A subjetividade como mercadoria

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INTRODUÇÃO
As indagações que deram origem a esta dissertação partiram de um fenômeno social que é o
superendividamento e nos levaram ao tema do consumismo. No exercício de nossa profissão, como
advogada, vejo que este é um fenômeno que vem se tornando, até mesmo pela força com que vai se
ampliando por todo o mundo globalizado, foco de atenção de muitos juristas. Entretanto, não há
ainda, no Brasil, uma legislação específica para atender a demanda de consumidores
superendividados, casos muitas vezes complexos, ainda que muitos estudiosos se interessem pelo
tema.
Desenvolver esse trabalho no âmbito de um mestrado interdisciplinar nos pareceu o caminho
mais acertado para nossa pesquisa, pois a questão do superindividamento, em sua complexidade,
exige que seja estudado pelo ângulo social, psicológico e jurídico.
O superendividamento deve ser visto no contexto das relações sociais e econômicas. Há
décadas o discurso hegemônico vem sendo o do livre mercado, sustentado pela livre concorrência,
considerada a melhor forma de regulação dos atores econômicos. As únicas críticas conhecidas eram
as dirigidas, não ao modelo capitalista de mercado, mas a exacerbação da ciranda especulativa,
deslocada da economia real, que poderia esbarrar nos seus próprios limites1. Sabemos que hoje o
questionamento sobre as políticas econômicas vem crescendo, mas também é preciso reconhecer a
força do capitalismo.
A matéria do jornal O Globo, reportagem de Altamir Tojal2 do dia 29 de setembro de 2008 é
bastante expressiva a respeito: “É recomendável não cair na tentação dos profetas do pensamento
único, que assinaram antes da hora o atestado de óbito da diferença. Eles saudaram a convergência
das idéias em torno do paradigma absoluto do mercado. Deu no que deu”.
Para Altamir, citando Gilles Deleuze, o capitalismo é um “sistema imanente que não para de
expandir os próprios limites, reencontrando-os sempre numa escala ampliada, porque o limite é o
próprio capital”. E continua Tojal, observando que depois do enfraquecimento do estado do bemestar e o fim do comunismo soviético, o liberalismo triunfante quis enterrar a esquerda e
desqualificar qualquer proposta alternativa. O estadismo coroou a imoralidade e a incompetência,
sendo deplorável que esse fracasso tenha sido usado para penalizar políticas sociais e para promover
1
Revista Le Monde Diplomatique, Ano 2, número 17, Dezembro de 2008. Comportamento, desejo de
consumir; Penar um mundo novo. p. 3
2
Tojal, Altamir - Jornal O Globo, 29 de setembro de 2008, primeiro caderno, coluna Opiniões, p. 7.
9
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a farra do crédito. E, pior, para sufocar a divergência e indultar os que se locupletam na
“exuberância irracional”.
E o autor também nos alerta para a sedução do superendividamento: É bobagem demonizar o
crédito, comenta, mas é bom não empenhar a alma. E volta a Deleuze com o que chamou o “homem
endividado”, ou seja, o sujeito que nasceu dessa versão contemporânea capitalista, que depende cada
vez menos da coerção explícita para exercer sobre ele o controle social, bastando para agora a
alegria do cartão de crédito.
Dos consultórios psicanalíticos ao Judiciário é comum cidadãos em busca de “socorro” por
estarem superendividados. A ciência do Direito é chamada para mediar às situações individuais
desses conflitos de interesses entre consumidor e fornecedor. O que aborda o Direito sobre essa
questão? Procura-se, com estudos ainda iniciais, criar-se uma legislação que proteja o consumidor
superendividado desta força avassaladora, que é o mercado de consumo.
Enquanto isso, este mercado não cessa de produzir, a cada dia, objetos visando capturar o
interesse do sujeito. A esse mercado de consumo, o sujeito pode responder de várias maneiras,
situando-o numa dimensão de gozo que toma uma forma particular em cada sujeito. Em todas as
esquinas, atrás de todas as vitrines, encontram-se objetos feitos para causar o desejo. Se o sujeito
aceita as ilusões impostas por este Amo contemporâneo, aprisiona-se facilmente às ofertas do
consumo3.
A revista Le Monde diplomatique Brasil, em Dezembro de 2008, trouxe uma matéria que
abordou o tema, falando sobre o consumo infantil, demonstrando como as crianças também são
vítimas da era do consumismo, ao destacar que em nossa sociedade há um verdadeiro exército
publicitário trabalhando ininterruptamente para convencer as crianças a comprar toda sorte de
produtos. Com fotos bem produzidas e indicações de artistas renomados, a propaganda adentra suas
defesas psíquicas ainda frágeis e promove ilusões. A criança carece de critérios próprios para avaliar
se cada objeto corresponde ao que ela realmente desejaria: suas vontades ainda costumam ser
fugazes, logo, facilmente dirigidas por especialistas em sedução. Outra vez aquilo que é
intensamente querido num dado momento, logo cai no esquecimento, trocado por outra coisa eleita
como alvo prioritário do desejo momentâneo.
Os ditames do capitalismo transformaram-se na principal força propulsora e operativa do
mundo globalizado e o consumismo passou a ser a sua principal forma de sustentação. Consumismo
e não consumo, porque a capacidade humana de desejar passou a ser manipulada a fim de incentivar
Apud Sadala, Glória. Artigo: consumo: parceiro nos sintomas contemporâneos. Trabalho apresentado no X
Encontro do campo Freudiano. Barcelona/Espanha, p.68.
3
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a compra desenfreada. O consumismo associa e apregoa que a felicidade está ligada à satisfação de
um volume e a uma intensidade de desejos sempre crescente, que implica a rápida substituição dos
objetos destinados a satisfazê-los.
Para desenvolver as idéias acima, no primeiro capítulo, que contextualizam socialmente o
problema do superendividamento, buscamos o pensamento de Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky,
Guy Debord e Gilles Deleuze, pois os autores descrevem com muita pertinência a evolução de uma
realidade capitalista, o surgimento de novos prazeres da vida, falando sobre a revolução consumista
que passou a desempenhar um papel importante inclusive no processo de auto-identificação
individual e de grupo, adentrando, assim, nos aspectos psicológicos da questão.
É neste contexto, descrito por Bauman, que o Judiciário, a cada dia que passa, é mais
acionado a socorrer cidadãos superendividados que se submeteram à armadilha do crédito facilitado.
Não se pode negar os benefícios da globalização, mas o capitalismo trouxe consigo, o
apassivamento dos sujeitos frente ao poder de sedução dos simulacros veiculados pela mídia, ou
melhor, por todo um arsenal de maneiras de incentivar o consumo.
No segundo capítulo, descrevemos como o Direito tem analisado o fenômeno e qual é a sua
visão sob o aspecto judicial. Trouxemos o amparo Constitucional e a legislação infraconstitucional,
ressaltando o Código de Defesa do Consumidor para abordar a questão do superendividamento,
assim como destacamos o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana por ser de extrema relevância
para o trabalho pois, como é assegurado neste Princípio, todo ser humano tem dignidade só pelo fato
de ser pessoa, daí a necessidade e respeito por parte dos demais, devendo ser assegurado pelo
ordenamento jurídico, condições mínimas aos exercícios dos direitos fundamentais. Desrespeitar tal
princípio representa um ato de intolerância. Às pessoas devem ser asseguradas condições mínimas
para sobrevivência, compatível à dignidade.
Claudia Lima Marques e Rosangela Lunardelli Cavallazzi, advogadas especialistas no estudo
do Superendividamento, em seu livro, “Direito do Consumidor Endividado – Superendividamento e
Crédito” (2006), ofereceram uma contribuição qualificada ao debate com uma reflexão sobre o tema
do superendividamento dos consumidores em nosso país e demonstram a necessidade da elaboração
de legislação específica com urgência.
Com base no Direito Comparado, alguns autores demonstraram como a questão é enfrentada
em outros países.
As juízas Clarissa Costa de Lima e Karen Rick Danilevicz Bartoncello, ao pesquisarem o
fenômeno, desenvolveram um Projeto Piloto que traremos mais adiante neste trabalho. Para as
juízas, o tratamento do crédito ao consumidor na América Latina foi o tema central da pesquisa
11
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como causa do superendividamento. A incitação ao crédito e ao endividamento caracteriza a
sociedade de consumo atual em todos os seus sistemas de mercado do tipo capitalista, o que explica
a internacionalidade dos problemas daí decorrentes. As magistradas reconhecem a importância do
crédito ao consumo e seus efeitos positivos, pois permite melhorar o nível de vida da população,
além de impulsionar o desenvolvimento da atividade industrial, mas apontam para uma força
externa que leva o consumidor a consumir, como efeito da publicidade feita pelos fornecedores. A
livre escolha do consumidor está submetida a uma pressão, na medida em que o crédito ao consumo,
por sua virtualidade em diferir o pagamento, assim como toda forma de propaganda, age como um
meio de seduzir o consumidor.
É justamente esta questão, a pressão para o consumismo e o que resta de escolha para resistir
ou não a esta pressão que nos levou a acreditar que a psicanálise poderia contribuir, ao lado dos
estudos sociológicos e jurídicos, para elucidar uma análise mais apurada deste tema. Aí, supomos,
estaria a importância da Psicanálise para os operadores do Direito: ter conhecimento das
determinações do inconsciente sobre o desejo do sujeito e, portanto, sobre as suas reações face às
demandas de mercado, apassivando-se ou reagindo a elas.
No terceiro capítulo trouxemos a Psicanálise e a ética do desejo. No primeiro item, Freud e a
descoberta do inconsciente; no segundo, a concepção de sujeito em Lacan e, no terceiro, as relações
entre necessidade, demanda e desejo, para chegarmos a questão da alienação e separação.
Hoje o consumo chega a ser classificado, para utilizar a expressão de Freud, como causa de
um mal-estar de nossa civilização com estatuto de sintoma. A Psicanálise, que tem como uma das
suas questões centrais a relação entre sujeito e desejo, parece-nos poder contribuir para o trabalho
tendo em vista suas possibilidades de crítica à sociedade baseada no consumismo: o consumo
convoca o sujeito apenas como consumidor e não como sujeito do desejo. Curar-se do consumismo
é curar-se da voz imperativa do Outro que articula o Deus do mercado.
O objetivo desta dissertação está em desenvolver um estudo interdisciplinar – Direito e
Psicanálise tendo em vista contribuir para uma discussão destas questões, de modo a contribuir com
o Direito na compreensão da constituição do sujeito.
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CAPÍTULO I – O DEUS DO MERCADO: CONSUMO X CONSUMISMO
Neste capítulo, traremos a diferença entre consumo e consumismo, caracterizando o segundo
como produto do capitalismo que transforma as subjetividades em mercadoria, ou seja, abordando as
conseqüências da economia sobre a subjetividade enfocando os efeitos da publicidade, da facilidade
ao crédito e dos muitos outros recursos usados pelos interessados na manutenção desse status, de
modo a provocar no indivíduo o superendividamento que evidencia seu assujeitamento ao mercado.
