FRAGMENTOS DA REPÚBLICA DE PLATÃO

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SANDRO ROGÉRIO BARROS DE VASCONCELOS
Fragmentos da República de Platão no Brasil do século XIX:
O Arraial de Canudos e o Direito vigente
BUENOS AIRES, CAPITAL FEDERAL, ARGENTINA
JULHO/2011
RESUMO:
O artigo científico em foco expõe uma comparação entre a República delineada por Platão e o
Arraial de Canudos de Antônio Conselheiro. O olhar proveniente da Grécia Antiga na direção
do incipiente Brasil Republicano, com vinte e três séculos de distância, atravessando mares e
continentes, atingiu o sertão baiano com um lampejo de imparcialidade na perseguição da
verdade. E ela foi encontrada para demonstrar a necessidade de se promover a justiça sempre
e para relembrar que os interesses públicos devem sobrepor os privados, com o fito de evitar
insurreições. Por fim, um esboço epistemológico do direito vigente no arraial é apresentado,
com arrimo no brocardo jurídico “ubi societas ibi jus” (onde existir sociedade, existe direito).
RESUMEN:
El artículo científico presenta una comparación entre la República esbozada por Platón y el
Campamento de Canudos de Antonio Conselheiro. La mirada originaria de la antigua Grecia
hacia el incipiente Brasil republicano, con veintitrés siglos de distancia, a través de mares y
continentes, llegó a las tierras del interior de Bahía, con un destello de la imparcialidad en la
búsqueda de la verdad. Y se halló para demostrar la necesidad de promover la justicia siempre
y recordar que el interés público tendrá prioridad sobre los privados, con el objetivo de
prevenir insurrecciones. Por último, un planteo epistemológico del derecho vigente en el
campamento se presenta, con respaldo en la máxima jurídica "ubi societas ibi ius" (donde hay
sociedad, hay derecho).
PALAVRAS-CHAVE: Platão. República. Conselheiro. Canudos. Direito
SUMÁRIO
1. Introdução, 04
2. A República de Platão, 05
2.1. Delineamento epistemológico, 06
3. O Arraial de Canudos, 07
3.1. Contexto histórico, 08
3.2. Aspectos sinérgicos com a República de Platão, 11
3.3. O Direito vigente, 13
3.3.1. Direito Público, 14
3.3.2. Direito Privado, 16
4. Conclusão, 17
5. Referências, 18
4
1. Introdução
Abordar filosofia sem fazer referência à obra imortalizada de Platão quiçá seja
um erro que não mereça justificativa. Ante esse diapasão, “A República” (Politeia),
exemplo de um Estado utópico idealizado pelo mestre grego, será objeto de uma breve
exposição, de acordo com a natureza sucinta do trabalho acadêmico em tela, a fim de
apresentar pontos em comum com o “Arraial de Canudos”, que sucumbiu no ano de
1897, após sucessivas incursões do exército brasileiro.
É importante que os registros dos acontecimentos não foram apagados na
plenitude, ainda que mantidos alguns de características parciais, em sintonia com os
interesses dos poderes então constituídos. Logo, impondo barreiras interpretativas na
busca incessante da verdade. Mas, a investigação dotada de imparcialidade, com a
sucessão do tempo, é capaz de resgatar os fatos de maneira mais crítica e realista.
A dialética de Platão foi marcante nos diálogos empreendidos por Sócrates nos
dez livros que circunstanciam “A República”. Independente de época, algumas
assertivas do conteúdo instigaram, por assim dizer, a comparação com peculiaridades do
“Arraial de Canudos” nos dois primeiros anos após a chegada do Conselheiro,
consoante elucidação apresentada nos subitens “2.1” (Delineamento epistemológico) e
“3.2” (Aspectos sinérgicos com a República de Platão) no contexto deste artigo.
Com arrimo nos referenciais históricos e no conceito de direito atribuído aos
jurisconsultos romanos (conjunto de normas que serve para regular a dinâmica de uma
certa sociedade em um dado tempo e em um determinado lugar), o “Arraial de
Canudos” possuiu um direito. Registros foram encontrados para fundamentar a
exposição textual do subitem 3.3 (Direito vigente) e seus desdobramentos.
Para elaborar este labor acadêmico, com o título “Fragmentos da República de
Platão no Brasil do século XIX: O Arraial de Canudos e o Direito vigente”, uma
pesquisa de natureza exploratória foi adotada. As dificuldades encontradas foram
muitas, considerando a limitação bibliográfica às expedições militares contra o lugar.
