Abreu RAM et al. RELATO DE CASO Traumatismo complexo de face na infância causado por mordedura canina Face complex trauma in childhood due to dog bite Rogério Alexandre Modesto de Abreu1, Andreza Cristina Camacho Varoni2, Mariana Mayumi Toda Mourão3, Gilson Luis Duz4, José Carlos Marques de Faria5 RESUMO ABSTRACT Introdução: As mordeduras caninas constituem grande preocupação de Saúde Pública em todo o mundo. Acidentes por mordedura de cão são frequentes e acometem, principalmente, crianças menores de 7 anos, do sexo masculino, brancas, com lesões preponderantemente em face, cabeça e pescoço. Há grande controvérsia na literatura quanto ao tratamento, com tendência, atualmente, ao reparo precoce. No Brasil, não há estatística pertinente, sendo essa apenas segmentar. Por esse motivo, este relato objetiva expor três casos de mordedura de cão em face com lesões complexas, envolvendo a cobertura cutânea e múltiplas fraturas ósseas. Relato dos casos: Os pacientes relatados são do sexo masculino, brancos, em idade pré-escolar, vítimas de ataque por mordedura de cães, do meio familiar, da raça Rottweiler ou Pitbull e foram atendidos no Hospital Universitário da PUC-Campinas/ São Paulo/ Brasil, nos anos de 2007 e 2008, e avaliados segundo protocolo específico de trauma de face. Discussão: A negligência no trato com cães ferozes aumentou a gravidade e a mortalidade decorrentes de lesões por mordedura canina. Houve acometimentos de crianças na primeira infância, do sexo masculino e brancas, com lesões principalmente em face, cabeça e pescoço, epidemiologia essa corroborada pela literatura. A mordedura canina continua sendo um sério problema de saúde pública e de escassas estatísticas nacionais. Faz-se necessária abordagem multidisciplinar e equipe interdisciplinar de Cirurgia Plástica, com tratamento em centros de referência regionais. Introduction: Canine bites are a great concern to Public Health all around the world. Accidents because of dog bite are frequent and mainly affect male under 7-year-old Caucasian children, with lesions mostly in face, head and neck. There is a great contest in the medical literature regarding to therapy and the current intervention is prompt repair. In Brazil, there is no relevant statistical analysis, only segmental drawing. Therefore, this article aims to report three cases of accident owing to canine bite on face with complex injury that involved skin coverage and bone fracture. Case report: The patients reported are pre-school-age Caucasian boys who have been attacked by breeds of dog Rottweiler or Pitbul that were raised in domestic environment. These boys were assisted at the University Hospital of PUC-Campinas/São Paulo/Brazil, in 2007 and 2008, and assessed according to specific protocol for victims of facial trauma. Discussion: The negligence to fierce animals increased the severity and mortality rates because of canine bite accidents. Male Caucasian infants in early childhood have been affected and had face, head and neck injury mostly, which is corroborated by the medical literature. Canine bite accidents remains a matter of Public Health that has little national statistical analysis and, because of it, this article contributes to change this situation. It is necessary a multidisciplinary approach and an interdisciplinary Plastic Surgery Staff, with treatment located in regional reference centers. Descritores: Traumatismos faciais. Acidentes. Animais de estimação. Mordeduras e picadas. Keywords: Facial injuries. Accidents. Pets. Bites and stings. 1.Cirurgião Plástico assistente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Responsável pelo setor de Crânio-Maxilo-Facial da PUC-Campinas. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Membro Titular da Associação Brasileira de Cirurgia Crânio-maxilo-facial (ABCCMF), Campinas, SP, Brasil. 