22 1. Introdução | Introduction A cirurgia de malformações cardíacas congénitas (MCC) deu os primeiros passos em 1945, com a realização da primeira correcção de coarctação da aorta [1] e a descrição por Blalock-Taussig do shunt sistémico-pulmonar como cirurgia paliativa das malformações com obstrução ao fluxo sanguíneo pulmonar [2]. Em 1955, oito doentes foram submetidos com sucesso a cirurgia correctiva de comunicação inter-ventricular [3]. Nessa altura, a cirurgia correctiva era feita em doentes púberes ou adolescentes, com reserva funcional diminuída, complicações multiorgânicas e redução da esperança de vida. Durante anos, a cirurgia em crianças limitou-se a procedimentos paliativos simples. No final da década de 70, a introdução da ecocardiografia e da angiocardiografia digital permitiu uma melhor avaliação das MCC. Estas técnicas de diagnóstico e a generalização da monitorização invasiva criaram as bases para que se efectuasse mais vezes a cirurgia correctiva e em idades mais precoces, o que resultou num aumento da sobrevida, em muitos casos até à idade adulta [4]. Hoje, o número de adolescentes e adultos com MCC é sobreponível ao número de crianças com esta patologia (cerca de 1 milhão nos EUA) [5], e destas, estima-se que 85% atingirão a idade adulta [6]. Decorridos 30 anos de desenvolvimento da cirurgia cardíaca pediátrica, o número destes doentes que é proposto para anestesia em cirurgia não cardíaca tem vindo a aumentar, sobretudo em Obstetrícia [7]. Palavras Chave: Malformações Cardíacas Congénitas, Anestesia, Anestesia para Cirurgia Não Cardíaca. In 1945, initial steps in surgery for congenital cardiac maformations (CCM) were taken when the first aortic coarctation was corrected[1]. Also, Blalock-Taussig contributed while describing the palliative systemic-pulmonary shunt in cases of malformations with pulmonary blood flow obstruction [2]. In 1955, eight patients were successfully submitted to surgical correction of their interventricular communications [3]. At that time, corrective surgery was performed in adolescents with diminished functional reserve, multiorganic complications and reduced life-expectancy. For years, surgery in pediatric patients was limited to simple palliative procedures. At the end of the seventies, the introduction of ultrasound and angiocardiography permitted a more thorough evaluation of patients with CCM. These diagnostic tools and the generalization of invasive monitoring allowed corrective surgery in younger patients, resulting in better survival rates, frequently until adulthood [4]. Nowadays the number of teenagers and adults with CCM is similar to the number of pediatric patients with the same pathology (aprox. 1 million in the USA) 5.It is estimated that 85% of these children will reach the adult age [6]. In these 30 years of experience in paediatric cardiac surgery, the number of patients proposed for anaesthesia for noncardiac surgery has increased, especially in the Obstetrics [7]. Key words: Congenital Cardiac Malformations, Anaesthesia, Anaesthesia for non-cardiac surgery 2. ABORDAGEM GERAL DAS MCC Um doente com MCC pode chegar à idade adulta sem nunca ter sido operado à sua cardiopatia, pode ter sido submetido a cirurgia extra-cardíaca paliativa para aumento do fluxo sanguíneo pulmonar ou pode ter efectuado a correcção possível da sua malformação da qual podem ter resultado sequelas electrofísiológicas e alterações anatómicas. O conhecimento dos defeitos cardíacos e dos consequentes padrões de fluxo é indispensável para a correcta abordagem anestésica. No quadro 1, indicase a classificação das MCC de acordo com esses padrões de fluxo. O defeito anatómico das MCC traduz-se em termos fisiológicos, num aumento de pressão e/ou volume numa câmara cardíaca, o que conduz a um desequilíbrio entre os fluxos sanguíneos sistémico (Qs) e pulmonar (Qp). Consequentemente, a abordagem anestésica destes doentes passa por uma tentativa de diminuir a diferença entre estes dois fluxos, interferindo nas resistências vasculares sistémicas (RVS) e pulmonares. Nos quadros 2 e 3 indicam-se os factores que influenciam