtividade se aplica tanto no âmbito da formação de palavras (combinação de morfemas), como na construção de frases (combinação de palavras). Por exemplo: Na formação de palavras: o sufixo -idade, formador de substantivos, é bastante produtivo, pois aparece num número bastante significativo de palavras no português (facilidade, dificuldade, seriedade, familiaridade, legalidade). Já o sufixo -ura é menos produtivo na formação de substantivos (quentura, largura, espessura). A regra subjacente aos casos ilustrados acima é a de formação de substantivos a partir de adjetivos: [adjetivo + -idade/-ura = substantivo (fácil + -idade = facilidade; quente + -ura = quentura)]. Você poderá saber mais sobre a produtividade na formação de palavras lendo ‘A morfologia derivacional’. In: ILARI, R.; BASSO, R.M. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006. p. 103-108. Um determinado afixo (prefixo ou sufixo) pode ser produtivo numa certa época e não em outra. Por exemplo: “o prefixo disque-, próprio para formar substantivos, nem sequer existia antes dos anos 1980, mas hoje é prodigiosamente produtivo em português do Brasil: disque-pizza, disque-remédio, disque-denúncia”. (TRASK, R.L. 2004, p. 241) Vale lembrar que a aplicação de afixos não se dá de maneira aleatória: existem certas condições gramaticais que precisam ser respeitadas. Assim, o prefixo re- pode se aplicar a bases verbais ou substantivas sem alterar a classe da nova palavra (re + contar = recontar; re + impressão = reimpressão). Já os processos de sufixação geralmente alteram a classe da palavra. Por exemplo, -ismo se aplica tanto a adjetivo (ótimo) como a substantivo (Marx) formando substantivo (otimismo, marxismo). Na construção de frases ou constituintes de frases: a combinação de N (nome) + V (verbo) pode gerar: Pedro saiu; crianças brincam etc. A combinação de Art (artigo) + N (nome) + Adj (adjetivo) pode gerar: a menina bonita; os rapazes inteligentes; uma maçã madura etc. E assim por diante. 48 Propriedades das línguas naturais Capítulo Curiosidades No início da década de 1990, o então Ministro do Trabalho Antônio Rogério Magri foi alvo de piadas porque, de modo criativo, aproveitando-se do “estoque de morfemas disponíveis em nossa língua”, mencionou que “O Plano é imexível”, referindo-se ao famigerado Plano Collor. Toda imprensa registrou o episódio, condenando o ministro, tendo em vista que, à época, não havia registro do termo “imexível” nos dicionários de língua portuguesa. O terreno futebolístico é altamente criativo também. Leia os comentários a seguir e observe como ficou marcado na memória de muitas pessoas (principalmente de jornalistas) o episódio com o ministro relatado acima. Para refletir - Usando sua intuição de falante do português, como você explicaria essa nova palavra (imexível) criada pelo então ministro Magri? - Consulte dicionários (de preferência, Aurélio e Houaiss) e verifique se hoje já existe o registro dessa palavra. 49 07 Estudos Gramaticais 7.5 Heterogeneidade Uma outra propriedade das línguas naturais é que elas não são homogêneas. Pelo contrário, as línguas variam e mudam ao longo do tempo. Essa variação/mudança ocorre nas dimensões geográfica, social e estilística. Vamos retomar este ponto na terceira unidade. Como vimos, as línguas naturais apresentam propriedades que as caracterizam e as particularizam. Para refletir – Observe o diálogo travado entre Alice e Humpty Dumpty (personagens de Aventuras de Alice, de Lewis Carrol), e tente descobrir que propriedade das línguas naturais está envolvida nesse diálogo. – Reflita sobre os problemas daí decorrentes e discuta com seus colegas. Figura 9 - Alice a Humpty Dumpty (personagens de Aventuras de Alice, de Lewis Carrol) 50 Propriedades das línguas naturais Capítulo Resumindo este tópico: As principais propriedades das línguas naturais são: (i) flexibilidade e adaptabilidade – a linguagem humana pode expressar várias funções (emotiva, referencial, conativa, poética, fática e metalinguística) e permite que nos reportemos no tempo e que possamos nos referir a coisas que não existem no mundo real; (ii) arbitrariedade – a relação entre as palavras e o seu sentido é convencional e estabelecida socioculturalmente; (iii) dupla articulação – a linguagem humana é duplamente articulada, sendo decomposta em unidades mínimas significativas (morfemas) e em unidades mínimas não-significativas (fonemas); (iv) produtividade – a partir de um número reduzido de regras combinatórias, podemos produzir um número ilimitado de novas palavras e frases; (v) heterogeneidade – as línguas variam e mudam ao longo do tempo. 51 07 Estudos Gramaticais 52 O que é um estudo científico? 8 Capítulo O que é um estudo científico? Vamos tratar agora da questão da cientificidade dos estudos linguísticos. Como vimos na Unidade A, as preocupações com a linguagem são muito antigas, mas é apenas no início do século XX que a Linguística Moderna ganha autonomia e é reconhecida como estudo científico, a partir dos trabalhos de Ferdinand Saussure publicados no livro Curso de lingüística geral. A linguística atende a critérios de cientificidade ao apresentar as características listadas abaixo, entre outras. Essas características a opõem à chamada gramática tradicional. Assim, pode-se afirmar que linguística: ӲӲ é empírica: lida com dados verificáveis por meio da observação e da experiência; ou seja, as hipóteses teóricas podem ser atestadas pelos dados. A linguística não tem caráter especulativo ou metafísico. Já as gramáticas tradicionais, por serem parte da filosofia geral, tinham caráter especulativo à medida que pretendiam propor análises que respondessem a indagações sobre o universo. ӲӲ é objetiva: tem caráter não preconceituoso, não emite julgamentos de valor a respeito da língua do tipo “certo” vs. “errado”, “feio” vs. “bonito”, “superior” vs. “inferior”, “primitivo” vs. “evoluído”. A linguística, por ser descritiva (e não prescritiva), opera com a noção de adequação. Por exemplo, não falamos da mesma maneira quando nos dirigimos a nossos familiares e amigos em situações mais íntimas, e quando nos dirigimos ao nosso chefe, ao padre, ao prefeito etc. A linguagem se ajusta a novas situações comunicativas que envolvam mudança de papéis sociais dos interlocutores. Já os juízos de valor são característicos da abordagem tradicional, baseada na escrita literária clássica. À medida que impõe julgamentos, a gramática tradicional se constitui numa doutrina: a doutrina gramatical. ӲӲ t em caráter explícito: apresenta definição clara, coerente e detalhada dos pressupostos teóricos da análise; utiliza uma terminologia especializada; lida com critérios explícitos e objetivos. 53 08 Estudos Gramaticais Em outras palavras, tem um “construto teórico” como base explanatória, ou explicativa, para os dados. Diferentemente, as gramáticas tradicionais apresentam, muitas vezes, definições vagas e imprecisas, com mistura de critérios. Além do mais, a maioria dessas gramáticas limita-se a repetir os mesmos conceitos e classificações ao longo dos anos. Lembre-se de que a gramática tradicional prioriza a língua escrita literária, tomando-a como modelo de como escrever corretamente. Um aspecto importante a ser mencionado é que, com o advento da Linguística Moderna, a língua escrita deixa de ser considerada como mais importante que a falada. Admite-se que a língua está sujeita a variações e mudanças e que mudança linguística não significa deturpação ou decadência da língua. Para a linguística qualquer variedade de uma língua pode ser objeto de estudo. Enfim, rompe-se com a postura tradicional de que só a variedade culta escrita deve ser objeto da gramática. Separa-se, assim, a gramática prescritiva da gramática descritiva. Retomaremos esse ponto na Unidade C. Em relação ao caráter científico da linguística, cabe mencionarmos ainda a questão do método. O estudo sistemático da língua envolve, geralmente, os seguintes passos: ӲӲ observação; ӲӲ problematização; ӲӲ formulação e testagem de hipóteses; ӲӲ checagem do modelo teórico; ӲӲ generalização. Entretanto, como a linguística é um conjunto de saberes dos quais resultam modelos teóricos diversos, cada modelo vai requerer um aparato metodológico que seja compatível com suas especificidades. O importante é que as hipóteses sejam coerentemente testadas e sustentadas empiricamente dentro de modelos teóricos. Perini (2006, p.35) coloca nestes termos o objetivo do linguista: fazer “uma descrição da estrutura da língua: o conjunto de regras, elementos, classes e princípios que governam as associações dos diversos elementos da língua e seu significado”. Dizendo de outro modo: cabe ao 54 O que é um estudo científico? Capítulo linguista descrever e explicar o funcionamento da língua, isto é, a relação que existe entre os significados e as formas dessa língua. O trabalho científico implica, basicamente, a observação e descrição de fatos linguísticos a partir de certos pressupostos teóricos formulados no âmbito da teoria linguística ou linguística geral. Cabe à linguística geral fornecer conceitos e categorias que servirão de base para o estudo das línguas particulares. Cabe à linguística descritiva fornecer dados que validem ou refutem as hipóteses teóricas formuladas pelo linguista geral. O linguista descritivo, no entanto, não está limitado a oferecer evidências empíricas para as formulações da linguística geral; ele pode estar interessado em produzir gramáticas de referência ou dicionários. Esses dois ramos da linguística (geral e descritiva) não são estanques, e sim interdependentes. No Brasil, temos importantes estudos descritivos, como os trabalhos de Mattoso Camara Jr., de Mário Perini, de Maria Helena Moura Neves, bem como os volumes de Gramática do Português Falado, produzidos pelos pesquisadores do projeto coordenado pelo professor Ataliba de Castilho, entre muitos outros. Como os referenciais teóricos podem ser diversificados, um mesmo fenômeno pode receber diferentes descrições e explicações. Para refletir – Leia a passagem abaixo extraída da gramática de Cunha e Cintra, considerando a diferença de ponto de vista entre linguistas e gramáticos normativos. – Discuta essa questão com seus colegas. É justamente para chegarem a um conceito mais preciso de ‘correção’ em cada idioma que os lingüistas atuais vêm tentando estabelecer métodos que possibilitem a descrição minuciosa de 55 08 Estudos Gramaticais suas variedades cultas, seja na forma falada, seja na escrita. Sem investigações pacientes, sem métodos descritivos aperfeiçoados nunca alcançaremos determinar o que, no domínio da nossa língua ou de uma área dela, é de emprego obrigatório, o que é facultativo, o que é tolerável, o que é grosseiro, o que é inadmissível; ou, em termos radicais, o que é e o que não é correto (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 8). Resumindo este tópico: Alguns critérios de cientificidade opõem a Linguística Moderna à Gramática Tradicional: empiria, objetividade e caráter explicativo – presentes na primeira, mas não na segunda. A linguística se ocupa do estudo sistemático da língua, em qualquer variedade linguística, seguindo os seguintes passos metodológicos: observação, problematização, formulação e testagem de hipóteses, checagem do modelo teórico e generalização. 56 Unidade C Gramática e norma Objetivos desta Unidade: ӲӲ Reconhecer ‘gramática’ como um termo polissêmico; ӲӲ Relacionar diferentes concepções de gramática a diferentes concepções de língua(gem) e de norma linguística; ӲӲ Reconhecer a língua como um sistema heterogêneo e os diferentes tipos de variedade linguística. Nesta Unidade, vamos abordar a polissemia, isto é, a pluralidade de sentidos associados aos termos ‘gramática’ e ‘norma’, relacionandoos a diferentes concepções de língua(gem). Vamos também focalizar a heterogeneidade do sistema linguístico, distinguindo variedades: língua padrão versus não padrão, variedades regionais e sociais etc. Concepções de gramática 9 Capítulo Concepções de gramática Se ‘gramática’ é um termo polissêmico, isto é, tem mais de um significado, quais seriam esses significados? É o que passamos a ver a seguir. Antes, porém, procure refletir sobre as seguintes perguntas: – O que você entende por ‘gramática’? – Você gosta de gramática? Por quê? – Certas pessoas consideram que estudar gramática é “unir o inútil ao desagradável” (PERINI, 2002, p. 47). O que você pensa disso? 9.1 Gramática Universal e gramáticas de línguas particulares Retomemos a definição (4) de linguagem apresentada no capítulo 6: A faculdade de linguagem é uma estrutura cognitiva inata, humana e universal, e faz parte da herança genética de cada membro da espécie humana, do mesmo modo que a visão é parte dessa herança. Essa estrutura, no que tange à linguagem, é o estado mental inicial [chamado de Gramática Universal ou GU]. Passando por estágios sucessivos, esse estado inicial se desenvolve, seguindo um processo de maturação que sofre a influência do meio e das experiências pessoais, do mesmo modo como a visão, até atingir um estágio estável. (LOBATO, 1986, p. 38). A ideia de universais linguísticos, presente no trecho acima, decorre da crença de que a linguagem está vinculada a mecanismos inatos da espécie humana que são comuns aos membros dessa espécie. Em termos mais técnicos, segundo a teoria gerativa proposta por Noam Chomsky, a Gramática Universal (GU) é formada por (i) ‘princípios universais’ (leis rígidas e invariáveis), biologicamente determinados, que se aplicam igualmente a todas as línguas; e (ii) por ‘parâmetros’ (leis que variam entre as línguas), que são abertos, fixados pela experiência no ambiente linguístico, que dão origem à diferença entre as línguas. Assim, enquan- 59 09 Estudos Gramaticais to os ‘princípios’ remetem mais diretamente à faculdade da linguagem, os ‘parâmetros’ têm a ver com as línguas particulares. Essa abordagem é conhecida como Teoria de Princípios e Parâmetros. A questão da aquisição da linguagem é muito importante para essa teoria. É postulado que a criança tem uma GU inata que contém os princípios comuns a todas as línguas, cabendo a ela (criança) selecionar, a partir do input (dados de entrada, constituídos pelas formas linguísticas que ouve), as regras daquela língua que ela está adquirindo, ou seja, o valor que determinado parâmetro deve tomar. Em outras palavras, a criança nasce pré-programada com princípios universais e um conjunto de parâmetros a serem fixados de acordo com os dados da língua à qual ela estiver exposta. O asterisco indica a agramaticalidade da sentença, ou seja, no caso dos exemplos apresentados, aqueles que não pertencem ao português. O ponto de interrogação diante da frase significa que a construção é, no mínimo, estranha. Um exemplo de princípio universal é o de que operações sintáticas só podem afetar constituintes sintáticos, e não parte deles. Observe o funcionamento do constituinte sublinhado (no caso, objeto direto) nos exemplos abaixo. 1) Deixei alguns dos livros do Pedro na prateleira. 2) Alguns dos livros do Pedro, deixei na prateleira. 3) *Livros do Pedro, deixei alguns dos na prateleira. 4) *Alguns livros do Pedro, deixei dos na prateleira. 5) * Alguns dos, deixei livros do Pedro na prateleira. Julgamos que as frases (3), (4) e (5) não são boas e não as produzimos, mas nunca ninguém nos ensinou isso. Esses fatos são interpretados como indícios de que nosso cérebro é programado para aprender certas coisas, e não outras; ou seja, são vestígios de que existe uma GU. E dizer que certas frases são possíveis em uma língua significa dizer que elas são parte da gramática dessa língua. Por outro lado, dizer que elas não são possíveis significa dizer que elas não são parte da gramática dessa língua. Assim, quem decide se uma frase pertence ou não a uma língua é o falante nativo dessa língua, escolarizado ou não. Vejamos um exemplo do que se denomina, na teoria de Chomsky, 60 Concepções de gramática Capítulo parâmetro: o chamado “parâmetro do sujeito nulo”. Um dos princípios universais determina que toda sentença das línguas humanas tenha uma posição sintática de sujeito. Mas em muitas línguas essa posição de sujeito não precisa ser foneticamente preenchida. Isso significa que o preenchimento fonético dessa posição é um parâmetro. Por outro lado, há línguas que sempre têm que preencher essa posição (como o inglês), e outras não (como o português, o italiano e o espanhol). Observemos o “parâmetro do sujeito nulo” versus o “parâmetro do sujeito preenchido” nos exemplos abaixo: a) It rains! (inglês) b) Ø Chove! (português) c) Ø Piove! (italiano) d) ¡ Ø Llueve! (espanhol) Como se vê em a), “it” (pronome) ocupa a posição de sujeito. Já nas sentenças b), c) e d), basta o verbo para indicar o fenômeno meteorológico, não havendo necessidade de preenchimento da posição de sujeito. Para Chomsky, a língua é um sistema de princípios localizados na mente humana. Esse sistema abstrato de regras mentalizadas por um indivíduo coincide com seu conhecimento da língua, isto é, com sua competência linguística. Para a teoria gerativa, ter competência linguística não significa ter habilidade ou aptidão para falar e escrever, e sim ter conhecimento internalizado do sistema de regras de uma língua. Essa competência é inata. Imagine a seguinte situação: existe um conhecimento linguístico que se desenvolve independentemente dos ensinamentos escolares e outro que é aprendido na escola. O objeto de estudo da teoria gerativa é justamente a descrição e a explicação de algumas características particulares do conhecimento linguístico adquirido e desenvolvido nos primeiros anos de vida de um ser humano, independentemente de instrução formal. É esse conhecimento linguístico, a competência linguística, que permite às crianças construírem todas as sentenças possíveis de sua língua e somente elas. 61 09 Estudos Gramaticais Se o sistema abstrato de regras mentalizadas é considerado em relação à língua como um todo, ele corresponderá à gramática dessa língua, uma gramática particular. Nesse caso, a gramática é entendida como o sistema abstrato e finito de regras que permite gerar um conjunto infinito de sentenças. Em síntese: – A gramática universal (GU) é a faculdade da linguagem, o próprio conhecimento inato dos falantes; – A gramática particular é o sistema abstrato que subjaz às realizações linguísticas dos falantes. Você pode saber mais sobre esse assunto lendo o capítulo ‘A competência lingüística’, de E. Negrão; A. Scher; E. Viotti. In: FIORIN, J.L. et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 95-119. Essa concepção de gramática – que recobre tanto a noção de gramática universal como de gramáticas das línguas particulares – é de natureza cognitiva/biológica. Corresponde, grosso modo, ao que se chama de ‘gramática internalizada’, remetendo ao conjunto de regras que o falante conhece ou domina, ao seu conhecimento implícito da língua, independente do ensino formal ou escolarizado. Para refletir Perini (2004, pp.127-133) chama a atenção para as seguintes coincidências que se verificam entre as línguas: a) aos 4 anos de idade as crianças já dominam sua língua materna (e às vezes também outras); isso sem ‘estudar gramática’; b) há certos aspectos das línguas que nunca são ensinados, e dos quais os falantes nem têm consciência, que são aprendidos uniformemente por todos. Ou seja, temos conhecimentos linguísticos que não são resultado de ensino. Por exemplo, podemos dizer: 62 Concepções de gramática Capítulo Eu me vi na TV. Vocês me viram na TV. Nós nos vimos na TV. Figura 10 – Televisão Eu vi vocês na TV. Eu nos vi na TV. Mas a frase seguinte não é gramaticalmente boa: ? Nós me vimos na TV. – Por que a frase assinalada acima não é gramaticalmente boa? – Discuta essa questão com seus colegas. Agora que já vimos a distinção entre gramática universal e gramáticas de línguas particulares, vamos refletir acerca de aspectos que diferenciam a gramática prescritiva da descritiva/explicativa. 