A CLÍNICA, O LOUCO E O ESTADO: DISCURSOS SOBRE A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA Thamara Parteka1 Yonissa Marmitt Wadi2 RESUMO: Este trabalho apresenta e analisa diferentes discursos em torno de uma instituição psiquiátrica localizada no Rio de Janeiro. Partindo do pressuposto de que discurso é um conjunto de enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que obedecem a regras de funcionamento comuns, que como práticas tomam corpo em um conjunto de técnicas, instituições, esquemas de comportamento, tipos de transmissão e difusão (FOUCAULT,1994) analisaremos o discurso, do ponto de vista, da própria instituição - a Clínia da Gávea -, através de seu sítio eletrônico; a partir da obra Todos os Cachorros são Azuis (2001) e O Esquizoide: coração a boca escritas por um ex-interno nesta, Rodrigo de Souza Leão; e por fim, a partir de um relatório estatal, elaborado pelo projeto Caravanas Nacionais dos Direitos Humanos, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados cujo objetivo era “estar presente em locais onde as violações mais comuns aos direitos humanos são praticadas”(2000), dentre os quais encontrava-se a instituição aqui focalizada. PALAVRAS-CHAVE: discurso; loucura; instituição psiquiátrica; direitos humanos. INTRODUÇÃO A análise de diferentes discursos possibilita que se tenha um panorama geral da Instituição Psiquiátrica; sob diferentes olhares, faz com que esta pesquisa se torne privilegiada, pois a partir destes olhares heterogêneos pode-se perceber diferentes posicionamentos acerca da mesma Instituição. Enriquece-se também, pelo fato de cada fonte ter suas especificidades: como considerar não só o processo linguístico, mas subjetivo do discurso de um ex-interno? Em que medida esse discurso se aproxima ou se distancia do que diz o Estado? E como estes dialogam com o próprio discurso da Instituição? Essas são apenas algumas questões que direcionarão este trabalho. Desde já, é importante mostrar o posicionamento deste trabalho – de maneira introdutória, pois será abordado de forma mais aprofundada em um tópico específico deste texto - acerca do 1 2 Mestranda em História, Poder e Práticas Sociais, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – PR / Brasil. Bolsista de Extensão no País – EXP/C – CNPq, pelo Projeto “Gênero, Instituições e Saber Psiquiátrico em Narrativas da Loucura”. Email: [email protected]. Doutora em História; Professora Associada da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, PR / Brasil. Bolsista PQ-CNPq. Coordenadora do Projeto “Gênero, Instituições e Saber Psiquiátrico em Narrativas da Loucura”. E-mail: [email protected]. 1 que se entende por discurso. De forma alguma, se considera que o discurso é neutro, nem será adotado como uma verdade incontestável, e muito menos se entende que se limita a um plano discursivo exterior a prática, ao contrário, compreende-se que os discursos se posicionam, se contradizem e são constituídos e constituidores da realidade, ou seja, o discurso não se encontra numa esfera exterior a prática, mas ele é a própria prática. Desta forma, neste trabalho, o dualismo entre discurso e prática não só empobrece e limita a análise, como não faz sentido. Antes de começar essa discussão é importante que se apresente alguns dados da Instituição, bem como seu contexto de criação, pois isso permitirá que se compreenda melhor as relações de saber-poder que estavam/estão postas nestes discursos. Neste sentido, a Instituição que será analisada aqui se chama Clínica da Gávea, a qual foi fundada em 1963, no Rio de Janeiro. Se trata de uma clínica particular e durante quarenta anos atendeu pelo Sistema Único de Sáude (SUS), mas a partir de 2003 houve mudanças: rompimento com o atendimento pelo SUS, internação e tratamento não só de pessoas consideradas com sofrimentos mentais, mas também dependentes químicos e também está atualmente com espaço asilar, porém não se teve informações de quando este atendimento começou. A partir do momento histórico da criação da clínica pode-se perceber que algumas questões estavam colocadas, como, a criação do Instituto Nacional da Previdência Social (INPS), que teve grande impacto no que se refere ao atendimento as pessoas