2.Médica Residente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário da PUC-Campinas, Membro Aspirante da SBCP, Campinas, SP, Brasil. 3.Acadêmica do sexto ano de Medicina da PUC-Campinas, Campinas, SP, Brasil. 4.Membro Titular da SBCP, Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do HMCP/ PUC-Campinas, Campinas, SP, Brasil. 5.Livre Docente pela Universidade de São Paulo, Membro Titular da SBCP, Regente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário PUC-Campinas, Docente da Faculdade de Ciências Médicas da PUCCampinas, Campinas, SP, Brasil. Correspondência: Rogério Alexandre Modesto de Abreu Rua Santo Antônio, 190 – Campinas, SP, Brasil – CEP: 13024-440 E-mail: [email protected] Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2011; 14(4): 214-7 214 Traumatismo complexo de face na infância causado por mordedura canina INTRODUÇÃO RELATO DOS CASOS O homem vem, ao longo dos tempos, domesticando várias espécies de animais para as mais diversas utilidades. O cão, desde épocas imemoriais, vem praticamente fazendo parte da família de humanos. São centenas de raças, cada qual com suas características e, decorrentes delas, finalidades específicas. Bini et al.1, em 2011, descreveram que os ataques de cães resultam em lesões corporais graves, mutilações e, menos comumente em morte, sendo essas tragédias preveníveis. Ataques por pitbulls estão associados a maior morbidade, maiores gastos hospitalares (U$10.500 x U$7.200) e maior risco de morte (10,3% x 0%) que ataques por outras raças, de acordo com estudo realizado na Universidade do Texas. Segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal (SINDAN)2, a população de animais domésticos tende a crescer em países em desenvolvimento, especialmente se o crescimento econômico permitir renda extra para cuidar dos mesmos. Os Estados Unidos são os recordistas mundiais em número de “pets”, com cerca de 75 milhões de cães. Não há dados precisos para o Brasil, mas o país estaria em segundo lugar no número de cães no mundo, entre 25 a 30 milhões de cachorros. Recenseamento feito em 2008 pela Faculdade de Veterinária da USP revelou que havia 2,4 milhões de cães na cidade de São Paulo. Entre 2002 e 2008, o aumento da população canina foi de 60%, contra 3,5% de evolução da população humana. De acordo com Brogan et al.3, acidentes por mordedura de cão são frequentes e acometem principalmente crianças menores de 7 anos, do sexo masculino (60%), brancas (87%), sendo as lesões mais comumente em face, cabeça e pescoço (82%). As mais lesões mais graves envolvem os 2 últimos segmentos corporais citados, causadas por cães de grande porte. As crianças em idade escolar são as vítimas frequentes, admitidas nos departamentos hospitalares de emergência. Conforme Reisner et al.4, em 2011, a maioria das crianças já conhecia o cão agressor (72%) e o acidente ocorreu durante interações positivas, iniciadas pela mesma. Mordeduras de mamíferos, os cães entre eles, são responsáveis por 1% dos atendimentos de emergência, segundo as estatísticas norte-americanas citadas em Dinman & Jarosz5. Segundo Langley6, as mordeduras por cão, constituem grande preocupação de saúde pública, acometendo mais de 4 milhões de pessoas e resultando em 6000 a 13000 hospitalizações a cada ano nos Estados Unidos. De acordo com Tu et al.7, há grande controvérsia na literatura quanto ao tratamento precoce ou não das feridas e das fraturas de ossos da face decorrentes desse mecanismo de trauma, com tendência atual ao reparo precoce, segundo Javaid et al.8 e Suárez et al.9. No Brasil, não há estatística pertinente, ela é apenas segmentar, demonstrada por meio de poucos estudos locais/ regionais10-12. Por esse motivo, este relato objetiva expor três casos de mordedura de cão em face com lesões complexas, envolvendo a cobertura cutânea e múltiplas fraturas ósseas. Os pacientes citados abaixo eram oriundos de serviços de emergência de diversas regiões do estado de São Paulo, tendo