9.2 Gramática prescritiva versus gramática descritiva e explicativa Tanto a gramática prescritiva (ou normativa) como a gramática descritiva são gramáticas de línguas particulares. A gramática prescritiva se inspira na gramática tradicional, que, como já vimos, fundamenta sua análise em textos literários escritos, tomando-os como modelo de correção. A gramática prescritiva/normativa pode ser definida como conjunto de regras que devem ser seguidas. O uso linguístico que atende a essas regras é dito “correto”; o que não obedece às regras é taxado de “errado”. Essa é a concepção normalmente adotada nas gramáticas pe- 63 09 Estudos Gramaticais dagógicas e nos manuais didáticos. Já a gramática descritiva pode ser definida como o conjunto de regras que são seguidas. Celso Cunha (gramático brasileiro) e Lindley Cintra (gramático português) escreveram juntos a Nova gramática do português contemporâneo. A título de ilustração, observe como Cunha e Cintra tratam do emprego do pronome sujeito: Os pronomes sujeitos eu, tu, ele (ela), nós, vós, eles (elas) são normalmente omitidos em português, porque as desinências verbais bastam, de regra, para indicar a pessoa a que se refere o predicado, bem como o número gramatical (singular ou plural) dessa pessoa: ando escreves dormiu rimos partistes voltaram Emprega-se o pronome sujeito: a) quando se deseja, enfaticamente, chamar a atenção para a pessoa do sujeito: Sim! Tu sabes ligar-me a todos os teus crimes. Tu me sopras todos os pensamentos maus, tu me apontas o abismo [...] (Castro Alves, OC, 643). b) para opor duas pessoas diferentes: Figura 11 – Capa da Gramática de Celso Cunha Abraçamo-nos ambos contristados, Ele, porque há de ser, como eu, um velho, E eu, por ter sido já, como ele, um moço (E. de Castro, UV, 68). c) quando a forma verbal é comum à 1a e à 3a pessoa do singular e, por isso, se torna necessário evitar o equívoco: É preciso que eu repita o que ele disse? É preciso que ele repita o que eu disse? (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 275-276 – Adaptado). 64 Concepções de gramática Capítulo Como se pode notar no quadro anterior, em se tratando de gramática normativa, a regra geral prevista no português é de omissão do pronome quando estiver na função sintática de sujeito. A presença do pronome é aceita, pelas gramáticas normativas, nas seguintes situações: (i) para expressar valor estilístico marcando ênfase ou contraste, ou (ii) para evitar ambiguidade no caso de certas formas verbais idênticas para designar a 1a e a 3a pessoa do singular (eu/ele disse). Importa salientar, entretanto, que estudos descritivos do português falado atualmente têm mostrado uma nítida preferência pela realização (ou preenchimento) do sujeito em torno de 60 a 70% dos casos. Os resultados desses estudos evidenciam que o português está passando por um processo de mudança no que diz respeito à presença do pronome sujeito. (Nos termos da gramática gerativa, o português está passando por uma mudança de parâmetro, de sujeito nulo para sujeito preenchido.) Esse é um exemplo de como uma abordagem normativa e outra descritiva tratam um mesmo objeto, no caso, o uso do pronome sujeito. Várias vezes já mencionamos a palavra “regra” neste texto. A propósito da noção de regra, observe a seguinte distinção estabelecida por Sírio Possenti: As regras gramaticais podem ser de 3 tipos: 1) normativas – ditam o que deve ser seguido; 2) descritivas – mostram o uso regular efetivo da língua; e 3) internalizadas – correspondem ao conhecimento inato que o indivíduo tem da língua. Há dois sentidos em que se pode falar de regras: um deles traz consigo a idéia de obrigação, aproximando-se da noção de lei em sentido jurídico: a regra é algo a que se obedece, sob pena de alguma sanção. É nesse sentido que se fala das regras de etiqueta e do ‘bom comportamento’. [...] O outro sentido de regra traz consigo a idéia de regularidade e constância, aproximando-se de lei no sentido de ‘leis da natureza’. Por exemplo, a lei da gravidade sistematiza uma parte de nossas observações sobre os objetos que nos cercam.[...] As regras de uma gramática normativa se assemelham às regras de etiqueta, expressando uma obrigação e uma avaliação do certo e do errado. [...] As regras de uma gramática descritiva se assemelham às leis da natureza, na medida em que organizam observações sobre fatos, sem qualquer conotação valorativa. Um botânico não critica plantas por apresentarem tais e tais características – descreve-as, classifica-as. [...] Pode-se falar em regras também em relação à gramática internalizada [...] que expressam aspectos dos conhecimentos lingüísticos dos falantes que têm propriedades sistemáticas (POSSENTI, 1996, p.73-74, grifos do autor). 65 09 Estudos Gramaticais Veja, por exemplo, a Moderna gramática portuguesa, de Evanildo Bechara, que tem como título do capítulo II: Gramática descritiva e normativa – as unidades no enunciado. (grifo acrescido) Uma observação que deve ser feita ao falarmos de gramática prescritiva ou normativa é que, de fato, os manuais de gramática normativa não são inteiramente prescritivos. Observe a seguinte passagem da Gramática normativa de língua portuguesa de Rocha Lima: Emprega-se indiferentemente tudo o que e tudo que; mais usada, hoje, a primeira forma: Tudo o que punge, tudo o que devora O coração [...] (R. CORREIA apud ROCHA LIMA, 1972, p. 306). Agora, compare com o seguinte trecho da mesma gramática: São erros comuns dar forma oblíqua ao pronome sujeito de verbo no infinitivo: [...] para mim fazer [...] (para eu fazer) e dar forma reta aos pronomes mim e ti em regime preposicional: Tudo ficou resolvido entre mim e ti – devemos dizer (ROCHA LIMA, 1972, p. 285). A primeira passagem descreve o uso variável da expressão tudo (o) que, informando inclusive qual é a forma mais usada. Não há nenhum juízo de valor acerca desses usos. Já a segunda passagem condena certos usos pronominais chamando-os de “erros”. Veja também os excertos da Nova gramática do português contemporâneo de Cunha e Cintra (1985, p. 313-314 e p. 227, respectivamente): 66 Concepções de gramática Capítulo 1) O pronome possessivo não exprime sempre uma relação de posse [...]. Na língua moderna, ele tem assumido múltiplos valores, por vezes bem distanciados daquele sentido originário. Mencione-se o seu emprego: a) como indefinido: ‘A senhora há de ter tido seus apertos de dinheiro, disse Rubião’ (M. DE ASSIS). b) para indicar aproximação numérica: ‘Entrou uma mulherzinha de seus quarenta anos, decidida e de passo firme’ (F. SABINO). c) para designar um hábito: ‘Era lindo o bicho, com sua calma de passarinho manso’ (R. BRAGA) 2) Repete-se o artigo antes de dois adjetivos unidos por uma das conjunções e e ou quando os adjetivos acentuam qualidades opostas de um mesmo substantivo: ‘Conhecia o novo e o velho Testamento’. Não se repete, porém, o artigo se os dois adjetivos ligados pelas conjunções e, ou (e mas) se aplicam a um substantivo com o qual formam um conceito único: ‘Esqueceu que já não tinha mais a sua tristonha mas bela solidão’ (E. VERÍSSIMO) Você deve ter percebido que, no primeiro caso, os autores descrevem diferentes valores do pronome possessivo; e no segundo, prescrevem o emprego do artigo junto de adjetivos. No entanto, é a variedade padrão da língua, ou norma culta, que é priorizada em ambas as passagens. Ob- Vamos falar mais sobre a variedade padrão no próximo capítulo. 67 09 Estudos Gramaticais serve que os exemplos são retirados de obras literárias de autores clássicos da literatura brasileira, como Machado de Assis, Fernando Sabino, Rubem Braga e Érico Veríssimo. Leia novamente a seção sobre gramática universal e gramática internalizada. Com o advento da Linguística Moderna, os estudiosos passaram a se preocupar não só com a descrição das línguas, mas também com a explicação para os fatos linguísticos. Hoje em dia, temos duas grandes correntes teóricas que pretendem ter caráter descritivo e explicativo. Uma delas é a teoria gerativa proposta pelo linguista americano Chomsky na década de 1950, como uma gramática formal. A outra é a gramática funcional, que tem sua origem no chamado Círculo Linguístico de Praga, na década de 1920. Uma abordagem formal da língua considera a intuição do falante como critério da gramaticalidade ou agramaticalidade da sentença. Uma sequência é agramatical quando não está de acordo com o conhecimento internalizado de que dispõe o falante (sua competência linguística). Vamos pensar em algumas situações concretas? Por exemplo: Para refletir * De leite pudim este delícia é uma. Considerando sua experiência de falante de português, levante hipóteses para justificar o porquê de a frase acima não ser considerada gramatical. Já uma abordagem funcional leva em conta o uso linguístico na interação verbal, considerando, além de aspectos morfossintáticos, também aspectos semântico-pragmáticos e prosódicos, como entonação e ritmo. Considere as frases abaixo: Este pudim de leite é uma delícia. É uma delícia este pudim de leite. Antes de explicarmos a mudança na ordem dos constituintes nessas frases, é preciso considerar a “ordem canônica”. A ordem canô- 68 Concepções de gramática Capítulo nica dos constituintes corresponde à chamada ordem direta. As construções transitivas, por exemplo, apresentam a ordem canônica SVO (sujeito + verbo + objeto). Se houver também elementos com valor circunstancial (advérbios ou adjuntos adverbiais), esses virão no final da frase numa estrutura SVO Adv. No primeiro exemplo, a frase está numa ordem canônica ou direta, ou seja, apresenta sujeito + verbo + predicativo. No segundo caso, o predicativo, que é o atributo ou a qualidade do ‘pudim’, foi deslocado para o início, num movimento que chamamos de topicalização. Com esse tipo de construção, coloca-se em evidência o elemento topicalizado. Construções que apresentam ruptura da ordem canônica são chamadas de construções marcadas. A marcação serve para colocar em relevo, dar destaque, enfatizar certas informações nas situações comunicativas em que as frases são proferidas. Uma abordagem funcional da língua considera o nível textual/discursivo, extrapolando os limites da frase. Por exemplo, isso é apresentado nas gramáticas normativas como pronome demonstrativo neutro, ou seja, como o termo usado em lugar de um nome para coisas inanimadas. No entanto, se observarmos textos escritos (ou mesmo trechos transcritos de fala), vamos ver que isso é usado para estabelecer relações de coesão textual, retomando partes do texto. Uma abordagem funcional se ocupa desses usos de caráter mais amplo. Veja um exemplo de análise gramatical no âmbito do texto em ILARI; BASSO, 2006, p. 223-229. O quadro seguinte sintetiza algumas das características de cada tipo de abordagem (Essas características serão retomadas adiante, por isso não se preocupe se alguma delas não ficar clara para você neste momento.) ABORDAGEM FORMAL DA LÍNGUA(GEM) 1. Natureza da linguagem: Fenômeno mental Saber individual inconsciente Herança genética comum da espécie humana (GU) Independente de contexto Aquisição: capacidade humana estruturada para aprender a língua ABORDAGEM FUNCIONAL DA LÍNGUA(GEM) 1. Natureza da linguagem: Fenômeno mental e sociocultural Usos da linguagem na sociedade Universais derivados da universalidade de usos Dependente de contexto Aquisição: desenvolvimento de necessidades habilidades comunicativas da criança na sociedade 69 09 Estudos Gramaticais 2. Concepção de língua: Objeto formal abstrato Competência lingüística (inata) Expressão do pensamento 2. Concepção de língua: Instrumento de interação social Competência comunicativa Processamento da informação e comunicação 2. Concepção de língua: Instrumento de interação social Competência comunicativa Processamento da informação e comunicação 3. Concepção de gramática: Sistema adaptativo, dependente do contexto Regras comunicativamente motivadas: foco na função + estrutura Níveis: morfossintático, semânticopragmático (interligados) Vimos, neste capítulo, que a concepção de linguagem/língua adotada vai implicar uma certa concepção de gramática. Para fechar o capítulo, veja como o professor Ataliba de Castilho aborda essa questão: Como se sabe, a linguagem é um ‘objeto escondido’, assim como o objeto da Psicologia, da Sociologia e de outras Ciências Humanas. Para elaborar sobre ele, temos de partir de pontos de vista (expressão que traduz a palavra grega ‘theoría’), de postulações prévias, que constituirão a linguagem como um objeto cientificamente analisável. Simplificando um pouco as coisas, pode-se dizer que há três grandes modelos teóricos de interpretação da linguagem humana: a língua como atividade mental, a língua como uma estrutura e a língua como atividade social. De acordo com a primeira teoria, a língua é uma capacidade inata do homem, que lhe permite reconhecer as sentenças, atribuindo-lhes uma interpretação semântica, ou produzir um número infinito de sentenças, atribuindo-lhes uma interpretação fonológica. Em conseqüência, uma gramática que assim entenda a linguagem será uma gramática implícita (ou gramática da competência), interessada em explicar como as pessoas adquirem uma língua, como elas produzem e interpretam a sua ou uma outra língua. Esses postulados buscam, em última instância, a Gramática Universal, subjacente às milhares de línguas naturais. A teoria da língua como estrutura postula que as diferentes línguas naturais dispõem de um sistema composto por signos, distintos entre si por contrastes e oposições, organizados em níveis hierarquicamente dispostos: o nível fonológico, o nível gramatical (ou morfossintático) e, 70 Concepções de gramática Capítulo em alguns modelos, também o nível discursivo. As gramáticas estruturais buscam identificar as regularidades constantes das cadeias de fala, são basicamente descritivas, e operam através da contextualização da língua em si mesma. Finalmente, a terceira teoria considera a língua como uma atividade social, por meio da qual veiculamos as informações, externamos nossos sentimentos e agimos sobre o outro. Assim, concebida, a língua é um conjunto de usos concretos, historicamente situados, que envolvem sempre um locutor e um interlocutor, localizados num espaço particular, interagindo a propósito de um tópico conversacional previamente negociado. Uma gramática que assim entenda a língua (como é o caso da Gramática Funcional) procura os pontos de contacto entre as estruturas identificadas pelo modelo anterior e as situações sociais em que elas emergem, contextualizando a língua no contexto social. Tomadas em seu conjunto, as duas primeiras teorias postulam a língua como [...] um produto que deve ser examinado independentemente de suas condições de produção. Em suma, elas se ocupam de enunciados, para cuja apreensão a Sintaxe assume uma grande autonomia em relação à Semântica e à Pragmática. Já a terceira teoria postula a língua como um fenômeno funcionalmente heterogêneo, representável por meio de regras variáveis socialmente motivadas. A língua é, em suma, uma enunciação, um elenco de processos, para cuja apreensão a Semântica e a Pragmática se constituem em pontos de partida, sendo a Sintaxe um ponto de chegada. A Lingüística tem oscilado entre esses dois pólos, ora destacando a língua como um enunciado – valorizando-se as gramáticas formais, estruturais, gerativas – ora destacando a língua como uma enunciação – valorizando-se as gramáticas funcionais. (CASTILHO, 2000, p. 11-12, grifos do autor). As duas primeiras concepções de linguagem e de gramática expostas na citação mostram, no seu conjunto, a língua como um produto que deve ser examinado independentemente de suas condições de produção. Correspondem a uma abordagem formal da língua(gem). Já a terceira concepção (de linguagem e gramática) mostra a língua como um fenômeno funcionalmente heterogêneo. Corresponde a uma abordagem funcional da língua(gem). A Gramática de usos do português. São Paulo: Ed. UNESP, 2000, de Maria Helena de Moura Neves, é um exemplo de uma gramática funcional do português. 71 09 Estudos Gramaticais Para refletir 1) Pense em “regras gramaticais” que lhe tenham ensinado na escola, mas que você normalmente não utiliza em sua fala. a) Como você poderia argumentar se alguém lhe dissesse que esse uso que você faz da língua é errado? b) Por que há diferenças entre as regras que são seguidas e as que devem ser seguidas? 