com sofrimento mental: aumentou consideravelmente o número de internos, bem como o número de instituições, o que implicou numa espécie de massificação do tratamento, privilegiando o lucro, e, consequentemente, perda da qualidade deste atendimento. Desta forma a criação desta clínica está ligada ao processo de mercantilização da saúde mental pelo governo militar. Segundo Amarante (1994), neste período (1964-85), o número de leitos psiquiátricos subiu de três (3) mil para quase cinquenta e seis (56) mil e, no final da década de 1970, 97% do total dos recursos da assistência psiquiátrica chegou a ser destinado para pagamento da rede. Ao longo do tempo e da luta antimanicomial3 a clínica procura se adaptar a essas questões. É possível ver, em seu discurso, repetidamente, a 3 O objetivo deste trabalho não é comparar o discurso da clínica antes e depois da reforma psiquiátrica, trouxemos alguns dados para apenas introduzir o tema. Provavelmente o faremos em um trabalho futuro, mas por ora analisaremos diferentes discursos sobre a Instituição no início do século XXI. 2 preocupação em mostrar que seu tratamento é composto por uma equipe interdisciplinar, a qual executa um projeto individual para cada paciente. A fonte para análise do discurso da Instituição se trata do sítio cibernético da mesma (www.clinicadagavea.com.br), no qual é possível ter informações ao tipo de tratamento que executam, os convênios, fotos, a filosofia da clínica, etc. Em relação ao discurso de um ex-interno será analisado o que ele diz sobre a Clínica e o tratamento a ele aplicado através dos livros Todos os Cachorros são Azuis e o Esquizoide: coração na boca, publicados respectivamente em 2009, 2011, mas escritos em 2001 e 2003, nos quais o autor descreve o processo de “enlouquecimento” e institucionalização. Em relação a analise do discurso do Estado, se dará por meio dos resultados do projeto Caravana, desenvolvido pela Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos deputados (2000), tendo como um dos objetivos aproximar os governantes das consequências de suas decisões, além de estar presente onde os Direitos Humanos são mais violados. Desde o início explicita que são dados iniciais, e, portanto limitados, mas que de alguma forma, procuraram trazer um pouco da realidade do manicômio. As visitas foram realizadas durante 12 dias e não foram todos os estados visitados, muito menos todas as clínicas. Desta forma, se tratam de três tipos diferentes de documentos: o primeiro um texto publicitário, o segundo uma narrativa testemunhal e o terceiro um relatório estatal. OBJETIVO O objetivo deste trabalho é analisar esses diferentes discursos enunciados de lugares distintos e com objetivos heterogêneos., perceber os movimentos de aproximação e de distanciamento entre eles, mapear seus objetivos e perceber as motivações de cada escrita, dialogando com questões sócia-históricas que estão presente no momento de elaboração destes documentos. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Essa pesquisa está fundamentada nos estudos de Michel Foucault acerca do discurso e suas relações entre saber e poder. Para ele: 3 (...) suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabese bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. (...) Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (oculta) o desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT,1996, p. 09-10) A análise do discurso será uma estratégia para mapear os discursos que estão circulando na sociedade a respeito da Instituição, que de forma alguma se coloca da maneira livre, mas está dentro das relações de poder, que por ora silenciam-se, ocultam, ou se manifestam a partir dos jogos de verdade4. Rodrigo de Souza Leão, por vezes se coloca de maneira bastante clara acerca do objetivo ao escrever os livros: Um dos meus objetivos com este livro é que os médicos, sabendo de como viver com a bomba é ruim, encontrem uma maneira de minorar o sofrimento de pessoas que assim vivem. Não são feitos tantos estudos sobre doenças mentais. Os remédios ainda eram antiquados até um tempo atrás. Havia práticas comuns, como a superdose e até o eletrochoque sem anestesia. Sei que em um determinado momento houve uma vontade