as resistências vasculares pulmonares (RVP) e que podem ser modificados na anestesia destes doentes. O desequilíbrio entre as circulações sistémica e pulmonar das MCC está associado a um conjunto de sinais e sintomas, resultantes das complicações que cada um dos padrões de fluxo provoca nos orgãos alvo. Estes padrões de fluxo permitem classificar clínicamente as MCC em cianóticas (Qp<Qs) ou com congestão pulmonar (Qs>Qp). O aumento da eritropoiese correspondente a esta policitémia resulta em ferropenia e consequente microcitose.A maior rigidez dos eritrócitos microcíticos tem como consequência que, para o mesmo valor de hematócrito (Hct), é maior a viscosidade e o risco de trombose 9. A desidratação provocada pelo jejum pré-operatório ou por uma inadequada reposição hídrica intra-operatória, aumentam igualmente este risco e favorecem o sindrome de hiperviscosidade, caracterizado por cefaleias, mialgias, parestesias, diplopia e depressão da consciência. Na prevenção destas complicações, a reposição hídrica deve ser acrescida 50% aos valores calculados para o indivíduo normal 8 . A esta hiperviscosidade está associada a lentificação do fluxo sanguíneo periférico o que estimula a agregação e a desgranulação plaquetar de forma continuada. Isto conduz a um consumo de factor de Von Willebrand, de fibrinogénio e à activação da fibrinólise, com aumento dos produtos de degradação da fibrina. Estes, por sua vez, exibem um efeito anti-coagulante competitivo com a fibrina 10. Daqui resulta um estado de hipocoagulabilidade, que pode ser melhorado com a administração de fármacos anti-fibrinolíticos, particularmente dos que também inibem a desgranulação das plaquetas, como a Aprotinina 11. Shunt’s Simples Complexos Mistura das Circulações Malformações Obstrutivas Simples Complexas Quadro 1 - Classificação anatomo-fisiológica das MCC 2.1 MCC Cianóticas Sempre que a circulação pulmonar é inferior à sistémica, a cianose aparece para valores de hemoglobina reduzida superiores a 5 g/dl. Ou seja, para uma hemoglobinémia de 10 g/dl a cianose ocorre para valores de Pa O2 50 mmg, enquanto que para hemoglobinémias de 20 g/dl, a cianose já está presente em valores de Pa O2 75 mmg 8. O aparecimento de cianose está assim associado à presença de policitémia, que ocorre como resposta à necessidade de aumento do fornecimento de O2. A policitémia é, por seu turno, a principal responsável pelo aparecimento de hiperviscosidade sanguínea, causa de microtromboses nos orgãos alvo, nomeadamente cérebro, rins e pulmões. Hipoxémia Hipercapnia Acidose Hiperinsuflação dos pulmões Policitémia Atelectasias ou colapso pulmonar Estimulação simpática Quadro 2 - Factores que aumentam as resistências vasculares pulmunares Hiperóxia Hipocapnia Alcalose Oxido Nítrico Prostaglandinas Vasodilatadores endovenosos Quadro 3 - Factores que diminuem as resistências vasculares pulmunares Revista SPA ‘ vol. 14 ‘ nº 2 ‘ Julho 2005 Este estado de hipocoagulabilidade é na maioria dos casos compatível com cirurgia major apenas sendo de esperar um aumento da hemorragia e consequente necessidade de administração de glóbulos rubros, plasma e plaquetas. Nos doentes cianóticos com Hct > 50%, os valores laboratoriais do APTT e PT estão falsamente elevados. Os tubos de colheita tem uma quantidade fixa do antigoagulante citrato calculada para Hct até 50%. Para hematócritos superiores, esta quantidade de citrato é excessiva para o plasma existente 10. A coagulação é considerada anormal para Hct >60%, pelo que, após correcção de eventual desidratação, deve executar-se flebotomia préoperatória (500 ml de sangue/ 24h) até atingir um Hct 55% 12, de modo a melhorar a hemostase e a diminuir o risco de trombose. A cianose e a consequente hiperviscosidade estão também associadas a tromboses glomerulares com atrofia tubular, podendo a insuficiência renal aguda surgir facilmente perante a hipovolémia ou o agravamento da insuficiência cardíaca. O aumento da uricémia é o marcador que melhor avalia o grau de diminuição da reserva renal nos doentes cianóticos [13], o elevado turnover eritrocitário com consequente aumento da degradação da globina excede facilmente a capacidade de excreção renal. Estes doentes têm tendência a desenvolver cálculos de ácido úrico, um dos principais motivos das intervenções urológicas a que os doentes com MCC cianótica são submetidos. O aumento da degradação do grupo heme aumenta a excreção de bilirrubina e a incidência de cálculos de bilirrubinato de cálcio, sendo a colecistite aguda também uma das causas de intervenção cirúrgica nestes doentes. 