2) Considerando a noção de gramática normativa e gramática descritiva, pense no ensino de língua portuguesa. O que mostra a sua experiência (como professor(a) ou aluno(a)): o ensino é mais normativo, descritivo ou ambos? Resumindo este tópico: ‘Gramática’ é um termo polissêmico, pois pode ser usado com várias acepções, como por exemplo: (i) gramática universal – a faculdade da linguagem, o próprio conhecimento inato dos falantes; (ii) gramática particular – o sistema abstrato que subjaz às realizações linguísticas dos falantes de uma dada língua; (iii) gramática prescritiva – inspirada na gramática tradicional, pode ser definida como conjunto de regras que devem ser seguidas (opera com as noções de “certo” e “errado”); (iv) gramática descritiva – assentada na linguística, pode ser definida como conjunto de regras que são seguidas. A concepção de língua(gem) adotada vai implicar uma certa concepção de gramática. Com o advento da Linguística Moderna no século XX, os estudiosos passaram a se preocupar também com a explicação para os fatos linguísticos. Há duas grandes correntes teóricas, atualmente, que pretendem não só descrever, mas também explicar os fenômenos gramaticais: uma chamada formal (postulada por Chomsky na década de 1950) e outra funcional (originada num movimento chamado Círculo Linguístico de Praga na década de 1920). 72 A norma linguística Capítulo 10 A norma linguística Vamos introduzir este capítulo com a seguinte citação: Apesar de a língua escrita ser o território em que mais se evidencia a obediência, ou não, a modelos prestigiados de uso, pode-se afirmar que em qualquer modalidade de língua se constituem normas que emergem naturalmente da média dos usos nas diferentes situações (NEVES, 2001). Repare que Neves fala em “normas”, no plural, evidenciando-se aqui a questão da polissemia do termo mencionada no início desta Unidade. É de diferentes concepções de norma que tratamos a seguir. 10.1 Concepções de norma O que vem a ser a “norma linguística”? A primeira consideração a ser feita é que a noção de norma está associada a grupos sociais. Podemos dizer que um fator importante que identifica um grupo social e distingue um do outro é o uso que cada grupo faz da língua. Esse uso comum caracteriza o que se chama de a norma lingüística de determinado grupo. Assim, numa sociedade diversificada e estratificada como a brasileira, haverá inúmeras normas lingüísticas, como, por exemplo, a norma característica de comunidades rurais tradicionais, aquelas de comunidades rurais de determinada ascendência étnica, a norma característica de grupos juvenis urbanos, a(s) norma(s) característica(s) de populações das periferias urbanas, a norma informal da classe média urbana e assim por diante. (FARACO, 2002, p. 38). Vamos rever alguns conceitos já estudados. A ideia de norma apresentada anteriormente tem a ver com a noção de regras? Se você pensou que sim, acertou. Essas regras seriam descritivas ou prescritivas? Imaginamos que você vai responder algo do tipo: ‘Se elas têm a ver com o uso, então são descritivas’. É isso mesmo. É claro que os diferentes grupos que constituem uma comunidade não possuem diferentes línguas; o que os identifica são os diferentes usos que fazem de uma mesma língua, ou seja, aqueles usos que os particularizam face 73 10 Estudos Gramaticais a outros grupos. Marcamos nossa identidade pelo pertencimento a certos grupos sociais ou a grupos regionais (ser gaúcho, ser catarinense, ser paranaense, ser mineiro, ser carioca, ser pernanbucano etc.). Ao fazer parte de determinado grupo, compartilhamos com os membros daquele grupo a mesma linguagem e os mesmos hábitos culturais; e, assim, constituímos a nossa identidade, apoiada em valores de solidariedade e lealdade entre os pares. Se existem diferentes normas, há também diferentes gramáticas descritivas em uma língua? Mais uma vez a resposta é afirmativa. Podemos ter, por exemplo, uma gramática da fala dos pescadores de Florianópolis (SC), outra da fala dos descendentes de imigrantes italianos da zona rural de Chapecó (SC), outra dos falantes de classe média da zona central da cidade de São Paulo, e assim por diante. Mas, obviamente, tais grupos não são fechados. É claro que existem contatos entre os membros dos diferentes grupos. Os indivíduos desempenham diferentes papéis sociais no seu cotidiano e podem interagir com pessoas de diferentes estratos sociais, regiões etc. Da mesma forma, num âmbito maior, temos os fluxos migratórios que se deslocam por diferentes regiões do país. Assim, a par de manterem características identificatórias por se agregarem a valores socioculturais, as normas linguísticas também se mesclam e se influenciam mutuamente, ou seja, são mescladas ou “hibridizadas” (FARACO, 2002, p. 39). Para refletir – Pense na sua situação: que tipo de intercâmbio social/regional você costuma fazer? – Consegue perceber interferências na sua forma de falar? – Se você é professor(a), a que grupos sociais pertencem os alunos de sua escola? – Percebe diferenças na fala de seus alunos? 74 A norma linguística Capítulo Nessas alturas, você deve estar se perguntando: ‘O que a escola deve ensinar se são tantas as regras, normas e gramáticas?’; ‘Será por isso que o ensino de língua portuguesa está tão caótico como dizem alguns?’. Vá pensando sobre essas questões, pois vamos retomá-las mais à frente. Uma vez estabelecida essa correlação entre grupo social e norma (em termos mais amplos: entre sociedade e linguagem), vamos adiante em nossas reflexões. Você já deve ter lido ou ouvido a expressão ‘norma culta’. É bastante discutível o uso do adjetivo ‘culta’ associado à norma. Faz supor que exista uma norma ‘inculta’, ou seja, falada por indivíduos sem cultura. Vale lembrar, entretanto, como mostram os estudos antropológicos, que não existe grupo social sem cultura, e sim com culturas diferentes. Você já ter ouvido também a expressão ‘norma-padrão’. Será que as expressões ‘norma culta’ e ‘norma-padrão’ são sinônimas? Para alguns autores, sim. Para outros, não. Nós também vamos tratá-las de modo diferenciado. Observe como o professor Carlos Alberto Faraco define ‘norma culta’: A expressão norma culta deve ser entendida como designando a norma lingüística praticada, em determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau de formalidade), por aqueles grupos sociais mais diretamente relacionados com a cultura escrita, em especial por aquela legitimada historicamente pelos grupos que controlam o poder social. (FARACO, 2002, p. 40). Como podemos perceber, a norma culta está associada a certos valores sociais: os indivíduos que a praticam têm alto grau de escolarização circulam em ambientes que exigem certa formalidade e onde tem destaque a cultura escrita. A norma culta é a língua que encontramos na mídia difundida nos grandes centros urbanos: jornais, revistas, livros etc. Corresponde ao uso linguístico de prestígio. A norma culta, como qualquer outra norma, pode ser escrita ou falada. Curso superior completo. 75 10 Estudos Gramaticais Fala e escrita É importante observar que a escrita não é exatamente uma representação da fala: não escrevemos como falamos. As diferenças entre fala e escrita são decorrentes da natureza do meio ou canal de comunicação: – Na fala, tem papel muito importante o contexto circundante – a presença do interlocutor, o espaço físico compartilhado, a possibilidade de usar gestos, diferentes entonações de voz etc; o processo de elaboração das ideias se dá on-line permitindo reelaborações e ajustes. – Na escrita, não temos um interlocutor presente e precisamos arranjar recursos linguísticos para representar valores expressivos, por exemplo; ao contrário da situação de fala, temos tempo de elaborar as ideias para colocá-las no papel, e reescrevê-las, se for o caso, inúmeras vezes. Você se lembra do que comentamos há pouco sobre as normas serem “hibridizadas” ou mescladas? Pois bem, a norma culta, sendo depreendida a partir do uso efetivo da língua por certo grupo social, também está sujeita a variações e mudanças. Portanto, a norma culta não é homogênea. Vamos pensar em algumas situações concretas? Imagine uma situação em que um aluno pede um livro emprestado ao professor e este promete trazê-lo no dia seguinte. As seguintes respostas (entre outras) são possíveis no âmbito da norma culta da língua portuguesa: 1) Trarei o livro amanhã, sem falta. 2) Vou trazer o livro amanhã, sem falta. 3) Trago o livro amanhã, sem falta. Em certos contextos linguísticos, temos três formas alternativas para expressar o tempo futuro: o verbo flexionado no futuro do presen- 76 A norma linguística Capítulo te (trarei); a perífrase com o auxiliar ir flexionado + verbo principal no infinitivo (vou trazer); e o verbo no tempo presente (trago). É devido ao caráter heterogêneo da norma culta que há autores, como Marcos Bagno, que preferem falar em “variedades cultas” (no plural) porque [...] não existe um comportamento lingüístico homogêneo por parte dos ‘falantes cultos’, sobretudo (mas não somente) no tocante à língua falada, que apresenta variação de toda ordem segundo a faixa etária, a origem geográfica, a ocupação profissional etc. dos informantes. (BAGNO, 2002, p.179). Atenção! ӲӲ A norma culta deve ser vista como uma variedade da língua portuguesa e não como a língua propriamente dita. ӲӲ A norma culta também está sujeita a variações e mudanças. ӲӲ Não devemos confundir norma culta com língua escrita. Todas as normas são expressas em ambas as modalidades: língua falada e língua escrita. Tome-se como exemplo o projeto NURC (Projeto de Estudo da Norma Urbana Linguística Culta). Temos, já, resultados significativos em termos de descrição da norma culta falada no Brasil. O que não significa dizer que tal descrição seja igualmente válida para a norma culta escrita. Esta é encontrada atualmente em textos de ampla circulação como livros, revistas e jornais. Já a “norma-padrão”, grosso modo, costuma ser associada à ideia de gramática normativa. Isso porque tem um papel unificador que busca neutralizar as variações tornando-se uma “referência supra-regional e transtemporal” (FARACO, 2002, p. 42). Nesse sentido, a norma-padrão tem um caráter homogêneo sendo confundida com a própria língua, daí encontrarmos também a designação “língua padrão”. Embora a noção de norma-padrão não se confunda com a de O projeto NURC documentou, na década de 1970, a norma culta falada em cinco capitais brasileiras (Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre). É a partir de amostras linguísticas do NURC que se desenvolve o Projeto de Gramática do Português Falado coordenado pelo professor Ataliba de Castilho. Desse projeto resultaram 8 volumes da Coleção Gramática do Português Falado e o volume 1 da Gramática do Português Culto Falado no Brasil, publicado em 2006. 77 10 Estudos Gramaticais A norma-padrão corresponde a regras impostas; e a norma culta, a padrões efetivos de uso observável num certo grupo social. norma culta, há uma aproximação entre elas. Vejamos alguns exemplos: 1) A regra básica de concordância verbal normatizada em português é que o verbo deve concordar em número e pessoa com o sujeito; a norma culta também contempla essa regra de concordância, pelo menos quando se trata de ordem SV (sujeito–verbo) como em Os meninos chegaram. 2) A regra padrão de concordância nominal é que os elementos determinantes e modificadores (artigos, numerais, adjetivos etc.) devem concordar em gênero e número com o núcleo nominal determinado; a norma culta também mostra esse uso, pelo menos em sintagmas nominais simples como meus filhos pequenos. Nesse exemplo, filhos é o núcleo nominal determinado e meus, pequenos são elementos determinantes/modificadores que concordam em gênero e número com o núcleo. Há, entretanto, muitos casos de desacordo entre a prescrição normativa e o uso culto. Eis alguns: 1) A regra geral de colocação do pronome átono é a ênclise, ou seja, a posposição do pronome ao verbo, como em Maria deume um livro. (A próclise é prevista com algumas palavras atratoras, como elementos de negação, advérbios, entre outras). No entanto, a tendência de uso do brasileiro (salvo alguns poucos casos) é a próclise, isto é, a anteposição do pronome ao verbo: Maria me deu um livro. 2) A norma-padrão prevê a omissão dos pronomes sujeitos, uma vez que a informação número-pessoal já aparece na desinência verbal (corro; corres); a norma culta tende a realizar o sujeito (eu corro; tu corres). É em função desse descompasso entre o que é normatizado (como uma espécie de lei) e o que é usado que nos deparamos frequentemente com verdadeiras campanhas de “caça a erros”, seja na fala de figuras proeminentes, seja na escrita, especialmente a midiática. Nem a normapadrão nem a norma culta equivalem à língua portuguesa: a primeira corresponde a um ideal abstrato de língua tida como “correta”; a segunda, a certa variedade da língua portuguesa. São equivocadas, portanto, 78 A norma linguística expressões frequentemente ouvidas como: “não sei português”, “falo errado o português”. De fato, quem assim se expressa está querendo dizer: “não domino a variedade culta do português, ou a língua padrão”. Para refletir Pensando em sua prática docente (se você for professor(a)), ou na de outros professores, como costuma ser vista a questão da norma linguística: como “norma-padrão” ou como “norma culta”? Que implicações essas diferentes visões trazem para o ensino de língua portuguesa? Discuta essas questões com seus colegas. Capítulo Você pode saber mais sobre esse assunto em: BAGNO, M. (Org.). Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. Trata-se de uma coletânea de 15 textos de diferentes autores, que discutem a questão da norma linguística e seus desdobramentos: norma ideal versus norma real; norma-padrão versus norma culta; norma objetiva versus norma subjetiva etc. 10.2 Variedades da língua e língua padrão do Brasil Já vimos que as noções de regra, norma, gramática estão interligadas, apontando para a questão da diversidade linguística. Observe novamente o trecho (que fecha o capítulo anterior) extraído da obra do professor Ataliba Castilho: “a terceira teoria postula a língua como um fenômeno funcionalmente heterogêneo, representável por meio de regras variáveis socialmente motivadas”. Essa passagem remete à ideia de que a língua portuguesa, como qualquer língua natural, não é homogênea e nem uniforme. É heterogênea. Constituída de variedades linguísticas. As variedades linguísticas podem ser: regionais, sociais e estilísticas (ou de registro formal ou informal), e ainda decorrentes da modalidade falada ou escrita da língua. Vamos ver alguns exemplos? 10.2.1 Variação regional ou geográfica A variação regional ou geográfica corresponde às diferenças que uma mesma língua apresenta na dimensão espacial, quando é falada em O fenômeno de variação e mudança ocorre em todos os níveis linguísticos: fonético-fonológico, morfológico, sintático, lexical e discursivo. As variedades linguísticas regionais e sociais são também chamadas de dialetos. 79 10 Estudos Gramaticais diferentes regiões de um mesmo país (ex.: Região Sul, Sudeste, Nordeste, Norte do Brasil), ou em diferentes países (ex.: o português falado no Brasil e em Portugal). Vejamos alguns exemplos de variação nos diferentes níveis gramaticais: ӲӲ no nível fonético-fonológico – as vogais /e/ e /o/ pretônicas, como nas palavras “terraço” e “bolacha”, são pronunciadas como vogais abertas (é, ó) em certos locais do nordeste e como vogais fechadas (ê, ô) no sudeste e no sul; ӲӲ no nível morfológico – a marcação do diminutivo distingue “mainha” na Bahia de “mãezinha” no restante do país; ӲӲ no nível sintático – a posposição da negação como em “vou não” é típica de certas regiões do nordeste; a dupla negação como em “não vou, não” é comum no sudeste (especialmente no Rio de Janeiro); e a anteposição da negação como em “não vou” é preferida no sul; ӲӲ no nível lexical – a fruta cítrica de cor alaranjada e sabor adocicado é conhecida em grande parte da região Sul como “bergamota” ou “vergamota”. Em São Paulo, é chamada de “tangerina”, no Rio de Janeiro de “laranja-cravo”, em Minas Gerais de “mexerica” e também em outros locais é conhecida como “laranja-mimosa” ou simplesmente “mimosa”; ӲӲ no nível discursivo – as expressões “mas bah!”, “pô, cara, aí...”, “ôrra meu!”, “pronto”, são facilmente associadas a falantes gaúchos, cariocas, paulistas e paraibanos, respectivamente. As diferenças linguísticas entre os falantes da zona urbana e da zona rural também estão no âmbito da variação regional. 10.2.2 Variação social A variação social é aquela que reflete as diferenças sociais dos falantes (principalmente o grau de escolaridade e o nível socioeconômico). Assim, temos a ‘variedade padrão’ ou ‘norma culta’ – aquela usada pelas pessoas mais diretamente relacionadas com a cultura escrita que é historicamente legitimada; e a variedade não padrão – aquela utilizada, 80 A norma linguística Capítulo em geral, por indivíduos não escolarizados ou pouco escolarizados. Exemplos: ӲӲ no nível fonético-fonológico – a variação entre /r/ e /l/ como em “brusa” e “blusa”; a despalatalização como em “muié” ou “muler” e “mulher”, são realizações características da variedade não padrão e da variedade padrão, respectivamente; ӲӲ no nível morfossintático – a conjugação verbal é frequentemente reduzida a duas formas: eu vou / tu, “ocê”, ele, “nóis”, “ocêis”, eles vai, nos grupos com nenhuma ou pouca escolarização, o que implica a não concordância verbal nesses casos. Observe, porém, que essas variações que estamos identificando como sociais são muitas vezes também regionais. Por exemplo, é muito comum ouvirmos tu foi no Rio Grande do Sul ou nós vai em parte da região Oeste, independentemente do nível de escolaridade do falante. Portanto, as motivações para a variação não são sempre as mesmas em todo o país. Estamos apontando aqui apenas tendências e não regras categóricas de uso da língua. Para refletir ӲӲ Qual a diferença entre as noções de língua padrão, norma-padrão e variedade padrão? ӲӲ Discuta essa questão com seus colegas. 10.2.3 Variação estilística ou de registro É a variação que depende do contexto situacional em que se dá a prática discursiva. O contexto situacional envolve: O uso da linguagem deve estar adequado às diferentes situações comunicativas, como uma “etiqueta social”. É como a roupa que usamos: vestido de festa para ir a um casamento, maiô para ir à praia, pijama para dormir etc. ӲӲ os papéis sociais desempenhados pelos interlocutores: professor – aluno; médico – paciente; vendedor – cliente; pais – filhos; amigo – amigo etc; ӲӲ os domínios sociais: a escola, a igreja, o lar, o trabalho etc; 81 10 Estudos Gramaticais ӲӲ o tipo de assunto: religião, lazer, política etc. Em situações comunicativas que exigem maior formalidade, usamos uma linguagem mais cuidada e elaborada, ou mais monitorada – o registro formal. Em situações familiares e informais, usamos uma linguagem coloquial, menos monitorada – o registro informal. 