das coisas mudarem...Tudo é um processo, e neste Brasil lento ainda se prende muita gente, mas, também, onde botar gente como o Julinho, que bate em todo mundo? Que Morde. Que pode matar com as mãos. Onde? É uma decisão muito difícil a de acabar com os manicômios. Se não existisse manicômio eu estaria morto, já que o meu caso não é propriamente de loucura (LEÃO, 2011, p.72). Rodrigo tem uma pretensão no seu discurso, que ele seja conhecido pelos médicos e, que de algum modo, transforme a realidade manicomial. Em alguma medida, o discurso de Rodrigo dialoga com o próprio discurso do Estado, quando este afirma que seu objetivo é: “Estar presente nos locais onde as violações mais comuns aos direitos humanos são praticadas 4 Jogos de verdade são o conjunto de regras de produção de verdade e de procedimentos que conduzem a um determinado fim, que pode ser considerado como válido ou não. “É não há descoberta das coisas verdadeiras, mas as regras segundo as quais, a respeito de certas coisas, aquilo que um sujeito pode dizer decorre da questão do verdadeiro e do falso” (FLORENCE, 2006, p. 235). É também lugar de enfrentamento social e debate político, encarado sob a forma de “lutas ideológicas”, cada lado defendendo seu ponto de vista sem se interrogarem sobre como cada discurso, lado do debate, “constituiu historicamente como experiência - que permitem o homem pensar-se quando se identifica como louco, doente, desviado, trabalhador, como quem vive como quem fala, ou ainda como homem de desejo” (Revel, J, 2005). 4 é um desafio permanente para aqueles que se dispõe a mudar a realidade brasileira. As Caravanas tem essa pretensão” (ROLIM, et alli, 2000). Ambos querem mudar a realidade do manicômio para uma maior humanização do tratamento psiquiátrico, enquanto Rodrigo apresenta que as lacunas vêm da própria Universidade, com ausência de pesquisas para o descobrimento de mais elementos do que é designado pelos médicos como patologia, para, por exemplo, efetivação de uma cura, o Estado investiga as irregularidades dentro destas instituições: violência, maus tratos, etc. Enquanto Rodrigo está pensando em mudança desde o plano teórico, questionando, inclusive o saber psiquiátrico, que segundo ele, tem passado por mudanças, mas que, ainda, não são insuficientes; não só está dizendo que a maneira que o tratamento é realizado não corresponde com um bom tratamento, como sugere que se tenha mais pesquisas, pois na maneira que se está se desenvolvendo o tratamento não se pode chegar a resultados satisfatórios. Já, no discurso do Estado, percebe-se que não está procurando criar novas soluções, mas buscando fazer com que se efetivem medidas correspondentes aos direitos humanos, as quais estão previstas em lei, no entanto, não estão cumpridas. Desta forma, Rodrigo sugere uma reelaboração ao tratamento dos internos, enquanto o Estado está tentando fazer com que esse tratamento, ainda se efetive na maneira que prevê a lei. Já a Instituição Psiquiátrica afirma que tem: modernas e confortáveis instalações, oferece jardins e bosque num ambiente de liberdade e bem estar para os pacientes e familiares. As suítes são amplas e confortáveis, a maioria com ar condicionado [...] A equipe é interdisciplinar, constituída de psiquiátrias, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, professores de educação física, musicoterapeutas e nutricionistas, coordenada por psiquiatras com experiência e capacitação no tratamento dos pacientes internados. Para cada paciente a equipe interdisciplinar desenvolve um projeto terapêutico dinâmico e intensivo, com atividades individuais e em grupo, objetivando internações breves (Em: < http://www.clinicadagavea.com.br/> Em 13/06/2014 às 14h26min). . Ambos os discursos tem um posicionamento comum: mudar a realidade do manicômio, mas veem formas distintas de se fazer isso. No discurso da Instituição ela mostra que faz muito mais que cumprir o que está previsto em lei, acerca dos direitos humanos. Afirma que é um lugar agradável com bosques, “num ambiente de liberdade”, que as suítes correspondem com a necessidade dos internos e, mais, que tem uma equipe interdisciplinar 5 “capacitada” para o atendimento dos pacientes. Podemos ver que os discursos