Sem embargo aos percalços identificados, a investigação, no seu bojo, não restou
prejudicada. O importante é que o relatório final se encontra à disposição de todos os
interessados com informações fidedignas, incutidas na verdade.
5
2. A República de Platão
Platão, indiscutivelmente, foi um dos maiores sábios da Grécia Antiga e, sem
incorrer em sofismas, também da filosofia universal de todos os tempos. O seu feito
cultural permanece latente e é objeto de estudos contínuos nos dias atuais. “A
República”, todavia, dentre outras obras, como, por exemplo, o Banquete, o Fédon e o
Fedro, é reconhecida pela crítica como a mais importante. Não só por ser a mais densa,
mas, sobretudo, por representar o apogeu de sua intelectualidade.
Antes de mais nada, porém, é imprescindível ressaltar que essa obra em
destaque, objeto da pesquisa, não será explorada textualmente neste item e subitem
como uma resenha. Terá, pois, um caráter eminentemente referencial e epistemológico.
Ipso facto, buscará evidenciar, de acordo com a dialética exposta nos diálogos, o
conhecimento que possa ser utilizado em comparação com peculiaridades do “Arraial
de Canudos”.
Não obstante, a título de esclarecimento, “A República” remonta ao século IV
a.C. Na sua estrutura, há dez livros harmônicos em que perguntas e respostas, no
formato de diálogos, transparecem a técnica empregada na elaboração da obra. Nela, do
primeiro ao último livro, procura-se discutir a mais sublime forma de justiça como um
verdadeiro paradigma, cuja serventia é impulsionar a formação e a estabilidade de um
Estado perfeito.
Assim como Sócrates1, Glauco2 e Adimanto3, outras personagens, como
Nicerato4, Polemarco5, Lísias6, Céfalo 7 e Trasímaco8, participam do enredo, que
transcorre no Pireu 9, sobretudo na casa de Polemarco. Logo, República 10 (latim) ou
Politeia11 (grego), conforme a tradução literal, possui uma gama imensa de significados,
motivo pelo qual, nas discussões, os temas são múltiplos.
1
Filósofo grego que viveu no século IV a.C. Foi o mestre de Platão.
Irmão de Platão.
3
Irmão de Platão.
4
Filho do general Nícias. É personagem também de o Banquete, obra de Platão.
5
Filho mais velho de Céfalo.
6
Um dos maiores oradores da Grécia Clássica, assim como Demóstenes.
7
Fabricante de escudos. Era meteco (grego nascido fora Grécia). Nasceu em Siracusa (Sicília).
8
Famoso sofista, especialista na dialética.
9
Região portuária de Atenas.
10
Coisa pública.
11
Tudo que está diretamente ligado à origem e à organização da Pólis (cidade-estado grega), v.g.: leis,
as formas de governo, o modo de agir dos cidadãos, etc.
2
6
2.1. Delineamento epistemológico
O Estado perfeito suscitado na “República de Platão” deve possuir líderes
(filósofos) e guardiões dotados de racionalidade. Ademais, discípulos ou cidadãos aptos
a discernir tudo o que é influenciado pelos ditames da razão, inclusive, renúncias em
detrimento deles mesmos. O banimento do egoísmo consolida-se. Nada pode obstar o
bem comum. Por isso, os anseios individuais sempre deverão estar em simbiose com os
coletivos.
A alma dos líderes (filósofos) deve contemplar a totalidade do tempo e do ser,
para que a própria vida e a morte sejam fixadas em um patamar inferior. Destarte,
apega-se ao conhecimento revelador da essência perene, alheia às mutações provocadas
pela geração e corrupção. Os líderes devem ser os médicos dos doentes e os pilotos dos
marujos.
A prática do bem é uma razão sublime, intento-maior a ser perseguido. A vida
propicia a consumação desse objetivo, desde que o humano se torne bom. Isso ocorre
através do estabelecimento do megas agon12 entre as virtudes e os vícios. Se há apego
às virtudes, os vícios serão aniquilados. Em consequência, a vitória da justiça será
exaltada. Honrarias, riquezas e poder jamais serão levados para o outro mundo. O
destino é um reflexo da responsabilidade.
A educação merece uma atenção especial. Nos ensinamentos, a ginástica deve
ser a disciplina do corpo; a música, da alma. Contudo, deve-se, em se tratando de letras
musicais, impor censura, uma vez que todos os atributos da verdade não são focados.
Indubitavelmente, acrescenta-se, toda e qualquer modalidade de arte deve ser vigiada.
