Dignidade humana e filosofia hegeliana

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Dignidade humana e filosofia hegeliana
Silvana Colombo de Almeida
Mestranda em Filosofia
pela UNESP
Bolsista CAPES
[email protected]
Palavras-chave
Hegel; Dignidade humana;
História.
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Resumo
Embora tema antigo, o debate acerca dos fundamentos da dignidade humana ganhou força na modernidade com a Revolução Francesa e as ideias Iluministas. Kant foi um dos primeiros a universalizar a ideia de dignidade, vinculando-a à autonomia moral do
homem, enquanto faculdade de determinar a si mesmo e agir em
conformidade com a representação de certas leis. Paralelamente,
as teorias jusnaturalistas fundamentavam a dignidade humana na
própria natureza do homem, vinculando-a a um suposto “estado de
natureza” do qual os direitos inalienáveis teriam derivado. O objetivo do presente trabalho é discutir como Hegel, comparativamente
a outros pensadores de sua época, concebia a dignidade humana.
Embora sua teoria não exclua uma concepção ontológica da dignidade, vinculada a determinadas características inerentes à condição
humana, Hegel atrela-a principalmente à viabilização de determinadas prestações e garantias. No sistema hegeliano, a dignidade
humana vincula-se à ideia de Eticidade, locus que sintetiza o individual e o universal, de tal forma que a dignidade efetiva-se como
resultado de um longo processo histórico. Não apenas a dignidade
e os direitos que a garantem, incluindo aí os “direitos naturais”,
são resultados de um processo histórico, mas também o próprio sujeito desses direitos. O homem enquanto homem nunca havia sido
reconhecido como sujeito de direitos. Entre os gregos e romanos,
apenas alguns eram livres. As conquistas históricas da humanidade
levaram-nos à condição de reconhecimento da liberdade para todos
os homens, o que Hegel afirma no §36 da Filosofia do Direito, “todos devem ser pessoas e respeitar os outros como pessoas”. Assim,
apenas localizar a dignidade na natureza humana ou buscar os
“direitos naturais” num fictício estado de natureza, como se nesse
contexto houvesse dignidade ou direitos, é insuficiente. A racionalidade do real é que traz à consciência da humanidade os conceitos
necessários ao seu caminhar em direção à dignidade. Somente por
meio de garantias histórico-institucionais, alcançadas no momento
do Espírito Objetivo, pode-se reconhecer e garantir a efetivação da
dignidade em seu sentido lógico-conceitual, já presente na Ideia.
Somente dando-se conteúdo real à dignidade é que ela se estabelece nas consciências humanas históricas.
Introdução
A dignidade humana converteu-se na atualidade em uma questão
problemática, não apenas do ponto de vista prático, político e
social, como um princípio que define o que se deve alcançar nas
mais diferentes situações nas quais a humanidade se encontra,
mas especialmente na definição filosófica e na operacionalização
de seu conceito.
O termo dignidade humana é comumente atribuído ao indivíduo
enquanto valor inato e desvinculado de suas referências culturais.
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Entretanto, o presente trabalho tem por intuito enfrentar a questão
sob o viés hegeliano, tratando a dignidade como uma construção
relacional que se obtém mediante o reconhecimento do outro,
tornando, assim, o conceito mais amplo e móvel historicamente,
podendo incorporar diversidades sociais e culturais. Neste viés, a
compreensão da dignidade passa de um caráter meramente inato
a uma concepção de reconhecimento coletivo, enquanto herança
histórica de civilização.
1. Entre a Razão e a História
A questão da dignidade humana em Hegel está intimamente relacionada ao seu conceito de liberdade.
Hegel é sucessor e contemporâneo de diversas teorias referentes à
liberdade, como as teorias de Spinoza, Kant ou Fichte. Entretanto,
diferentemente desses autores, Hegel desenvolve um sistema que
visa esclarecer o desenvolvimento da liberdade desde o momento
do lógico, da Ideia, até o Espírito Absoluto. Assim, a liberdade para
Hegel tem um sentido lógico-conceitual e um sentido histórico-institucional (HEGEL, 1970, §§ 31-32, Zusatz).