estão em conflitos: enquanto Rodrigo afirma que tem que reelaborar o tratamento desde um plano teórico, o Estado diz que tem que fazer com que se cumpra as leis que já estão instituídas, e, por fim a instituição irá dizer que não há nada para mudar, pois o seu tratamento e suas instalações são excelentes. O que nos interessa não é saber quem está dizendo a verdade, ou qual é a verdade, mas justamente perceber esses jogos e, mais que isso, pensar esses discursos em um contexto histórico específico: após a reforma psiquiátrica. Enquanto Rodrigo afirma que durante “um determinado momento houve uma vontade das coisas mudarem” (LEÃO, 2011, p.72) e o Estado diz que o projeto é “uma tomada de posição em favor daqueles seres humanos [...] que permanecem esquecidos e abandonas atrás dos muros e das grades dos manicômios brasileiros” (ROLIM, et alli, 2000) e a clínica da Gávea afirma que sua “equipe é interdisciplinar, constituída de psiquiatria, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, professores de educação física, musicoterapeutas e nutricionistas”5. Trata-se do mesmo paradigma: a humanização das pessoas consideradas loucas a partir do advento da reforma psiquiátrica, pois só através deste movimento, no Brasil, se pode fazer com que mudasse o tratamento (no plano discurso e/ou prático): seja mudando as coisas, seja tomando uma posição em favor destes seres humanos, seja disponibilizando uma equipe interdisciplinar. RESULTADOS Neste momento procura-se comparar os discursos elaborados pelas duas Instituições e por um ex- interno. Apresenta-se a seguir um trecho do relatório que a Caravana dos Direitos Humanos diz, especificamente sobre a clínica da Gávea: O que primeiro ressalta na visita é a inadequação absoluta do prédio onde funciona a Clínica da Gávea. Trata-se de uma construção “morro acima” que se impõe como um labirinto. Não há espaço adequado para o deslocamentos dos internos e boa parte dos “ambientes” são isolados por portas, cadeados e grades. Há uma sala de “triagem” ou coisa parecida onde os recém ingressos ficam isolados, sem acesso às áreas externas, por vários dias, à espera de um laudo (ROLIM, et alli, 2000). 5 Em: < http://www.clinicadagavea.com.br/> Em 13/06/2014. 6 No discurso do Estado, a clínica da Gávea possui irregularidades, conforme indica a própria localização, considera um lugar inadequado para o deslocamento do internos. Neste mesmo trecho, indica que a maioria dos ambientes são fechados e isolados, e tem uma sala, ainda mais isolada, na qual os internos recém chegados ficam a espera do laudo. Veja o que o ex interno, Rodrigo de Souza Leão, afirma sobre a localização da Instituição, deslocamentos e como é o lugar onde os internos ficam: Antes da minha internação maior, já havia sido internado outra vez, e outra vez tinha ficado em uma gaiolinha. Minha mãe mentiu-me, dizendo que eu havia ficado na ala melhor daquela clínica. Não, havia estado no Carandiru. No pior lugar da clínica. Lá onde ficam os casos sem solução [...]. Pegaram uma interna e arremessaram. Os doidos tavam [sic] arremessando todo mundo que aparecia na frente deles. Jogavam num barranco. A pessoa podia se machucar, mas os outros loucos riam e queriam mais. Formavam uma fila para ser arremessados barranco abaixo. A noite chegava e com ela vinha o pior: a trilha sonora. O hospício ficava do lado da favela. Era funk a noite toda e o dia inteiro. Lacraia, lacraia, lacraia. Vai, Serginho. Dormir ouvindo aquele lixo...Aos berros! [...] Havia muitos morros em volta do hospício. Em vinte anos tudo estaria tomado pela favela. O morro ia comendo o morro e cada vez mais existia menos lugar verde e mais telhado e casas insalubres.