Somente assim, a alma não correrá o risco de ser corrompida.
Os humanos devem produzir em conformidade com a precisão instante e
urgente. Não devem, pois, imiscuir-se com o luxo. A crença em Deus é o sustentáculo
da moral, que torna o Estado sólido. A luz divina, afinal, conforta os aflitos, encoraja as
almas, impulsiona, determina. E é na percepção do mundo que as pessoas se apresentam
frágeis, em virtude da tendência de impor limitações (alegoria da caverna 13).
12
13
Grande combate.
Livro VII de A República.
7
O Estado, mesmo que não excite a guerra, terá que dispor de guerreiros,
guardiões, homens impregnados de força e determinação para defender a coletividade
dos inimigos externos. Os conflitos são realizados por interesses diversos, sempre
revestidos de vícios, tais como o egoísmo, a cobiça e a inveja. Não se pode negligenciar
ante os males existentes no mundo.
Como o ser humano é gregário desde os primórdios da existência, buscou viver
em coletividades. Se não fosse assim, isoladamente, teria que vencer inúmeros
empecilhos para realizar a consecução da autossuficiência. Essa conjuntura motivou,
pois, o surgimento do Estado. Por isso, nada mais do que perfeito que todos os cidadãos
possam, nesse viés de igualdade, dispor de casa, trabalho, saúde, educação, etc.
E para esse Estado ser justo, quatro virtudes integram-se em harmonia, de
maneira indissociável. São elas: a sabedoria (sofia) inerente aos governantes; a coragem
(andreia) dos guerreiros; a temperança (sofrosine), ou, simplesmente concórdia, que é
comum a todos; e a justiça (dikaiosyne), que se funda no conceito de especialização, ou
seja, na realização de uma incumbência, consoante a sua mais pura aptidão,
competência, liberdade.
3. O Arraial de Canudos
Do ponto de vista geográfico, o antigo lugar, denominado Acampamento ou
Arraial de Canudos, estava localizado na então província da Bahia, hoje Estado, na
mesorregião do Sertão, a aproximadamente 420 km de Salvador, capital. Integrava o
vale do rio Vaza-Barris em pleno Polígono das Secas14. Tratava-se, pois, de uma
povoação que foi destruída pelo exército brasileiro no de 5 de outubro de 1897.
No ano de 1910, ressurgiu sobre as ruínas e, em 1940, o então Presidente da
República, Getúlio Vargas, resolveu mandar erigir um açude 15 no local, a fim de
sepultar, definitivamente, os resquícios da união de um povo ávido pela justiça social.
Tal fato somente ocorreu 10 anos após, resultando a submersão total. Entretanto,
durante as estiagens, as velhas edificações podem ser visualizadas, mantendo-se latente
14
Figura geométrica imaginária que delimitada, no âmbito da região Nordeste do Brasil, extensão
territorial em que a precipitação pluviométrica é baixa e irregular, motivo pelo qual se configuram secas
periodicamente.
15
Barragem ou represa para acumular água.
8
uma minúscula partícula da história universal de defesa da liberdade, igualdade e
fraternidade.
3.1. Contexto histórico
Em consonância com os Manuscritos16 de 1898, cuja autoria foi atribuída ao
Padre Vicente Ferreira dos Passos, vigário de Itu, Estado de São Paulo, no ano de 1876,
o então nomeado vigário de Cumbe, Padre Vicente Sabino dos Santos, em visita
missionária ao aglomerado populacional da fazenda de gado, instalada às margens do
rio Vaza-Barris, testemunhou o néscio das pessoas lá viventes, que ostentavam um
verdadeiro arsenal.
Os afazeres rotineiros se restringiam, basicamente, ao consumo de aguardente17
e às pitadas nos cachimbos de barro, fixados em canudos longos (canudos de pito18),
que compunham a vegetação existente nas imediações. Portanto, foi sugestivo o nome
do lugar. Entretanto, com a desordem e a criminalidade sempre em evidência, não se
vislumbrava a sustentabilidade.
Quando o Conselheiro 19 fincou pés em Canudos no ano de 1893, os poucos
casebres de pau a pique20 que restaram, a casa do senhoril e a igreja velha estavam em
abandono. O lugar parecia sucumbido, sem perspectiva de soerguer-se mais. No
entanto, o inimaginável ocorreu, mediante a liderança e a fé do beato recém-chegado,
16
CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos. 4.ed. São Paulo: Ateliê Cultural, 2001. p. 289
Bebida destilada feita à base de cana-de-açúcar.