Para desenvolver esta reflexão sobre a questão do consumismo, neste capítulo, tomaremos de
modo especial, Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky, Guy Debord e Gilles Deleuze, autores que se
notabilizam por suas análises sócio-política do capitalismo e seus efeitos sobre o sujeito.
1 – A SUBJETIVIDADE COMO MERCADORIA
Vivenciamos momentos da história em que se passou do consumo calcado nas necessidades
essenciais para o consumo desenfreado, fazendo surgir a sociedade consumista. Esta sociedade
interpela seus membros basicamente ou talvez até exclusivamente, como consumidores; uma
sociedade que julga e avalia seus membros principalmente por suas capacidades e condutas
relacionadas ao consumo4.
Para melhor explicar a expansão da passagem do consumo ao consumismo iremos descrevêlos na visão de Bauman 5 e após, o que tem sido a revolução consumista em nossa civilização.
O consumo é uma atividade que fazemos todos os dias, muitas vezes, sem planejamentos
antecipados e sem nenhuma consideração. É um elemento inseparável da sobrevivência biológica do
ciclo metabólico de ingestão, digestão e excreção, uma condição que os humanos compartilham com
todos os outros organismos vivos e que constituiu uma forma de vida.
A atividade de consumo, por toda a história da humanidade, tem oferecido um suprimento
constante de produtos, a partir do qual, a variedade de formas de vida e o padrão das relações interhumanas podem ser moldada6.
Para Bauman, o consumismo chega quando o consumo assume seu papel-chave o que, na
sociedade de produtores era exercida pelo trabalho. Como um tipo de arranjo social resultante da
reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer,
4
Bauman, Zygmunt. Vida Líquida; tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p.
109.
5
6
Bauman, Zygmunt. Vida para o consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 37.
Ibidem, p. 38.
13
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neutros quanto ao regime, o consumismo transformou-se na principal força propulsora e operativa
da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação social,
além da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo tempo um papel importante
nos processos e auto-identificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução de
políticas de vida individuais.
A natureza das relações interpessoais tende a ser remodelada à semelhança dos meios e
objetos de consumo e segundo as linhas sugeridas pela síndrome consumista7.
Em continuidade, Bauman destaca ao descrever a passagem do consumo ao consumismo, a
capacidade de querer, desejar, ansiar e, particularmente, de experimentar emoções repetidas vezes,
conforme os interesses capitalistas, de fato passou a sustentar a economia do convívio humano no
capitalismo.
Conforme Bauman, essa síndrome é uma série de atitudes e estratégias, julgamentos e
prejulgamentos de valor, pressupostos explícitos e tácitos variados, mas intimamente
interconectados sobre os caminhos do mundo e as formas de percorrê-los, as visões da “felicidade” e
as maneiras de perseguí-las, as preferências de valor e as relevâncias tópicas. A síndrome
consumista é uma questão de velocidade, excesso e desperdício 8.
O consumismo favorece uma economia do excesso e do lixo. Estes não sinalizam seu mau
funcionamento, mas constituem sua garantia e o único regime sob o qual uma sociedade de
consumidores pode assegurar sua sobrevivência9.
Com a revolução industrial, a mercadoria aparece efetivamente como uma potência que vem
realmente ocupar a vida social. O consumo permitiu o desenvolvimento do comércio, abrindo o
caminho para a produção em massa. O processo contínuo das técnicas de fabricação permitiu
produzir em enormes séries as mercadorias padronizadas, surgindo uma nova filosofia comercial,
rompendo com as atitudes do passado e mais tarde os grandes magazines romperam com a tradição
comercial do passado.
Marx10, em seu livro “O capital” diz que a mercadoria é misteriosa simplesmente por
encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, aprensentando-as como
características materiais e propriedades sociais inerente aos produtos do trabalho, por ocultar,
portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e trabalho social total, ao
7
Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.
109.
8
9
10
Ibidem, p. 110.
Ibidem, p. 108.
Marx, K. O capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, livro I, v. I, 1975, p. 81.
14
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refleti-la como relação social existente, a margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho.
Uma relação social definida, estabelecida entre homens, assume a forma fantasmagórica de uma
relação entre coisas. Marx chamou isto de fetichismo, que esta sempre grudado aos produtos do
trabalho, quando são gerados como mercadorias, dizendo ainda ser inseparável da produção das
mercadorias.
Para Guy Debord11, que também se dedica ao estudo dessas questões, chamou “sociedade do
espetáculo” o movimento essencial da sociedade consumista dizendo ser o princípio do fetichismo
da mercadoria a dominação da sociedade por coisas que se realiza no espetáculo. O conceito de
sociedade do espetáculo é uma tentativa de compreensão das características de uma fase específica
da sociedade capitalista, é o momento em que a mercadoria chega a ocupação total da vida social.
Não só a relação mercadoria é visível, como nada mais se vê senão ela: o mundo que se vê é o seu
mundo. O espetáculo é um elemento articulador que estabelece mediações entre as várias dimensões
da realidade social capitalista. Ele faz ver um mundo presente e ausente, é o mundo da mercadoria
dominando tudo que é vivido. A alienação presente no processo de produção do produto estende-se
por toda vida social do cidadão. A sociedade do espetáculo não é a superação da alienação, mas a
sua elevação a um patamar superior12.
Veremos como este significante alienação também é tomado por Lacan para falar do sujeito
apassivado ao desejo do Outro.
Para Debord 13 a produção das mercadorias pode permanecer durante muito tempo artesanal,
contida numa função econômica marginal, onde a sua verdade quantitativa esta ainda encoberta. No
entanto, lá onde encontrou as condições sociais do grande comércio e da acumulação dos capitais,
ela apoderou-se do domínio total da economia. A economia inteira tornou-se então o que a
mercadoria tinha mostrado ser no decurso dessa conquista, um processo de desenvolvimento
quantitativo. A economia transforma o mundo, mas transforma-o somente em mundo da economia.
E continua Debord14, o consumidor real torna-se um consumidor de ilusões. A mercadoria é
esta ilusão efetivamente real e o espetáculo a sua manifestação geral. No momento em que a
sociedade descobre que ela depende da economia, a economia, de fato, depende dela.
11
http://br.geocities.com/mcrost12/a_sociedade _do_espetaculo_2.htm
Coelho, Cláudio Novas Pinto e Castro, Valdir José de. Comunicação e Sociedade do Espetáculo. São Paulo:
Paulus, 2006, p. 16-18.
13
http://br.geocities.com/mcrost12/a_sociedade _do_espetaculo_2.htm
14
http://br.geocities.com/mcrost12/a_sociedade _do_espetaculo_2.htm
12
15
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Segundo Debord a crítica da sociedade de espetáculo é a crítica da sociedade que reduza vida
humana a aparência. O espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana,
isto é, social, como simples aparência15.
Debord também atualiza e complementa a concepção de Marx, chamando a atenção para a
presença das imagens nas relações sociais de produção, de troca, de consumo e nas dimensões
superestruturais que justificam essas relações. O espetáculo confirma o caráter mercantil das
relações sociais capitalistas. O capitalismo é fruto de um processo histórico que separou os
trabalhadores dos meios de produção e tornou possível a transformação da força de trabalho em
mercadoria16.
Diante disso, homens e mulheres, lançados na sociedade do espetáculo ao modo de vida
consumista, desejam e almejam a apropriação, a posse a acumulação de objetos/mercadorias
valorizados pelo conforto que proporciona o respeito que outorgam a seus donos que passaram a
fazer parte da cena do espetáculo.
Na sociedade de produtores, principal modelo societário da fase sólida da modernidade, foi
sustentada basicamente para a segurança.
Neste período histórico, a apropriação e a posse de bens que garantam o conforto e o respeito
podem ser de fato as principais motivações dos desejos e anseios na sociedade de produtores, um
tipo de sociedade comprometida com a causa da segurança estável, que baseia seus padrões de
reprodução a longo prazo, em comportamentos individuais criados para seguir essas motivações.
Se a atividade de consumir, encarada dessa maneira, deixa pouco espaço para a inventividade
e a manipulação, isso não se aplica ao papel que foi e continua sendo desempenhado pelo
consumismo nas transformações do atual dinâmica do modo humano de ser e estar no mundo.
De acordo com Bauman, apostou-se no desejo humano de um ambiente confiável, ordenado,
regular, transparente e, como prova disso, duradouro, resistente ao tempo e seguro.
Esse desejo foi de fato uma matéria prima bastante conveniente para que fossem construídos
os tipos de estratégias de vida e padrões comportamentais indispensáveis para atender a era do
“tamanho é poder” e do “grande é lindo”, já relativo ao consumismo que em seu esforço para evocar
disciplina e subordinação, basearam-se na padronização e rotina do comportamento individual. O
homem civilizado trocou um quinhão das suas possibilidades de “felicidade” por um quinhão de
segurança.
15
Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa, Mobilis in Mobilis, 1991. A sociedade do espetáculo.
Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p.12-13.
16
Coelho, Claudio Novas Pinto e Castro, Valdir José de. Comunicação e Sociedade do Espetáculo. São Paulo:
Paulus, 2006, p. 16.
16
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Nessa era, amplos volumes de bens espaçosos, pesados, obstinados e imóveis auguravam um
futuro seguro, que prometia conforto, poder e respeito pessoal. A satisfação parecia de fato residir,
acima de tudo, na promessa de segurança a longo-prazo, não no desfrute imediato de prazeres.
A posse de um grande volume de bens implicava ou insinuava uma existência segura, imune
aos futuros caprichos do destino. Muitas vezes, sendo a segurança a longo prazo, o principal
propósito e o maior valor. Os bens adquiridos não se destinavam ao consumo imediato, pelo
contrário, deviam ser protegidos da depreciação ou dispersão e permanecer intactos. Eles deveriam
ser resguardados do desgaste e da possibilidade de caírem prematuramente no desuso.
A utilização no todo ou em parte dos bens de consumo, para oferecer conforto e segurança,
precisava ser adiada, no caso de terem deixado de realizar a principal função na mente de seu dono
quando foram, de maneira laboriosa, montados, acumulados e estocados, ou seja, a função de
continuar em serviço enquanto pudesse surgir a necessidade de usá-los. Nova mentalidade passa a
ser embutida na cabeça do indivíduo.
Bauman coloca que as condições de ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente
e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de apreendê-las efetivamente17.
Apenas bens de fato duráveis, resistentes e imunes ao tempo poderiam oferecer a segurança
desejada. Só esses bens tinham a propensão ou ao menos a chance, de crescer em volume e não
diminuir e só eles prometiam basear as expectativas de um futuro seguro em alicerces mais duráveis
e confiáveis, apresentando seus donos como dignos de confiança e crédito.