A tríade hegeliana da Ideia, Natureza e Espírito demonstra o caminhar da liberdade desde o seu conceito, que se encontra perfeito na
Ideia - mas que ainda está em si, inconsciente no homem - passando pela exteriorização na Natureza, até chegar à sua plena consciência no Espírito, quando já não é mais apenas em si, mas também
para si, consciente da sua plenitude. A Ideia tem realidade, mas
ainda não tem existência (efetividade), necessitando manifestar-se
na Natureza. No Espírito, aquilo que existe retorna para junto do
que tem realidade, ou seja, a Natureza retorna à Ideia.
O elemento objetivo da manifestação da liberdade aparece na sua
exteriorização, no seu Dasein. Ou seja, o desenvolvimento do Espírito é o movimento da realização da liberdade, que aparece na
objetividade histórica das relações e intervenções humanas, construindo o seu sentido histórico-institucional. O homem é elemento
do Espírito, ele existe na Natureza, mas também é Ideia. O sujeito
aparece como um dos momentos do Espírito, o Espírito Subjetivo.
Entretanto, Hegel não compreende a liberdade como confinada à
subjetividade, mas como o processo de efetivação que abarca o
momento subjetivo e objetivo do Espírito (HEGEL, 1995, § 513).
O Espírito Objetivo representa, juntamente com o Subjetivo, o
aspecto histórico do desenvolvimento de autoconsciência da liberdade, que vai culminar no Direito e no Estado. Hegel repudia as
teorias a respeito do Estado e do Direito que recorrem à ideia de
restrição recíproca da liberdade entre os sujeitos, que afirmam que
o Estado limita a liberdade dos indivíduos em prol da defesa da
segurança, propriedade, ou outro direito.
Hegel desenvolve uma teoria do Estado que coloca a mediação das
vontades-livres como condição garantidora da liberdade, condição
sem a qual não é possível a verdadeira liberdade. O Estado não
limita a liberdade dos indivíduos, mas a promove e possibilita. Para
Hegel, o Estado enquanto totalidade ética não implica a negação
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do individual, da particularidade, em função do coletivo, do universal, mas sim a mediação dessas duas esferas, levando à efetivação da liberdade.
Jaschke (2004, p.60), tratando desse tema, afirma o que segue:
Hegel, finalmente, repudia, em seus Princípios da Filosofia do
Direito, o modo como Kant e Fichte pensam o conceito de liberdade, recorrendo à ideia de restrição recíproca. Obviamente
não existe dissenso entre eles em relação à justificação jurídica
intersubjetiva. Pois a vontade livre que, para Hegel, constitui a
base do direito também não é vontade isolada, mas uma vontade mediada intersubjetivamente. Ela é sim vontade que quer
a liberdade, e essa é também a liberdade do outro. Poder-se-ia
mesmo dizer que Hegel pensa a constituição intersubjetiva da
esfera do direito ainda mais profundamente do que quando ele
a ancora no interior do próprio conceito de liberdade, fazendo
surgir a verdadeira liberdade, não como resultado de uma
limitação recíproca da liberdade natural, ou seja, da liberdade
ainda não-mediada intersubjetivamente.
Em Hegel, ser livre é ser sujeito, assim como ser sujeito é ser livre, uma vez que o sujeito não possui a liberdade, ele é liberdade.
Entretanto, a liberdade efetivamente manifestada ocorre na intersujetividade, na comunidade ética de sujeitos que reconhecem o
outro. O sujeito hegeliano não enxerga apenas seu eu singular, mas
também um eu universal, atribuindo ao outro a mesma atividade
livre que atribui a si mesmo. O conceito de vontade livre não é o
de uma vontade isolada, mas sim o de uma vontade, que, unificada
sob a lei da liberdade, é de todos aqueles que gozam do direito.
Assim, apenas por um longo processo, o Espírito alcança a forma
plena da liberdade. Este processo é a História, que, em sua essência,
é o progresso na consciência da liberdade (HEGEL, 2001, P.22).