18
Vegetal da ordem das tubifloras, solanáceas.
19
Antônio Vicente Mendes Maciel (Antônio Conselheiro, ou, simplesmente, Conselheiro). Nasceu no dia
13 de março de 1830 na Vila de Quixeramobim, na então província do Ceará, e faleceu no dia 22 de
setembro de 1897 no Arraial de Canudos. Foi um verdadeiro líder político, religioso e social, de um
carisma incontestável. A sua infância foi repleta de dificuldades. A mãe faleceu quando este tinha
apenas 4 anos de idade. Seu pai desejava que ele ingressasse na carreira sacerdotal, a fim de fugir da
pobreza e adquirir respeito na vida social. Com a morte dele, em 1855, foi obrigado a deixar os estudos
e assumir os negócios da família. Na ocasião, com 25 anos de idade. Foi processado em virtude da
inadimplência de obrigações financeiras. Em 1857, casou-se com uma prima (Brasilina Laurentina de
Lima). No ano seguinte, iniciou uma série de mudanças de domicílio, colimando melhores condições de
vida, desenvolvendo o ofício de professor. Em 1861, flagrou a esposa, na sua própria residência, na
cama com um sargento de polícia. Com a humilhação, envergonhado, abandonou tudo e foi procurar
guarida no Cariri, região afamada de penitentes. Daí em diante, peregrinou, com o seu hábito azul, de
pés descalços, imundo, por todos os sertões do nordeste brasileiro. Durante duas décadas, portanto,
caminhou por muitos lugares e adquiriu o status de homem santo, na concepção do povo humilde. Era
um propagador do bem. Mas contrariou os interesses dos coronéis e de sacerdotes da Igreja Católica,
uma vez que atraía multidões, sobretudo quando chegou no Arraial de Canudos, perseguido,
marginalizado.
20
Que se erige com varas e barro.
17
9
que, de pronto, instituiu um Microestado Teocrático e Socialista em pleno sertão baiano,
com o nome de Belo Monte21.
Pregava o Conselheiro: “Aqui teremos um rio de leite e serras de cuscuz” 22. E,
como bem enfatizou CUNHA23, “tratava-se de um lugar sagrado, cingido de montanhas,
onde não penetraria a ação do governo maldito. A sua topografia interessante modelavao ante a imaginação daquelas gentes simples como o primeiro degrau, amplíssimo e alto
para os céus”.
Para melhor compreender a história de Canudos ou Belo Monte, com o advento
do Conselheiro, faz-se mister empreender uma análise mais crítica e imparcial. Destarte,
os sertões do Nordeste do Brasil, naquela época, sobretudo, eram formados por
latifúndios, explorados economicamente pela mão de obra escrava até o dia 13 de maio
de 1888 (abolição da escravatura). E, seguidamente, pela mão de obra análoga à
escrava, com arbitrariedades inconcebíveis praticadas pelos “Senhores das Terras”,
ditos coronéis.
A distribuição de rendas configurada estava anos-luz da promoção de uma
satisfação social generalizada, mais utópica do que a identificada na atualidade. E os
coronéis projetavam o terror para conquistar novas glebas e manter ou ampliar as rendas
provenientes das atividades econômicas. A esperança do povo humilde em um futuro
melhor, por conseguinte, restava prejudicada.
Em pouco tempo, os discursos do Conselheiro foram propagados por todos os
recantos do Nordeste, incutidos na fé cristã e na certeza de que o Belo Monte
representava uma terra de dádivas, o solo escolhido por Deus para assentar a justiça, a
redenção dos oprimidos. Destarte, do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e das mais longínquas povoações da Bahia,
famílias inteiras partiram rumo ao lugar dos sonhos, deixando para trás um passado de
muito sofrimento, que, decerto, seria esquecido com a materialização das pregações do
“homem santo”.
As boas-vindas às pessoas que chegavam ao Belo Monte eram revestidas de uma
sincera solidariedade. O próprio Conselheiro, na maioria das vezes, integrava a
21
Novo nome dado pelo Conselheiro ao Arraial de Canudos.
CUNHA, op. cit., p. 308.
23
Idem, p. 290.
22
10
comissão de recepção. E, imediatamente, novas vivendas de taipa eram construídas para
abrigar os novos moradores. Há registros de que, no lugar, a população atingiu a cifra de
aproximadamente 25.000 habitantes. Eram negros (ex-escravos), índios, caboclos,
enfim, um enlace de raças na busca da fé e da justiça nunca conhecida.