10.2.4 Variação decorrente da modalidade oral/escrita As modalidades oral e escrita se assemelham quanto às condições gerais de uso da linguagem, já que ambas expressam as mesmas intenções comunicativas e compartilham o mesmo código linguístico (léxico e gramática). As maiores diferenças decorrem das condições de produção da linguagem, que envolvem: ӲӲ o tipo e o tempo de processamento das informações – levando, por exemplo, a hesitações, falsos começos e reparos na fala; e a maior planejamento e elaboração na escrita; ӲӲ o grau de dependência contextual – com maior envolvimento dos interlocutores, podendo fazer uso de gestos e expressões fisionômicas na fala; e maior distanciamento na escrita; ӲӲ uso de recursos gramaticais diferenciados – construções mais fragmentadas, com maior uso de coordenação e justaposição de elementos na fala; e construções sintaticamente mais integradas, com maior uso de subordinação, de conectores diversificados, enfim, de adequação à norma culta, na escrita. Há um aspecto muito importante que precisa ser considerado ao se comparar fala e escrita: a questão do gênero/tipo de texto e do registro (formal ou informal). Por exemplo: é válido comparar uma versão falada e outra escrita de um mesmo acontecimento relatado por um mesmo indivíduo numa situação informal; ou uma versão falada e outra escrita de uma exposição teórica numa situação formal. Já a comparação de um texto escrito acadêmico com o relato oral de um sonho a um amigo, por exemplo, não traz resultados tão significativos em termos de levantar características da modalidade escrita e da falada. 82 A norma linguística Capítulo A influência da modalidade oral ou escrita sobre os recursos linguísticos utilizados pode ser mais adequadamente analisada se compararmos um mesmo gênero/texto e registro nas duas modalidades. Por exemplo: a narrativa de um acontecimento X oralmente, depois por escrito, feita por um mesmo sujeito, é um bom material de análise para percebermos as semelhanças e diferenças entre as duas modalidades de expressão linguística. Na verdade, não existem fronteiras rígidas, nem entre as variedades padrão e não padrão, nem entre as modalidades oral e escrita da língua. Bortoni-Ricardo (2004, p.61) propõe que pensemos na ideia de um contínuo representado numa linha imaginária que tem, localizada em cada extremidade, uma certa variedade ou modalidade. Estudando as interações em sala de aula, a autora trabalha com as noções de “evento de oralidade” e “evento de letramento”, assim representados: eventos de oralidade Bortoni-Ricado (2004) apresenta três contínuos: contínuo de urbanização, contínuo de oralidadeletramento e contínuo de monitoração estilística. > eventos de letramento No caso da sala de aula, por exemplo, um evento de letramento pode ser permeado de eventos de oralidade. Os eventos de letramento são mediados pela língua escrita (exposição de um conteúdo a partir de um roteiro escrito, fala simultânea à escrita no quadro de giz, aula de leitura, ditado etc). Já os eventos de oralidade são intervenções curtas do professor, brincadeiras motivadoras, ou seja, situações de interação não mediadas pelo texto escrito (ex.: “Abram o livro na página tal”, “Vamu ficar quietos” etc.) (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 26). É, pois, na oralidade que se manifesta mais claramente a variação inerente, a diversidade que constitui a língua. No quadro a seguir, há duas versões, uma oral e outra escrita, de relato de uma informante universitária (Banco de fala e escrita/UFSC). 83 10 Estudos Gramaticais Você pode saber mais Leia atentamente os textos, observando as semelhanças e diferenças entre as duas modalidades. sobre o assunto desta seção lendo: ILARI, R.; BASSO, R. Português do Brasil: a variação que vemos e a variação que esquecemos de ver. In: _____. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006, p. 151- 196. Os autores tratam dos diferentes tipos de variação linguística: diacrônica, diatópica, distrática e diamésica, ilustrando com exemplos do português falado e escrito. Amostra oral Tá, meu nome é M., eu tenho 23 anos, trabalho com a educação infantil, com crianças de 2 anos e meio a 3 anos e essa é a última semana que eu vô trabalhá...(hes). Por um lado eu tô muito... eu tô muito cansada e tô contente que já vai acabá, mas por outro lado eu tô...tô muito sentida porque eu, eu sei que eu vô senti muita falta das crianças, eu só tô pensando... só tô pensando o tempo todo nelas e essa semana vai ser muita correria com festas, despedidas e eu sei que tudo isso tá mexendo muito comigo eh entre outros fatores...mas... mas todo ano eh a gente passa por isso, professor passa por isso e eu sei que vai ser muito difícil eu pegá a mesma turma, as mesmas crianças e a gente vai se acostumando (hes) em cada, cada final de ano é uma despedida... dos pais das crianças, a gente se apega, os pais se apegam à gente, muitos pais valorizam o trabalho da gente e isso faz com que a gente cada vez queira estudá mais, se aprofunda, buscá novos... novos cursos e também a valorizá a profissão, apesar de ser muito desvalorizada a gente tem que acreditá e depositá ...depositar confiança no trabalho e assim passar para as crianças e com isso eh eles poderem fazê a diferença. Amostra escrita Meu nome é M., tenho 23 anos e trabalho com crianças de 2 anos e meio a 3 anos. Agora está no final do ano, eu estou contente porque está acabando por causa que estou cansada, mas por outro lado eu já estou com saudade das crianças, a gente se apega. Mas todo ano acontece isso, sei que no próximo ano não vou pegar a mesma turma por causa da minha situação de professora ACT. Mesmo assim temos que acreditar e depositar confiança nestas crianças, confiando que eles vão ser os responsáveis por uma mudança. Isso é que nos incentiva, e o reconhecimento dos pais e o carinho das crianças, mesmo que a nossa profissão não seja valorizada. 84 A norma linguística Capítulo 10.3 A questão do “erro” e suas implicações sociais Veja a opinião do professor Mário Perini, um gramático descritivo, sobre a questão da diversidade linguística e do “erro” e suas implicações sociais: As línguas evoluem, apesar da oposição, dos esforços e da cara fechada dos gramáticos. Não se trata de um ‘perigo’, mas de um processo tão natural quanto o crescimento das crianças, a rotação da Terra, o ciclo de vida e morte dos seres vivos. Perigo, se há, está nesse complexo de inferioridade lingüística que nos transmitem os autonomeados conhecedores e protetores da língua [...] existe perigo é quando nos dizem que a língua usada pelos cento e muitos milhões de brasileiros não merece respeito, e que apenas os especialistas é que detêm o poder de ‘falar certo’. (PERINI, 2004, p. 24). Como vimos enfatizando, na perspectiva da gramática descritiva não existe erro, o que pode haver é uma inadequação no sentido de o indivíduo utilizar construções linguísticas de uma variedade não padrão em situações que requerem o uso da norma culta, por exemplo. É o caso da oração “Os carro passava muito rápido” pronunciada numa situação de conversa informal, e produzida num relato escrito de um filme assistido. A não concordância nominal em “os carro” bem como a não concordância verbal em “os carro passava”, (i) na fala coloquial, são vistas como manifestação da variação inerente das regras de concordância nominal e verbal em português; e (ii) na escrita, são consideradas como desvio da norma culta, portanto um uso inadequado. Importa salientar, no entanto, que “os carro passava” é, na perspectiva da gramática normativa tradicional, considerado erro tanto na fala como na escrita, por não atender às regras de concordância nominal e verbal, que ditam (i) que deve haver concordância de gênero e número entre o substantivo e os elementos determinantes dentro de um sintagma nominal; e (ii) que deve haver concordância número-pessoal entre o verbo e o sujeito. Tudo o que não atende às regras gramaticais é taxado de “erro”. Quais são as implicações sociais disso? Observe as seguintes construções: 85 10 Estudos Gramaticais Tu vai sair? A gente vamos sair. Nós vai sair. Nas três frases acima ocorre um mesmo fenômeno gramatical: a não concordância entre o verbo e o pronome sujeito. Entretanto, o nível de aceitação das três construções é diferente. As pessoas, a depender da região, tendem a aceitar mais naturalmente o uso de “tu vai” na fala, e a rejeitar o uso de “nós vai”. Se se trata do mesmo fenômeno linguístico, por que essa diferença de avaliação dos falantes, nesse caso? Simplesmente porque o primeiro uso é mais generalizado entre os falantes do português brasileiro, independentemente do nível socioeconômico e mesmo do grau de escolaridade dos indivíduos. Já o mesmo não ocorre com o último exemplo, que é de uso mais restrito, seja regional (zona rural versus urbana, por exemplo), seja social (menos versus mais escolaridade, por exemplo). O que está em jogo aí? Trata-se do que se chama de valor social das formas variantes. A fala (ou escrita) é avaliada ou julgada em função do status social dos indivíduos que a utilizam, e não pelas características linguísticas em si. Esse tipo de julgamento revela preconceito linguístico, normalmente por parte daqueles que dominam a norma culta da língua e que, coincidentemente, se situam nos pontos mais altos na pirâmide social. Para concluirmos esta Unidade, leia o seguinte excerto da obra de Faraco e Tezza (2002) Prática de textos para estudantes universitários: [...] Do ponto de vista científico, não há como dizer que uma forma lingüística é melhor que outra, a não ser que a gente se esqueça da ciência e adote o preconceito ou o gosto pessoal como critério. Entretanto, é fato que há uma diferenciação valorativa, que nasce não da diferença desta ou daquela forma em si, mas do significado social que certas formas lingüísticas adquirem nas sociedades. Mesmo que nunca tenhamos pensado objetivamente a respeito, nós sabemos (ou procuramos saber o tempo todo) o que é e o que não é permitido... Nós costumamos “medir nossas palavras”, entre outras razões, porque nosso ouvinte vai julgar não somente o que se diz, mas também 86 A norma linguística Capítulo quem diz. E a linguagem é altamente reveladora: ela não transmite só informações neutras; revela também nossa classe social, a região de onde viemos, o nosso ponto de vista, a nossa escolaridade, a nossa intenção [...] Nesse sentido, a linguagem também é um índice de poder (FARACO; TEZZA, 2002, p.51-52, grifos dos autores). Para refletir – Como você avalia os usos de: Tu vai sair?/A gente vamos sair./Nós vai sair.? Você os aceita ou rejeita igualmente? – Considerando tudo o que vimos até agora, como você interpreta a seguinte afirmativa: “a linguagem também é um índice de poder”? – Discuta essas questões com seus colegas. Resumindo este tópico: ‘Norma’ é um termo polissêmico, pois envolve várias acepções, havendo uma relação estreita com as concepções de ‘gramática’. Assim, a ideia de gramática prescritiva está associada a normas prescritivas, isto é, que devem ser seguidas. Já a ideia de gramática descritiva tem a ver com normas que são de fato seguidas; nesse sentido, as normas emergem naturalmente da média dos usos linguísticos nas diferentes situações comunicativas, em diferentes grupos sociais. Como existem diferentes grupos sociais, há também diferentes normas e, consequentemente, podem existir diferentes gramáticas descritivas. No caso do Brasil, verificamos uma espécie de encaixamento: a norma da comunidade menor (ex.: dos pescadores da Barra da Lagoa) faz parte da norma da comunidade maior (ex.: da cidade de Florianópolis) que, por sua vez, integra a(s) norma(s) do Brasil. Como os indivíduos interagem em diferentes grupos sociais e regionais, as normas linguísticas também se mesclam e se influenciam mutuamente. As variedades linguísticas podem ser: regionais, sociais e estilísticas (ou de registro formal ou informal), e ainda decorrentes da modalidade falada ou escrita da língua. Uma distinção conceitual importante é a que alguns autores fazem 87 10 Estudos Gramaticais entre norma culta e norma-padrão. A norma culta corresponde ao uso linguístico (oral ou escrito) de prestígio na sociedade, sendo praticada por aqueles que têm alto grau de escolarização, circulam em ambientes que exigem certa formalidade e onde tem destaque a cultura escrita. A norma culta é a língua que encontramos na mídia difundida nos grandes centros urbanos: jornais, revistas, livros etc. Esse conceito de norma culta aparece, por vezes, sob a denominação de variedade padrão. Já a noção de norma-padrão costuma ser associada à ideia de gramática normativa/prescritiva, apresentando um caráter homogêneo e sendo confundida, muitas vezes, com a própria língua. É importante distinguir a noção de uma variedade da língua da noção de a língua padrão. É nessa perspectiva diferenciada que se inserem, respectivamente, as noções de ‘adequação’ e ‘erro’ gramatical. 88 Unidade D Descrição gramatical Objetivos desta Unidade: ӲӲ Desenvolver a prática de análise linguística nos diferentes níveis gramaticais; ӲӲ Cotejar definições e classificações com dados linguísticos; ӲӲ Refletir criticamente sobre definições/classificações das gramáticas normativas, percebendo as inconsistências destas. Nesta Unidade, vamos conhecer alguns princípios e métodos para o estudo de gramática em seus diferentes níveis: fonético-fonológico, morfológico, sintático e semântico-pragmático. Vamos também analisar dados linguísticos à luz de definições gramaticais, avaliando o grau de adequação existente entre teoria e dados. É a Unidade em que vamos acionar com mais empenho o nosso investigador linguístico. Vamos colocar a “mão na massa”! Princípios e métodos do estudo de gramática Capítulo 11 Princípios e métodos do estudo de gramática Introduzimos esta Unidade com a seguinte citação de Perini (2002, p. 78): [...] contrariando a crença popular, existe muita coisa desconhecida em gramática; e, correspondentemente, faz-se grande quantidade de pesquisa nessa área, descobrem-se novos fatos, constroem-se novas teorias. E, mais, a gramática não é nada daquilo que nos impingem na escola. É uma disciplina ocupada, como as demais disciplinas científicas, em estudar um aspecto do mundo, a saber, a estrutura e o funcionamento das línguas. Entendida desse jeito, não só se torna muito mais interessante, como abre a possibilidade de pesquisa. Há o que descobrir em gramática, e muito. Como bem diz o autor, a gramática é “uma disciplina ocupada, como as demias disciplinas científicas, em estudar um aspecto do mundo, a saber, a estrutura e o funcionamento das línguas” (grifo nosso). É, portanto, da estrutura e do funcionamento da língua portuguesa que nos ocuparemos agora. Como vimos na Unidade B, a linguística apresenta algumas características que a definem como um estudo científico da linguagem: é empírica (lida com dados verificáveis), objetiva (tem caráter não preconceituoso) e explícita (tem um construto teórico-metodológico para descrição e explicação dos fatos linguísticos). Vimos também que o estudo sistemático da língua envolve os seguintes passos: observação, problematização, formulação e testagem de hipóteses, checagem do modelo teórico, generalização. É claro que o curto espaço de tempo de nossa disciplina não permite que sigamos todas essas etapas. Por exemplo, não vamos ter condições, ainda, de checar modelos teóricos e fazer generalizações. Mas vamos tentar alguns passos: 1) o bservar fatos linguísticos, isto é, o uso que os falantes fazem da língua; 2) formular hipóteses a partir dos fatos observados; 91 11 Estudos gramaticais 3) v erificar as hipóteses na análise dos dados, atestando-as ou rejeitando-as (e, neste último caso, reformulando-as); 4) tentar formular regras descritivas. Também vimos na segunda unidade que cabe ao linguista descrever e explicar o funcionamento da língua, isto é, a relação que existe entre os significados e as formas dessa língua. O lingüista precisa estar sempre consciente do caráter das afirmações gramaticais que faz: algumas se referem à forma, outras ao significado, e outras ainda se referem à relação entre forma e significado. [...] as afirmações que se referem à forma se chamam formais; as que se referem ao significado, semânticas; e as que se referem à associação entre forma e significado se chamam simbólicas. (PERINI, 2006, p. 68, grifos do autor). Assim como a palavra gramática, o termo funcional também é polissêmico. Pode significar as relações estabelecidas entre formas e significados no âmbito linguístico (no sentido de “simbólicas”), ou ainda entre formas e significados no âmbito do contexto comunicativo (no sentido de “pragmáticas” ou “discursivas”). Há ainda quem considere como critério funcional (ou sintático) as relações estabelecidas entre as palavras. Numa abordagem da língua como historicamente situada e sujeita a variações e mudanças, as associações entre formas e significados se dão sempre no contexto de uso linguístico envolvendo a situação comunicativa. Nesse sentido, a relação entre formas e significados pode ser chamada de funcional. É o conhecimento que os falantes têm das formas, dos significados e das associações entre formas e significados, isto é, do seu funcionamento, que lhes permite usar a língua nas mais diversas situações de comunicação. Ao descrevermos ou definirmos fenômenos linguísticos, utilizamos critérios que podem ser formais, semânticos ou funcionais. Observe as afirmações: a) Verbo é uma palavra que aceita o sufixo –rei. b) A noção de ‘futuro’ corresponde a uma situação temporal posterior ao momento de fala. c) A desinência –rei nos verbos exprime a noção de que algo ainda vai acontecer. Em (a) temos um critério formal, pois se trata de uma classe de palavras (verbo) e a possibilidade de acréscimo de um sufixo (uma forma que é um morfema). É importante esclarecer que estamos considerando que o critério formal pode recobrir tanto o nível morfológico como o 92 Princípios e métodos do estudo de gramática Capítulo nível sintático da língua. Entretanto, há autores, como Mattoso Camara Jr., que associam o critério formal ao nível morfológico, e o critério funcional ao nível sintático. Para nós, o critério funcional agrega aspectos formais e semânticos. Chamamos a atenção para a necessidade de se entender os conceitos independentemente da terminologia utilizada. Em (b) temos um critério semântico, uma vez que o que está em jogo é o significado de ‘futuro’. E em (c), um critério funcional, que associa a forma –rei ao significado de futuro. Os mesmos critérios aparecem nas afirmações abaixo, respectivamente: d) A palavra menino é trissílaba. e) ‘Agente’ é o elemento que pratica a ação. f) E m o menino saiu, o menino desempenha a função sintática de sujeito e o papel semântico de agente. Em (d) o critério é formal, pois remete ao tamanho da palavra em termos de número de sílabas. Em (e) o critério é semântico, porque traz o significado de ‘agente’. Em (f) o critério é funcional, uma vez que associa uma função sintática (forma) a um papel semântico (significado). Atenção! Fixe bem esses aspectos metodológicos, pois você vai precisar acioná-los para realizar as análises que vamos propor daqui para frente. Sintetizando: Na descrição e definição de fenômenos linguísticos, usamos critérios que podem ser: - formais: centrados na forma morfológica ou sintática dos elementos linguísticos. - semânticos: centrados na significação. - funcionais: centrados na associação entre formas e significados. 