Aqui surge uma indagação que será respondida oportunamente. O consumismo não seria
uma manipulação da condição própria do sujeito, o de ser desejante?
Mas o desejo humano de segurança e os sonhos de um estado estável definitivo não se
ajustaram a uma sociedade de consumidores. As realizações individuais não podem solidificar-se em
posses permanentes.
O desejo humano de estabilidade, segundo Bauman18, teve que se transformar e de fato se
transformou de principal ativo do sistema em seu maior risco, quem sabe até potencialmente fatal, a
uma causa de mau funcionamento do mesmo.
Dificilmente poderia ser de outro jeito, já que o consumismo associa a felicidade não tanto à
segurança, mas a um volume e uma intensidade em busca de satisfação de desejos sempre
crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a
satisfazê-las.
17
18
Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008, p. 7.
Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo: Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008, p. 44.
17
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E daí conclui Bauman estarmos vivendo uma vida liquido-moderna, uma sociedade em que
as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que o necessário
para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir, onde não pode se manter a forma ou
permanecer em seu curso por muito tempo19.
Nesta sociedade, você ganha alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, você perde, seguindo uma
antiga norma que se mantém até os dias de hoje, trocando a segurança pela felicidade. No nosso
tempo criam-se situações em que tudo é bom, nada é ruim; não há qualquer valore, mas todos são
felizes.
Na realidade novas necessidades exigem novas mercadorias, que por sua vez exigem novas
necessidades e, assim por diante, uma insaciabilidade dos desejos, uma procura constante por
mercadorias para a satisfação.
Com o advento do consumismo augura a era da obsolência dos bens oferecidos no mercado,
assinalando um aumento espetacular na indústria da remoção do lixo
A instabilidade dos desejos e a insaciabilidade das necessidades, assim como a resultante
tendência ao consumo instantâneo e a remoção, também instantânea, de seus objetos, harmonizamse bem com a nova liquidez do ambiente em que as atividades essenciais são inscritas e tendem a ser
conduzidas a um futuro previsível20.
Na vida dos cidadãos da era consumista, o motivo da pressa é o impulso de adquirir e juntar.
Mas, o motivo mais premente, que torna a pressa de fato imperativa, é a necessidade de descartar e
substituir. Quando os objetos de desejo de ontem quebram a promessa e deixam de proporcionar a
esperada satisfação instantânea e completa, só resta serem abandonados.
“Não se deve chorar pelo leite derramado” é a mensagem latente por trás de cada comercial
que promete uma nova e inexplorada oportunidade de “felicidade”. A economia consumista se
alimenta do movimento das mercadorias e é considerada em alta quando o dinheiro mais muda de
mãos, e sempre que isso acontece, alguns produtos de consumo estão viajando para o depósito de
lixo. As grandes empresas especializadas na venda de “bens duráveis” já aceitaram a idéia e emitem
a opinião de que o serviço de fato escasso e, portanto, mais ardentemente ambicionado e valorizado
é o trabalho de limpeza. Sua urgência aumenta de maneira proporcional ao crescimento de
aquisições e posses.
Hoje em dia são raras às vezes em que as empresas cobram dos clientes a entrega, mas cada
vez mais adicionam à conta uma soma pesada referente à remoção dos bens duráveis que o
19
20
Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 7.
Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo: Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008, p. 45.
18
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aparecimento de novos e aperfeiçoados bens, também duráveis, converteu de fonte de prazer e
orgulho em monstruosidade e estigma de vergonha.
Livrar-se deste estigma condiciona a “felicidade”. E a “felicidade” precisa ser paga. Um
exemplo gritante disso é o mercado de celulares, cuja substituição por um modelo cada vez mais
aperfeiçoado se faz em detrimento da qualidade dos aparelhos.
Segundo Bauman21 a indústria de remoção de lixo assume posições de destaque na economia
da vida líquida. A sobrevivência dessa sociedade e o bem-estar de seus membros dependem da
rapidez com que os produtos são enviados aos depósitos de lixo e da velocidade e eficiência da
remoção dos detritos.
Numa sociedade de consumidores, a busca da felicidade é usada como isca nas campanhas
de marketing destinadas a reforçar a disposição dos consumidores para se separarem de seu dinheiro
e redireciona-lá satisfação com a aquisição de bens.
Para Gilles Deleuze22 o marketing é agora o instrumento de controle social e forma
impotente de nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também
contínuo e ilimitado ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O
homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado.
Sob todas as suas formas particulares, informação ou propaganda, publicidade ou consumo
direto de divertimentos, Debord23 diz que o espetáculo constitui o modelo presente da vida
socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e seu
colorário, o consumo.
Quanto mais o indivíduo esta isolado ou frustrado, mais busca consolo nas “felicidades”
imediatas da mercadoria. Compra-se tanto mais quanto se esta carente de amor. O shopping promete
preencher o vazio e reduzir o mal-estar de que se é vítima.
A liberdade do consumidor diz respeito a sua satisfação, mas a liberdade somente pode durar
enquanto permanecer irrealizada. A escolha é um atributo do consumidor e a natureza cooperativa
da comunidade de consumidores significa liberdade de escolha. A liberdade de escolha se assenta na
multiplicidade de possibilidades.
21
Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 9.
Deleuze, G. (1992). Post-scriptum sobre as sociedades de controle. Tradução del Pal Pélbart. In: Conversações
(1972-1990). RJ: Ed. 34, p. 224,
23
Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa, Mobilis in Mobilis, 1991.
22
19
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Atender a todas essas novas necessidades, impulsos, compulsões e vícios, assim como
oferecer novos mecanismos de motivação, orientação e monitoramento da conduta humana, a
economia consumista tem de se basear no excesso.
Para Bauman, o que começa como uma necessidade deve terminar como uma compulsão ou
vício e é isso que ocorre, já que o impulso de buscar nas lojas, e só nelas, soluções para os
problemas e alívio para as dores e a ansiedade é apenas um aspecto do comportamento que não
apenas recebe a permissão de se condensar num hábito, mas é avidamente estimulado a fazê-lo24.
A possibilidade de conter e assimilar a massa de inovações que se expande de modo
incessante está ficando cada vez mais reduzido.
O ritmo de aumento do já enorme volume de novidades tende a ultrapassar qualquer meta
estabelecida de acordo com a demanda já utilizada.
Como lidar com essa demanda? Seria impossível escapar? Esta é a pergunta que fizemos a
Psicanálise.
De acordo com Bauman 25, essas tendências patológicas do crescimento exponencial da
produção de bens e serviços poderiam ser identificadas a tempo, reconhecidas pelo que são, e até
inspirar medidas terapêuticas ou preventivas, se não fosse outro processo de crescimento
exponencial, o que resulta em um excesso de informação.
Na acirrada competição pelo mais escasso dos recursos – a atenção dos consumidores – os
fornecedores de pretensos bens de consumo, incluindo os de informação, buscam desesperadamente
“sobras” não cultivadas dos tempos dos consumidores, qualquer brecha entre momentos de consumo
que possa ser preenchida a partir da informação e sua força sobre o desejo de consumismo.
Que os seres humanos sempre preferem a felicidade à infelicidade é uma observação banal,
já que o conceito de “felicidade”, em seu uso mais comum, diz respeito a estados ou eventos que as
pessoas desejariam que acontecessem, enquanto a “infelicidade” representaria estado ou evento que
elas queriam evitar. Os dois conceitos assinalam a distância entre a realidade, tal como ela é, e uma
realidade desejada.
Por esta razão, Bauman26 conclui que qualquer tentativa de comprar graus de felicidade,
experimentados por pessoas que adotam modos de vida distintos em relação ao ponto de vista
especial ou temporal, só podem ser mal-interpretadas e, em última análise, inúteis.
24
Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.
107.
25
26
Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 54.
Ibidem, p. 59.
20
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E continua dizendo que o valor mais característico da sociedade de consumidores, na
verdade seu valor supremo, em relação aos quais todos os outros são instados a justificar seu mérito,
é uma vida feliz.
A sociedade de consumidores talvez seja a única na história da humanidade a prometer a
felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada “agora” sucessivo. Em suma, uma felicidade
instantânea e perpétua. Também, é a única sociedade que evita justificar e/ou legitimar qualquer
espécie de infelicidade, que se recusa a tolerá-la e a apresenta como uma abominação que merece
punição e compensação.
Se o consumo é a medida de uma vida bem-sucedida, da felicidade e mesmo da decência
humana, então foi retirada a tampa dos desejos humanos27.
Que fazer diante dos fenômenos e as causas do desconforto e da infelicidade, tais como o
estresse, a depressão, jornadas de trabalho prolongadas e anti-sociais, relacionamentos deteriorados,
falta de autoconfiança, dívidas inacabadas e incerteza sobre estar estabelecido de maneira segura e
“ter razão”, que tendem a crescer em freqüência, volume e intensidade? A resposta vem sendo
consumir, mesmo que esse consumo possa levar ao superendividamento.
A sociedade de consumo tem como base a promessa de satisfazer o desejo humano em um
grau que nenhuma sociedade do passado teria alcançado ou mesmo sonhado. Quanto mais se anula
um sujeito pensante maior o lucro no mercado.
Mas, como manter a promessa de satisfação, que só permaneceria sedutora, enquanto o
desejo continua insatisfeito?
O cliente não está plenamente satisfeito enquanto não se acreditar que os desejos que o
motivaram e o colocaram em movimento na busca da satisfação, estimulando experimentos
consumistas, tenham sido verdadeiros e totalmente realizados. Não há uma real capacidade de
analisar, pensa e questionar.
É interessante observar que é exatamente a não-satisfação dos desejos que constitui o
verdadeiro volante da economia para o consumidor. A convicção inquebrantável a toda hora é
renovada com tentativas sucessivas de nova satisfação. A sociedade de consumo prospera, enquanto
consegue tornar perpétua a não satisfação de seus membros. O método para atingir tal efeito é
depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido promovidos a objeto
capaz de trazer a felicidade frente ao universo dos desejos dos consumidores28.
27
28
Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 56.
Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 64.
21
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Começa-se com o esforço para apontar o objeto que possa satisfazer uma necessidade,
mostrando o caminho para satisfazer cada necessidade/desejo/vontade, mas para, além disso, dar
origem à necessidade/desejo/vontade ainda mais novos.
O domínio sobre a realidade da vida dos consumidores é condição necessária para que a
sociedade de consumidores funcione de modo adequado e se mantenha.
Segundo Bauman, um mar de hipocrisia se estendendo das crenças populares às realidades
de vida dos consumidores é condição sine qua non para que uma sociedade de consumidores
funcione apropriadamente29. Deve-se alienar o sujeito ao Outro do mercado de consumo. Suas
liberdades de agir sobre seus próprios impulsos devem ser preparadas. O anseio de liberdade é
dirigido contra formas e exigências particulares da civilização.