A comunidade desenvolveu um modo de produção tipicamente primitivo, com o
rateio das riquezas advindas em partes iguais, respeitando as reais necessidades, de
acordo com as deliberações do Conselheiro, que, além de líder religioso,
consubstanciava a figura suprema da governança. Os moradores somente detinham a
propriedade dos casebres onde viviam e objetos domésticos. O princípio da igualdade
encontrou guarida nesse microestado, mal-entendido por historiadores até da atualidade.
Os sertões são assolados, há séculos, pelas secas. A precipitação pluviométrica
deficiente e irregular causa danos, anos após anos, às comunidades neles instaladas,
salvo raras exceções. O Belo Monte não configurou, portanto, uma situação alheia a
essa assertiva. E o Vaza-Barris, para complicar ainda mais o cenário, não era perene.
Logo, algo deveria ser feito para manter as necessidades saciadas da população, em
estágio contínuo de crescimento.
Ante essa conjuntura adversa, cangaceiros24, componentes do exército do Belo
Monte, saquearam fazendas de coronéis e povoados, com o escopo de promover uma
distribuição de rendas mais condigna, ainda que transgredindo o ordenamento jurídico
então vigente, de tutela das classes dominantes. É lógico que excessos foram
registrados. Todavia, vale ressaltar que essas ações, tidas como criminosas, foram mais
brandas ou insignificantes, considerando as atrocidades cometidas pelos donos do
poder, que se tornaram “vítimas” dos próprios erros.
O fim do Belo Monte estava delineado. Para complicar a conjuntura, a mão de
obra barata (de graça) nos latifúndios restava ameaçada, com a migração dos
trabalhadores oprimidos para a terra supostamente abençoada, em que imperava a fé e a
justiça. Ademais, o Conselheiro nutria ciúme em sacerdotes da Igreja Católica,
motivado pelo carisma que ele tinha para atrair multidões, guiadas pelos discursos
bíblicos de esperança.
24
Componentes de um movimento (cangaço) político e sociológico que ocorreu no Nordeste do Brasil,
de meados do século XIX ao final da década de 1940.
11
O dia 15 de novembro de 1889 (Proclamação da República do Brasil) ainda era
florescente. E os discursos críticos do Conselheiro em relação a matizes da nova forma
de governo, no exercício da liberdade de expressão, foram burlados e serviram de
fundamento para a destruição do Belo Monte. Em outras palavras, os coronéis e
sacerdotes da Igreja Católica, impregnados pelo sentimento de lesão aos seus interesses,
pressionaram o governo central, mediante um lobby falacioso25, para originar as quatro
expedições contra Canudos, que sucumbiu no dia 5 de outubro de 1897, sem se render.
Por conseguinte, o Belo Monte do Conselheiro é mais um exemplo registrado
pela História de oposição à intolerância, à subjugação de um povo, à má distribuição de
rendas, à imposição legislativa, enfim, a qualquer atributo que promova ou venha a
promover dano à equidade social.
3.2. Aspectos sinérgicos com a República de Platão
O “Arraial de Canudos”, na acepção do povo oprimido da época, era um lugar
(Estado) perfeito. Nele, o líder (Conselheiro-filósofo) e os defensores (guardiões)
cultivavam uma racionalidade específica para consolidar a fraternidade, com uma
liberdade plena dos interesses das classes dominantes, enraizadas além das fronteiras do
Belo Monte.
Os habitantes arraialescos26 (discípulos) eram solidários ao extremo. Tinham a
capacidade de assimilar o bem comum proferido nos discursos do Conselheiro, com
respaldo no discernimento da razão, ainda que considerada situacional. Até renúncias
faziam ante uma perspectiva individual (limitar a alimentação, doar pertences ao tesouro
público, etc.), a fim de manter os anseios da coletividade sustentáveis.
O Conselheiro foi um líder (filósofo) que posicionou a sua própria vida e a
morte em uma esfera de pouco valor. Não tinha apego às coisas materiais. Teve, na
qualidade de líder, uma vida repleta de simplicidade, abstenções. E não foi constituído
como tal pela força. Logo, foi escolhido e identificado por multidões e procurou ficar
adstrito a um conhecimento isento de mudanças impostas pelo tempo, com fundamento
25
26
O Conselheiro estaria formando um exército para aniquilar a república e restaurar o império.
Relativo ao arraial, do arraial.
12
na ética bíblica. Foi verdadeiramente “um médico dos doentes e um piloto dos
marujos”.