2.2 MCC com Congestão Pulmunar Quando o fluxo sanguíneo pulmonar excede o fluxo sistémico, desencadeia um aumento da RVP, primeiro por vasoconstrição (reversível), depois por hipertrofia e esclerose da média arteriolar (irreversível).A distinção entre estas duas fases é muito importante porque, na idade adulta, estes doentes exibem um certo componente de hipertensão pulmonar irreversível. Isto implica uma maior sensibilidade aos factores capazes de aumentar as RVP e uma menor resposta às manobras anestésicas capazes de as diminuir. O aumento do fluxo pulmonar traduz-se clinicamente numa taquipneia, por diminuição da complacência pulmonar e consequente aumento do trabalho respiratório. É típica a história de infecções respiratórias frequentes, resultado do engorgitamento da vasculatura pulmonar que conduz à compressão extrínseca das pequenas vias aéreas e ao colapso alveolar. Clinicamente a insuficiência do débito sistémico traduz-se em extremidades pálidas e frias, resultado do aumento das RVS pelo tono simpático. 3. ABORDAGEM DAS MCC ESPECÍFICAS 3. 1 Comunicação Inter-Auricular (CIA) A CIA consiste num defeito do septo inter-auricular com um fluxo de sangue esquerdo-direito (shunt simples), com consequente sobrecarga direita de volume e aumento do fluxo sanguíneo pulmonar. A correcção da CIA não acarreta sequelas quando realizada antes dos 5 anos de idade mas, a partir desta idade, pode acompanhar-se de algum grau de insuficiência direita sub-clínica [14]. Mesmo quando não corrigida, os sintomas de insuficiência cardíaca direita aparecem tardiamente uma vez que o gradiente de pressões inter-auricular é baixo e o shunt reduzido. As arritmias supraventriculares, nomeadamente a fibrilhação auricular, por dilatação da aurícula direita, raramente aparecem antes dos 30 anos de idade, sendo geralmente a primeira complicação e a causa precipitante dos sintomas [15]. O posterior agravamento da insuficiência cardíaca direita deve-se ao desenvolvimento de hipertensão pulmonar quando a sobrecarga de pressão se adiciona à já existente sobrecarga de volume. O aumento da volemia na gravidez pode desencadear o aparecimento de sintomas de insuficiência cardíaca direita, até então sub-clínica. Neste caso, o uso de técnicas anestésicas loco-regionais no parto é preferível, uma vez que produzem um excelente bloqueio simpático, evitando a hipertensão, o aumento do shunt e as arritmias. 3. 2 Comunicação Inter-Ventricular (CIV) Neste shunt simples, o gradiente de pressões entre as duas câmaras é maior que na CIA sendo mais intensos o shunt e a congestão pulmonar. O fluxo pulmonar é várias vezes superior ao sistémico, apresentando a CIV, ao contrário da C.I.A, sobrecarga de volume ventricular esquerda. Quando não corrigida, os sintomas aparecem muito mais cedo que na CIA por insuficiência cardíaca congestiva biventricular. Quando corrigida após os 2 anos de idade, persiste insuficiência cardíaca esquerda, tanto mais grave quanto mais tardia foi a cirurgia. A proximidade do defeito septal com o feixe de His pode levar à sua lesão quando da cirurgia correctiva justificando as sequelas de distúrbio de condução que muitos doentes operados apresentam. A abordagem anestésica de doentes com CIV não corrigida é de grande risco, pois deve fazer suspeitar de um Sindrome de Eisenmenger. SINDROME DE EISENMENGER O Sindrome de Eisenmenger pode complicar qualquer MCC caracterizada por shunt esquerdodireito e aumento do fluxo sanguíneo pulmonar que quando não corrigida, provoca doença vascular pulmonar obstrutiva. Com a progressão da hipertensão pulmonar, a pressão sistólica pulmonar ultrapassa a sistémica, ocorrendo uma inversão do