Sem a repetida frustração dos desejos, acredita-se que a demanda de consumo logo se
esgotaria e a economia voltada para o consumo ficaria sem combustível.
É o excesso da soma de promessas que neutraliza a frustração causada pelas imperfeições ou
defeitos de cada uma delas e permite que a acumulação de experiências frustrantes não chegue a
ponto de solapar a confiança na efetividade essencial dessa busca30.
Na realidade atual, tudo que economicamente “tem sentido” não necessita do apoio de
nenhum outro sentido – político, social ou humano.
As mudanças que significam racionalização e flexibilidade para o capital repercutem nas
extremidades receptoras como catastróficas. Passou-se a ter pouco espaço para a vida vivida como
um projeto de um planejamento de vida a longo prazo31.
Segundo Gilles Lipovetsky32, a modernidade, por intermédio da publicidade, os magazines
puseram em marcha um processo de democratização dos desejos, quando se transformou os locais
de venda em locais de sonhos, revolucionando a relação de consumo.
Não há o propósito de apenas vender mercadoria, o que ocorre é muito mais que isso,
estimula-se a necessidade de consumir, a excitar o gosto pelas novidades e pela moda por meio de
estratégias de sedução com as técnicas modernas do marketing.
O aparecimento das grandes marcas transformou profundamente a relação do consumidor.
Por uma marca apreciada, o cidadão sai da impessoalidade mostrando-se não uma superioridade
social, mas sua participação inteira e igual nos jogos da moda e do consumo.
29
Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008,
p. 108.
30
Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 65.
Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 50.
32
Lipovetsky, Gilles. A felicidade Paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução Maria Lucia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 31.
31
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Mais adiante, o processo pelos quais os produtos que antes eram de maior acesso a parte
mais elitizada da sociedade foi aperfeiçoado-se e pondo-se a disposição de todos os indivíduos.
Fez-se aparecer um poder de compra discricionário em camadas sociais cada vez mais
vastas, difundindo o crédito e permitindo que a maioria se libertasse da urgente necessidade estrita,
proporcionando a sociedade em geral, ter acesso a uma demanda material a um modo de vida
antigamente associados apenas às elites sociais33.
A sociedade dos desejos descrita por Lipovetsky, impregnada por um imaginário de
felicidade consumidora, sonhos de viagens e de modas, suavizaram-se os signos da cultura
cotidiana, despreocupando-se com o futuro, ocorrendo uma verdadeira mutação cultural.
E continua o autor dizendo que a economia consagrou-se com a mudança dos modelos e dos
estilos de vida, da moda, do crédito e da sedução publicitária provocando uma estimulação
desenfreada dos desejos, ou seja, a economia passou a depender do consumo, passando para a
sociedade do hiperconsumo34, quanto mais se consome, mais se quer consumir.
A única preocupação da globalização foi fazer a economia crescer para manter o capitalismo
e para isso, não se mediu os fins que poderia se chegar e assim, todos os países, que quisessem
acompanhar o crescimento econômico global, teriam que se adequar às exigências do mundo
capitalista, sem contanto, medir o resultado final da política implantada.
Os que se desenvolviam, o objetivo era uma expansão econômica forte, considerada
primordial, passando de uma economia centrada na oferta, a uma economia centrada na procura e
com isso o alvo foram as despesas de consumo das famílias que se tornaram o primeiro motor desse
crescimento.
Passamos a viver uma época da abundância indefinida das esferas das satisfações desejadas e
de uma incapacidade de eliminar os apetites de consumo, sendo toda saturação de uma necessidade
acompanhada imediatamente por novas procuras, numa conseqüente exigência de prestígio,
reconhecimento e integração social, uma verdadeira competição por status, uma sociedade adoecida
pelos acontecimentos globais, onde o próprio consumo passou a ser um sintoma.
De acordo com Debord 35, toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições
modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos.
33
Lipovetsky, Gilles. A felicidade Paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução Maria Lucia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 33.
34
Ibidem, p. 12.
35
Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa, Mobilis in Mobilis, 1991. A sociedade do espetáculo.
Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p.9.
23
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Modificou-se o modo de vida, os prazeres, os gostos, num curto intervalo de tempo e cada
vez mais sob a dependência do sistema mercantil. O tempo de “saborear” os prazeres da vida, se
alguma vez chegou a existir, há muito que deixou de fazer sentido.
Segundo Bauman36, o mercado agora atua como intermediário nas cansativas atividades de
estabelecer e cortar relações interpessoais, aproximar e separar pessoas conectá-las e desconecta-las,
datá-las e deletá-las do diretório de texto. Altera as relações humanas no trabalho e no lar, no
domínio público assim como nos mais íntimos domínios privados. Reorienta e distribui os destinos e
itinerários das buscas existenciais de modo que nenhuma delas possa evitar a passagem pelo
shopping centers.
O autor narra o viver como uma sucessão de problemas quase sempre solucionáveis, que, no
entanto precisam e podem ser resolvidos somente por meios que estão disponíveis apenas nas
prateleiras das lojas.
Oferecem atalhos tecnológicos vendidos em lojas para todos os tipos de objetivos que antes
podiam ser atingidos pelo uso de habilidades pessoais e da personalidade, da cooperação amigável e
de negociações conduzidas com base na camaradagem.
Fornecem engenhocas e serviços sem os quais, na ausência de habilidades sociais, da vida
em sociedade e da vida em comum, relacionar-se com outras pessoas e desenvolver um modus
convivendi duradouro seria, para um número crescente de pessoas, tarefa assustadora, além do seu
alcance, talvez até inalcançáveis.
O imperativo é mercantilizar todas as experiências em todo lugar, a toda hora e em qualquer
idade, diversificar a oferta adaptando-se às expectativas dos compradores, reduzir o ciclo de vida
dos produtos pela rapidez das inovações, segmentar os mercados, favorecer o crédito ao consumo,
fidelizar o cliente por práticas comerciais diferenciadas. O modo de vida, prazeres e gostos
mostram-se cada vez mais sob a dependência do sistema mercantil.
O tempo e o dinheiro consagrados aos lazeres estão em alta constante. As festas, os jogos, os
lazeres, as incitações ao prazer invadem o espaço da vida cotidiana. Em conseqüência dessa
modernidade, ficam evidentes os distúrbios comportamentais, aspectos que fazem da sociedade do
hiperconsumo, segundo Gilles Lipovetsky, a civilização da felicidade paradoxal.
A liberdade de agir sobre seus próprios impulsos teve que ser preparada. O anseio da
liberdade é dirigido pelas exigências particulares da civilização. O princípio do prazer esta reduzido
36
Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.
117.
24
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ao princípio da realidade. Hoje se valoriza o superficial. O indivíduo acaba por ter suas escolhas
condicionadas.
E é aí que surgem as carapaças vazias dos signos e enchem de significados; os signos (já
tornados significados) ganham ou perdem valor, que repercutem nas oscilações da procura. Somente
no decurso desse jogo que sinais são transformados em mercadorias. O processo de mercadorização
é simultaneamente o ato de nascimento do consumidor. Percorre-se por signos em busca de
significados e significados em busca de signos37.
Enquanto os signos permanecem livres de significados, a essência da livre escolha é o
esforço para abolir a própria escolha. Daí a perpétua não satisfação dos desejos de mais ampla
escolha dos consumidores. O ímpeto de consumo, exatamente como o impulso de liberdade, torna a
própria satisfação impossível.
O mal-estar da modernidade provém de uma espécie de segurança que tolera uma liberdade
pequena na busca da felicidade individual, ou seja, de uma espécie de liberdade de procura do prazer
que tolera uma segurança individual pequena demais.
O domínio da economia sobre a vida caracterizava-se pela notória degradação do ser em ter.
No consumismo chegou-se ao reinado do aparecer parece ser. A economia que era um meio
transformou-se em fim a que os homens se submetessem totalmente.
A sociedade moderna está hoje inteiramente desregulamentada e privatizada, animada e
dirigida pelo mercado consumidor38.
O período que se conviveu com a desregulação e desmantelamento dos dispositivos de bemestar também se conviveu um período cada vez maior da criminalidade e, desta forma, cruelmente
cresceu o medo, ansiedade, nervosismo, incerteza, raiva e fúria da maioria silenciosa de
consumidores ostensivamente bem sucedidos39.
Viver no estado do bem-estar não era concebido como uma caridade, mas como um direito
do cidadão40.
Viver numa vida líquida é viver precariamente, pois se vive em condições de incertezas
constantes, numa sucessão de reinícios e um caminho sem volta. Deve-se largar tudo em busca de
melhor qualidade de vida.
37
Zygmunt Bauman. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama;
Revisão técnica Luiz Carlos Fridman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 172.
38
Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 57.
39
Ibidem, p. 58.
40
Ibidem, 1998, p. 51.
25
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E conclui Bauman: “Não importa a intensidade com que se concentre no objeto do desejo, o
olho do consumidor não pode deixar de dar uma espiada no valor da mercadoria do sujeito que
deseja. A vida líquida significa constante auto-exame, autocrítica e autocensura, pois se alimenta da
insatisfação do eu consigo mesmo”41.
2 – DANOS COLATERAIS
Em conseqüência dos fatos, nos dias de hoje, os conceitos de “danos colaterais”, “baixas
colaterais” e “vítimas colaterais”, descrito por Bauman42, passaram a pertencer ao vocabulário dos
advogados e tem raízes pragmáticas nas defesas jurídicas, embora o fenômeno seja descrito como
“conseqüências imprevistas” das ações humanas.
O significado dessa expressão tem como fim desculpar ações prejudiciais, justificá-las,
eximi-las de punição com base na ausência de intencionalidade, ou seja, negar a responsabilidade
moral e jurídica, o que Bauman descreve com tanta precisão como causa maior do consumismo.
Para Bauman43 medo, exclusão social, produção do mal são elementos considerados como
“os efeitos colaterais” precisamente naquela globalização que os ideológicos do livre mercado
apresentam como o melhor dos mundos possíveis.
A questão controversa é se imprevisto significa imprevisto de prever e, para ser mais
específico, se não intencional quer dizer impossível de calcular e, portanto, impossível de evitar
intencionalmente ou apenas a indiferença e frieza de quem faz os cálculos e não se preocupa em
evitar44.
Há boas razões para suspeitar que invocar o argumento da falta de intencionalidade tem o
objetivo de negar ou isentar a cegueira ética, condicionada ou deliberada própria da sociedade
pautada pelo consumo.
Com certeza há “omissões maliciosas” na expressão “baixas colaterais” ou “danos
colaterais”. O que foi omitido de modo astucioso é o fato de que as baixas colaterais ou não foram
efeito da forma como se planejou e executou a explosão de consumo, já que os que a planejaram e
executaram não se importaram, particularmente, com a possibilidade dos danos ultrapassarem os
41
Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 19.
Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 149.
43
http://74.125.47.132/search?q=cache:8irBtHXo8TQJ:www.ecodebate.com.br/2008/10/0. A sociedade do medo
renuncia à liberdade, entrevista com Zygmunt Bauman.
44
Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 150.
42
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limites presumidos do alvo propriamente dito, atingindo a área cinzenta (já que a mantiveram fora
de seu foco) dos efeitos colaterais e das conseqüências imprevistas45.
O superendividamento bem explica essa questão levantada por Bauman, efeito do
planejamento da expansão capitalista, utilizando o consumo como meio.
E continua Bauman dizendo que algumas das vítimas podem de fato ser classificadas como
“colaterais”, mas não será fácil provar que a narrativa oficial e explícita não foi “econômica com a
verdade” que ela realmente está contando como insiste, toda a verdade e nada mais do que a verdade
sobre pensamentos e motivos aninhados nas mentes dos planejadores ou debatidos em suas reuniões.
Já era previsível o resultado que o consumismo poderia chegar. O planejamento e as técnicas
implantadas ao incentivo do consumo desenfreado tiveram como objetivo maior a expansão do
capital, sem contudo, um preparo da população à conscientização e educação para o consumo
consciente. Neste caso, falar em consumo consciente é uma forma de educar, informar, esclarecer o
consumidor quanto ao seu desejo na aquisição compulsiva dos bens oferecidos no mercado. Por isso
é habitual verificar como os consumidores atendem cada vez mais a demanda do mercado
capitalista. Aqui não poderíamos dizer que o mercado pode interferir na subjetividade do sujeito?
Daí Bauman dizer que o que é “latente”, não significa necessariamente “inconsciente” ou
“indesejado”; pode, em vez disso, significar “mantido em segredo” ou “acobertado”, deveríamos
abandonar a esperança de comprovar ou refutar uma ou outra interpretação para “além da dúvida
razoável”46.
Segundo Bauman, nas palavras de J. Livinsgstone:
... a forma mercadoria penetra e transforma dimensões da vida social até
então isentas de sua lógica até o ponto em que a própria subjetividade se
torna uma mercadoria a ser comprada e vendida no mercado, como a beleza,
a limpeza, a sinceridade e a autonomia47.
A difusão de padrões de consumo tão amplos a ponto de abraçar todos os aspectos e
atividades da vida pode ser um efeito colateral inesperado e não planejado e inoportuna
marketização dos processos da vida48.
45
Ibidem, p. 151.
Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 152.
47
Apud Eugène Enriquez, “L’idéal type de l’individu hipermoderne: l’individu pervers?”, in Nicole Aubert
(org.), L’individu hypermoderne, Erès, 2004, p.49.
48
Bauman, Zygmunt. Vida Liquida; tradução Carlos Alberto Medeiros: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.
116.
46
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Tais conseqüências prejudiciais afetam os valores morais de um indivíduo e
conseqüentemente um efeito secundário dos equívocos e descasos na própria maneira pela quais as
instituições podem atuar para permanecerem viáveis.
Em relação aos valores morais, Hans Jonas49 diz que durante a maior parte da historia
humana, o impulso moral não estava repleto de perigosos extremos pela simples razão de que as
conseqüências dos efeitos humanos eram igualmente limitadas. O que acontece é o crescimento do
possível encadeamento das conseqüências dos atos humanos, não esta acompanhado de uma
expressão semelhante da capacidade moral humana. O que podemos fazer agora pode ter efeitos em
distantes gerações. Efeitos tão profundos e radicais quanto imprevisíveis, que transcendem o poder
da imaginação humana sempre limitada pelo tempo e pelo espaço, e moralmente incontroláveis,
capazes de avançar muito além das questões que a capacidade moral humana se habilitou a
enfrentar.
Bauman diz que é notoriamente difícil ou até mesmo impossível saber quais feitos da
tecnociencia são ou quais não são compatíveis com a permanecia da genuidade vida humana pelo
menos antes que um dano, frequentemente irreparável, tenha sido feito.
Ao contrario disso, impera hoje, uma sociedade em que há uma submissão alienante ao
império da mídia, que dita o que o sujeito deve desejar consumir. A publicidade especializou-se em
mostrar imagens de desejo, beleza, vida mais fácil e objetos duradouros que tentam saciar a
voracidade do homem moderno.
A atividade de consumir tornou-se uma espécie de padrão ou modelo para a maneira como os
cidadãos das sociedades ocidentais contemporâneas passaram a encarar todas as suas atividades.
Cada vez mais áreas da sociedade são assimiladas por um “modelo de consumo”, uma
espécie de filosofia-padrão de toda a vida moderna. Deveria se evitar que os padrões de vida se
congelem em rotinas e tradições.
O consumismo atua para manter a reversão emocional do trabalho e da família. Expostos a
um bombardeio contínuo de anúncios, graças a uma média diária de três horas de televisão – metade
de todo o seu tempo lazer – os trabalhadores são persuadidos a “precisar” de mais coisas. Para
comprar aquilo de que agora necessitam, precisam de dinheiro. Para ganhar dinheiro, aumentam sua
jornada de trabalho. Estando fora de casa por tantas horas, compensam sua ausência do lar com
presentes que custam dinheiro, materializando inclusive o amor.
49
Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 70.
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Ocupados em ganhar mais dinheiro em função de coisas de que crêem precisar para serem
felizes, homens e mulheres têm menos tempo para a empatia mútua e para relações intensas. E,
ainda menos, para resolver seus mútuos desentendimentos e discordâncias. Isso aciona outro círculo
vicioso: quanto mais obtêm êxito em “materializar” a relação amorosa (como o fluxo contínuo de
mensagens publicitárias os estimula a fazer), menores são as oportunidades para se tentar o
entendimento. Os membros da família são mesmo tentados a evitar o confronto.
A atual sociedade admite seus membros primeiramente como consumidores; só de maneira
secundária, e em parte, os aceita como produtores.
Para atingir os padrões de normalidade, ser reconhecido como um membro pleno, correto e
adequado da sociedade, é preciso reagir pronta e efetivamente às tentações do mercado de consumo,
contribuir com regularidade para a “demanda da oferta”, mesmo em tempos de reviravolta ou
estagnação econômica deve-se ser parte da “recuperação conduzida pelo consumidor”.
Na prática, as consequências das ações humanas repercutem como uma forca cega do que
um modelo de comportamento racional.
A força do mercado esta cada vez mais desregulamentada, isenta de todo controle político
eficaz e guiada exclusivamente pelas pressões da competitividade, efeito globalmente desastrosos a
longo prazo.
A moral é sempre representada na reunião moral do eu com o Outro. Isso deixa à parte a
maioria das coisas que preenchem a vida diária de todo ser humano: a busca de sobrevivência e
auto-engrandecimento, a consideração racional de fins e meios, a avaliação de ganhos e perdas, a
procura do prazer, o poder e a política50.
Numa sociedade moderna, acentuadamente desigual e devotada à promoção da igualdade
como um valor supremo, a essência da justiça permanecera eternamente um objeto de controvérsia.
A justiça como redenção, recuperação de perdas, reparação do dano, compensação pelos
males sofridos que corrija a distorção causada pelo ato da injustiça.
Para Bauman a justiça não resulta da ação normal das injustiças. Ela vem do lado de fora,
aparece como um princípio externo à história, surge das “teorias da justiça” que são forjadas no
decurso de lutas sociais, em que as idéias morais expressam as necessidades e uma sociedade. A
justiça surge como um julgamento pronunciado sobre a história. Humano é o mundo em que é
possível julgar a história – o mundo do “racionalismo” 51.
50
51
Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 62.
Ibidem, p. 64.
29
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Sem a ordem da justiça não haveria limites para a minha responsabilidade, assim, a
coabitação com Outros, como cidadãos generalizados, não seria possível.
A justiça requer o estabelecimento do Estado. Nisso reside à necessidade da redução da
singularidade humana à particularidade de um indivíduo humano, à condição de cidadão. Essa
última particularidade reduz, empobrece, dissolve, dilui o esplendor da singularidade eticamente
formada, mas sem essa singularidade já eticamente apreendida ela própria seria inconcebível, jamais
se consumaria52.
O Estado Liberal, assentado sobre o princípio do direito humano é implementação e evidente
manifestação dessa contradição. Sua função é nada menos que limitar a misericórdia original de que
a justiça se originou.
O princípio de realidade, hoje, tem de se defender no tribunal de justiça onde o princípio de
prazer é o juiz que a está presidindo.
Pouco se faz para aumentar a percepção do mundo como justo, ao contrário, os índices de
bem-estar e qualidade de vida apontaram em direção a desigualdade, com um rápido enriquecimento
de um lado e o ofensivo empobrecimento do outro.
Enquanto os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, os ricos
desfrutam de um elevado grau de liberdade da escolha pessoal, reagindo viva e alegremente ao
crescente leque de atraentes ofertas do mercado.
É fácil demais redefinir aqueles que não reagem de maneira esperada por parte dos
consumidores adequados, seduzíveis, como pessoas inaptas para fazer bom uso da sua liberdade de
escolha, pessoas que são, em última análise, inaptas para serem livres.
3 - A VISÃO DA POBREZA NA SOCIEDADE DE CONSUMIDORES
Este ítem do capítulo tem por objetivo mostrar como é visto a questão da pobreza na
sociedade de consumidores.
Não podemos ser “pobres”, mas “eles” movem a economia, correspondendo grande parte da
camada social que impulsiona o consumismo.
A criminalidade cada vez maior, não é um produto de mau funcionamento ou negligência,
muito menos de fatores externos à própria sociedade é, em vez disso, o próprio produto da sociedade
52
Ibidem, p. 66.
30
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de consumidores. Quanto mais elevada à procura do consumidor mais a sociedade de consumidores
é segura e próspera.
Assim, é ampla a lacuna entre os que desejam e os que podem satisfazer os seus desejos ou
entre os que foram seduzidos e passam a agir de modo como essa condição os levou a agir e os que
foram seduzidos, mas se mostram impossibilitados de agir do modo como se espera agirem os
seduzidos53.
Os impulsos sedutores, para serem eficazes, devem ser transmitidos em todas as direções e
dirigidos indiscriminadamente a todos aqueles que os ouvirão.
No entanto, existem mais aqueles que podem ouvir do que daqueles que podem reagir do
modo como a mensagem sedutora tinha em mira fazer.
Os que não podem reagir em conformidade com os desejos induzidos dessa forma são
diariamente regalados com o deslumbrante espetáculo dos que podem fazê-lo.
O consumo abundante é lhes dito e mostrado; é a marca do sucesso e a estrada que conduz
diretamente ao aplauso público e à fama.