O conflito (megas ogon) do bem com o mal foi motivo de destaque nas
pregações do Conselheiro. Dessa maneira, erigir o bem foi a causa principal de sua
liderança na busca incondicional de vencer o mal. Para ele, posses materiais e distinções
na vida terrena não seriam levadas para um outro plano de vida, após a morte. Cada
pessoa tem um fado traçado pela responsabilidade (vontade divina).
A educação no “Arraial de Canudos” era moldada, dentre outros aspectos, no
trabalho físico comunitário (ginástica), como forma de disciplinar o corpo e
proporcionar a subsistência do lugar, e cânticos para nutrir a alma do povo de verdade e
esperança. No entanto, toda cultura de origem externa, antes de ser agregada aos hábitos
internos, deveria ser alvo de censura para não macular o conhecimento dogmático.
O modo primitivo de produção era desencadeado conforme a necessidade. Tudo
e todos estavam exclusos de luxo. O lugar só se tornou grandioso mediante a adoção de
uma moral apoiada na convicção divina. Ela foi determinante para se alicerçar o
conforto dos angustiados que lá chegaram e encorajá-los a pugnar por uma vida melhor.
E, como no “mito da caverna”, a fragilidade foi notada pela inclinação das pessoas ao
estabelecerem restrições na impressão do mundo.
A bravura dos cangaceiros foi uma marca registrada no Belo Monte. Nada
impunha medo a esses guerreiros na defesa da coletividade. Para não se incorrer em
erro, toda a população tinha o mesmo atributo de valentia. Prova clara de tudo isso é
que, na História, em diferentes épocas, foram raras as situações de conflito em que a
rendição não foi evidenciada. No “Arraial de Canudos”, por exemplo, as últimas
pessoas existentes foram alvejadas lutando.
Bem como na “Politeia” idealizada por Platão, o Belo Monte se formou pelo fato
do ser humano, isolado, não ser autossuficiente. E, com a necessidade de união dos
oprimidos (discípulos) sob a liderança do Conselheiro (filósofo) e a proteção dos
cangaceiros (guardiões), um verdadeiro Estado surgiu para promover o bem-estar da
coletividade.
E foi esse Estado justo enquanto perdurou, com a integração das quatro virtudes
ditadas por Platão, ou seja, a sabedoria (sofia) do Conselheiro (filósofo-governante); a
13
coragem (andreia) dos cangaceiros (guardiões); a temperança (sofrosine) ou concórdia
peculiar a todos; e a justiça (dikaiosyne), que alinha a consumação das incumbências à
mais pura vocação, capacidade, liberdade.
3.3. O Direito vigente
Na mais primitiva formação grupal da humanidade, não se pode admitir a
inexistência do direito. Como bem destacou os jurisconsultos romanos, é ele um
complexo normativo cuja valia é promover a regulação da dinâmica de uma certa
sociedade em um dado tempo e em um determinado lugar. Representa, dentre outros
aspectos, um necessário instrumento de ordem e sujeição na busca da sustentabilidade.
O “Arraial de Canudos” como sociedade, portanto, teve um direito vigente. Será
analisado e apresentado com base nos poucos registros expressos e tácitos suscitados na
bibliografia. Não obstante, o intento27 da história do direito é a interpretação dialética
do fenômeno jurídico e seu dimensionamento em função do tempo. O importante é que
esse viés foi percorrido na investigação.
A obra imortalizada de CUNHA28 projetou o maior número possível de
informações para fundamentar este tópico. Em primeiro lugar, transparece a existência
de um direito eclético no Belo Monte. Era positivo, com amparo nos ditames da bíblia
cristã, e consuetudinário, de acordo com os hábitos reiterados na comunidade, como,
v.g., a obrigatoriedade29 de participar das rezas diárias.
As fontes do “direito arraialesco”30, nascedouro da norma jurídica no sentido
metafórico, são divididas em materiais e formais. Em se tratando da consumação de
fatos que causam um grande abalo comunitário, na estirpe de fontes do direito, são
denominadas materiais (as expedições do exército brasileiro contra o arraial motivaram
a imposição31 até de crianças integrarem o sistema armado de defesa).
27
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p.
229.
28
CUNHA, op. cit.
29
Norma agendi.
30
Direito do Arraial de Canudos.
31
Norma agendi.