[...] No começo da internação às vezes ficamos amarrado [sic]. Cada um tem o tratamento que varia de acordo com a sua periculosidade. (LEÃO, 2010, passim). Rodrigo afirma que teria ficado em um nos piores lugares da clínica chamado de Carandiru, ou seja, não só compara o lugar que esta internado com uma cadeia, como compara com um local historicamente marcado pela violação dos direitos humanos, degradação urbana, massacre, rebelião, injustiça e violência. No final do trecho afirma que os internos recém chegados, por vezes, ficam amarrados e que o tratamento de cada um é de acordo com o grau de “periculosidade”. Além disso, Rodrigo compartilha do discurso do Estado ao afirmar que o hospital psiquiátrico é cercado por barrancos, ao lado da favela. Em outros momentos da obra, afirma que era relativamente fácil para os internos comprarem drogas, uma vez que a favela é localizada bastante próxima da Instituição. Aqui cabe um questionamento: Será que o Estado foi contra a localização da clínica por não se tratar de um relevo plaino ou por de fato estar localiza bastante próxima a favela? Percebe-se que há uma resistência a localização da clínica, segundo o discurso, por causa do morro, mas será que não há um silenciamento ao omitir que favelas a cercavam? Isto posto, apresenta-se o discurso da própria Instituição: A Clínica da Gávea, especializada no tratamento de transtornos psiquiátricos, localiza-se em um aprazível bairro da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Com modernas e 7 confortáveis instalações, oferece jardins e bosque num ambiente de liberdade e bem estar para os pacientes e familiares. As suítes são amplas e confortáveis, a maioria com ar condicionado. [...] Contamos ainda com diversos consultórios, salas de reuniões, salas de terapia ocupacional, salas de estar, quadra de esportes, sala de música, etc (http://www.clinicadagavea.com.br/> Em 13/06/2014). O discurso da Instituição nada menciona a respeito de morros, muito menos de favelas, restringe a localização como apenas “aprazível” bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Destaca suas “modernas instalações” com “jardins” e “bosques”, o que segundo ela, ofereceria um ambiente de liberdade e bem estar. Percebe-se que esses elementos da “natureza” são o grande marketing da clínica, pois no site, vê-se muitas fotos das árvores, plantas, dos prédios externos, mas não há foto alguma da área interna, ou de elementos que permitiriam que o internauta tivesse um pouco mais de conhecimento sobre a organização interna da instituição, pelo contrário, o cenário de flores e folhas caídas no chão e mesas e cadeiras faz com que o internauta perceba o lugar mais como um bistrô ou um café do que um hospital psiquiátrico. Rodrigo até concorda com a beleza do lugar, - e evidencia a aproximação da instituição que ficou internado com a instituição de sua narrativa ao dar um nome semelhante: Gavela (ficcional) e Gávea (nome original) - “O nome do hospício era clínica Gavela. Um lugar muito arborizado, cheio de plantas e árvores” (LEÃO, 2011, P.33), mas o fato de ser bem arborizado e com bosques para ele, não condiz nada em um “ambiente de liberdade”, se assim o fosse não teria o adjetivado como Carandiru. A ideia de flores, árvores e até beleza dentro do hospício é comumente marcado na literatura de loucura como cemitério. Vê-se isso em Lima Barreto, no próprio nome de sua obra Cemitério dos Vivos, em Maura Lopes Cançado: “Os dormitórios vazios e impessoais são cemitérios, onde se guardam o passado e futuro de tantas vidas. Cemitérios sem flor e sem piedade: cada leito mudo é um túmulo, e eu existo entre o céu e esta dormência calada” (CANÇADO, 1979, p78), Mais que comparar a um cemitério Rodrigo metaforiza o hospício com um inferno: “Todas as [sic] vezes eu desacreditava em Deus. Se havia um lugar como hospício era sinal de que Deus não existia. Ou ele existia e não queria saber de quem estava dentro daquele pequeno inferno” (LEÃO, 2010, p.24). Liberdade para Rodrigo não se constitui na presença de árvores ou bosques, inclusive mostra que liberdade dentro do hospício se dá de forma progressiva: “A primeira liberdade é sair do cubículo. A segunda liberdade é andar pelo hospício. Liberdade, só fora do hospício” 8 (LEÃO, 2010, p.23). Esse “ambiente de liberdade” também confrontraria o discurso do Estado quando afirma: “ Não há espaço adequado para o deslocamentos dos internos e boa parte dos “ambientes” são isolados por portas, cadeados e grades” (ROLIM, et alli, 2000). Sobre as relações entre funcionários e pacientes e da maneira que os internos são tratados, o Estado diz : Entre os pacientes, as queixas são generalizadas. Reclamam da qualidade da comida, reclamam de maus tratos e alguns deles apontarem