Eles também aprendem que possuir e consumir determinados objetos e adotar certos estilos
de vida é a condição necessária para a felicidade, talvez até para a dignidade humana.
A vida vivida dessa forma torna-se um jogo onde os jogadores incapazes devem ser mantidos
fora do jogo, pois é um suplemento indispensável da integração mediante sedução, numa sociedade
de consumidores guiados pelo mercado.
Esses “excluídos” são definidos como “classes de criminosos” e, desse modo, as prisões
agora, completa e verdadeiramente, fazem às vezes das definhantes instituições do bem-estar54.
Mesmo diante da colocação feita por Bauman, nos atuais dias são eles grande parte da
camada social que consome em excesso e que hoje tem facilidade de acesso a aquisição de bens e
consumo e também, o adimplemento de suas obrigações, contribuindo para o giro do mercado.
Que a questão da pobreza refletiu, através do mercado consumista na criminalidade, a causa
pode ser retirada de fatores condicionadores a aquisição dos bens, onde aqueles que podem comprar
(ter) podem ser alguma coisa e os que não podem ficam “discriminados” pelos grupos sociais.
Bauman55 coloca em O mal-estar na pós-modernidade, que a crescente magnitude do
comportamento classificado como criminoso não é um obstáculo no caminho para a sociedade
consumista plenamente desenvolvida e universal, é seu natural acompanhamento e assim
53
54
55
Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 55.
Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998, p. 57
Ibidem.
31
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reconhecidamente, os “excluídos do jogo” – consumidores falhos – são exatamente a encarnação
dos “demônios interiores” peculiares à vida do consumidor.
Os pobres de hoje tem uma infinidade de acesso ao consumo. É fácil perceber, ao caminhar
pelas cidades, como o mercado de consumo convida o indivíduo sem ao menos saber suas reais
condições pessoais de adimplir com suas obrigações assumidas.
Atualmente a acessibilidade esta em escalas cada vez maior o que denota mais uma era de
evolução do consumismo. Tempos em tempos, novas técnicas são mirabulosamente inventadas para
que a economia não pare de girar e que gire pelo maior número de pessoas, independe da condição
social, os “pobres” são grande parte da população que atende a demanda do consumismo.
Não importa o adimplemento das obrigações, a escala de consumo é maior dando
oportunidade de acesso a eles, incluindo-os no modelo do capitalismo, pois também lhes foi
permitido um acesso de ter para ser.
Se o “pobre” de hoje fosse considerado problema, o sistema capitalista não os diferenciaria,
pois a esses também são dado o acesso ao consumo e de forma mais acessível e facilitado que
outrora. Por exemplo, é possível notar a acessibilidade ao crédito, sem comprovação de renda! Isto é
um fato que se estende até aos “pobres”, que ficam atraídos pela facilitação de promessas que o
mercado capitalista oferece. E como colocar a influência desse mercado sobre a subjetividade do
sujeito, face ao seu desejo? Qualquer sujeito tem condição de discernir seus limites no consumo? Há
consciência de sua responsabilização? Cada sujeito tem sua própria subjetividade, estrutura,
constituição. No capítulo que abordarmos sobre a psicanálise poderemos verificar essas respostas
mostrando como um sujeito pode responder as demandas do mercado e aí chegarmos ao
supereendividamento.
Quanto maior a demanda de consumo, mais segura e próspera a sociedade de consumo, mais
larga e profunda se tornará a lacuna entre os que desejam e podem satisfazer seus desejos e os que
foram seduzidos de forma adequada, mas são incapazes de agir da forma como se espera que ajam,
mas hoje a realidade é outra, pois os “pobres” são também consumidores em potencial. As técnicas
para levá-los ao consumo tem sido eficaz, com o acesso facilitado.
A interferência da sociedade de consumo influência toda a vida, a mais íntima do indivíduo,
quando, por exemplo, faz promoção da novidade e o rebaixamento do rotineiro.
Os mercados de consumo superam-se em desmontar o já existente e se apropriar
antecipadamente da implantação e fixação de outras, exceto pelo breve intervalo de tempo
necessário para esvaziar os depósitos e se livrar dos implementos destinados a servi-los.
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O mesmo mercado, contudo, alcança efeito ainda mais profundo: para os membros da
sociedade de consumidores treinados de maneira adequada, toda e qualquer rotina e tudo que se
associe a um comportamento rotineiro (monotonia, repetição) torna-se insustentável – na verdade,
intolerável.
O “tédio”, a ausência ou mesmo interrupção temporária do fluxo perpétuo de novidades
excitantes, que atraem a atenção, transforma-se num espantalho odiado e temido pela sociedade de
consumo.
Para ser eficaz, a tentação de consumir, e de consumir mais, deve ser transmitida em todas as
direções e dirigida indiscriminadamente a todos que se disponha a ouvir, inclusive os “pobres”.
No entanto, o número de pessoas capazes de ouvir é maior do que o daquelas que podem
reagir da maneira pretendida pela mensagem sedutora. Daí indagar: por que algumas pessoas
escapariam dessa sedução? O que faria esta diferença? A psicanálise pode explicar...
Os que não podem agir de acordo com os desejos induzidos são apresentados todos os dias
ao olhar deslumbrado daqueles que podem.
O consumo excessivo os apreende, é sinal de sucesso, uma auto-estrada que conduz ao
aplauso público e à fama.
Eles também aprendem que possuir e consumir certos objetos e praticar determinados estilos
de vida é a condição necessária para a felicidade.
E, uma vez, que “estar feliz” transformou-se na marca da decência e na garantia do respeito
humano, isso também tende a se tornar condição necessária para a dignidade e a auto-estima.
“Estar entediado”, além de fazer a pessoa sentir-se desconfortável, está se transformando
num estigma vergonhoso, testemunho de negligência ou derrota que pode levar a um estado de
depressão aguda.
Se o privilégio de "nunca estar entediado" é a medida de uma vida de sucesso, de felicidade e
mesmo de decência humana e se a intensa atividade de consumo é a rota principal, a estrada régia
que conduz à vitória sobre o tédio, então se tirou à tampa dos desejos humanos; nenhum volume de
aquisições satisfatórias e sensações atraentes podem trazer satisfação da maneira um dia prometida
por "manter-se de acordo com os padrões". Parece não haver fim para o que um ser humano pode
desejar56.
Para tornar as perspectivas ainda mais sombrias, a crescente incidência de condutas
classificadas como criminosas não são obstáculos no caminho para uma sociedade consumista
56
Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 166.
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plenamente desenvolvida e totalmente abrangente. É, ao contrário, sua acompanhante e pré-requisito
natural, talvez até indispensável. Isso por uma série de razões, mas é possível que a principal delas
seja o fato de que os que ficaram fora do jogo, os consumidores falhos, cujos recursos não estão à
altura de seus desejos, têm pouca ou nenhuma chance de ganhar, se jogarem pelas regras oficiais.
Sem segurança coletiva, dificilmente haverá muito estímulo ao engajamento político, e com
certeza, nenhum estimulo à participação no ritual democrático das eleições, já que é provável que a
salvação não venha de um Estado político que não seja, e se recuse a ser, um Estado social57.
Sem direitos sociais para todos um número grande e provavelmente crescente de pessoas vai
achar que seus direitos políticos são inúteis ou indignos de atenção.
Se os direitos políticos são necessários para estabelecer os direitos sociais, estes são
indispensáveis para manter os direitos políticos em funcionamento. Os dois tipos de direito precisam
um do outro para que sobrevivam.
Todas essas verdades foram proclamadas no programa social democrata Sueco de 2004:
Todo mundo é frágil em algum ponto do tempo. Precisamos uns dos outros. Vivemos nossas vidas
no aqui e agora, juntamente com outros, envolvidos de forma involuntária pelas mudanças que
ocorrem. Seremos mais ricos se todos puderem participar e ninguém for deixado de fora. Seremos
todos mais fortes se houver segurança para todo mundo e não apenas para uns poucos58.
O significado do Estado social na sociedade de produtores é defender a sociedade dos “danos
colaterais” que o princípio orientador da vida social iria causar se não fosse monitorado, controlado
e restringido. Seu propósito é proteger a sociedade da multiplicação das fileiras de “vítimas
colaterais” do consumismo: os excluídos, a subclasse. Sua tarefa é evitar a erosão da solidariedade
humana e o desaparecimento dos sentimentos de responsabilidade ética59.
A incriminação parece estar emergindo como o principal substituto da sociedade de consumo
para o rápido desaparecimento dos dispositivos do estado do bem-estar.
Não há salvação sem progresso do consumo, ainda que ele fosse redefinido por novos
critérios; não há esperança de uma vida melhor se não for rediscutida a satisfação completa e
imediata, se nos ativermos apenas ao fetichismo do crescimento das necessidades comercializadas60.
A seguir, no segundo capítulo, trataremos destas questões pelo ângulo do Direito.
57
Ibidem, p. 178.
Bauman, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 179.
59
Ibidem, p. 181.
60
Lipovetsky, Gilles. A Felicidade Paradoxal: Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo, tradução Maria Lucia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 20.
58
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CAPITULO II - DIREITO & RELAÇÃO DE CONSUMO
A ciência do Direito foi base originária que despertou interesse no estudo do
superendividamento. Necessitávamos compreender melhor porque um sujeito chega a este estado de
insolvência, a ponto de ir ao Judiciário pedir socorro por seus problemas pessoais ou então ser
“vítima” de cobranças judiciais por dívidas não pagas.
O estado desses indivíduos é alarmante. O fato é comum. Esse tipo de demanda parece não
chegar ao fim, ao contrário, a cada dia que passa há um fato novo nos Tribunais para ser julgado.
Desta forma, neste capítulo descreveremos o que o Judiciário vem enfrentando para dar auxílio a um
sujeito superendividado e traremos estudos realizados por pesquisadores sobre o tema.
1 – O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO
O superendividamento do consumidor é, na atualidade, um tema instigante e socialmente
relevante, no que diz respeito à área do Direito que cuida da proteção do consumidor. Trata-se de
um fenômeno social que assola, por fatores diversos, sociedades ocidentais, que se caracterizam
como sociedade de consumo massificado.
O fenômeno é tão antigo quanto o próprio Direito. Desde que o homem começou a fazer
trocas, sempre existiram aqueles que não conseguiam cumprir com o prometido. Diante de tal
situação, o tratamento dispensado a esses devedores viria com o tempo e de uma sociedade para
outra. A definição do fenômeno caracteriza-se pela impossibilidade global do devedor pessoa-física,
consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo.
Os juízes analisam a questão da boa-fé utilizando indicadores para caracterizar se o
consumidor agiu ou não conforme a boa-fé como, por exemplo: o número de empréstimos, o valor, a
destinação, os motivos que os conduziram ao endividamento, o nível intelectual que impede a
ingenuidade e torna inescusável a execução, o perfil sócio-profissional, ou seja, causas externas são
analisadas pelo juiz para analisar a boa-fé. A questão do consumidor superendividado é tratada
como um problema pessoal.