14
Quanto às fontes formais, são todas estatais (lei, jurisprudência, doutrina e
costume). Logo, o “Arraial de Canudos” possuía uma conotação de Estado Teocrático e
Socialista. Em consequência, a lei, como fonte estatal, foi elaborada em apreço com a
vontade divina (bíblia) para o bem-estar da coletividade. A jurisprudência, por sua vez,
refere-se ao mesmo teor da sentença prolatada pelo magistrado-Conselheiro (eleito por
Deus e pelo povo) para casos concretos similares (dúzias de palmatoadas32 para
fornecedores de aguardente). A opinião dele sobre temas de direito era a mais pura e
única doutrina. E as condutas repetidas no meio comunitário, desde que aquiescidas
pelo “representante celestial”, formavam os costumes.
Desde já, é mister deixar óbvio que a explanação usada no texto é
essencialmente didática. Almeja, com isso, a consecução do entendimento jurídico com
um desenho redacional nos moldes acadêmicos. Afinal, o índice de analfabetismo em
Canudos era quase que absoluto. Por suposto, institutos de direito e conceitos com uma
dimensão epistemológica não eram conhecidos. Apenas, por uma circunstância,
materializaram-se no cotidiano.
A dicotomia do direito em público e privado merece uma consideração especial
na história do “direito arraialesco”. Isso se deve ao fato de que a fragmentação
(polarização) gerou ramos sem um desenvolvimento pleno, em face do nível precário de
organização da comunidade, da limitação de condutas de seus entes e, sobretudo, por
causa do ínfimo estágio de intelectualidade.
3.3.1. Direito Público
A orientação geral do direito manifesta-se através dos princípios. São eles os
responsáveis pela disposição harmônica da norma jurídica. Em Canudos, essa assertiva
legal e doutrinária foi ratificada no direito público ou comunitário, através dos seguintes
princípios: da expressão divina, da rejeição do direito republicano, da solidariedade
recíproca e da justiça social.
O princípio da expressão divina revela que o direito verdadeiro é proveniente da
vontade de Deus; o da rejeição do direito republicano aduz que os mandamentos nele
32
Pancadas com palmatória.
15
insertos são antagônicos aos de Deus, por serem originados pelo homem pecador; o da
solidariedade recíproca determina a união de esforços para se conquistar a justiça
social (princípio que reluz a satisfação absoluta da coletividade e que é indissociável do
princípio da solidariedade recíproca).
O direito público era interno, consoante ficou apregoado no princípio da
rejeição do direito republicano. Em versos33, o povo aclamava a supremacia do direito
espelhado na revelação divina:
“Garantidos pela lei
Aqueles malvados estão
Nós temos a lei de Deus
Eles tem a lei do cão!
Bem desgraçados são eles
Pra fazerem a eleição
Abatendo a lei de Deus
Suspendendo a lei do cão!”
No que se atine à ramificação do direito público e seguindo um prisma material
ou substantivo, quatro ramos foram anotados (constitucional, administrativo, tributário
e penal). O direito constitucional34 estava positivado nas recomendações bíblicas e nas
interpretações proferidas pelo Conselheiro. O direito administrativo35 refugiava-se nas
orientações dadas pelo Conselheiro e seus assessores para a efetividade da gestão 36
comunitária. O direito tributário37 restringia-se às doações38 compulsórias de bens
corpóreos ao erário público. O direito penal39 tinha a mesma conotação do direito
constitucional quanto às fontes.
Em princípio, com relação ao viés processual ou adjetivo do direito público,
serão circunstanciados os sujeitos envolvidos com as suas respectivas especificidades.
Por conseguinte, o Conselheiro era o magistrado supremo, com competência para julgar
33
CUNHA, op. cit., p. 319.
Jus scriptum.
35
Jus non scriptum.
36
Inclui-se, nesse contexto, o disciplinamento da servidão laboral dos entes ativos, a assistência aos
inativos e o rateio dos produtos advindos.
37
Jus non scriptum. Era de natureza consuetudinária. Um hábito reiterado que se tornou norma.
38
As pessoas que queriam viver no Arraial de Canudos tinham que doar a maioria de seus pertences. E
isso ocorria com satisfação. Somente podiam deter, no lugar, a posse/propriedade de alguns objetos
domésticos básicos (copo, colher, prato, etc.). Ademais, toda a riqueza proveniente dos saques
realizados nos arrabaldes (latifúndios e povoações inimigas) também eram objeto de doação.
39
Jus scriptum. O Conselheiro, todavia, dava uma interpretação própria no concernente aos desvios de
conduta. Por exemplo, o roubo e o furto são condutas criminosas, mas, quando se rouba ou furta de
ricos (exploradores dos humildes) para satisfazer as necessidades dos pobres, inexistem tipos penais
(crime impossível). Faltar às rezas era um delito mais grave que matar alguém (homicídio).