um funcionário (Wilson Rodrigues Chaves) como responsável por agressões físicas, reclamam que, em determinadas ocasiões, são retirados dos seus leitos durante a madrugada e submetido a banhos frios; reclamam que não possuem o direito de opinar, etc. (ROLIM, “et tal”, 2000). Rodrigo compartilha a queixa da comida: “A comida no hospício era muito ruim”, (LEÃO, p.30, 2011) e continua: “Depois do almoço eu defecava no banheiro aquela comida ruim. Não havia nenhum interno que agradecia por aquela comida com uma boa oração. Só porque o cara é louco tem que comer o pior. Lasca de goiabada. A única coisa boa era a lasca de goiabada...” (LEÃO, p.22, 2010). Sobre maus tratos afirma Rodrigo: Quando o hospício estava cheio, era hora de ficar quieto. Qualquer coisa e você poderia ser amarrado à cama. Dentro do cubículo e amarrado era a morte. Muitos alcoólatras viviam amarrados devido a síndrome de abstinência. O grande mal das clínicas é que elas misturam os doentes (LEÃO, 2010, p.29). Rodrigo não cita nenhum funcionário e nem acusa alguém de maus tratos, mas ele fala de uma violência institucionalizada, e para não sofrê-la deve-se ter um comportamento específico: ficar quieto. E, nesse ponto dialoga com o discurso do Estado quando afirmam “reclamam por não poder opinar” (ROLIM, et alli, 2000). No discurso da clínica pouco aparece sobre as questões aqui apresentadas. O que se apresenta é apenas que a equipe é interdisciplinar, tendo atendimento, inclusive de nutricionistas. Sobre o uso de eletroconvulsoterapia, afirma o Estado: Pelo menos três internos relataram ao deputado Marcos Rolim terem passado por sessões de ECT naquela instituição. Perguntada sobre o tema, a direção afirmou que a prática de ECT está em desuso na instituição. É bem verdade que mesmo nessa negativa algumas contradições foram percebidas: um dos diretores afirmou que "só em último caso" a Clínica emprega o ECT; outro disse que "há três anos não há uma aplicação sequer"; um dos diretores afirmou que a instituição "não possui sequer a máquina", outro disse que "a máquina está guardada". Ficamos com a dúvida: a clínica aplica ou não aplica a eletroconvulsoterapia? (ROLIM, “et tal”, 2000). 9 O discurso do Estado apresenta diferentes enunciados sobre a utilização da eletroconvulsoterapia (ECT) para o tratamento dos internos, não pode afirmar ou negar se há a sua utilização para fins de tratamento, no entanto, mostrou que não há uma coerência acerca da sua utilização. Isso se reflete no próprio debate sobre a utilização da ECT: enquanto muitos médicos lutaram na reforma psiquiátrica pela desinstitucionalização e se recusaram a usar o ECT como forma de tratamento6, outros defendem essa terapia como uma forma eficaz de tratamento. Em 2010, o ministério da saúde através do relatório da IV Conferência Nacional de Saúde Mental objetiva: “Extinguir definitivamente toda e qualquer forma de internação de cidadãos com sofrimento psíquico em hospitais psiquiátricos e em quaisquer outros estabelecimentos de regime fechado, acabando também com a eletroconvulsoterapia no Brasil.” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2010, p.75). No entanto, a instituição psiquiátrica aqui analisada, não só considera legal a ECT, como defende como método para o tratamento, pode-se perceber neste discurso: Os serviços de eletroconvulsoterapia são realizados na Clinica da Gávea em regime ambulatorial. As aplicações, devidamente prescritas pelo médico assistente do paciente, são obrigatoriamente realizadas com a presença de um médico operador, anestesista e equipe de enfermagem, em estrita observação das normas do Conselho Federal de Medicina (<http://www.clinicadagavea.com.br/> Em 13/06/2014). Pode-se ter mais detalhes sobre a utilização da ECT como tratamento, na Clínica da Gávea, através da Revista Piauí na edição de Julho de 2008: A Clínica da Gávea é um hospital psiquiátrico privado no Rio que fica no meio de um parque. Ali, num casarão amarelo, a psiquiatra Julieta Guevara instalou um serviço de eletroconvulsoterapia. Numa sala de apenas dois leitos, a psiquiatra faz cinco atendimentos por dia, acompanhada de um anestesista e de um enfermeiro. Os procedimentos começam às seis horas da manhã e terminam por volta do meio-dia. A procura é grande porque psiquiatras de todo o Brasil encaminham pacientes para a clínica. Cada sessão custa 700 reais. "O eletrochoque virou um tratamento de elite", lamentou a psiquiatra Julieta Guevara [...] (DIEGUEZ, 2008). 