Entretanto, para Hegel, além das esferas do espírito subjetivo-individual e do espírito objetivo, há ainda a esfera do Espírito
Absoluto, que se decompõe na arte, na religião e na filosofia,
momento no qual a liberdade é plenamente compreendida em seu
desenvolvimento histórico e encontra aí o seu conceito, agora verdadeiramente consciente de si. Para Hegel, apenas no Espírito Absoluto pode-se ser plenamente livre. Isto é, apenas nesse momento
realiza-se, no espaço e no tempo, a Ideia Absoluta já contida na
Lógica abstrata.
Analisando sucintamente o sistema hegeliano, conforme apresentado acima, depreende-se que Hegel não foi partidário das teorias
jusnaturalistas modernas, que dominavam o pensamento filosófico
de sua época no que tange à liberdade, ou ao conceito de dignidade humana dela derivado.
Para Hegel, a razão, que embasa o direito natural moderno e as
teorias de seus partidários, não pode ser um princípio abstrato sem
mediação com a realidade efetiva, e a história não pode ser considerada simples facticidade, mas sim a história da liberdade. A razão deve estar mediada com sua formação histórica, uma vez que a
história é o desdobramento da razão, o que está claro na conhecida
afirmação de Hegel contida na sua Filosofia do Direito de que “O
que é racional é efetivo e o que é efetivo é racional”.
Assim, sob a ótica hegeliana, as discussões filosóficas a respeito da
dignidade humana ganharam novos elementos.
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2. Da Necessária Passagem da Moralidade à Eticidade
A conceituação de dignidade humana é comumente tratada pelos
pensadores modernos e contemporâneos, dentre eles um dos maiores interlocutores de Hegel, Kant, como sendo derivada da capacidade humana de agir e pensar racionalmente, centralizando toda
a discussão sobre a dignidade humana no respeito à autonomia do
sujeito racional.
Nesta afirmação, nota-se a identificação entre dignidade e capacidade de ação racional, o que acompanha todo o caminho do pensamento ocidental sobre esse conceito.
Hegel, introduzindo a história em sua compreensão de dignidade
humana, entende que a dignidade constrói-se e realiza-se mediante a
relação com o outro. Enquanto para Kant o respeito à autonomia de
um pode resultar na limitação dos demais, caracterizando uma valorização do individual, para Hegel, o reconhecimento de um outro
igualmente digno somente pode-se compreender mediante a consideração de uma coletividade construída no âmbito das relações.
Sob o prisma meramente ontológico, ou religioso, a dignidade não
serve de parâmetro para demarcar concretamente as questões éticas
atuais que envolvem a vida humana. Ela necessita ser descentralizada do indivíduo e colocada na base das relações e no desenvolvimento histórico humano.
A dignidade humana é um conceito complexo culturalmente e dinâmico historicamente e é infrutífero localiza-lo numa concepção
formal vazia e abstrata.
Kant afirma que a autonomia da vontade, entendida como a faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a
representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos
seres racionais, constituindo assim, o alicerce da dignidade humana. Para ele (KANT, 2007, p.79) “Autonomia é pois o fundamento
da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional”.
Já para Hegel, a dignidade é uma qualidade a ser conquistada.
O ser humano não nasce digno, mas torna-se digno a partir do
momento em que assume a sua condição de cidadão dentro de
uma comunidade ética. Nesta concepção, a dignidade necessita
de reconhecimento, o que se encontra esclarecido na máxima de
que “cada um deve ser pessoa e respeitar os outros como pessoas”
(HEGEL, 1970, §36). É na relação com o outro que se é reconhecido
humano. Assim, o efeito desse reconhecimento recíproco é a própria dignidade. A tradução desse reconhecimento é a capacidade de
liberdade do homem.
Segundo a lição de Kurt Seelman (2013, p.106):
[...] se se atribui como objeto da dignidade aquilo que precede
qualquer reconhecimento, subtrai-se dela, na procura da “vida
humana pura”, a dimensão social, para adquirir-se, por meio
disso, a indisponibilidade da dignidade.