34
16
o mérito de qualquer matéria. Dele, advinha o poder (livre arbítrio) e a exegese
necessária para dizer o direito. As atribuições típicas e restritas de um ministério público
ficavam a cargo da própria comunidade na participação efetiva dos processos. Qualquer
um no seio do povo poderia advogar e/ou testemunhar contra ou a favor de alguém
(autor ou réu) perante o juízo único, a quo e ad quem, em caráter monocrático.
A jurisdição era voluntária ou contenciosa. A ação (privada ou pública) era
promovida verbalmente na presença do magistrado (Conselheiro), que, percebendo a
contundência dos fatos, instaurava o processo em um rito sumaríssimo. Ouvia as partes
(autor e réu), o ministério público (povo), acusação e defesa, conhecia as provas
(testemunhais, quase sempre) e prolatava a sentença. Recursos raros somente eram
intentados ante ele mesmo e apreciados também em um rito sumaríssimo. Não havia
nenhum resquício de formalidade nos procedimentos. A celeridade processual era
indescritível.
3.3.2. Direito Privado
As pessoas que compunham o Belo Monte adotaram um modo de vida com
ênfase exclusiva na satisfação das necessidades e dos interesses comunitários. Por isso,
institutos do direito privado não foram instigados no meio. Até as habitações foram
construídas no regime de mutirão. Todos tinham casa e comida, educação (estritamente
religiosa, sem a utilização da escrita), segurança, assistência médica (práticos, leigos) e
espiritual. A subsistência da coletividade era resultante das ações desencadeadas por ela
mesma, sem a necessidade de meios de troca (pagamentos).
O princípio que impôs barreiras na senda do direito privado em Canudos,
decerto, foi o da impugnação dos interesses privados em benefício dos interesses
públicos. O direito civil confunde-se com o dever do Estado. Nada impede de se
conjecturar, entretanto, que, isoladamente, desvios de rumo foram escolhidos. A história
das sociedades mostra que, pela natureza humana, o egoísmo, a inveja e a cobiça
estimulam o locupletamento pessoal em detrimento da coletividade.
17
4. Conclusão
Fragmentos da dialética de Platão, suscitados de sua principal obra, “A
República”, foram abordados de maneira simplificada e objetiva no contexto deste
artigo. Não como um mero resumo filosófico, mas como um desafiador mecanismo de
comparação com a existência do “Arraial de Canudos”, que equivocadamente de
“messiânico” foi exposto por historiadores de convicção relativa, parcial. Lá, foi achada
a fórmula ensinada pelo inesquecível sábio grego para se erigir um Estado ideal,
alicerçada no conceito de justiça.
O olhar proveniente da Grécia Antiga na direção do incipiente Brasil
Republicano, com vinte e três séculos de distância, atravessando mares e continentes,
atingiu o sertão baiano com um lampejo de imparcialidade na perseguição da verdade. E
ela foi encontrada para demonstrar a necessidade de se promover a justiça sempre e para
relembrar que os interesses públicos devem sobrepor os privados, com o escopo de
evitar insurreições.
Um direito eclético, consuetudinário e positivo, foi identificado no Belo Monte.
Teve fulcro, sobretudo, nos hábitos reiterados na comunidade, em ditames da bíblia
cristã e na exegese proferida pelo Conselheiro, que foi governador-filósofo, legislador,
magistrado e mestre espiritual, simultaneamente, sem se caracterizar ditador. Em suma,
foi um líder eleito sem candidatura, voluntário da servidão pública sem interesse
financeiro, pobre por natureza e rico de esperança e fé.
Por conseguinte, o objetivo da pesquisa foi alcançado. Não importa o teor
sucinto deste trabalho. O mais importante é que a ciência foi provocada para o bem da
comunidade acadêmica e da sociedade em geral. E, para quem almejar consolidar ainda
mais o conhecimento no assunto, as referências contidas no item que segue poderão ser
utilizadas.
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5. Referências
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Ao Livro Técnico, 1987.
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Teoria Geral do Processo. 15.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
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Forense, 2002.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos. 4.ed. São Paulo: Ateliê
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DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 9.ed São
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Editora Paz e Terra, 1968.
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SAVATER, Fernando. Política para meu filho. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
SILVA, Hélio. 1889: A República não esperou o amanhecer. Rio de Janeiro: Editora
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PEREGO. Dinamica della giustizia. Milano: Ginffrè, 1978.
19
ROITMAN, Válter. Cangaceiros: crime e aventura no sertão. São Paulo: FTD,
1997.
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