6 Um grande exemplo de recusa por esse tipo de tratamento foi a Nise da Silveira, uma psiquiatra que revolucionou os métodos de atendimento portador de transtornos mentais no Brasil. Foi uma revolução em sua época na abordagem clínica dos pacientes psiquiátricos, principalmente os esquizofrênicos, que geralmente eram isolados e considerados como incompreensíveis. Numa perspectiva Junganiana via na arte a recuperação da saúde metal. 10 Deve-se considerar o valor da aplicação de cada sessão e com isso as implicações da clínica (empresa) obter uma maior lucratividade. É de se questionar se a clínica tenha adotado ECT como método de tratamento por ser mais eficaz, ao mesmo tempo, que o próprio ministério da saúde está questionando isso, ou se o interesse gira mais em torno dos ganhos que esse tipo de tratamento pode trazer para a instituição. Rodrigo mostra diferentes posicionamentos acerca da utilização do eletrochoque como forma de tratamento na Clínica em dois períodos diferentes. O primeiro se refere à década de 1980, “Na década de 80 no período que fiquei enfurnado, não existia, naquela clínica, o eletrochoque e as práticas abusivas usadas antigamente (LEÃO, 2011, p.36)” e em seguida traz outro posicionamento acerca da segunda internação, a qual ocorreu na primeira década do século XXI: “Nós só fazemos eletrochoques com sedação. O doente não sente nada. Quem sabe levando uns choquinhos ele não volta ao normal? Quem sabe tudo volta ao normal?”. Não é apenas o discurso do Rodrigo que muda, pois a utilização do ECT é algo que ainda está em debate na contemporaneidade, por isso ora vemos um posicionamento de defesa ora um posicionamento contrário. Durante muito tempo seu uso foi indiscriminado e sem a utilização de anestesia. Com o debate pela humanização do tratamento da pessoa considerada louca e a luta antimanicomial fez com que tratamentos mais violentos fossem banidos, mas há algum tempo foi retoma o uso de ECT, mas com a utilização de anestesia. Rodrigo até ironiza ao afirmar que “quem sabe levando uns choquinhos ele não vota ao normal”. Uma particularidade é visível neste tema, a maneira pela qual o Estado constrói seu discurso: Ele dá voz a outros sujeitos, aos pacientes em primeiro lugar e em segundo aos diretores, para tirar satisfação. Rodrigo faz o caminho inverso, ele dá voz aos médicos, ou seja, aqueles aplicam o eletrochoque, os quais se defendem [no discurso do Rodrigo] falando que só praticam o ECT com anestesia e como forma de trazer uma possível “normalidade”. CONCLUSÕES Ao analisar esses três discursos pode-se perceber que muito mais que se enfrentarem um ao outro ou manterem uma coerência, eles por vezes se contradizem e por ora apresentam o mesmo posicionamento. Isto quer dizer, que fundamentalmente eles tem aspectos comuns 11 que procuram combater ou lutar para que se legitime, como se viu no caso da eletroconvulsoterapia como forma de tratamento. Neste sentido, percebe-se que a reforma psiquiátrica foi um grande marco destes debates, pois o que esses discursos enunciam estão em grande partes ligados a debates que ocorrem durante a reforma psiquiátrica. REFERÊNCIAS CLÍNCA DA GÁVEA. Disponível em < http://www.clinicadagavea.com.br/> acesso: 16/06/2014 às 01h18. DIEGUEZ, Consuelo. "Eletrochoque". Piauí. Edições 21. Julho 2008. Disponível em: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-21/questoes-mentais/eletrochoque. Consultado 16/06/2014 às 01h03. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Comissão Organizadora da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial. Relatório Final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial, 27 de junho a 1 de julho de 2010. Brasília: Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, 2010, 210 p. LEÃO, Rodrigo de Souza. O esquizoide. Rio de Janeiro: Recorde, 2011. LEÃO, R. S. Todos os cachorros são azuis. 2. ed. Rio de Janeiro: 7 letras, 2010. ROLIM et alli. 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