Ainda nas palavras de Seelman (2013, p.112):
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Diferentemente de Kant, esse respeito recíproco do primeiro
estágio como pessoa, como legitimado à detenção de direitos,
não é um mero dever de virtude, mas, expressamente, um
imperativo jurídico. Ao lado e até mesmo antes do dever de
respeito dos direitos individuais impõe-se, então, o imperativo
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jurídico de respeito desse centro de competência que é o homem, ao qual dizem respeito os direitos individuais [...]
O conceito de pessoa em Hegel está ligado à esfera jurídica, à “capacidade jurídica” do indivíduo, embora ainda uma capacidade
em potência. É uma manifestação ainda abstrata e indeterminada,
uma vez que todas as pessoas são portadoras de direitos e deveres,
sendo, portanto, fundamentalmente iguais. A personalidade contém
a capacidade jurídica e constitui o conceito e a base do direito abstrato que, por isso, é ainda formal (HEGEL, 2010, §36).
Nas palavras de Hegel (2010, §209):
O homem vale assim, porque ele é homem, não porque ele é
judeu, católico, protestante, alemão, italiano etc. Essa consciência, pela qual o pensamento vale, é de uma importância
infinita, - apenas é insuficiente quando se fixa, enquanto
cosmopolitismo, num opor-se à vida concreta do Estado.
Com essa afirmação, Hegel reconhece a igualdade formal de todas
as pessoas, e deixa clara a defesa de que esse reconhecimento só
é realmente efetivo dentro da vida concreta do Estado, enquanto
uma comunidade ligada por valores éticos cultural e historicamente desenvolvidos.
Assim, para Hegel, o ponto de partida para a concretização da ideia
de liberdade e, portanto, a efetivação da ideia de dignidade humana, é a pessoa de direito. É neste ponto que se inicia o desenvolvimento da vontade racional e autônoma. Não é no fictício estado
de natureza ou numa ideia abstrata a respeito de características
humanas inatas que se localiza e fundamenta a dignidade, mas na
sua objetivação, no Estado e no Direito.
Por essa razão, no Direito Abstrato, quando pela primeira vez surge a
ideia de pessoa, a propriedade é tratada como direito fundamental do
homem. É justamente no ato de se apropriar de algo que o homem
natural se torna pessoa e afirma a sua individualidade. Nas palavras
de Hegel (2010, §§41 e 43), em seus §§ 41 e 43, respectivamente:
A pessoa precisa se dar uma esfera externa de sua liberdade, a
fim de ser enquanto ideia. Porque a pessoa é a vontade infinita sendo em si e para si nessa determinação primeira ainda
totalmente abstrata, esse seu aspecto diferenciado, que pode
constituir a esfera de sua liberdade, é igualmente determinado
como o que é imediatamente diverso e separável dela.
A pessoa, enquanto conceito imediato e, por isso, também
essencialmente [indivíduo] singular, tem uma existência natural, em parte, em si mesma, em outra parte, como aquilo com
o que se relaciona com o mundo exterior. – É apenas nessas
Coisas que são imediatamente tais, e não determinações que
são capazes de se tornar Coisas pela mediação da vontade, que
aqui se fala a propósito da pessoa, a qual está, ela mesma, em
sua imediatidade primeira.
A violação ao direito fundamental de propriedade significa a violação aos direitos de personalidade, uma vez que a propriedade é
uma manifestação da vontade autônoma e permite ao homem ser
pessoa e adquirir consciência de si e de sua liberdade, ainda que de
maneira rudimentar. Portanto, sem a garantia desse direito o homem é violado na sua condição de pessoa.
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Entretanto, no segundo momento da Filosofia do Direito, no momento da Moralidade, acentua-se a fundamentação subjetiva da
vontade livre, ou seja, evidencia-se a ideia da liberdade como autodeterminação. Aqui, o enfoque não é mais a pessoa do Direito, mas
a pessoa da Moralidade, ou o sujeito.
O ponto de vista moral é o ponto de vista da vontade, que não é
meramente em si, mas para si e infinita (HEGEL, 2010, §105), determinando que a pessoa passe a ser sujeito. A autodeterminação da
vontade é, nas palavras de Hegel (2010, § 107), “um momento de
seu conceito e a subjetividade não é apenas o aspecto de seu ser-aí,
porém sua determinação própria”.