Geraldo de Faria61, para falar do fenômeno, atribui a inadimplência do consumidor a causas
internas e externas. Para questões internas, a Psicanálise poderia nos auxiliar, todavia, quando o
61
Marques, Claudia Lima; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:
Superendividamento e Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. Artigo de Geraldo de Faria Martins da
Costa: Superendividamento, solidariedade e boa-fé. Estudo sobre direito brasileiro e Superendividamento, p. 248.
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autor se refere as causas externas como, por exemplo, os argumentos publicitários, os aparatos do
marketing que impulsionam ao consumo, verá pontos em que a Psicanálise irá discordar, pois irá
ressaltar a questão da responsabilização do sujeito que é de extrema relevância, a alienação do
sujeito ao mercado de consumo que consome sua subjetividade, que o petrifica, necessitando de sua
responsabilização para a separação dessa alienação.
Sabemos que a função do Direito é remediar questões relevantes como os casos de
superendividamento. Com base na boa-fé, observando os indicadores que os levam a se
superendividar, o Direito responde judicialmente à questão apresentada pelo cidadão, que tem
direito de exercer sua cidadania e sua dignidade enquanto pessoa.
Com base na doutrina européia, o superendividamento é classificado como ativo e passivo. O
primeiro ocorre quando o consumidor abusa do crédito e consome demasiadamente, acima das
possibilidades de seu orçamento, ainda que, mesmo em condições normais, não tenha como fazer
face às dívidas assumidas. Já no passivo a causa não é o abuso ou a má administração do orçamento
familiar, mas um “acidente da vida”. Efetivamente, tanto os acidentes da vida – desemprego,
redução de salário, divórcio, doenças, acidentes, mortes, nascimentos de filhos, etc. – e o abuso de
crédito podem criar uma crise de insolvência para os indivíduos e a família, levando à
impossibilidade de fazer frente ao conjunto de seus débitos atuais e futuros, a impossibilidade de
pagamento de boa-fé, o que a doutrina corretamente denominou de superendividado.
O superendividamento é um fato social e com efeitos em políticas econômicas e monetárias.
A necessidade de se lutar contra o superendividamento, esse grave fator de exclusão social, é
reconhecida mundialmente. O tratamento do consumidor superendividado é um imperativo de luta
contra a exclusão social que propicia.
Esse fenômeno não se deve a uma única causa, já que o devedor deve fazer frente a um
conjunto de obrigações derivadas de aquisição de bens e serviços de primeira necessidade: créditos
hipotecários, carros, móveis, entre outros, inclusive decorrentes do abuso e uso até mesmo incorreto
do cartão de crédito. Somam-se ainda as causas não-econômicas, tais como falta de informação e
educação dos consumidores, rupturas familiares, acidentes ou enfermidades crônicas, etc.
2 – CONSTITUIÇÃO FEDERAL E LEGISLAÇÕES INFRACONSTITUCIONAIS
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Veremos neste item legislações referentes à proteção do consumidor. Na Constituição
Federal temos princípios e normas básicas para a proteção de um sujeito face ao mercado de
consumo e também uma norma que deu embasamento para se criar a lei que disciplina hoje as
relações de consumo: o Código de Defesa do Consumidor. Descreveremos algumas legislações
infraconstitucionais que embasam o tema como: Código Civil, Código de Processo Civil, o próprio
Código de Defesa do Consumidor, a Lei da Usura, Código de Auto-Regulamentação Publicitária e
Jurisprudências.
Com isso, visamos mostrar algumas legislações que o Judiciário se baseia para decidir
questões relacionadas à defesa de consumidores superendividados. Acrescentamos também no
trabalho, pesquisas realizadas por estudiosos do tema.
2.1 – A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A Constituição é um documento histórico político e ideológico que reflete o andamento e o
pensamento jurídico da humanidade. No Estado Democrático de Direito, é uma lei suprema e um
estatuto jurídico fundamental da comunidade, caracterizando-se pela imperatividade do comando,
que abriga todas as pessoas e entes na sociedade, permitindo o desenvolvimento livre e pleno da
personalidade do cidadão.
No exercício de seus direitos e no desfrute de suas liberdades, todos os cidadãos estarão
sempre sujeitos às limitações estabelecidas pela lei com a única finalidade de assegurar o respeito
aos direitos e liberdade dos demais.
Diante dos fatores sociais, o Direito aborda a questão da liberdade diante da dignidade da
pessoa humana reconhecido pelo Estado Democrático de Direito, com proteção legal pela
Constituição Federal.
A primeira exigência da civilização é a da justiça, garantia de que uma lei, uma vez citada,
não será violada em favor de um indivíduo. Freud já dizia que a liberdade do indivíduo não constitui
um dom da civilização, ela foi maior antes da existência de qualquer civilização. O desenvolvimento
da civilização impõe restrições à liberdade e a justiça exige que ninguém fuja a essa restrição62.
Grande parte das lutas da humanidade centralizou-se em torno da tarefa única de encontrar
uma acomodação conveniente que traga a felicidade. Mas, segundo Freud é impossível desprezar até
que ponto a civilização é constituída sobre a renúncia à pulsão. Essa “frustração cultural” domina o
62
Freud, Sigmund. O mal estar na civilização (1856-1939): Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu: Rio de
Janeiro. Imago Ed., 1997, p. 50.
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grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos e é a causa da hostilidade contra
qual toda civilização tem que lutar63.
A dignidade é algo absoluto e pertence a essência, assim já dizia São Tomás de Aquino. É o
reconhecimento no homem de sua própria dignidade, fazendo desprezar eticamente condutas
incompatíveis com tal condição. É a dignidade humana um atributo da pessoa não podendo ser
medida por um único fator, pois nela intervém a combinação de aspecto moral, econômico, sociais e
políticos, entre outros.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana obriga ao inafastável compromisso com o
absoluto e o irrestrito respeito a identidade e a integridade de todo ser humano e serve como
fundamento e princípio informadores que legitimam as manipulações sobre a vida humana,
respeitando em sua autonomia e vulnerabilidade.
Um dos fins do Estado é propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas. A
dignidade pode ser por diversas maneiras violada, como por exemplo, através da qualidade de vida
desumana. Enquanto ao homem cabe dar sentido a sua própria vida, ao Estado cabe facilitar-lhe o
exercício da liberdade.
Liberdade e dignidade ascendem ao patamar dos direitos fundamentais, pois dizer que a
pessoa humana, como titular de direitos, o direito a dignidade significa que ao ser humano
corresponde a condição de sujeito e não de objeto manipulável.
Entretanto, é necessário observar, que se o direito nos remete à “pessoa humana”, à sua
dignidade, ao cidadão. A contribuição da Psicanálise é trazer para que se considere também neste
quadro, as determinações do inconsciente, que subjaz a ética do desejo capaz de resistir às
imposições , mesmo que dos discursos dominantes.
Dentre os preceitos que regem a Constituição, destacaremos um importante fundamento
Constitucional de amparo ao cidadão que é o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, ligado aos
direitos e garantias fundamentais, sendo um importante objetivo da Constituição amparar a
sociedade, erradicando a pobreza, a marginalização e reduzindo as desigualdades sociais e regionais,
assuntos extremamente importantes para o trabalho.
Vejamos o artigo 1º da Constituição que se rege por princípios fundamentais:
Artigo 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamento:
63
Ibidem, p. 52.
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III – a dignidade da pessoa humana.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é formado por conteúdos, dentre eles os
direitos individuais e políticos, além dos direitos sociais, culturais e econômicos. Em todos os níveis
da vida social, do público ao privado, na atuação do Estado em geral, na economia e na vida
familiar, a dignidade da pessoa humana repete-se como valor fundamental e concretiza-se, dentre
outros aspectos, a assegurar o exercício dos direitos individuais e sociais64.
Destacamos o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana por ser inerente à personalidade
humana, pois todo ser humano tem dignidade só pelo fato de ser pessoa, daí teremos um contraponto
ao sujeito do desejo na psicanálise.
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente
na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão e o
respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto
jurídico deve assegurar, de modo que, excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício
dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as
pessoas enquanto seres humanos.
Cavalieri65 refere-se à violação da dignidade humana como um dano capaz de ser
indenizável, conforme segue:
Temos hoje o que pode ser chamado de direito subjetivo constitucional à
dignidade. Ao assim fazer, a Constituição deu ao dano moral uma nova
feição e maior dimensão, porque a dignidade humana nada mais é do que a
base de todos os valores morais, a essência de todos os direitos
personalíssimos. O direito à honra, à imagem, ao nome, à intimidade, a vida
privada ou a qualquer outro direito de personalidade estão englobados no
direito à dignidade, verdadeiro fundamento e essência de cada preceito
constitucional relativo aos direitos da pessoa humana.
O direito da personalidade, ligado diretamente ao cidadão, deve ser compreendido, segundo
Carlos Alberto Bittar66, como os próprios da pessoa em si ou originários, existentes por sua
natureza, como ente humano, com o nascimento e os referentes às suas projeções para o mundo
exterior, a pessoa como ente moral e social, ou seja, em seu relacionamento com a sociedade.
64
Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoa
humana, 2 Ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 195.
65
Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 5 Ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 243.
66
Bittar, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7 Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 10.
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O desrespeito a este princípio representa a superação da intolerância, da discriminação, da
exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua
liberdade de ser, pensar e criar.
Na passagem do século XIX para o século XX o homem era idealizado pelo liberalismo, cuja
única necessidade era a liberdade suficiente para assegurar uma vida digna para si próprio e para sua
família, o que não existiu 67. Com a lógica aleatória e impessoal do mercado capitalista passou-se a
negar aos indivíduos bens absolutamente fundamentais a despeito da liberdade garantida e do
empenho que se pudesse empregar para obter tais bens.
Barcelos desenvolveu um estudo, no qual nos inspiramos, sobre o Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana, em seu livro “A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais – O Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana” e trouxemos ponto importantes para este trabalho.
Para Barcellos68, a dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a
ser assegurado a todas as pessoas apenas por sua existência no mundo. Relaciona-se tanto com a
liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. A sociedade
contemporânea convive em um contingente humano que, embora dispondo de um arsenal de direitos
e garantias assegurados pelo Estado, simplesmente não tem como colher esses frutos da civilização.
A autora destacou a importância dos direitos sociais, dizendo concretizar o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana na esfera das condições materiais de existência do homem,
demonstrando a necessidade de ser promovida a ação estatal com o intuito de dar assistência aos
desamparados para a garantia da Dignidade da Pessoa Humana. Cabe ao Estado oferecer condições
mínimas para que as pessoas possam se desenvolver e tenham chances reais de assegurar por si
próprias níveis de sobrevivência razoavelmente compatíveis a dignidade humana.