93 11 Estudos gramaticais Resumindo este tópico: A descrição gramatical se ocupa da estrutura e do funcionamento da língua em suas diferentes variedades. Ao descrevermos fenômenos linguísticos, utilizamos critérios que podem ser formais, semânticos ou funcionais. 94 Níveis de análise Capítulo 12 Níveis de análise Os níveis de análise linguística são: fonético-fonológico, morfológico, sintático (ou morfossintático) e semântico-pragmático. 12.1 Nível fonético-fonológico Esse nível de análise se ocupa das realizações linguísticas concretas dos sons e do sistema de sons da língua. Que tal começarmos com uma piada? Atente para a variação no texto humorístico e procure entender o fenômeno fonológico envolvido: Não vamos tratar teoricamente desses níveis, nem discutir a pertinência de abordá-los separadamente, pois no decorrer do curso você terá disciplinas específicas sobre cada um deles. Domingo à tarde, o político vê um programa de TV. Um assessor passa por ele e pergunta: – Firme? O político responde: – Não, Sírvio Santos (POSSENTI, 1998, p. 34) Observe o trecho abaixo, extraído do banco de dados linguísticos do projeto VARSUL. Note que se trata da transcrição de um trecho de entrevista, por isso a grafia representa aproximadamente a fala do informante. Entrevistador: Tu te lembras alguma coisa, assim, especial na tua infância, algum acontecimento que te marcou? Informante: Ah, lembru, achei [um] muito divertidu. Na épuca qui tava passandu aqueli fiwmi Kingui Kongui, pois a gente fomos assistir, né? imagina. I comu na casa de meu avô [é] – é tipu assim uma chacra, então a genti quando vowtô do fiwmi, né? a gente sempri custumava brincá que ia procurá o Kingui Kongui [...]. Passávamos o dia interu nu meiu du matu procurandu o Kingui Kongui. [...] Ah, O VARSUL – Variação Linguística na Região Sul do Brasil – é um projeto de pesquisa interinstitucional (UFPR, UFSC, UFRGS e PUC-RS) cuja meta é organizar um banco de dados linguísticos com vistas à descrição da fala da Região Sul. Já existem inúmeras teses, dissertações e artigos descrevendo amostras de fala desse banco de dados, em todos os níveis gramaticais e sob diferentes abordagens teóricas. tem [uma]- uma brincadera qui a genti custumava fazê quandu era criança, qui era muito divertida tamém. (SC FPL 01 F A PRI) 95 12 Estudos Gramaticais Podemos perceber, na fala transcrita do informante, diversos fenômenos de variação fonético-fonológica do português: ӲӲ o átono pós-tônico realizado como /u/ (lembru, épuca) ӲӲ e átono final realizado como /i/ (aqueli, genti) ӲӲ redução do ditongo /ey/ para /e/ (interu) ӲӲ redução do ditongo /ow/ para /o/ (vowtô) ӲӲ vocalização do /l/ em /w/ (vowtô) ӲӲ apagamento do /r/ final (brincá , fazê ) ӲӲ síncope, isto é, queda de um fonema no interior do vocábulo (chacra) Lembrete: o morfema é a unidade mínima significativa da língua (1ª articulação). Distingue-se do fonema, que é a unidade mínima não significativa, mas distintiva (2ª articulação). Um elemento é não morfêmico quando não carrega nenhum tipo de significação, sendo parte integrante de outro morfema. 96 Observe que, algumas vezes, a alteração verificada num segmento fonológico corresponde, de fato, ao nível morfológico.Veja os dados de apagamento do /r/ final no trecho de entrevista acima: brincá, procurá, fazê. Trata-se de verbos no infinitivo: brincar, procurar, fazer. Nesse caso, o /r/ é um fonema que tem valor morfológico, pois representa a desinência verbal de infinitivo. Os estudos sociolinguísticos sobre a realização da vibrante /r/ no português brasileiro (PB) apontam a tendência de apagamento da vibrante pós-vocálica, preferencialmente quando o /r/ tem estatuto morfêmico como nos verbos infinitivos ou em nomes derivados como escolar, cantor. Os contextos de /r/ não morfêmico são os que ainda retêm a vibrante: azar, pior, açúcar, calor. Em palavras como azar, pior, açúcar, calor, o /r/ é parte integrante do radical, diferente do que ocorre com os verbos no infinitivo. Esse fenômeno de variação (a realização ou não do /r/ final) está sujeito a diferenças regionais: nos dialetos carioca e florianopolitano, por exemplo, onde a articulação do /r/ é posterior, isto é, se dá na cavidade posterior da boca (velar), a queda é bem mais acentuada do que em Porto Alegre e Curitiba, onde a pronúncia é alveolar (a língua toca os alvéolos). A Região Sul do Brasil se mostra mais conservadora quanto ao apagamento do /r/ pós-vocálico (MONARETTO, 2000). Níveis de análise Capítulo Ainda em relação ao trecho da entrevista, observe o registro da pronúncia das palavras brincadera (brincadeira) e vowtô (voltou). São casos de redução dos ditongos /ey/ > /e/ e /ow/ > /o/, além da vocalização de /l/ na segunda palavra. Esse fenômeno de redução de ditongo e de vocalização de /l/ é bastante comum na fala, como você deve ter percebido, mas também aparece na escrita. A seguir, apresentamos dois desafios na forma de situações-problema: o primeiro relativo à oralidade e o segundo à escrita. Essa é uma forma de você mesmo verificar em que medida está assimilando os conteúdos que estão sendo trabalhados. Vamos ver como você se sai no papel de investigador linguístico! Situação-problema 1 Você é capaz de formular hipóteses sobre a redução (na fala) dos ditongos decrescentes /ey/ e /ow/, a partir da observação das palavras abaixo? Será que essa redução ocorre em todas as palavras? Use sua intuição de falante: perceba como você pronuncia cada palavra. seiva – reino – Leila – estudei – mineiro – manteiga – direito – outro – ouro – peixe – veio – peito – loucura – loura – trouxa – jardineira – beirada – colheita – sonhou – meio – soube – roupa – ouvido – beijo – encontrou – louco – meigo – padeiro – comprei – tesouro – meia – sei – cantou – queijo. Compare suas hipóteses com os seguintes resultados de pesquisa sobre redução de ditongos realizada por Paiva (1996), analisando dados de fala do Rio de Janeiro: – em final de palavra, há um comportamento categórico, com preservação de /y/ e supressão de /w/ em todas as palavras; – os contextos fonéticos seguintes ao ditongo que mais propiciam a redução são: as consoantes palato-alveolares (chiantes) [, 97 12 Estudos Gramaticais como em ‘trouxa’ <troxa> e ‘queijo’ <quejo>; e o /r/ simples, como em ‘mineiro’ <minero> e ‘ouro’ <oro>; – a redução do ditongo em sufixo, como em ‘padeiro’ <padero> é bem maior do que no radical, como em ‘roupa’ <roupa> . ӲӲ Então, houve coincidência entre suas hipóteses e os resultados de Paiva (1996)? Você acha que pode haver variação regional nesse fenômeno? ӲӲ Discuta essa questão com seus colegas. Vamos pensar agora na questão da escrita? Situação-problema 2 O conjunto de dados a seguir apresenta a consoante lateral /l/ em posição final de sílaba. Na escrita, especialmente das crianças, é comum encontrarmos grafias variáveis com vocalização do /l/ (l > u), como as do quadro a seguir. vouta – azul – aniu – mel – funil – pauco – selva – amáveu – reuva – sausa – balsa – filtro – ultra – anzóu – lençol – canil – anéu – falta – baude – coucha – culpa – molde – multa – carretéu – Procure separar as palavras em grupos tomando como critério a vogal que antecede o /l/. Considerando esse conjunto de dados, a sua experiência como professor(a) e a sua intuição de falante, formule hipóteses sobre a vocalização do /l/ na escrita tendo em vista a vogal precedente. Veja, agora, o resultado de uma pesquisa realizada em quatro escolas de Porto Alegre com alunos de 2a, 3a e 4a série do Ensino Fundamental. Foi aplicado um teste de lacuna em que as crianças tinham que escrever palavras sob figuras ou palavras que completassem o sentido da frase. 98 Níveis de análise Capítulo Todas as palavras apresentavam a lateral /l/ em final de sílaba. A pesquisadora constatou a seguinte correlação (TASCA, 2006, p. 197): [a, o, O, e, E] – maior índice do vocalização (ex.: lençóu por lençol) [i] – índice intermediário de vocalização (ex.: aniu por anil) [u] – pouquíssima vocalização (ex.: azul) ӲӲ E então, suas hipóteses coincidem com esse resultado? ӲӲ Discuta essa questão com seus colegas. Antes de finalizar esta seção, vamos tecer algumas considerações sobre o “erro” relacionado a aspectos fonético-fonológicos e ortográficos da língua. Bortoni-Ricardo (2006, p. 271), de forma bastante pertinente, coloca a seguinte questão: “por que falar em erros na escrita quando evitamos enfatizar erros na oralidade?”. Na fala, tratamos as diferenças como usos mais, ou menos, adequados às diferentes situações. A fala é o território da variação inerente; é onde o indivíduo marca sua identidade. Já na língua escrita, o chamado erro representa a transgressão de um código que é uniforme, convencionado e regulado pela ortografia – um código fixo que não prevê variação. As diferenças dialetais percebidas na fala são neutralizadas na escrita. Como bem exemplifica a autora: um professor pode aceitar de seu aluno tanto “eu encontrei ele no jardim”, quanto “eu o encontrei no jardim”; mas não pode jamais aceitar que o aluno escreva: “eu encomtrei [...]”. “O erro ortográfico é como um erro aritmético, que se pode facilmente aferir mediante consulta a uma tabuada. O erro ortográfico também é aferível mediante consulta a um guia ortográfico ou a um dicionário” (BORTONIRICARDO, 2006, p. 274). Vamos pensar um pouquinho mais na questão do erro ortográfico. Será que o problema que ocorre na grafia de <encomtrei> é da mesma natureza daquele que ocorre na grafia de <lembru>, <sempri>, <interu>, <cantá>, <bawdi>, <brusa>, <paia>? As palavras do segundo grupo podem estar representando a forma como são pronunciadas? Em quais palavras podemos perceber claramente a influência da fala sobre a escrita? 99 12 Estudos Gramaticais Você deve ter percebido que é no segundo conjunto de palavras que notamos a interferência da oralidade. Quem escreve <lembru>, <sempri>, <interu>, <cantá>, <bawdi>, <brusa>, <paia> provavelmente está reproduzindo no código escrito seu modo de falar. Nesse caso, é como se a escrita fosse o espelho da fala. Mas quem escreve <encomtrei> não está reproduzindo uma certa pronúncia. Nesse caso, o escrevente está rompendo com uma regra ortográfica que diz que ‘somente antes de p e b se escreve m’. Se fôssemos pensar em graus de erro ortográfico, certamente o erro seria mais grave em <encomtrei> do que nas demais palavras. Igualmente grave seria escrever <rrato>>, pois existe uma regra geral em português que diz que ‘não se inicia palavra com dois erres’. Retomando o que foi dito anteriormente, a ortografia é um código fixo que não prevê variação. Isso quer dizer que se há um desvio ortográfico há erro. Se a ortografia é um código fixo, não deveriam existir, portanto, diferenças linguísticas regionais ou sociais na escrita. Mas, como vimos nos dados acima, encontramos algumas palavras cuja grafia reflete diferenças linguísticas dos falantes. Nesse caso, cabe ao professor ter conhecimento linguístico e sensibilidade para lidar com essas questões na sala de aula. A percepção da natureza diferenciada dos desvios ortográficos e a distribuição das palavras em “graus de erros” é um bom ponto de partida. Para refletir Quando tratamos de “norma” na Unidade C, verificamos que existem variações que contrastam o dialeto padrão e o não padrão, como em <brusa> por ‘blusa’, <paia> por ‘palha’. E que também existem variações dentro de um mesmo dialeto. Vamos refletir um pouco mais sobre isso. Como você vê a pronúncia das vogais átonas /e/ e /o/, que são elevadas para /i/ e /u/, como em <divertidu>, <épuca>, <aqueli>? 100 Níveis de análise Capítulo Trata-se de um uso não padrão ou de variação no âmbito da norma culta (ou dialeto padrão)? Por quê? 12.2 Nível morfológico Esse nível de análise contempla a descrição das palavras e de suas partes constituintes: radical, afixos, desinências (na terminologia tradicional) ou morfemas (na terminologia linguística). As gramáticas normativas costumam incluir a classe, a estrutura e a formação de palavras no nível da morfologia. Vamos começar discutindo a noção de palavra. Na escrita, uma palavra é identificada por espaços em branco que a delimitam antes e depois. Na fala, muitas vezes as palavras se pronunciam praticamente ligadas, numa espécie de contínuo fonético. Vamos tratar da palavra escrita. Para efeitos de análise, vamos seguir a orientação de Perini (2006) e estabelecer uma distinção entre “palavra” e “lexema”. Para o autor, Mattoso Camara Jr. distingue o “vocábulo formal” (da escrita) do “vocábulo fonológico” (da fala). Uma palavra é uma forma individual, com uma representação fonológica ou gráfica única; um lexema é uma classe de palavras relacionadas de determinada maneira. Por exemplo, flor e flores são duas palavras, mas pertencem ao mesmo lexema [...] Já flor e florista pertencem a lexemas diferentes porque essa relação (com o sufixo –ista significando ‘pessoa que trabalha com’) só ocorre em alguns casos, e de maneira pouco regular. (PERINI, 2006, p.93, grifos do autor). Vamos colocar nosso investigador linguístico em ação? Prepare-se para mais um desafio. Lembre-se de que um de nossos objetivos nesta Unidade é desenvolver a prática de análise linguística. E isso só se faz colocando a “mão na massa”. Antes, você deve se munir dos seguintes conceitos: Derivação: processo morfológico que cria novas palavras e lexemas a partir da junção de afixos (prefixos e/ou sufixos) a um radical (ex.: enriquecer). 101 12 Estudos Gramaticais Flexão: processo morfológico que consiste em prover os radicais (verbais, nominais etc) de afixos ou desinências que variam conforme o gênero, o número, a pessoa etc. A flexão não cria novos lexemas (ex.: cantaste; meninas). Relação aberta: corresponde ao conjunto de palavras e lexemas que se pode encontrar listadas no dicionário. Diz-se que é uma relação aberta porque as línguas estão constantemente ganhando novas palavras. Trata-se do léxico de uma língua. Relação fechada: corresponde às regras gramaticais que, apesar de serem variáveis, não estão sujeitas a inovações constantes como o léxico. Trata-se da gramática de uma língua – um conjunto de regras de formação, combinação, uso de palavras etc, que funciona de modo sistemático. Considere, agora, as três afirmativas a seguir. 1) As palavras pertencem a um único lexema quando elas se relacionam gramaticalmente de modo sistemático e regular (PERINI, 2006, p. 93). 2) É preciso distinguir “sufixos flexionais” de “sufixos derivacionais”, pois os últimos não constituem um quadro regular, coerente e preciso como os primeiros, uma vez que: a) uma derivação pode aparecer para um dado vocábulo e faltar para outro semelhante (cantar – cantarolar; falar–falarolar (?)); b) o falante tem liberdade para usar ou não um vocábulo derivado; já a flexão de gênero e número, por exemplo, é determinada pela construção frasal (regras de concordância); c) enquanto a derivação estabelece “relações abertas” no âmbito do léxico, a flexão estabelece “relações fechadas” no âmbito da gramática de uma língua (CAMARA JR., 1972, pp. 71-72). 3) Na seção sobre flexões dos substantivos, Cunha e Cintra (1985, p. 174) dizem que “os substantivos podem variar em número, gênero e grau”. Os autores consideram o grau como uma flexão. 