shunt e cianose. Trata-se de um shunt complexo, que consiste na associação de um shunt intra-cardíaco com uma obstrução parcial ao fluxo de saída de uma das câmaras comunicantes, provocando uma sobrecarga de pressão que condiciona o sentido e a magnitude do shunt. No Sindrome de Eisenmennger, a hipertensão pulmonar tornou-se irreversível e não diminui com manobras anestésicas. A tentativa de reduzir as resistências sistémicas, que é correcta num shunt simples como a CIV , torna-se desastrosa quando este se transforma num shunt complexo, pois aumenta a cianose. Nesta fase, a CIV deixa de ter solução cirúrgica, pois o seu encerramento levaria à morte por insuficiência cardíaca direita. As portadoras deste síndrome devem ser desencorajadas de engravidar, dada a elevada mortalidade materna e fetal que o acompanha 16 17. O parto deve ser feito o mais prematuramente possível e por cesariana, pois as intensas manobras de valsava que o acompanham contraindicam o parto vaginal. A anestesia deve ser geral 1819, evitando-se a diminuição das RVS, assegurando-se um generoso preenchimento vascular e uma pronta reposição das perdas sanguíneas. A monitorização da pressão venosa central é mandatória. O uso de Adrenalina é útil para tratar a hipotensão e a insuficiência cardíaca direita, as quais conduzem rapidamente à mor te . O cateterismo da artéria pulmonar é controverso, dado o risco de arritmias, embora seja útil na monitorização das agudizações da hipertensão pulmonar. 3.3 Tetralogia de Fallot Esta MCC traduz-se num shunt complexo, em que a CIV está associada a uma obstrução dinâmica ao fluxo de saída do ventrículo direito, por hipertrofia muscular da sua câmara de saída (infundibulum). A resistência ao fluxo de saída do ventrículo direito força parte do sangue venoso sistémico através da CIV para uma aorta dilatada, produzindo cianose e desenvolvendo-se hipertrofia ventricular direita. A intensidade da obstrução infundibular, e consequentemente do shunt direito-esquerdo, varia na razão directa do inotropismo e na razão inversa do volume telediastólico do ventrículo direito. A cianose varia directamente com a obstrução e inversamente com as RVS. Como tal, a diminuição das RVS deve ser evitada e tratada prontamente com um agonista (fenilefrina). O uso de agonistas agrava a obstrução e o shunt direito-esquerdo, quer por provocar espasmo infundibular, quer por favorecer a taquicardia e a diminuição do volume teledistólico. A maioria dos adultos com Tetralogia de Fallot não corrigida foram submetidos durante a infância a um shunt sistémico-pulmonar que lhes permitiu aumentar o fluxo sanguíneo pulmonar por anastomose da artérias subclávia e pulmonar. Nesta cirurgia paliativa compensa-se a cianose com a passagem do sangue arterial pelo pulmão, o que pode assegurar uma razoável oxigenação durante décadas e levar o doente a recusar a cirurgia correctiva. No entanto, a insuficiência cardíaca acaba por surgir devido a sobrecarga de pressão do ventrículo direito e sobrecarga de volume do ventrículo esquerdo 20. A diminuição do fluxo sanguíneo pulmonar é responsável pela diminuição da arborização brônquica durante o desenvolvimento dos pulmões, o que acarreta a diminuição da capacidade ventilatória destes doentes 2122. Revista SPA ‘ vol. 14 ‘ nº 2 ‘ Julho 2005 Para melhor controlo das RVS, a anestesia geral é a técnica recomendada nos doentes com Tetralogia de Fallot não corrigida 23. Nos doentes com Tetralogia de Fallot corrigida devemos estar atentos às implicações anestésicas das sequelas anatómicas e electrofisiológicas consequentes à correcção. A cirurgia correctiva deve ser executada até aos 5 anos de idade, sob pena de persistência da insuficiência cardíaca direita e da ocorrência de arritmias ventriculares como resultado da hipertrofia e fibrose miocárdicas que entretanto se desenvolvem 24. A insuficiência cardíaca direita também pode surgir por re-estenose do infundíbulum, ou por insuficiência pulmonar resultante da colocação de patch transanular 25. Como resultado da ventriculotomia, o bloqueio bifascicular ocorre em quase todos os doentes, cerca de 20% dos quais com bloqueio A-V completo 26. 