sido atendidos no Hospital de referência regional da PUC-Campinas, nos anos de 2007 e 2008. Os pacientes foram avaliados segundo protocolo específico para pacientes vítimas de traumatismos agudos na face, previamente aprovado pelo Comitê de Ética Médica do Hospital e Maternidade Celso Pierro, instituído em 2007. Os responsáveis pelos pacientes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido previamente. Caso 1 Paciente DAMS, 1 ano e 4 meses, sexo masculino, branco, vítima de ataque por mordedura de cão da raça Rottweiler em 14/04/07, sendo o mesmo do meio familiar. Apresentava, à admissão, múltiplas lacerações em face (região frontal, glabelar, nasal e periorbitária esquerda) e equimose periorbitária à esquerda. Após realização de tomografia de ossos da face com reconstrução tridimensional, constatou-se fratura nasal e de rebordo inferior e assoalho de órbita esquerda. A avaliação oftalmológica resultou normal. Após 4 dias da admissão, o paciente foi submetido a redução e fixação de fratura de rebordo orbitário inferior, com colocação de miniplaca de ácido polilático/ poliglicólico de 1,5 mm e colocação de miniplaca em assoalho de órbita esquerda, além do tratamento da fratura nasal. O paciente apresentou boa evolução clínica, recebendo alta no primeiro pós-operatório. Após 6 meses de tratamento operatório, o paciente mostrou-se sem complicações e com tomografia de controle demonstrando boa consolidação óssea. Caso 2 Paciente LRSS, 1 ano e 2 meses, sexo masculino, branco, vítima de ataque por mordedura de cão da raça Pitbull, em 27/11/07, que era vacinado e pertencente ao pai. Apresentava, à admissão, múltiplos ferimentos cortocontusos em face e couro cabeludo, com lesão bilateral de nervo facial, envolvendo sua porção troncular à esquerda e os ramos zigomático e bucal à direita, além de fratura de ossos nasais, arco zigomático direito, ramo mandibular direito e rebordo inferior e assoalho de órbita esquerda, constatados após realização de tomografia de ossos da face com reconstrução tridimensional. A avaliação oftalmológica resultou normal. Após 8 dias da admissão, paciente foi submetido a redução e fixação de arco zigomático e rebordo orbitário com miniplaca de ácido polilático/ poliglicólico de 1,5 mm, colocação de miniplaca em assoalho de órbita esquerda e tratamento da fratura nasal. Optou-se por tratamento conservador da fratura mandibular. Paciente recebeu alta no segundo pós-operatório, com boa evolução clínica. Posteriormente, foi submetido a microcirurgia para reanimação facial, por meio da coaptação dos ramos bucal, zigomático e temporal do nervo facial esquerdo com o ramo massetérico do nervo trigêmeo esquerdo. A tomografia de 3 meses de pós-operatório demonstrou sucesso da consolidação das fraturas. Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2011; 14(4): 214-7 215 Abreu RAM et al. Caso 3 Paciente R, 3 anos e 9 meses, sexo masculino, branco, vítima de ataque por mordedura de cachorro da raça Pitbull no ano de 2008. O cão era vacinado e do ambiente familiar. Apresentava perda tecidual extensa em hemiface esquerda, localizada desde a região de comissura labial esquerda até a região pré-auricular homolateral. Para reconstrução da face, foi realizado retalho microcirúrgico da região ânterolateral da coxa, com anastomose microcirúrgica da artéria e veia facial com a artéria e veia femoral circunflexa lateral. O paciente apresentou evolução satisfatória, sem sequelas pós-operatórias. Um ano após, procedeu-se à melhoria cosmética, com desengorduramento do retalho e ressecção do excesso de pele. Figura 3 – Caso 3. Figura 1 – Caso 1. DISCUSSÃO Segundo Bini et al.1, a negligência no trato com cães ferozes, como das raças rottweiler e pitbull, aumentou a gravidade de lesões, e a mortalidade por mordedura canina, principalmente em infantes com idade pré-escolar, nos quais a cabeça representa grande área da