Hegel resguarda no momento da Moralidade o que há de mais sagrado na autonomia do sujeito agente, o direito de moralidade como o
direito de autodeterminação da vontade (WEBER, 2010, p. 64).
Hegel (1995, § 503) afirma:
O indivíduo livre que é somente pessoa no direito (imediato),
agora é determinado como sujeito – vontade refletida sobre
si mesma, de modo que a determinidade do querer em geral
como ser-aí, nele seja como a sua, diferente do ser-aí da liberdade em uma Coisa exterior.
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A Moralidade, portanto, trata das condições da responsabilidade
subjetiva. Para Hegel, a Moralidade pergunta pela autodeterminação da vontade, pelos propósitos e intenções que movem o sujeito
que age (HEGEL, 2010, §110).
O Direito não pergunta pelos princípios subjetivos que movem minhas ações, mas a Moralidade trata do direito que o sujeito tem de
saber e reconhecer o que tem origem na sua vontade. A Moralidade
é pressuposto básico para o desenvolvimento da dignidade humana, que ainda assim encontra-se incompleta.
Interpretando Hegel, Thadeu Weber (2009, p. 114) afirma que,
tratando-se da Moralidade, “a realização dos meus fins, portanto,
inclui o reconhecimento da vontade dos outros; requer o reconhecimento da liberdade como princípio universal”.
Entretanto, para Hegel, a liberdade como princípio universal não
se concretiza se não se avança em direção à objetividade ética. A
responsabilidade não pode ser observada apenas do ponto de vista
subjetivo, sob pena de ser abstrata e vazia de sentido efetivo. Em
Hegel, a Moralidade é um momento no processo de determinação
do princípio da liberdade, mas ele vai além e desenvolve, na Eticidade, o desdobramento objetivo das vontades livres.
Hegel acusa Kant de não ter ultrapassado o ponto de vista subjetivo, de ter desenvolvido uma moralidade que trata do dever-ser,
mas não se preocupa com como ele será cumprido, o que ocorrerá,
pra Hegel, na Eticidade, locus da realização objetiva nas instituições sociais.
Ao fixar o princípio supremo do agir, Kant permaneceu, na perspectiva hegeliana, na moralidade subjetiva, o que seria insuficiente.
Para Kant, entretanto, isso seria fundamental, em virtude da necessidade do caráter a priori de que deve estar investido esse princípio
supremo. Kant acredita que estando vazio de conteúdo empírico, o
princípio torna-se válido para todos. Assim, na visão kantiana, os
resultados e as consequências não podem ser o fundamento deter-
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minante de uma ação que pretende ter valor moral, mas apenas a
intenção do agente e o respeito à lei.
Esse caráter indeterminado da moral kantiana é alvo de críticas de
Hegel, que os tem por abstratos, formais e a-históricos (WEBER,
2009, p.123), podendo neles caber qualquer conteúdo.
Hegel ultrapassa a subjetividade da vontade tratando das determinações objetivas, da mediação social da liberdade. Não há como
realizar plenamente a liberdade humana, e garantir a sua dignidade, fora de uma determinada estrutura social.
A dignidade não existe isoladamente, como característica natural,
mas é conquistada nas instituições éticas, nas palavras de Hegel:
na família, na sociedade civil e no Estado. É necessária a intermediação dessas instituições para que a liberdade e a dignidade
manifestem-se em sua completude, e reencontrem o conceito.
O âmbito da Eticidade limita tão somente a liberdade natural do
indivíduo, libertando-o dos seus instintos naturais e de sua subjetividade indeterminada. Para Hegel, a dignidade não existe nesse estágio
indeterminado, não existe apenas enquanto característica natural do
homem, ela precisa ser objetivada. A vontade livre autônoma é confundida com a vontade natural e imediata, mas a dignidade só existe
na intersubjetividade, onde a liberdade é assegurada mediatamente,
estando suprassumida no ético e garantida pelas instituições das
quais se é membro (Mitglied). Hegel (2010, §153) argumenta:
O direito dos indivíduos para a sua determinação subjetiva até
a liberdade tem seu cumprimento no fato de que eles pertencem à efetividade ética, visto que a certeza de sua liberdade
tem sua verdade em tal objetividade e que esses possuem
efetivamente no ético sua essência própria, sua universalidade
interna [...].