102 Níveis de análise Capítulo A partir das três afirmações apresentadas, procure analisar, comparativamente, os três conjuntos de itens do quadro a seguir. Primeiro, tente utilizá-los em diferentes contextos frasais. Tenha em mente as seguintes distinções para agrupar os itens: – lexemas versus palavras – morfema flexional versus morfema derivacional – grau: flexão ou derivação? Cunha e Cintra têm razão ao tratar grau como flexão? – valores semânticos dos sufixos –inho e –ão. gato – gata menino – menina aluno – aluna gato – gatos menino – meninos aluno – alunos amar – amava cantar – cantava andar – andava sair – sairia partir – partiria pedir – pediria consolar – consolo julgar – julgamento testar – testagem 103 12 Estudos Gramaticais fritar – fritura cortar – corte limpar – limpeza chegar – chegada inaugurar – inauguração tentar – tentativa pão – padeiro casa – caseiro música – musicista motor – motorista estofado – estofador casa – casinha/ casinhola/ casebre livro – livrinho/ livreto/ livrete colher – colherzinha/ colherinha sofá – sofazinho casa – casão/ casarão / casaréu filme – filmão carro – carrão carro – carrinho lombo – lombinho camisa – camisinha calça – calcinha 104 Níveis de análise Capítulo padre – padrezinho/ padrinho porta – portão bota – botão Se você chegou a uma conclusão próxima ao que se encontra abaixo, parabéns! Caso contrário, volte e reflita um pouco mais sobre essas questões. a) Somente na primeira coluna temos casos de palavras e lexemas: gato, gatos e gatas são três palavras e pertencem a um lexema; o mesmo ocorre com menino, meninos e menina; e com aluno, alunos e aluna. Cada par de verbos corresponde a duas palavras e um lexema (amar e amava etc). Tanto as desinências –a (feminino) e –s (plural), como as desinências verbais –va (pretérito imperfeito) e –ria (futuro do pretérito) fazem parte de paradigmas sistemáticos e coesos. Na segunda e na terceira coluna, temos apenas palavras, pois elas não se relacionam de modo regular e coerente. b) Apenas na primeira coluna temos morfemas ‘flexionais’: de gênero e número nos substantivos; e de número-pessoa e modo-tempo nos verbos. Na segunda coluna temos morfemas ‘derivacionais’: a) uma série de nove verbos derivam nomes abstratos com oito sufixos diferentes; e b) de uma série de cinco substantivos, três derivam palavras que designam “pessoas que trabalham com”, com sufixos diferentes (–eiro em ‘padeiro’, –ista em ‘musicista’ e –or em ‘estofador’ ). Por outro lado, ‘caseiro’ não é uma “pessoa que trabalha com casas”, e sim uma “pessoa que fica em, ou cuida de casa”; e ‘motorista’ não é uma “pessoa que trabalha com motores”, e sim uma “pessoa que dirige carro”. Portanto, não há regularidade na formação dessas novas palavras. c) Na terceira coluna temos dados relacionados a grau diminutivo e aumentativo. Também não existe uma regularidade na formação das palavras, uma vez que alguns sufixos se combinam 105 12 Estudos Gramaticais bem com certas palavras, mas não servem para outras. Por outro lado, em certas formações, pode haver mudança de significado, como nos sete últimos pares (carro (veículo) – carrinho (brinquedo); lombo (costas) – lombinho (peça de carne); padre (sacerdote) – padrinho (aquele que apresenta alguém para batismo), etc). Além disso, os sufixos –inho e –ão não indicam, em todas as palavras, ‘tamanho pequeno’ e ‘tamanho grande’, respectivamente. Em “ontem assisti a um filmão na TV”, o filme com certeza foi muito bom, mas não foi necessariamente longo; quando alguém chama outra pessoa de “queridinha”, esta pessoa não é necessariamente pequena. d) Podemos escolher entre dizer “gostei deste livro” e “gostei deste livrinho”. Mas não temos liberdade, pelo menos na variedade culta da língua, para escolher entre “as gata andavam no jardim”, “as gata andava no jardim” e “as gatas andavam no jardim”; só é aceita esta última alternativa. e) Em resposta ao questionamento apresentado na terceira afirmativa, com base nos argumentos que listamos anteriormente, percebemos que os gramáticos Cunha e Cintra não têm razão, pois a categoria de grau não é flexão e sim derivação. (Veja novamente as justificativas apresentadas por Camara Jr. para distinguir flexão de derivação.) Divirta-se! Leia a crônica de L.F. Veríssimo que aborda, de forma humorística, a questão do grau. Aproveite e reflita sobre os diferentes valores semânticos dos sufixos –inho e –ão que você encontrar no texto. DIMINUTIVOS, de Luis Fernando Verissimo Sempre pensei que ninguém batia o brasileiro no uso do diminutivo, essa nossa mania de reduzir tudo à mínima dimensão, seja um cafezinho, um cineminha ou uma vidinha. 106 Níveis de análise Capítulo Só o que varia é a inflexão da voz. Se alguém diz, por exemplo, “Ô vidinha”, você sabe que ele está se referindo a uma vida com todas as mordomias. Nem é uma vida, é um comercial de cigarro com longa metragem. Um vidão. Mas se disser “Ah vidinha...” o coitado está se queixando dela, e com toda a razão. Há anos que o seu único divertimento é tirar sapatos e fazer xixi. Mas nos dois casos o diminutivo é usado com o mesmo carinho. O francês tem o seu “tout petit peu”, que não é um diminutivo, é um exagero. Um “pouco todo pequeno” é muita explicação para tão pouco. Os mexicanos usam o “poco”, o “poquito” e – menos ainda que o “poquito” – o “poquetín”. Mas ninguém bate o brasileiro. Era o que eu pensava até o dia, na Itália, em que ouvi alguém dizer que alguma coisa duraria um “mezzoretto”. Não sei se a grafia é essa mesma, mas um povo que consegue, numa palavra, reduzir uma meia hora de tamanho – e você não tem nenhuma dúvida de que um “mezzoretto” dura os mesmos trinta minutos de uma meia hora convencional, mas passa muito mais depressa – é invencível em matéria de diminutivo. O diminutivo é uma maneira ao mesmo tempo afetuosa e precavida de usar a linguagem. Afetuosa porque geralmente o usamos para designar o que é agradável, aquelas coisas tão afáveis que se deixam diminuir sem perder o sentido. E precavida porque também o usamos para desarmar certas palavras que, na sua forma original, são ameaçadoras demais. “Operação”, por exemplo. É uma palavra assustadora. Pior do que “intervenção cirúrgica”, porque promete uma intervenção muito mais radical nos intestinos. Uma operação certamente durará horas e os resultados são incertos. Suas chances de sobreviver a uma operação... sei não. Melhor se preparar para o pior. Já uma operaçãozinha é uma mera formalidade. Anestesia local e duas aspirinas depois. Uma coisa tão banal que quase dispensa a presença do 107 12 Estudos Gramaticais paciente. [...] No Brasil, usa-se o diminutivo principalmente em relação à comida. Nada nos desperta sentimentos tão carinhosos quanto uma boa comidinha. - Mais um feijãozinho? O feijãozinho passou dois dias borbulhando num daqueles caldeirões de antropófagos com capacidade para três missionários. Leva porcos inteiros, todos os miúdos e temperos conhecidos e, parece, um missionário. Mas a dona de casa o trata como um mingau de todos os dias. - Mais um feijãozinho? - Um pouquinho. - E uma farofinha? - Ao lado do arrozinho? - Isso. - E quem sabe mais uma cervejinha? - Obrigadinho. O diminutivo é também uma forma de disfarçar o nosso entusiasmo pelas grandes porções. E tem um efeito psicológico inegável. Você pode passar horas tomando “cervejinha” em cima de “cervejinha” sem nenhum dos efeitos que sofreria depois de apenas duas cervejas. - E agora, um docinho. E surge um tacho de ambrosia que é um porta-aviões. (Disponível em: <http://intervox.nce.ufrj.br/~jobis/l-dimi.htm>. Acesso em: 19 maio 2007) 108 Níveis de análise Capítulo 12.2.1 A questão do gênero Continuemos nossa reflexão sobre os processos morfológicos. Como vimos, a flexão é um mecanismo gramatical que implica alterações morfológicas no final das palavras, aplicadas de modo sistemático e regular. Vamos nos deter na categoria de gênero, que distribui os nomes em masculinos e femininos. Camara Junior considera que a flexão de gênero é redundante nos nomes substantivos em português, pois o gênero dos substantivos seria indicado pelos artigos e adjetivos que os determinam. Assim, menino é masculino porque se diz o menino estudioso. A regra geral de flexão de gênero em português é a seguinte: acréscimo, para o feminino, do sufixo flexional –a, com a supressão da vogal temática, quando ela existe no singular: lob(o) + a = loba do nome); (o –o de lobo corresponde à vogal temática autor + a = autora. É importante observar que essa é uma regra morfológica que descreve a categoria gênero enquanto flexão. É comum, no entanto, encontrarmos em gramáticas normativas e livros didáticos informações do seguinte tipo: Os substantivos que designam pessoas e animais costumam flexionarse em gênero, isto é, têm geralmente uma forma para indicar os seres do sexo masculino e outra para indicar os do sexo feminino [Entre os exemplos, os autores citam: aluno – aluna; galo – galinha; bode – cabra] (CUNHA; CINTRA, 1985, p.184). A afirmação acima apresenta, pelo menos, dois problemas. Você consegue detectá-los? Vamos voltar a esse ponto mais adiante. Agora, vamos colocar novamente o investigador linguístico em ação! Para refletir Observe o conjunto de dados abaixo e tente distribuí-los em 109 12 Estudos Gramaticais grupos de acordo com características comuns quanto à marcação de gênero. Pista: mantenha como critério básico a noção de flexão. vitrine cavalheiro – dama cônjuge duque – duquesa tataravô – tataravó genro – nora homem – mulher marquês – marquesa pastor – pastora baleia abade – abadessa solteirão – solteirona cortesão – cortesã cantor – cantora herói – heroína patrão – patroa cobra juiz – juíza cliente colega novo – nova sogro – sogra garoto – garota pessoa criança imperador – imperatriz nascente cadeira artista rádio indivíduo elefante – elefanta capital Como você deve ter percebido, o conjunto de dados acima apresenta palavras cujo gênero (masculino ou feminino) é indicado de acordo com diferentes critérios. Tente identificar os dados que se acomodam às seguintes descrições, depois discuta a análise com seus colegas: - há palavras que se conformam à regra geral de flexão de gênero; - há palavras que entram na regra geral, porém com pequenas alterações fonológicas; - há palavras que indicam o gênero mediante derivação; - há palavras que diferenciam o gênero através da mudança de radicais; - há palavras que mantêm a mesma forma para o masculino e o feminino; - há palavras que só apresentam uma possibilidade de gênero; - há palavras que mudam o significado conforme o gênero. 110 Níveis de análise Capítulo Essa mistura de critérios morfológicos e semânticos recobre também uma certa confusão entre a noção gramatical de gênero masculino e feminino e a noção semântica de sexo (macho e fêmea). Como equacionar esse problema? Camara Jr. (1972, p. 82) propõe que o gênero em português, considerando a flexão, seja descrito por regras que distribuam os nomes em três grupos: 1) Nomes de gênero único (ex.: a rosa; o livro). 2) Nomes de dois gêneros sem flexão (ex.: o, a artista; o, a mártir). 3) N omes de dois gêneros, com flexão redundante (ex.: o lobo, a loba; o mestre, a mestra). 12.2.2 A questão das classes de palavras Quantas classes de palavras existem em português? Se nos basearmos na tradição gramatical diremos que são dez: substantivo, adjetivo, verbo, pronome, artigo, numeral, advérbio, preposição, conjunção e interjeição. Observe algumas definições encontradas em gramáticas normativas: Sugerimos que você consulte estas e outras gramáticas e veja as definições dadas para todas as classes. 1) Para substantivo: a) Substantivo é a palavra com que designamos ou nomeamos os seres em geral (CUNHA, 1972, p. 121). b) Substantivo é a palavra com que nomeamos os seres em geral, e as qualidades, ações, ou estados, considerados em si mesmos, independentemente dos seres com que se relacionam (ROCHA LIMA, 1972, p. 61). 2) Para adjetivo: a) Adjetivo é a espécie de palavra que serve para caracterizar os seres ou os objetos nomeados pelo substantivo (CUNHA, 1972, p. 170). b) Adjetivo é a palavra que modifica o substantivo, exprimindo aparência, modo de ser, ou qualidade (ROCHA LIMA, 1972, p. 86). 111 12 Estudos Gramaticais 3) Para verbo: a) Verbo é a palavra que exprime um fato (ação, estado ou fenômeno) representado no tempo (CUNHA, 1972, p. 253). b) O verbo, que denota ação, estado, ou fenômeno, é a parte da oração mais rica em variações de forma ou acidentes gramaticais (ROCHA LIMA, 1972, p.107). 4) Para pronome: a) Pronomes são palavras que servem: a) para representar um substantivo; [...] b) para acompanhar um substantivo, determinandolhe a extensão do significado (CUNHA, 1972, p. 199). b) Pronome é a palavra que denota o ente ou a ele se refere, considerando-o apenas como pessoa do discurso. [...] Os pronomes, vazios de conteúdo semântico, têm significação essencialmente ocasional (ROCHA LIMA, 1972, p.98). Vamos analisar, brevemente, todas as definições de verbo, substantivo, adjetivo e pronome, dadas acima, considerando: a) os critérios utilizados; e b) a adequação de cada definição aos dados. Assuma novamente sua posição de investigador linguístico e dialogue conosco. Como vimos no início desta unidade, os critérios, para descrevermos fenômenos gramaticais, podem ser formais, semânticos ou funcionais. Consideremos, então, os pares de definições acima. Em (1), substantivo corresponde a nome de seres em geral, e a qualidades, ações ou estados considerados independentemente dos seres (ou tomadas, elas próprias, como seres). Ou seja, a definição de substantivo remete a coisas no mundo. O critério usado nessa definição é semântico, pois tem a ver com a significação. Situação-problema – Tente analisar os dados abaixo à luz das duas definições de substantivo apresentadas. 112 Níveis de análise Capítulo 1) Os alunos acertaram a classificação do com. 2) O interessante do livro está na capa. 3) O branco é uma cor bonita. 4) Gosto de apreciar o cair da tarde. – Quantos substantivos você identificou? (Dez?) – Você consegue identificar que seres essas palavras designam? – Você acha que a definição está adequada aos dados? – Discuta suas descobertas com seus colegas. Passemos ao segundo par de definições. Em (2), ambas as definições se pautam pelo mesmo critério? Qual é o critério (ou critérios) utilizado? Compare: a) palavra que caracteriza os seres; e b) palavra que modifica o substantivo, exprimindo aparência, modo de ser, ou qualidade. “Caracterizar os seres” é o mesmo que “modificar o substantivo”? Não é. A primeira definição associa o adjetivo diretamente aos seres no mundo; já a segunda relaciona o adjetivo ao substantivo, ou seja, relaciona duas classes de palavras no âmbito da língua, além de dizer para que serve o adjetivo. A primeira definição se assenta num critério semântico, e a segunda num critério funcional. Leia o texto de Perini: “O adjetivo e o ornitorrinco”. In: PERINI, M. Sofrendo a gramática. São Paulo: Ática, 2002. p. 39-46. Neste texto, o autor discute critérios de classificação de substantivos e adjetivos. Situação-problema Agora, com base nas definições dadas para substantivo e adjetivo, examine os dados abaixo (dados adaptados de PERINI, 2002): 1) Maria demonstra uma atitude maternal. 2) Joãozinho estuda no maternal. 3) Rosa sempre tem uma palavra amiga. 113 12 Estudos Gramaticais 4) Pedro se mostrou um amigo fiel. 5) Marcinha é uma menina magrela. 6) Essa magrela não para! 7) José é um homem trabalhador. 8) Os trabalhadores não chegaram ainda. 9) João tem um carro verde. 10)O verde está na moda. 11) Vítor tem um papo muito cabeça. 12) Maria estava com dor de cabeça. 13) Esse cara é um banana. 14) A banana está madura. – O que você percebeu? Pode-se dizer que as palavras pertencem a classes fechadas (do tipo: uma vez substantivo sempre substantivo)? – Você vê problemas nas definições de substantivo e adjetivo apresentadas? – O que você diz de: “Ele comprou um casaco muito cheguei.”? Vamos ver agora o terceiro par de definições. Em (3), a primeira definição associa verbo a fato representado no tempo (critério semântico). A segunda definição, além de atribuir ao verbo a denotação de ação, estado, ou fenômeno (critério semântico), caracteriza-o como a parte da oração mais rica em variações de forma (critério formal). Em síntese: a primeira vincula verbo à ideia de tempo, e a segunda, além de não mencionar o tempo, evidencia que o verbo é rico em alterações formais, mas sem especificá-las. 114 Níveis de análise Capítulo Situação-problema Examine as frases abaixo à luz das definições de verbo apresentadas. 1) A tempestade do final de semana foi violenta: derrubou muitas árvores, empurrou aqueles carros e nos deixou apavorados. 2) A corrida de ontem foi acidentada. – Quais são as palavras que se encaixam nas definições? – As definições recobrem adequadamente a classe dos verbos? – Não poderíamos interpretar a tempestade do final de semana e a corrida de ontem como fenômeno e ação, respectivamente, situados no tempo? – Não poderíamos interpretar violenta, apavorados e acidentada como estados? Seriam, então, verbos? Por fim, vamos à discussão do quarto par de definições. Em (4a), o pronome é apresentado como a palavra que representa um substantivo (isto é, está no lugar de um substantivo), ou que acompanha um substantivo determinando-lhe a extensão do significado. Qual é o critério em jogo aqui? Como envolve relações sintáticas e semânticas, trata-se de um critério funcional. Em (4b), o pronome é visto como a palavra que denota o ente (ou ser), sendo vazio de significado, ou seja, só ganhando significação no contexto de uso. Pode-se dizer que o critério, neste caso, é semântico-pragmático, já que atrela a significação ao contexto. Quando consideramos na análise linguística o contexto de uso das formas – não só o contexto frasal, mas o contexto mais amplo que envolve a situação comunicativa, os participantes da interação, o conhecimento partilhado entre eles, as inferências sobre as intenções e crenças de um interlocutor –, estamos no âmbito da pragmática. A semântica se 115 12 Estudos Gramaticais ocupa do significado das palavras e das sentenças. Como, muitas vezes, é difícil delimitar esses campos, vamos reuni-los no nível semânticopragmático. Será que essas definições são adequadas? De saída, temos que considerar que essa classe recobre os seguintes tipos de pronomes: pessoais (retos e oblíquos), possessivos, demonstrativos, indefinidos e relativos. Observemos os exemplos: 1) Eu deixei meu livro novo de português em casa. 2) O Paulo? Encontrei-o naquela praça ontem. 3) Vários alunos assistiram ao filme que recomendei. Os itens eu, meu, o, aquela, vários e que são considerados pronomes. Quais representam substantivos e quais acompanham substantivos? Em meu livro, aquela praça e vários alunos, os pronomes acompanham substantivos (são, por isso, chamados de “pronomes adjetivos” pela tradição gramatical). Veja-se, porém, que novo também acompanha o substantivo “livro”. Seria então um pronome? O pronome o está substituindo o nome “Paulo”, e o relativo que retoma o antecedente “filme”. Mas que substantivo o pronome eu está representando? Eu remete à pessoa que fala, à primeira pessoa do discurso, mas não pode substituir o nome próprio. É agramatical a frase “* Maria deixei meu livro.”, em que Maria = eu. Portanto, eu não está substituindo nem acompanhando um nome. Consideremos, agora, a questão de o pronome ser vazio de significado. O significado de eu é apenas ‘primeira pessoa do discurso’. Somente a cada enunciação é que eu se reveste de sentido: pode corresponder a Maria, João, Pedro etc., dependendo de quem esteja falando. Mas e quanto a vários? Independentemente da frase produzida, vários significa ‘diversos’, não sendo, portanto, uma forma vazia de significado. Com essa rápida análise dos conceitos de pronome, percebemos que há incompatibilidades entre as definições e as supostas palavras que elas abrangem. Em outros termos, as propriedades de “substituir” ou “acompanhar” o substantivo não são adequadas para delimitar a classe tradicional dos pronomes. 116 Níveis de análise Capítulo Vamos focalizar nossa atenção nos pronomes pessoais. Eis o quadro dos pronomes pessoais portugueses segundo a gramática normativa (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 270): PESSOA pronomes pessoais retos pronomes pessoais retos oblíquos átonos pronomes pessoais retos oblíquos tônicos 1ª pes. sing. 2ª pes. sing. 3ª pes. sing. 1ª pes. pl. 2ª pes. pl. 3ª pes. pl. eu tu ele(a) nós vós eles(as) me te o(a)/lhe nos vos os(as)/lhes mim, comigo ti, contigo ele(a) nós, conosco vós, convosco eles(as) Camara Jr. (1972, p. 108) já dizia que tal quadro é “puramente teórico” porque “em nenhuma região da língua portuguesa ele se realiza exatamente”. Situação-problema Observe os dados abaixo e apresente um quadro que seja representativo do funcionamento do português falado atualmente (use as notações P1 a P6 para designar as pessoas do discurso). a) Você quer que eu lhe dê o livro? b) Você quer que eu te dê o livro? c) Você quer que ele dê o livro para ti? d) Você disse que o João vinha contigo. e) Tu disseste que o João vinha contigo. f) Não posso deixar você entrar. g) Não posso deixá-lo entrar. (dirigindo-se ao interlocutor) h) Eu lhe disse para ficar quieto. (dirigindo-se ao interlocutor) i) Eu disse a você para ficar quieto. 