superfície corpórea, ocorrendo, então, traumatismos craniomaxilofaciais e sequelas cosméticas mais graves3, dados concordantes com os casos relatados no presente estudo. Em vista do aumento da criminalidade, principalmente nas grandes cidades, cresceu muito a utilização de cães de guarda. Eles são animais fortes, por vezes treinados para ataque a estranhos que adentram as propriedades, como demonstrado pelas lesões consequentes a seus ataques nos casos reportados neste trabalho. Há acometimento de crianças na primeira infância, do sexo masculino e brancas, sendo as lesões mais comumente em face, cabeça e pescoço, predomínio esse corroborado por dados da literatura. A mordedura canina é um sério problema de saúde pública, afetando, anualmente, 1,5% da população dos Estados Unidos, de acordo com o estudo de Gilchrist et al.13, e, em decorrência, vem exigindo programas de prevenção efetivos, com regulamentação rigorosa das raças ferozes e medidas educativas em relação às crianças. Este relato tem uma função epidemiológica e de analisar a grande complexidade desses traumas, uma vez que as estatísticas nacionais são escassas. Faz-se necessária abordagem multidisciplinar e disponibilização de uma equipe interdisciplinar de Cirurgia Plástica, especializada e diferenciada, com microcirurgião e cirurgião crânio-maxilo-facial, além de procedimentos por vezes complexos e o uso de materiais específicos, muitas vezes, de alto custo, para tratamento adequado dos casos em centros de referência regionais, como hospitais universitários. Figura 2 – Caso 2. Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2011; 14(4): 214-7 216 Traumatismo complexo de face na infância causado por mordedura canina 7.Tu AH, Girotto JA, Singh N, Dufresne CR, Robertson BC, Seyfer AE, et al. Facial fractures from dog bite injuries. Plast Reconstr Surg. 2002;109(4):1259-65. 8.Javaid M, Feldberg L, Gipson M. Primary repair of dog bites to the face: 40 cases. J R Soc Med. 1998;91(8):414-6. 9.Suárez O, López-Gutiérrez JC, Burgos L, Aguilar R, Luis A, Encinas JL, et al. Surgical treatment in severe dog bites injures in pediatric children. Cir Pediatr. 2007;20(3):148-50. 10.Carvalho CC, Silva BTF. Características epidemiológicas de acidentes por mordedura de cão atendidos em unidade básica de saúde no Nordeste do Brasil. RBPS. 2007;20(1):17-21. 11.Del Ciampo LA Ricco RG, Almeida CA, Bonilha LR, Santos TC. Acidentes de mordeduras de cães na infância. Rev Saúde Pública. 2000;34(4):411-2. 12.Martins CBG, Andrade SM. Mordedura de cão na infância e adolescência: análise da morbidade em município da Região Sul do Brasil. Pediatria (São Paulo) 2007;29(2):109-16. 13.Gilchrist J, Sacks JJ, White D, Kresnow MJ. Dog bites: still a problem? Inj Prev. 2008;14(5):296-301. REFERÊNCIAS 1.Bini JK, Cohn SM, Acosta SM, McFarland MJ, Muir MT, Michalek JE; TRISAT Clinical Trials Group. Mortality, mauling, and maiming by vicious dogs. Ann Surg. 2011;253(4):791-7. 2.SINDAN – Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal. Disponível em: www.sindan.org.br. 3.Brogan TV, Bratton SL, Dowd MD, Hegenbarth MA. Severe dog bites in children. Pediatrics. 1995;96(5 Pt 1):947-50. 4.Reisner IR, Nance ML, Zeller JS, Houseknecht EM, KassamAdams N, Wiebe DJ. Behavioural characteristics associated with dog bites to children presenting to an urban trauma centre. Inj Prev. 2011;17(5):348-53. 5.Dinman S, Jarosz DA. Managing serious dog bite injuries in children. Pediatr Nurs. 1996;22(5):413-7. 6.Langley RL. Human fatalities resulting from dog attacks in the United States, 1979-2005. Wilderness Environ Med. 2009;20(1):19-25. Trabalho realizado no Hospital e Maternidade Celso Pierro/ Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), no Serviço de Cirurgia Plástica, Campinas, SP, Brasil. Artigo recebido: 4/7/2011 Artigo aceito: 11/9/2011 Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2011; 14(4): 214-7 217