Num primeiro momento da Filosofia do Direito, o objeto principal
é a pessoa imediata e as vontades a ela pertencentes. Neste nível,
tem-se uma noção abstrata do indivíduo, que é tido como uma
pessoa de direito. No terceiro momento, do Estado Ético, as pessoas, com seus interesses particulares, estão mediadas, ou seja, superadas e conservadas e o indivíduo é membro de uma corporação,
do Estado. Nas palavras de Weber (2010, p. 71), “a vontade particular, pelo processo de mediação, reconhece que sua dignidade se
funda na “substancialidade ética”, ou seja, é assegurada e realizada
nas instituições da eticidade”.
Apenas na efetividade ética os direitos dos indivíduos são respeitados e efetivados e a vontade autônoma realiza-se verdadeiramente.
Na Eticidade, busca-se o equilíbrio entre as liberdades individuais
e o interesse geral, dentro do Estado. Citando Hegel (2010, § 257),
“o Estado é a efetividade da ideia ética, - o espírito ético enquanto
vontade substancial manifesta, nítida a si mesma, que se pensa e se
sabe e realiza o que sabe e na medida em que sabe”.
Na Eticidade, a subjetividade adequa-se ao conceito, e a vontade individual é superada e guardada (aufgehoben) no ético (2010,
§142). O conflito que aparece entre a razão, enquanto puro pensar,
enquanto dever-ser, e a sensibilidade, o ser outro, a intersubjetividade, resolve-se na moralidade objetiva, ou seja, na Eticidade. A
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Moralidade trata da fundamentação subjetiva da liberdade e a Eticidade da sua concretização.
Hegel (2007, § 603) afirma:
Nesse conflito entre a razão e a sensibilidade, a essência para
a razão, é que o conflito se resolva; e que emerja, como resultado, a unidade dos dois – que não é a unidade originária em
que ambos estão em um indivíduo só, mas uma unidade que
procede da conhecida oposição dos dois.
Por essa razão, não basta, para Hegel, criar-se uma teoria das obrigações normativas sem que se crie também uma teoria das instituições. Teoria que leve em conta, inclusive, os valores objetivos
do mundo, ou seja, do ambiente cultural e histórico em que estão
inseridas as instituições.
Ademais, a questão do reconhecimento, tratada por Hegel principalmente na sua Fenomenologia do Espírito, amplia a noção da
individualidade humana, que se encaminha até o universal concreto. Não há dignidade humana natural e imediata, uma vez que
almejar ser imediatamente digno significa querer ser abstratamente
digno. A liberdade, pressuposto supremo da dignidade só existe na
mediação das vontades, quando, então, se determina. Hegel (2010,
§149) conclui:
A obrigação que nos liga apenas pode aparecer enquanto
delimitação contra a subjetividade indeterminada ou contra a
liberdade abstrata e contra os impulsos da vontade natural ou
da vontade moral que determina a partir do seu arbítrio seu
Bem indeterminado. Mas, na obrigação, o indivíduo tem antes
sua libertação, de uma parte, da dependência em que está no
mero impulso natural, assim como do abatimento em que se
encontra enquanto particularidade subjetiva, nas reflexões
morais do dever-ser e do poder-ser, e, de outra parte, da subjetividade indeterminada que não chega ao ser-aí e da determinidade objetiva do agir e que permanece dentro de si, enquanto uma inefetividade. Na obrigação, o indivíduo liberta-se para
a liberdade substancial.