117 12 Estudos Gramaticais j) Eu também disse a ele que queria sair. k) Maria levou o carro para ele. l) A gente não gosta de cinema. m)Nós não fomos à festa ontem. n) Vocês vão ao cinema comigo? o) Vou ao cinema com vocês e não com eles. p) Essas flores são para mim? – Não, são para nós! q) A gente fica feliz se nos trouxerem um sorvete. r) Tu vens à festa com a gente? s) Vens conosco? t) Deixei eles em casa. u) Eu contei a ele meu sonho. v) Eu lhe contei meu sonho. w) Eles me deram um presente. x) Eles deram um presente para mim. y) Encontrei ele na feira. PESSOA pronomes pes- pronomes pessoais pronomes pessoais soais retos oblíquos átonos oblíquos átonos P1 P2 P3 P4 P5 P6 Compare os quadros (o seu e o de Cunha e Cintra) e tire suas conclusões. 118 Níveis de análise Capítulo Atentemos, agora, para o valor dos pronomes possessivos: Os pronomes possessivos acrescentam à noção de pessoa gramatical uma idéia de posse. (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 310). Para refletir As palavras seu(s) e meus e minha indicam posse nas frases abaixo, da mesma maneira que em “meu casaco é verde”? O que significam? 1) Saia daqui seu pirralho! 2) Ela tem seus quarenta anos. 3) Ele com certeza não puxou aos seus. 4) Venha cá, minha querida. 5) Seu João acabou de chegar. 6) Minha Nossa Senhora! O que aconteceu? 7) Meus parabéns pelo seu aniversário! 12.3 Nível sintático Assim como os morfemas se agrupam para formar palavras, estas se agrupam para formar sintagmas. Sintagmas são constituintes que associam forma e significado como se fossem “partes naturais” da oração ou do período. Assim, para identificarmos os constituintes de uma frase precisamos perceber sua organização semântica e formal em unidades (unidades de forma e de significado). Por exemplo, ao processarmos a frase O carro de Pedro é novo., atribuímos significados parciais a certas sequências de palavras: [o carro de Pedro] e [é novo]. Não vamos segmentar a oração em: [o carro de] e [Pedro é novo]. Ao ouvirmos O carro de Pedro é novo, vamos entender que o carro é de Pedro e que o carro é novo, e não que Pedro é novo. Nesse exemplo temos dois sintagmas: um sintagma nominal (cujo núcleo é 119 12 Estudos Gramaticais um nome) e um sintagma verbal (cujo núcleo é um verbo). É por isso que Perini (2006, p.98) enfatiza que “as expressões lingüísticas não são (apenas) seqüências de palavras, e não podem ser descritas como se fossem; elas são seqüências de constituintes”. A sintaxe se ocupa do estudo dos sintagmas/constituintes, sua composição e sua estrutura em unidades maiores. As gramáticas normativas tradicionais, na sintaxe, reúnem tópicos como: constituição da oração e do período (funções sintáticas: sujeito, objeto, complemento etc); concordância nominal e verbal; regência verbal; emprego das palavras; colocação pronominal. Vamos examinar a definição tradicional de sujeito. Sujeito é o ser de quem se diz algo (ROCHA LIMA, 1986, p.205). Sujeito é o ser sobre o qual se faz uma declaração (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 119). Qual é o critério que sustenta essas definições? Veja que o sujeito é apresentado como o ‘ser’ (isto é, tem referência no mundo – critério semântico) sobre o qual se diz algo (isto é, implica a enunciação num contexto – critério pragmático-discursivo). Como você deve ter percebido, temos aqui um problema: uma categoria sintática (o sujeito) sendo definida mediante critérios semântico-pragmáticos. Para refletir Observe os dados abaixo e tente aplicar as duas definições de sujeito que acabamos de ver. 1) Em Florianópolis, choveu muito no mês passado. 2) O livro, eu emprestei para o professor. 3) Na festa de ontem tinha muita gente. 4) Quem chegou? 120 Níveis de análise Qual é o ‘ser’, ou o elemento sobre o qual se diz algo? Parece não haver dúvidas de que são feitas declarações sobre Florianópolis, o livro e a festa de ontem, respectivamente. Mas esses três constituintes são sujeitos das orações? (Florianópolis e na festa de ontem são adjuntos adverbiais, e o livro é um ‘tópico’ no caso, um objeto direto deslocado). Por outro lado, em Quem chegou? não temos uma declaração mas uma pergunta. Outro problema que detectamos aqui: a definição proposta não dá conta dos dados. Continuando a explorar o que diz a gramática normativa sobre sujeito, encontramos o seguinte: Capítulo Tópico é uma noção discursiva, que tem a ver com a função comunicativa. O tópico costuma ser colocado no início da frase e é o elemento sobre o qual se afirma, pergunta algo, etc. - sujeito e predicado são termos essenciais da oração; - são tipos de sujeito: simples, composto, oculto, indeterminado e oração sem sujeito. Qual é o problema aí? Se o sujeito é um termo essencial da oração, não pode faltar (não havendo sujeito, não há oração!). Então como pode existir um tipo identificado gramaticalmente como “oração sem sujeito”? Outra definição de sujeito comumente encontrada em livros didáticos é a seguinte: “Sujeito é o ser que pratica a ação expressa pelo verbo.” Para refletir Procure aplicar a definição acima aos seguintes dados: 1) O bandido levou uma surra. 2) Este presente foi comprado pelo meu filho. 3) Vítor e Cecília estão muito felizes hoje. 4) Márcia tem quinze anos. O que você percebeu? Qual é o sujeito de cada oração? Na primeira, não se sabe quem praticou a ação (o bandido sofreu a ação!); na 121 12 Estudos Gramaticais segunda, o agente é o meu filho (mas não é o sujeito!); nas demais não há verbo de ação, portanto não há agente. Mas todos sabemos que o sujeito de cada oração é, respectivamente, o bandido, este presente, Vítor e Cecília e Márcia. Segundo Perini, as classes são verificáveis fora do contexto frasal, e as funções só são verificadas no contexto da frase. Para evitar problemas desse tipo, e outros, Perini costuma fazer uma distinção entre classe e função e propõe uma nova classe: a dos SNs (sintagmas nominais). Vamos observar com mais atenção o sintagma nominal (SN). Veja os exemplos: [Cecília] chegou. [Minha amiga de Recife] chegou. Vou encontrar [Cecília]. Vou encontrar [minha amiga de Recife]. Trouxe um presente para [Cecília]. Trouxe um presente para [minha amiga de Recife]. Ontem saímos com [Cecília]. Ontem saímos com [minha amiga de Recife]. Os constituintes destacados (Cecília e minha amiga de Recife) são SNs. Um sintagma nominal é tudo aquilo que, em termos de gramática tradicional, pode exercer a função sintática de sujeito, objeto direto ou complemento de preposição (objeto indireto, adjuntos etc.). O sintagma nominal também pode ser constituído por um pronome: Ela chegou cedo. Pela proposta desse autor, as classes se definem em relação à estrutura da língua, independentemente de sua ocorrência em enunciados. Por exemplo, à pergunta: “a que classe de palavras pertence Cecília?”, a resposta será: “substantivo”. Segundo Perini, não haveria necessidade de observar esta palavra numa frase para identificar a sua classe. Já as funções se definem em termos de um contexto frasal. São relações (de ordem, de concordância, de papéis sintáticos etc.) que existem 122 Níveis de análise Capítulo entre as unidades dentro de uma frase. À pergunta: “qual é a função sintática de Cecília”?, a resposta só pode ser dada a partir da frase, ou seja, examinando a função desse constituinte na frase. Considerando o conjunto de frases acima, a reposta poderá ser: sujeito, objeto direto ou complemento de preposição. Vamos pensar um pouco mais nessa proposta de Perini. Será que podemos identificar a classe de qualquer palavra tomada isoladamente, fora do contexto da frase? Por exemplo: “a que classe de palavras pertence velho”? Qual seria a resposta: substantivo? adjetivo? Se estivesse numa fase como Meu velho amigo chegou, seria adjetivo. Mas se a frase fosse O velho chegou, seria substantivo. O que podemos concluir? Que mesmo as classes de palavras (pelo menos algumas) parecem precisar de um contexto frasal para serem adequadamente identificadas. Uma noção importante para a classificação de formas é a de potencial funcional, isto é, o conjunto de funções que cada classe pode desempenhar. Assim, [...] as unidades da língua se classificam por seu potencial funcional: uma classe é o conjunto das formas da língua que têm potencial funcional semelhante. As diferentes formas da língua, juntamente com as classes a que cada uma pertence, são parte de nosso conhecimento permanente. (PERINI, 2006, p.138, grifo do autor). Assim, a classe dos SNs se define como o conjunto de formas que podem: a) exercer a função de sujeito, objeto direto ou complemento da preposição; b) ser usadas referencialmente, isto é, designando ‘seres’ (propriedade semântica). Essas duas propriedades constituem o potencial funcional do SN. Vamos ver, com mais detalhes, a questão das funções sintáticas, seguindo a orientação de Perini (2006). Na frase abaixo, podemos distinguir três constituintes: [As meninas] [encontraram] [Cecília]. Temos dois SNs que aparecem em determinada ordem na frase: as 123 12 Estudos Gramaticais meninas antes do verbo, e Cecília depois do verbo. Uma primira observação importante extraímos daí, relacionada à ordem dos constituintes: as meninas e Cecília têm funções diferentes porque aparecem em posições diferentes na frase. Examinemos o terceiro constituinte: o verbo encontraram aparece na terceira pessoa do plural e o morfema –m se relaciona com o SN as meninas, e não com Cecília. Uma segunda observação extraímos disso: “o SN que (nesse caso) vem logo antes do verbo, e com o qual o verbo concorda, é chamado sujeito: o outro SN se chama objeto direto” (PERINI, 2006, p. 106). Veja que “sujeito” e “objeto direto” são definidos em termos puramente formais, com base nos critérios de ordem e concordância. Para refletir Compare essa definição de sujeito com aquelas vistas anteriormente. Que diferenças você percebe? Para encerrar este tópico, uma questão polêmica! Observe a seguinte afirmação de Perini (2006, p. 110, grifo do autor): Em uma frase como “Comprei um aparelho de DVD”, não há sujeito, porque não há na oração nenhum SN com o qual o verbo concorde, nem nenhum SN posicionado logo antes do verbo. Essa frase tem um agente (“eu”, que pratiquei a ação de comprar); ela está falando de alguém (de mim, que sou um dos assuntos principais da frase). Mas, segundo nossa definição, o sujeito não é o elemento que pratica a ação (a que chamamos “agente”), nem o elemento do qual se afirma alguma coisa (que se chama “tópico”). Situação-problema Como as gramáticas normativas analisam o sujeito de orações como Comprei um aparelho de DVD? 124 Níveis de análise Capítulo Compare a análise das gramáticas normativas com essa de Perini. A que conclusões você chega? 12.4 Nível semântico-pragmático Embora estejamos reunindo os níveis semântico e pragmático, é possível identificarmos fenômenos que são típicos de um e de outro nível. É no nível semântico que identificamos funções chamadas de “papéis semânticos” ou “papéis temáticos”. Podemos definir o papel temático como a relação de significado que liga uma palavra que exprime ação, estado ou evento (muitas vezes um verbo, mas nem sempre) com as unidades que exprimem os participantes dessa ação, estado ou evento (PERINI, 2006, p.121). Os papéis temáticos mais comuns são: – Agente: indivíduo que pratica a ação, que tem controle sobre a realização da ação. Ex.: Vítor comeu uma maçã. – Paciente ou alvo: elemento que sofre o efeito de uma ação ou evento, podendo mudar de estado em consequência dela. Ex.: Vítor comeu uma maçã. – Locativo: especifica o lugar onde se dá o fato expresso pelo verbo. Ex.: Vítor mora em Florianópolis. – Fonte/meta: indicam, respectivamente, a origem e o destino do movimento. Ex.: Vítor viajou de Florianópolis a Curitiba. 125 12 Estudos Gramaticais – Experienciador: indivíduo que passa pelo estado psicológico descrito pelo verbo (envolvendo pensamentos, sensações, emoções). Ex.: Vítor pensa em/ viu/ ama Cecília. – Beneficiário: indivíduo a quem a ação traz proveito ou prejuízo. Ex.: Vítor ganhou/ perdeu uma bola. – Instrumento: objeto que o agente utiliza para desempenhar uma ação. Ex.: Vítor abriu a porta com a chave. Os papéis temáticos não se confundem com as funções sintáticas dos SNs, mas é possível estabelecer algumas relações entre eles. Considerando uma “hiererquia de subjetividade”, pode-se dizer que a ordem das possibilidades de os papéis temáticos de agente, paciente e instrumento coincidirem com a função gramatical de sujeito é: agente > instrumento > paciente. Observe: O garoto quebrou a vidraça com a bola. (agente) A bola quebrou a vidraça. (instrumento) A vidraça quebrou. (paciente) Agora pense: Por que é tão comum encontrarmos a definição de sujeito como o “ser que pratica a ação expressa pelo verbo”? 126 Níveis de análise Capítulo Divirta-se! Na piada seguinte, a graça está numa atribuição de papel temático equivocado a uma certa personagem. Descubra que papéis estão em jogo. Mulher – Trabalhar o tempo inteiro e tomar conta da casa está me levando à loucura! Depois do emprego, cheguei em casa e lavei a roupa e a louça. Amanhã tenho de lavar o chão da cozinha e as janelas da frente! Outra mulher – Então? E teu marido? Mulher – Ah, isso eu não faço de maneira nenhuma! Ele pode muito bem se lavar sozinho! (ILARI, 2001, p.138). Ao analisarmos a língua em funcionamento no seu contexto de uso, percebemos, de imediato, que não podemos nos limitar ao plano da frase. Nós não nos comunicamos através de frases isoladas, e sim através de textos. Precisamos considerar, portanto, as palavras e frases num contexto textual ou discursivo mais amplo. Por isso, o nível semânticopragmático implica levar em conta elementos discursivos. Outro aspecto que precisa ser levado em conta é o caráter multifuncional dos itens. Vamos ver que muitas palavras ou constituintes podem desempenhar diferentes funções gramaticais, entrecruzando níveis e planos linguísticos. Em vez de partirmos de classes ou categorias, vamos, agora, partir do uso de alguns elementos linguísticos para depreender a função/ significação desses itens. Propomos examinar, inicialmente, o funcionamento de aí, item que as gramáticas normativas costumam classificar como advérbio de lugar. Observe os dados (oriundos do projeto VARSUL/Florianópolis e extraídos de Tavares, 1999): Você pode pode saber mais sobre esse assunto lendo: ILARI, R.; BASSO, R. Língua e gramática ou Da necessidade de óculos. In: ______. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006. p. 223-229. Os autores mostram, através de exemplos, equívocos de se considerar a gramática apenas no nível frasal. 1) Eu cheguei em casa, eles estavam sentados no muro, né? Num muro alto. Eu disse: “meu filho, [não]-não senta aí que tu não 127 12 Estudos Gramaticais estás com equilíbrio bom”. (FLP13, L831) 2) Era coisa gostosa. Hoje, se você vai numa festinha aí, numa festinha de rua aí, a gente vê é safadeza, é avacalhação. (FLP 04, L597) 3) Onze e pouco da noite. Não tinha um hotel, não tinha nada pra dormir, que o único hotel da cidade estava fechado. Aí procuramos, procuramos, batemos nesse hospital, que é um hospital e maternidade, aí que ele estava (FLP03, L889) 4) Depois que ele morreu, né? Que aí elas já eram mais ou menos moças, né? Tinham os seus quinze, dezesseis anos, aí que começaram a namorar (FLP18, L1161) 5) E a carne, tu compras um quilo e tu comes duas vezes, né? E o peixe não. O peixe é aquilo ali, num instantinho vai e pronto. É isso aí. (FLP11, L1117) 6) “Ela está lá na casa da Maria dos Anjos”, disse uma outra amiga minha. Aí ela foi lá na casa da Maria dos Anjos, ver se eu estava... (FLP08, L831). Vamos, juntos, analisar o aí destacado nos dados, atentos aos seguintes pontos das gramáticas normativas: a) aí é advérbio de lugar; e b) o advérbio modifica um verbo, um adjetivo ou outro advérbio. a) Em quais casos o aí está modificando um verbo? b) Em quais casos o aí expressa a ideia de lugar? c) Que outros valores o aí representa? Antes de passarmos à análise, precisamos nos munir dos conceitos de dêixis e de anáfora. Dêixis: diz respeito principalmente às pessoas que participam da interação verbal, ou a lugares e tempos que são localizados a partir da situação de fala. Realiza-se sobretudo por meio dos pronomes, dos artigos, dos tempos dos verbos e de certos advérbios. 128 Níveis de análise Capítulo Anáfora: diz respeito a pessoas e objetos, tempos, lugares, fatos etc. mencionados em outros pontos do mesmo texto; também na função anafórica são úteis os pronomes, o artigo definido, os tempos verbais e os advérbios. (ILARI, 2001, p.55-56) Em não senta aí (1), o aí se relaciona a um verbo acrescentando uma circunstância de lugar. Tem valor dêitico, isto é, aponta para a situação extralinguística em que ocorre a fala, para um local do mundo real. Como se liga a um verbo e expressa ideia de lugar, atende às características da definição tradicional. Em uma festinha (de rua) aí (2), o aí modifica um substantivo (pelos critérios da definição de advérbio, o item está excluído dessa classe). Não expressa exatamente uma ideia de lugar, mas pode ser substituído por “qualquer” (numa festinha qualquer, que não interessa identificar qual; a interpretação é, no mínimo, ambígua). O aí já não preenche as características de advérbio de lugar, funcionando com valor adjetival, pois modifica um nome. No terceiro caso, aí que ele estava, o item retoma o antecedente que expressa lugar maternidade, por isso é um anafórico locativo. Manteve-se a noção de lugar, mas o item perde sua característica dêitica, passando a apontar para um referente dentro do próprio texto. No quarto dado, aí que começaram a namorar, o aí também aponta para elementos do texto: depois que ele morreu e elas tinham os seus quinze, dezesseis anos, só que o valor, nesse caso, é temporal. Trata-se de um anafórico temporal. No quinto exemplo, é isso aí, o item retoma resumidamente toda a sequência discursiva precedente, funcionando como um anafórico discursivo. Por fim, em Aí ela foi lá na casa..., o aí faz as vezes de conector: está ligando orações e ordenando cronologicamente os eventos, por isso tem 129 12 Estudos Gramaticais valor de sequenciador temporal. Como vimos, além de advérbio de lugar (dêitico), aí pode atuar com valor de adjetivo (dentro do SN), como elemento anafórico apontando para partes do texto (com valor locativo, temporal e discursivo) e como conector. Somente numa análise que contemple os usos efetivos da língua conseguimos captar esses diferentes matizes revelando a multifuncionalidade dos itens linguísticos. Para refletir Você pode exercitar o tipo de análise feita com aí, verificando o funcionamento de outros itens como: onde, assim, então, agora, mas etc. Você pode buscar esses elementos em redações escolares, por exemplo. A título de ilustração, observe as ocorrências a seguir (os dados de assim foram extraídos de Gasparini, 2001; e os de então, de Tavares, 1999). Lembrete: as gramáticas normativas costumam apresentar o assim como advérbio de modo e o então como advérbio de tempo. 