3.4 Anomalia de Ebstein Trata-se de um shunt complexo que consiste na associação de uma CIA com uma obstrução parcial ao fluxo ventricular direito que condiciona a magnitude e o sentido do shunt através da CIA Esta obstrução resulta do deslocamento da válvula tricúspide para uma posição médio-ventricular, à custa dos folhetos septal e posterior, com a consequente insuficiência valvular e auriculização de uma porção do ventrículo direito. Estes doentes apresentam a aurícula direita muito dilatada, com uma porção ventricular, e o ventrículo direito pequeno, pouco complacente, o que provoca uma obstrução parcial ao fluxo sanguíneo e condiciona um aumento da pressão auricular direita e shunt através da CIA. A dilatação de uma aurícula direita formada por tecido auricular e ventricular, aumenta a probabilidade de aparecimento de arritmias supra-ventriculares, o que contra-indica a sua cateterização.A associação com Wolff-Parkinson-White em 30% destes doentes favorece as arritmias ventriculares, sendo esta a principal causa de morte antes da idade adulta 27. A maioria destes doentes atingem a idade adulta com insuficiência cardíaca direita, mas geralmente acianóticos. A insuficiência tricúspide vai-se progressivamente agravando, ocorrendo cianose quando a pressão da aurícula direita se sobrepõe à da aurícula esquerda. A sobrevida aos 60 anos é de 5% 28. A indução anestésica intravenosa está retardada na doença de Ebstein. Isto deve-se á insuficiência tricúspida e ao alargamento da aurícula direita que origina um “pool” de sangue que actua como um depósito dos fármacos administrados por via intravenosa 29, aumentando o risco de sobredosagem e de hipotensão. Uma vez que o agonismo favorece o aparecimento de arritmias, a fenilefrina e a noradrenalina são os fármacos mais indicados no tratamento da hipotensão. ocasiona taquicardia supraventricular em 20% dos casos 30. Por estas razões, o bloqueio epidural deve ser utilizado sempre que possível na anestesia destes doentes 31. 3.5 Transposição Completa dos Grandes Vasos Como resultado de uma discordância anatómica ventrículo-arterial, o ventrículo direito ejecta para a aorta o sangue venoso sistémico, enquanto o ventrículo esquerdo ejecta novamente para a artéria pulmonar o sangue oxigenado que recebe. Esta MCC apresenta assim os circuitos sistémico e pulmonar dispostos paralelamente, e é incompatível com a vida, a menos que coexistam comunicações (shunts) que permitam a maior mistura de sangue entre os dois circuitos. Daqui se depreende que esta MCC seja caracterizada como uma malformação de mistura das circulações. Ao nascimento, o canal arterial e o foramen ovale estão sempre presentes, sem o que a mistura das circulações e a vida não ficavam asseguradas. Em 40% dos casos também pode estar associada uma CIV. O grau de cianose está inversamente relacionado com o calibre da CIV e com a intensidade do fluxo sanguíneo pulmonar. Se a CIV não existir, a cianose é intensa. Quanto maior a CIV, mais intenso é o shunt direito-esquerdo, maior é o fluxo sanguíneo pulmonar e menor é a cianose, tendo em conta que o ventrículo direito tem pressões sistémicas e a artéria pulmonar está ligada ao ventrículo esquerdo. Neste caso e nas MCC de mistura das circulações em geral, pode haver aumento do fluxo sanguíneo pulmonar e hipoxemia, no entanto na ausência de hipertensão pulmonar esta nunca é suficiente para proporcionar cianose. Estes doentes desenvolvem rapidamente hipertensão pulmonar e morrem no primeiro ano de vida se não forem operados. A cirurgia correctiva (atrial switch de Mustard) permite que a maioria atinja a idade adulta. A operação de Mustard, (mais recentemente substituída pelo arterial switch que ainda não existe na idade adulta) consiste na compensação da transposição arterial pela transposição cirúrgica dos vasos que se inserem nas aurículas, através da criação de condutos com pericárdio ou material sintético que derivam o sangue das veias pulmonares para a aurícula direita e das veias cavas para a idade adulta. A operação de Mustard, (mais recentemente substituída