No nível da Eticidade, o ético é um modo de atuar “universal” dos
indivíduos. Como um desdobrar da ideia de liberdade, e da consequente dignidade humana, o substancial, presente no Estado, é o
resultado da mediação da vontade racional e autônoma. É o que
assegura os direitos fundamentais dos indivíduos, não simplesmente
como imediatos e naturais, mas como mediados pelas e nas instituições sociais. Hegel (1970, § 258) afirma na Filosofia do Direito que:
O Estado, como a efetividade da vontade substancial, que ele
tem na autoconsciência particular elevada à sua universalidade, é o racional em si e para si. Essa unidade substancial é
um fim próprio imóvel e absoluto, no qual a liberdade chega a
seu direito supremo, assim como esse fim último tem o direito
supremo frente aos singulares, cuja obrigação suprema é ser
membro do Estado.”
(Nota) A racionalidade, considerada abstratamente, consiste
essencialmente na unidade e compenetração da universalidade
e da singularidade, e, o que é aqui concretamente considerado,
segundo o conteúdo, consiste na unidade da liberdade objetiva, isto é, da vontade universal substancial e da liberdade
subjetiva, enquanto saber individual, e da vontade que busca
seus fins particulares, e por causa disso, segundo a forma, num
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agir determinando-se segundo leis e princípios pensados, isto
é, universais. – Esta ideia é o ser eterno e necessário em si e
para si do Espírito. (tradução nossa)
“O direito dos indivíduos à sua particularidade está igualmente
contido na substancialidade ética, pois a particularidade é o modo
exterior aparecendo, no qual o ético existe” (HEGEL, 2010, § 154).
Estando o particular contemplado no substancial, sou autor das leis
às quais estou sujeito e a isso denomina-se autonomia (WEBER,
2010, p. 71).
A autonomia não é ilimitada, mas vem acompanhada por instâncias de mediação, que vão da família, passando pela sociedade civil
e culminando no Estado. Mas se essa mediação significa limitação,
ela também significa garantia de realização. As liberdades individuais por si mesmas não têm eficácia se não estiverem sediadas
numa base ética encontrada no Estado, não nos Estado históricos,
mas no conceito de Estado desenvolvido por Hegel, um Estado que
se almeja alcançar, e que é a única instancia capaz da garantia e
prática dos direitos fundamentais e da dignidade humana.
Conclusão
Uma das grandes, senão a maior, contribuição de Hegel para o debate a respeito das questões éticas da modernidade, que refletiram
fortemente nas teorias desenvolvidas na contemporaneidade, trata-se da distinção que estabeleceu entre a moralidade e a eticidade.
Na visão de Hegel, uma ética subjetiva deve ser complementada
por uma ética objetiva, que tem por intuito demonstrar o desdobramento da atuação das vontades livres, analisando as consequências
no locus de sua efetivação, nas instituições sociais.
A Eticidade cuida das determinações objetivas ou da mediação social da dignidade, tendo, desta forma, conteúdo e existência objetivos, que se situam acima dos caprichos pessoais. Assim, uma das
críticas de Hegel ao formalismo kantiano está no fato de que, para
Hegel, uma teoria da obrigação normativa deve culminar numa
teoria das instituições sociais. O sujeito deve ser avaliado como
membro de uma comunidade ética e não apenas com base nos aspectos subjetivos que determinam o seu agir.
A verdadeira moral é social e histórica, e não baseada no direito natural a-histórico e anterior a qualquer constituição social e
comunitária, assim como forma-se de maneira intersubjetiva, na
relação com o outro, dentro de uma comunidade ética. Isso não
significa, é claro, que tudo seja a posteriori. No movimento das
mediações, o que permanece como universalmente coerente é o que
servirá de critério último de moralidade.
Na vida prática, o indivíduo determina-se e, determinando-se,
diferencia-se. E na Eticidade, sobretudo no Estado, a diferença é
conciliada, suprassumida na universalidade, mas jamais, excluída
ou extinta.
A análise do conceito e do fundamento da dignidade humana em
Hegel reúne forma e conteúdo, eu e tu. Em Hegel, o sujeito se reconhece no objeto e não se vê apartado dele. A lei que determina
o agir humano e que foi constituída historicamente contém em si a
efetivação da dignidade e da liberdade, e sua garantia.
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