1) Antigamente, a gente fazia uns quadrados assim num cimento, e pulava né? (FLP18,L1214) 2) Era um local assim muito freqüentado entre os antigos e tudo. (FLP18, L176) 3) A festa estava assim de gente e ninguém me tirou para dançar. (redação, 5ª série). 4) A Internet pode ser assim, como posso dizer, comunicativa, mas às vezes não vale a pena tê-la. (redação, 6ª série) 5) Minha mãe às vezes não gostava muito não, mas o meu pai achava lindo, maravilhoso. O meu avô então achava maravilhoso, coisa mais linda do mundo. (FLP 01, L 245) 6) Botava o espetinho, assim, dentro do fogão à lenha, que 130 Níveis de análise Capítulo na época não existia fogão a gás. Botava, assim, deixava assar aquela manta de carne seca. Então ela passava a mão, dividia aquele alguidar em... Lógico, ela não botava até em cima, botava até certa altura. (FLP 02, L 1081) 7) E: Que sorte, menina! F: Então! Na época, no dia que eu fui ver, que eu meti a cara, estava [seis <bi->]- seis e quinhentos. Ele deixava por cinco e quinhentos pra mim. (FLP 20, L 658) Quando vamos fazer análises linguísticas, podemos seguir duas direções: 1) partir da forma para a significação ou função (forma -> função); ou 2) partir da significação ou função para a forma (função -> forma). Na análise de aí e de assim, por exemplo, partimos de formas linguísticas. Vamos, agora, inverter o processo: partir de uma função/significação e verificar as suas diferentes formas de expressão. Os dados a seguir mostram formas alternativas para expressar o grau superlativo em português, isto é, um elevado grau de determinada qualidade (Dados adaptados de Ilari e Basso, 2006, p. 110-111). 1) Essas crianças são inteligentíssimas. 2) Paula veste uma roupa chiquérrima. 3) Ela é uma pessoa muito bacana. 4) Ela é uma pessoa muito entrada em anos. 5) Ele tem um estilo muito deixa que eu chuto. 6) Ele é podre de rico. 7) Ela é chique no último. 8) O professor é exigente pra chuchu. 131 12 Estudos Gramaticais 9) Ele é enjoado a dar com o pau. 10) Propomos que você continue a lista... Na interação comunicativa, todo enunciado apresenta um determinado grau de modalização, isto é, de expressão da atitude do falante/ escrevente, seja em relação ao conteúdo do que é dito, seja em relação ao interlocutor. A categoria gramatical que expressa essa atitude do locutor chama-se modalidade. São exemplos de modalidade: a) os graus de certeza que o falante pode imprimir ao fato enunciado, como em: Talvez ele venha amanhã. Certamente ele vem amanhã. A modalidade relacionada a graus de certeza pode ser expressa por elementos adverbiais (talvez, certamente, provavelmente, com certeza), predicadores (é provável que, é certo que, é claro), verbos modais (dever, poder), entre outros recursos linguísticos. b) os graus de ‘comando’ que envolvem regras sociais de polidez, ou seja, a atitude do falante em relação ao interlocutor em atos de fala diretivos (ordem, pedido, sugestão), como em: Por favor, feche a porta. Feche a porta! A modalidade relacionada às intenções e interesses do falante pode se manifestar por expressões de cortesia (por favor, por gentileza), modo do verbo (imperativo), verbos modais (ter que, precisar), verbos que explicitem o ato praticado pelo locutor (ordeno que, solicito que), entonação (interrogação, exclamação). Como a modalidade se manifesta em uma situação comunicativa, os papéis sociais desempenhados pelos interlocutores são importantes. Por exemplo, em atos de fala manipulativos ou de comando, quando o falante quer, de algum modo, agir sobre o ouvinte para que ele reponda através de atos, os recursos de modalização utilizados deverão ser adequados aos papéis sociais em jogo e regras de polidez deverão ser acio- 132 Níveis de análise Capítulo nadas, para que o evento seja bem sucedido. Por exemplo, a solicitação de que a porta da sala seja fechada será feita de maneira diferente nas seguintes interações: de mãe para filha, de empregada para patroa, de irmão para irmã, e assim por diante. Para refletir Imagine que os enunciados abaixo tenham sido proferidos na seguinte situação: a) uma família está almoçando num restaurante no final de semana; b) a salada está sem sal e tem um saleiro à mesa; c) todos gostam de salada temperada. Tente identificar: ӲӲ quem são os interlocutores envolvidos em cada enunciado; ӲӲ que enunciados têm maior, e menor, força manipulativa; ӲӲ que enunciados apresentam maior, e menor, grau de polidez. 1) Você me passaria o sal, por favor? 2) A salada está sem sal. 3) Me passa o sal! 4) Me passe o sal! 5) Por favor, me passe o sal! 6) Se tivesse um salzinho... 7) Por favor, poderia me passar o sal! 8) Você quer me passar o sal? 9) Tenha a bondade de me passar o sal. 10)Me dá o sal, pô! 11)Anda logo com esse sal aí. 133 12 Estudos Gramaticais Resumindo este tópico: A descrição gramatical é feita nos diferentes níveis linguísticos: fonético-fonológico – realizações linguísticas concretas e sistema de sons da língua; morfológico – as palavras e suas partes constituintes: radical, afixos, desinências (os morfemas); sintático ou morfossintático – os sintagmas, isto é, constituintes que associam forma e significado como se fossem ‘partes naturais’ da oração ou do período; semântico-pragmático – palavras e frases vistas no contexto de uso (contexto textual ou discursivo mais amplo), considerando o caráter multifuncional dos itens e construções, que podem desempenhar diferentes funções gramaticais, entrecruzando níveis e planos linguísticos. Nesta unidade: – desenvolvemos a prática de análise linguística nos diferentes níveis gramaticais; – cotejamos definições e classificações com dados linguísticos; – refletimos criticamente sobre algumas definições/classificações das gramáticas normativas, percebendo as inconsistências destas. Sugerimos que você reveja essas etapas, anote suas dúvidas e destaque o que julgar mais interessante ou relevante. Leia mais! PERINI, M. Componentes de uma descrição gramatical. In: Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 1996. p.49-57. ______. Papéis semânticos e funções sintáticas. In: Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 1996. p. 260-268. No primeiro texto, Perini discute os níveis de análise linguística e as definições na gramática tradicional. No segundo texto, relaciona papéis semânticos e sintáticos. CAMARA JR., J. M. A primeira articulação ou morfo-sintaxe. In: Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis, RJ: Vozes. p.59- 86. Mattoso Camara Jr. aborda os critérios de classificação dos vocábulos, a flexão e a derivação portuguesa, entre outros aspectos. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (ou outra gramática normativa) 134 Níveis de análise Capítulo Referências ARBOUSSE-BASTIDE, Paul; MACHADO, Lourival. Introdução. Rousseau, coleção os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987. ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola, 2003. BAGNO, Marcos (Org.). Lingüística da norma. São Paulo: Edições Loyola, 2002. BARROS, Diana Pessoa. A comunicação humana. In: FIORIN, José Luiz et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 25-53 BECHARA, Evanido. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001. BORBA, Francisco da Silva. Introdução aos estudos lingüísticos. 11. ed. Campinas: Pontes, 1991. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004. ______. O estatuto do erro na língua oral e na língua escrita. In: GORSKI, Edair M.; COELHO, Izete L. (Orgs.). Sociolingüística e ensino: contribuições para a formação do professor de língua. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. p. 267-276. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998a. ______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília, DF: MEC/ SEF, 1998b. ______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais ensino médio: Linguagem e códigos. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998c. CAMARA, JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1972. CASTILHO, Ataliba de (Org.). Gramática do português falado, v.1. Campinas: Editora da UNICAMP/FAPESP, 1990. ______. A língua falada e o ensino de língua portuguesa. São Paulo: Con- 135 12 Estudos Gramaticais texto, 2000. ______. [Entrevista]. In: XAVIER, Antonio Carlos; CORTEZ, Suzana (Orgs.). Conversas com lingüistas: virtudes e controvérsias da lingüística. São Paulo: Parábola, 2003. CHOMSKY, Noam. Language and problems of knowledge. The Managua lectures. Cambridge, Mass: The MIT Press, 1988. CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. Bernardo Álvares, 1972. ______; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. DEVLIN, K. O gene da matemática. Rio de Janeiro: Record, 2006. DUBOIS, Jean et al. Dicionário de lingüística. São Paulo: Cultrix, 1973. FARACO, Carlos Alberto. Norma-padrão brasileira: desembaraçando alguns nós. In: BAGNO, Marcos (Org.). Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. p. 37-61. ______; TEZZA, Cristovão. Prática de textos para estudantes universitários.10.ed. Petrópolis: Vozes, 2002. ECO, H. A busca da língua perfeita. Bauru: EDUSC, 2001. FICKER, R. Vico, o precursor. São Paulo: Moderna, 1994. FIORIN, José Luiz. Teoria dos signos. In: FIORIN, José Luiz et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 55-74. FIORIN, José Luiz et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. FISCHER, S. Uma breve história da linguagem. Osasco: Novo Século Editora, 2009. GASPARINI, Madelaine. Assim se fala, assim se escreve. 2001. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001. GORSKI, Edair; COELHO, Izete Lehmekhul. Variação lingüística e ensino de gramática. Florianópolis: UFSC, 2007. No prelo. ILARI, Rodolfo. Introdução à semântica: brincando com a gramática. São Paulo: Contexto, 2001. ______; BASSO, Renato. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006. 136 Níveis de análise Capítulo KOCH, Ingedore V. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 1992. LOBATO, Lúcia M. P. Sintaxe gerativa do português: da teoria padrão à teoria da regência e ligação. Belo Horizonte: Vigília, 1986. LYONS, J. Introdução à lingüística teórica. São Paulo: Nacional; EDUSP, 1979. MATTOS E SILVA, Rosa V. Contradições no ensino de Português. São Paulo: Contexto, 1996. MATEUS, Maria Helena M. et al. Gramática da Língua Portuguesa. 4. ed. Lisboa: Caminho, 1989. MENDONÇA, Maria Célia. Língua e ensino: políticas de fechamento. In: In: MUSSALIN, F; BENTES, A. C. (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras, v.1. São Paulo: Cortez, 2001. p. 233-264. MONARETTO, Valéria N. de O. O apagamento da vibrante pós-vocálica nas capitais do Sul do Brasil. Letras de Hoje, v. 35, n.1. Porto Alegre: PUCRS, mar. 2000. p. 275-284. NEGRÃO, Esmeralda; SCHER, Ana; VIOTTI, Evai. A competência lingüística. In: FIORIN, J.L. et al. (Orgs.). 2002. p. 95-119. NEVES, Maria Helena de M. Gramática de usos do português. São Paulo: EdUNESP, 2000. ______. A gramática: história, teoria e análise, ensino. São Paulo: EdUNESP, 2001. ______. Norma e prescrição lingüística. Disponível em: <www.comciencia.br/reportagens/linguagem/ling12.htm>. Acesso em: 18 abr. 2007. PAIVA, M. da Conceição A. A supressão das semivogais nos ditongos decrescentes. In: SILVA, G. M. de O. e; SCHERRE, M. M. P. (Orgs.). Padrões sociolingüísticos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. p. 217236. PERINI, Mário. Gramática descritiva do português. 2. ed. São Paulo: Ática, 1996. ______. Sofrendo a gramática: ensaios sobre a linguagem. 3. ed. São Paulo: Ática, 2002. ______. A língua do Brasil amanhã e outros mistérios. São Paulo: Parábola, 2004. ______. Princípios de lingüística descritiva: introdução ao pensamento gramatical. São Paulo: Parábola, 2006. 137 12 Estudos Gramaticais PETTER, Margarida. Linguagem, língua, lingüística. In: In: FIORIN, José Luiz et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 11-24. PIETROFORTE, Antonio Vicente. A língua como objeto da Lingüística. In: In: FIORIN, José Luiz et al. (Orgs.). Introdução à lingüística. I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 91-92. PINKER, S. O instinto da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2004. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP: ALB; Mercado de Letras, 1996. ______. Os humores da língua: análises lingüísticas de piadas. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1998. PLATÃO. Diálogos. Teeteto. Crátilo. Belém: UFPA, 2001. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Coleção Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987. SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. 3. ed. Tradução de A. Chelini, J.P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1971. SEDLEY, David. Plato´s Cratylus. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/plato-cratylus/>. Acesso em: 20 maio 2007. SEUREN, P. Western Linguistics: an historical introduction. Oxford: Blackwell, 1998. SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 7. ed. São Paulo: Ática, 1989. ROCHA LIMA, Carlos H. Gramática normativa da língua portuguesa, 15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. TASCA, Maria. A presença da variação do segmento lateral na escrita das séries iniciais. In: GÖRSKI, Edair M.; COELHO, Izete L. (Orgs.). Sociolingüística e ensino: contribuições para a formação do professor de língua. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. p.185-207. TAVARES, Maria A. Um estudo variacionista de AÍ, DAÍ, ENTÃO e E como conectores seqüenciadores retroativo-propulsores. 1999. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Programa de Pós-Graduação em Lingüística, Universidade Federal de Santa Catarina, 1999. TAVARES, Maria A.; GÖRSKI, Edair. Sociofuncionalismo: da teoria à prática pedagógica. In: SILVA, C. R.; HORA, D. da; CHRISTIANO, M. E. A. (Orgs.). Lingüística e práticas pedagógicas. Santa Maria: Pallotti, 2006. p.127-148. 138 Níveis de análise Capítulo TRASK, R.L. Dicionário de linguagem e lingüística. Tradução e adaptação Rodolfo Ilari; revisão técnica Ingedore V. Koch, Thaïs Cristófaro Silva. São Paulo: Contexto, 2004. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Língua Portuguesa: o ensino de gramática. In: Salto para o futuro. Um mundo de letras: práticas de leitura e escrita. Boletim 03. TVEscola, SEED, MEC, abril de 2007. Disponível em: <http:// www.tvebrasil.com.br/salto/boletins2007>. Acesso em: 20 maio 2007. WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da lingüística. São Paulo: Parábola, 2002. Crédito das imagens Capa Vanitas, de Edwaert Collier (1664). Óleo sobre tela, 50 x 60 cm. Stedelijk Museum De Lakenmal. Disponível em: <http://www.reproarte.com/ picture/Edwaert_Collier/Vanitas/2625.html>. Acesso em: 20 abr. 2011. Unidade A A Escola de Atenas – detalhe em que aparecem Sócrates, Platão e Aristóteles, de Rafael Sanzio (1509-1511). Afresco, 7,70 m aproximadamente. Palácio do Vaticano. Fonte: PRETTE, Maria Carla; DE GIORGIS, Alfonso. História ilustrada da arte: história, linguagens, épocas e estilos. Sintra, Portugal: Girassol, 2008. Unidade B Tirinha – Joaninhas em: O tempo é uma construção linguística Fonte: Disponível em: <http://www.joaosejoanas.com/2011/03/427-otempo-e-uma-construcao.html>. Acesso em: 20 abr. 2011. Unidade C Ilustração: Diversidade. Disponível em: <http://dialogospoliticos.files. wordpress.com/2008/08/1171701005_diversidade.jpg>. Acesso em: 30 abr. 2011. Unidade D Foto de Ariadna Morguefile Fonte: Disponível em: <http://www.briquetdelemos.com.br/briquet/ briquet_lemos7.htm>. Acesso em: 10 abr. 2011. Figura 1 – Do Australopithecus ao Homo sapiens sapiens. 139 12 Estudos Gramaticais Fonte: Disponível em: <http://www.plantsciences.ucdavis.edu/gepts/ pb143/LEC03/01homo-ew.jpg>. Acesso em: 18 abr. 2011. Figura 2 - Academia de Platão - Mosaico da Vila de Siminius Stephanys em Pompeia (século I). Fonte: Disponível em: <http://www.departments.bucknell.edu/history/ carnegie/plato/academy.html>. Acesso em: 09 abr. 2011. Figura 3 – A Torre de Babel, de Peter Brueghel, o velho (1563). Fonte: Kunsthistorisches Museum. Disponível em: <http://www.khm. at/en/kunsthistorisches-museum/collections/picture-gallery/netherlands-15th-16th-centuries/?offset_974=1&cHash=3706b90b8d8e58df9 522011d75230745>. Acesso em: 30 abr. 2011. Figura 4 - Ilustração “Elefante e cegos” Fonte: Lantec/UFSC Figura 5 – Ilustração “O cérebro humano” Fonte: Lantec/UFSC Figura 6 – Ilustração “Linguagem como ação interindividual” Fonte: Lantec/UFSC Figura 7 – Capa dos PCNs de Língua Portuguesa Fonte: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/-NP_FrjPE3S4/TWMYMwBATkI/AAAAAAAADhM/GaHe7KaHwaY/ s1600/427318_414.jpg>.Acesso em: 20 abr. 2011. Figura 8 – Elivelton e Álvaro: frases. Fonte: Disponível em: <http://www.detrivela.com.br/historias/frases. htm>. Acesso em: 10 abr. 2011. Figura 9 - Alice a Humpty Dumpty (personagens de Aventuras de Alice, de Lewis Carrol). Fonte: Disponível em: <http://www.mindfully.org/Reform/HumptyDumpty-Carroll1871.htm>. Acesso em: 10 abr. 2011. Figura 10 – Televisão. Fonte: Disponível em: <http://www.plenarinho.gov.br/educacao/Reportagens_publicadas/a-televisao>. Acesso em: 10 abr. 2011. Figura 11 – Capa da Gramática de Celso Cunha Fonte: Disponível em: <http://www.novafronteira.com.br/produto. asp?CodigoProduto=1137>. Acesso em: 10 abr. 2011. 140 Níveis de análise Capítulo 141 12 Estudos Gramaticais 142