pelo arterial switch que ainda não existe na idade adulta) consiste na compensação da transposição arterial pela transposição cirúrgica dos vasos que se inserem nas aurículas, através da criação de condutos com pericárdio ou material sintético que derivam o sangue das veias pulmonares para a aurícula direita e das veias cavas para a aurícula esquerda. Uma vez que o ventrículo direito mantém a sua função como ventrículo sistémico e a árvore coronária direita não está preparada para assegurar a perfusão de uma câmara sistémica, a insuficiência cardíaca direita é progressiva. Assim, aos 15 anos o ventrículo direito não é capaz de aumentar a fracção de ejecção em mais de 50% 32. As arritmias supraventriculares são frequentes como sequelas da reparação auricular. Na TGV com CIV, o encerramento da CIV com patch está associado a bloqueio A-V em mais de 75% dos casos 33, apresentando 50% destes doentes pacemaker aos 20 anos de idade 34. Pela presença de insuficiência cardíaca e eventual presença de pace-maker, deve-se optar pela anestesia geral nestes doentes. 3.6 Coarctação da Aor ta Na forma infantil ou juvenil desta malformação obstrutiva simples, a coarctação é justa-ductal (próxima do ductus arteriousus), devido à ectopia de células musculares lisas do canal arterial a nível da média da aorta, o que resulta na sua constrição quando do encerramento do canal (teoria das células ductais). O posterior desenvolvimento da coarctação deve-se à diminuição do fluxo sanguíneo através da estenose que não promove o normal crescimento da aorta a esse nível (teoria hemodinâmica). A coarctação vai assim evoluindo, o que permite o desenvolvimento progressivo de mecanismos de compensação, como a hipertrofia ventricular esquerda e o desenvolvimento de circulação colateral a partir das artérias intercostais, da artéria sub-clávia e da mamária interna 35. Devido ao desenvolvimento destes mecanismos compensatórios, este tipo de coarctação só se manifesta clinicamente na infância ou na adolescência, sob a forma de claudicações dos membros inferiores com o exercício e cefaleias frequentes por hipertensão na metade superior do corpo, com o consequente aparecimento de aneurismas do polígno de Willis e aumento do risco de hemorragia cerebral. A coarctação da aorta, quando não corrigida, permite a chegada à idade adulta, com uma mortalidade de 50% aos 30 anos e de 90% aos 50 anos 36. A morte pode ocorrer por insuficiência cardíaca esquerda, hemorragia cerebral ou ruptura de aneurisma dissecante da aorta descendente com origem na inserção das artérias colaterais engorgitadas. A correcção da coarctação executada até aos 5 anos de idade não apresenta risco na idade adulta e apenas existe a possibilidade de re-estenose (40% aos 16 anos), que deve ser despistada 3738. No entanto, quando a cirurgia correctiva é feita no final da infância ou puberdade, tem como consequência a HTA, doença coronária prematura e insuficiência cardíaca esquerda (por hipertrofia ventricular e/ou válvula aórtica bicúspida que está presente em 40% dos doentes) 39. O risco anestésico destes doentes é tanto maior quanto mais tardia tenha sido a cirurgia correctiva 40. O aumento da volemia e do débito cardíaco provocado pela gravidez exacerba e descompensa uma re-estenose até então assintomática. Embora previnam com eficácia a resposta hipertensiva ao stress, a anestesia e a analgesia epidurais não são aconselhadas, dado o maior risco de hematoma epidural compressivo, resultante da hemorragia dos vasos epidurais engorgitados pela circulação colateral. No entanto, dada a escassa casuística, não existem dados clínicos que corroborem esta hipótese 41. A anestesia geral para cesariana, com perfusão de Remifentanil a 0,1 g/kg/min, demonstra ser uma técnica eficaz para assegurar a estabilidade hemodinãmica materna durante a intubação traqueal e o estímulo cirúrgico, sem interferir no indíce de APGAR 42. 