Uma nação com variadas línguas Miriam Lemle A rejeição exacerbada que causou a aprovação pelo MEC de um livro didático no qual a diversidade na fala é legitimada é muito mais estranha do que essa tentativa de legitimação de falares populares. A observação de que as formas de falar variam tanto entre agupamentos feitos em grandes dimensões quanto entre comunidades pequenas e vizinhas não é nada de novo, Tal como ocorre em todas as nações no mundo letrado, também nós no Brasil divergimos na prosódia, na pronúncia, no vocabulário e em alguns aspectos da gramática das línguas que usamos na fala. Mediante critérios científicos objetivos da ciência da linguagem não há como passar atestados de qualidade superior para uma forma de falar em detrimento da outra. Valorações sociais sobre a variação existem, tal como existem valorações sociais para cores de pele e olhos, lisura de cabelos, formato de narizes, preferências culinárias, artísticas, de parceria sexual, laborial e tantas outras . À parte os preconceitos, seria biologicamente impossível atingirmos a uniformidade linguística, neste ou em qualquer outro país, tendo em vista como acontece o processo de aquisição de linguagem: ele é baseado na interação entre princípios universais da gramática e parâmetros de variação que permitem um leque de alternativas para a diversidade na linguagem. Os princípios universais são princípios cognitivos inatos inerentes à própria natureza humana, nossa estrutura neurofisiológica. São princípios arquitetônicos que formatam as gramáticas de todas as línguas, como juntar peças lexicais, atribuir classes gramaticais, formar grupos significativos, inserir marcas de concordância entre verbo e sujeito, entre adjetivo e substantivo e outras mais exóticas, deslocar sintagmas. Aos universais se soma um número finito de alternativas possíveis para implementar o design da gramática universal. Dentre os pontos em que podemos ter soluções arquitetônicas alternativas estão as escolhas de tempos de verbo, conjugações, declinações, concordâncias, ordem das palavras, deslocamentos, modos de representar comandos, negação, pergunta, exclamação e muita outra coisa que não cabe neste espaço. Os pontos que ficam em aberto para a variedade na pronúncia, na gramática e no vocabulário são muitos, mas cada criança depreende uma gramática a partir de sua análise das falas a que é exposta. A eclosão da gramática é um dos milagres maravilhosos com que a natureza nos presenteia. Em menos de três anos, todos os bebês fazem espoucar uma gramática, uma proeza cognitiva que eles realizam inconscientemente, antes mesmo de serem capazes de jogar dominó, jogo da velha, cara ou coroa ou amarelinha. As gramáticas atingidas pelas crianças de uma mesma comunidade convergem em grande parte, mas não são idênticas, sem que as divergências prejudiquem a comunicação. Dentro deste quadro, que fica no âmbito das ciências naturais, no mundo moderno construimos nações, comunidades que abrangem milhões de pessoas e de quilômetros quadrados, politicamente estruturadas, profundamente alicerçadas no letramento. A partir disso, precisamos estabelecer normas para a língua escrita, normas que obviamente precisam ter uso unânime. Por isso, todas as nações precisaram selecionar como norma uma das suas variedades de fala, etapa esta da normativização que sempre resultou em certa dose de competição entre variedades. Em seguida, é preciso construir um sistema escolar no qual essa variedade, convencionada como a norma culta, seja ensinada de maneira sistemática, possibilitando aos alunos o bilinguismo: a língua que falam precisará coexistir com a língua que escreverão. No ensino escolar, convém que os pontos de contraste entre as gramáticas coexistentes sejam apontados, descritos e discutidos. O contrato social que assegura uma norma culta gramaticalmente homogênea precisa ser uma coerção aceita pela comunidade nacional para seu próprio bom funcionamento, mas basta que essa coerção seja entendida como dizendo respeito à expressão através da escrita, sem invadir a expressão oral das pessoas. Na sua parte de língua portuguesa, o livro didático 'Por uma vida melhor' tem sido lido com descuido e criticado injustificadamente, pois a autora explicita que os exemplos discutidos de frases de uma língua que difere da nossa norma culta são provenientes do uso oral, a fala, e não da norma convencionada para língua escrita. E adverte que o uso de tais formas linguísticas na modalidade escrita é inadequado. De onde derivam os numerosos e fortes protestos contra a aceitação da variação nos modos de falar? Qual a raiz do estrito apego à dicotomia do certo ou errado em matéria de língua falada? Este é um problema de outra ordem, que supreende a uma parte diminuta da comunidade acadêmica à qual pertenço. −−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−−