3.7 Atrésia Tricúspida A atrésia da valvula tricúspida é a malformação obstrutiva complexa mais frequente na idade adulta. As malformações obstrutivas complexas definem-se por uma obstrução total ao fluxo sanguíneo sistémico ou pulmonar, associada a dois shunt's, um a montante e outro a jusante da obstrução. Neste Revista SPA ‘ vol. 14 ‘ nº 2 ‘ Julho 2005 grupo de malformações há mistura das duas circulações, mas, ao contrário das malformações de mistura em que a intensidade do shunt está dependente das RVS e das RVP, nas malformações obstrutivas complexas o shunt é total e está fixado pela obstrução que é completa. A atrésia tricúspida consiste numa completa agenesia da válvula tricúspida de modo a não permitir nenhuma comunicação directa entre a aurícula e o ventrículo direito. A sobrevivência depende de uma CIA que descomprima a aurícula direita dilatada e promova o shunt direito-esquerdo total. A jusante da obstrução existe uma CIV restritiva que promove um shunt esquerdo-direito para o ventrículo direito hipoplásico. Frequentemente há estenose pulmonar associada. Desta forma, os doentes com atrésia tricúspida têm uma diminuição do fluxo sanguíneo pulmonar e, como tal, são marcadamente cianóticos e necessitam de ser submetidos a um shunt sistémicopulmonar durante a infância. A atrésia ventricular direita torna impossível a cirurgia correctiva nestes doentes. No entanto, a realização da operação de Fontan modificada no final da infância permite que a maioria destes doentes chegue à idade adulta (sobrevida de 73% aos 15 anos após a cirurgia) 43. a operação de Fontan tem como objectivo a diminuição da cianose por aumento do fluxo sanguíneo pulmonar por laqueação da artéria pulmonar principal e união das veias cavas à artéria pulmonar direita 44. Desta forma, o coração direito hipoplásico é excluído e o doente fica com uma fisiologia univentricular e consequente limitação da capacidade de aumentar o débito cardíaco durante o exercício ou o stress cirúrgico 45. A ausência do ventrículo direito resulta em aumento da PVC, de modo que os edemas, o derrame pleural e a ascite são comuns nestes doentes, com necessidade de terapêutica diurética contínua 46. A hipoproteinémia e a insuficiência hepática congestiva 47 são também frequentes e a falência do ventrículo esquerdo é a habitual causa de morte. 49. O fluxo pulmonar e a oxigenação dependem da diferença entre a PVC e a pressão de enchimento ventricular esquerda, pelo que, na anestesia destes doentes, é mandatório evitar os aumentos das RVP e RVS, a depressão do miocárdio e hipovolemia 50. O bloqueio epidural deve ser preferido nos doentes com operação de Fontan, devendo a hipotensão ser prontamente tratada com fármacos com efeito agonista (efedrina) 51. A anestesia geral, se preferida, deve ser opióide, com recobro prolongado em Unidade de Cuidados Intensivos. 4. CONCLUSÃO Apesar de se terem indicado alguns procedimentos anestésicos como preferenciais em determinadas MCC, os diferentes estados funcionais em que podemos encontrá-las e a grande variedade de procedimentos não cardíacos a que estes doentes podem ser submetidos, torna cada caso como único no que respeita à técnica anestésica e à escolha da monitorização. No entanto, três aspectos gerais devem ser tomados em conta na anestesia de adultos com MCC: 1. As alterações da fisiologia cardiovascular que caracterizam cada MCC perturbam o desenvolvimento normal e provocam lesões em orgãos alvo, particularmente nos pulmões e nos rins, com diminuição da sua reserva funcional 2. A cirurgia correctiva deixa frequentemente malformações residuais que, a longo prazo, provocam insuficiência cardíaca em grau variável e sequelas electrofisiológicas que durante a agressão anestésicocirúrgica, são responsáveis por arritmias com deterioração hemodinâmica. 3. Para a anestesia destes doentes, é imprescindível o conhecimento da anatomia e da físiologia da MCC presente, de modo a poder optimizá-la e a não deteriorar os mecanismos adaptativos que estes doentes desenvolveram, já que o equilíbrio hemodinâmico em que estes doentes vivem é débil e facilmente perturbado pela gravidez, pela ansiedade ou pela dor. Bibliografia 1. Gross RE et al. coarctation of the aorta: experimental studies regarding its surgical correction. 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