Destacou a igualdade de oportunidades como garantia de aspecto material para a dignidade
da pessoa humana, onde não cabe ao Estado definir a vida e as escolhas dos indivíduos, mas
assegurar que todos partam de condições iniciais mínimas capazes de permitir que cada um alcance
seu voo, independente da autoridade pública69.
O propósito dos direitos da cidadania não é o de promover a igualdade, mas promover a
oportunidade. Não é o de evitar as desigualdades, mas o de evitar a exclusão de um universo de
oportunidades. Os direitos sociais não pretendem substituir os mercados por um padrão de
distribuição comum que defina as recompensas a atribuir a cada um. Ao contrário, visa evitar a
67
Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoa
humana, 2ª Ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 131.
68
Ibidem.
69
Ibidem, p. 208.
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exclusão do mercado. O resultado da posição de cada um na sociedade depende de sua ação
individual70.
A nossa Constituição Federal não inaugurou um Estado totalitário ou paternalista que
determine uma igualdade de resultados por todos, fixando e assegurando o padrão de vida final dos
indivíduos independentemente de sua ação pessoal. A assistência social aos desamparados é o
desdobramento da dignidade da pessoa humana, funcionando como uma espécie de rede de
segurança abaixo da qual ninguém teme cair.
Segundo Espada71 é necessário garantir que todos tenham acesso àqueles bens essenciais que
se considera constituírem as condições mínimas para que se possa agir como agente moral, agir
livremente ou fazer uso da liberdade (…) e é verdade que a igualdade de cidadania restringe as áreas
em que os mercados operam ao estabelecer um chão comum abaixo do qual ninguém deverá recear
cair. A cidadania social cria um estatuto comum a todos que não depende dos caprichos do mercado.
No entanto, este estatuto não pretende substituir os mercados por um padrão de distribuição comum
que defina as recompensas a atribuir a cada um. Visa tão só fornecer a todos bilhetes de ingresso no
mercado, ou seja, propõe-se a evitar a exclusão do mercado.
Conforme Barcellos, não se coaduna com a garantia Constitucional da dignidade da pessoa
humana que alguém precise passar fome ou dormir ao relento, seja qual for o motivo ou
circunstância que o levou à tal condição, mesmo que o Estado lhe tenha assegurado, de fato,
condições iniciais de educação e saúde.
Para a autora, a avaliação acerca da necessidade da assistência social aos desamparados
haverá de ser puramente objetiva. Abaixo de um determinado patamar, qualquer pessoa se
encontrará em um estado de indignidade material indiscutível, demandando alguma forma de
assistência. Esse patamar corresponde ao núcleo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que
restará violado se esse limite não for respeitado72.
Assim, a assistência social prestada a quem dela necessitar independe de contribuição. A
Constituição procura vincular ao Estado a finalidade geral de erradicar a pobreza, socorrendo aos
necessitados, de modo a evitar situação de indignidade e miséria total.
70
Ibidem, p. 209.
Espada, João Carlos, Direitos Sociais e Cidadania, 1999, p. 85-6.
72
Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoa
humana, 2 ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 210.
71
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A Constituição Federal agrega instrumentos específicos para atingir ao fim de que todos,
com o objetivo de evitar o estado de miserabilidade, criem-se condições para o trabalho,
viabilizando um mínimo de bem estar.
A assistência social pretende produzir um efeito no mundo dos fatos que é socorrer os
desamparados como último recurso para garantir condições materiais indispensáveis à dignidade
humana, evitando sua total deterioração.
Desta forma, a Constituição Federal protege o sujeito individualmente e indo além, a nível
social, prezando por uma sociedade justa e solidária, visando erradicar a pobreza, a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais, vide art. 3º, inciso III da Constituição, que também é
um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, visando dar aos cidadãos acesso
digno de subsistência e melhoria da qualidade de vida. Vejamos o que diz o artigo:
Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
III – erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais;
A pobreza é um elemento a ser levado em conta para análise do sistema jurídico nacional,
sempre visando encontrar alternativa de suplantá-la. Num mercado constituído de pessoas pobres, a
proteção deve ser bastante ampla. A erradicação da pobreza e a redução das igualdades é um
subprincípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Não é difícil saber o que é pobreza a partir de um determinado ponto. Não haverá dúvida de
que o efeito desejado pelo comando é, ao menos, de que não haja miseráveis, que pessoas não
passem fome, não durmam ao relento, nem sintam frio por falta de agasalho. Estas situações
certamente estão compreendidas no sentido expresso pobreza ainda que, nesse ponto, os meios de
realizar esse fim, já determinado, isto é, as condutas necessárias para atingí-lo possam ser bastante
diversificadas.
É natural que haja diferentes concepções do que significa a dignidade e de como ela pode ser
alcançada, entretanto, se a sociedade não for capaz de reconhecer a partir de que ponto as pessoas se
encontram em uma situação indigna. Isto é, se não houver consenso a respeito do conteúdo mínimo
de dignidade, estar-se-á diante de uma crise ética e moral de tais proporções que o Princípio da
dignidade da pessoa humana terá se transformado em uma fórmula totalmente vazia, um signo sem
significado correspondente. Se não é possível vislumbrar a indignidade em nenhuma situação, ou
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todos os indivíduos desfrutam de uma vida digna ou simplesmente não se conhece mais a noção de
dignidade73.
Para Barcellos, um quadro com essa aparência, pouco poderá fazer o Direito por uma
sociedade que tenha deixado de acreditar na igualdade de todo ser humano e em sua dignidade
essencial. Não haverá remédio para esse mal na farmacologia jurídica74.
Outro aspecto importante da Constituição é o Título que trata dos Direitos e Garantias
Fundamentais, direitos esses que nasceram para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela
Constituição, sem, contudo, desconhecer a subordinação do indivíduo ao Estado, como garantia de
que se opere dentro dos limites impostos pelo direito. Refere-se ao Princípio da Isonomia, igualdade
de todos. Vide o art. 5º – dos direitos e deveres individuais e coletivos:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros, residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos seguintes termos:
XXXII – O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.
O artigo 5º dita um rol de direitos e deveres que são assegurados ao cidadão, mas este artigo
tem como base o Princípio da Isonomia de dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais,
na medida de sua desigualdade. Como dizia Rui Barbosa75: “A democracia não é exatamente o
regime político que se caracteriza pela plena igualdade de todos perante a lei, mas sim pelo
tratamento desigual aos desiguais”. Essa fórmula é muito difícil de ser aplicada, na medida em que a
desigualdade não surge tão facilmente. Entretanto, devem-se seguir todos os esforços possíveis a fim
de obter a igualdade como resultado prático de seu mister.
Nota-se que neste artigo, no inciso XXXII, a Constituição passou a determinar a criação de
uma lei para a proteção do consumidor diante da realidade social. A passagem da sociedade
tradicional para a sociedade de massa, a Revolução Industrial, a globalização, ou seja, com todo esse
processo de crescimento econômico não havia legislação específica para atender às demandas das
questões ligadas ao consumo.
73
Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoa
humana, 2 Ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 229.
74
Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da Dignidade da Pessoa
humana, 2 Ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 229.
75
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Forense Universitária, Biblioteca Jurídica, 7 Ed., Revista e
Ampliada, 2001. p. 55.
43
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O título do artigo 170 da Constituição Federal abrange o tema da ordem econômica e
financeira e determina:
A ordem econômica, fundada na valoração do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
V – defesa do consumidor;
Mais uma vez, ao disciplinar sobre a ordem econômica e social, o legislador a fez
preocupando-se com a nova realidade da relação consumerista. O mercado de consumo aberto à
exploração não pertence ao explorador por mais que se fale em livre iniciativa. Isso decorre das
garantias constitucionais da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da construção
de uma sociedade livre, justa e solidária e da promoção do bem comum, tudo fundado no princípio
máximo da garantia da dignidade da pessoa humana.
Quando se fala em regime capitalista fundado na dignidade da pessoa humana, nos valores
sociais e na cidadania, o que está se pressupondo é que esse regime capitalista é fundado num
mercado, numa possibilidade de exploração econômica que vai gerar responsabilidade social,
porque da sociedade que se trata.
O artigo 18 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que irá impulsionar o Poder
Legislativo a criar o Código de Defesa do Consumidor, determinou que: “O Congresso Nacional,
dentro de 120 (cento e vinte) dias da promulgação da Constituição, elaborará o Código de Defesa do
Consumidor”.
Apenas em 11 de setembro de 1990 foi elaborada, pelo Poder Legislativo e sancionada pelo
Presidente da República, a Lei n. 8.078, conhecida como o Código de Defesa do Consumidor,
entrando em vigor em 11 de março de 1991. A partir daí, todas as relações que passassem a envolver
consumo necessitariam de se submeter às normas expressas nessa lei.
2.2 – DAS LEGISLAÇÕES INFRACONSTITUCIONAIS:
Até então, os casos de superendividamento eram tratados com base nas legislações
infraconstitucionais. Silvio Javier Battello76 fez uma análise evolutiva do fato dando título ao seu
trabalho (in)justiça dos endividados brasileiros.
apud Marques, Cláudia Lima, Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:
Superendividamento e Crédito. Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 211.
76
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O autor descreveu o desenvolvimento histórico do tratamento dado ao endividado civil em
tudo aquilo que seja relevante para o estudo da realidade brasileira. Neste trabalho foi analisado o
tema a partir do Código Civil de 1916, que teve como base a tradição privatista, absolutamente
inadequada para entender a sociedade de massa do século XX. As bases jurídicas existentes estão
ligadas ao liberalismo econômico e às grandes codificações que se iniciaram com o Código de
Napoleão de 1804.
Ainda no século XIX, a insuficiência legislativa brasileira em matéria civil e especificamente
para a insolvência do devedor não comerciante era notória. Ao contrair uma dívida, o devedor
assume para si uma responsabilidade, devidamente respaldada pela potência patrimonial de seus
bens móveis e imóveis. Enquanto o universo patrimonial responder pelas obrigações assumidas, não
há que se falar em insolvência civil. Todavia, ressalte-se que referido patrimônio deve ser
necessariamente, livre de qualquer constrição judicial e não afeto ao instituto da impenhorabilidade.
Nesse passo relevante transcrevemos a lição de Humberto Theodoro Júnior (1998):
... pouco importa, então, a existência de um patrimônio vultoso e até mesmo
superior às dívidas, se os bens que os compõem são impenhoráveis pela sua
própria condição jurídica (Código de Processo Civil, artigo 649). Neste caso,
a existência de bens impenhoráveis ou gravados coloca o devedor em estado
de insolvabilidade, pois de nada adiantam ao credor quirografário77.
Somente em 1973, com o Código de Processo Civil, os endividados passaram a ter um
tratamento, pelo menos em parte, aos do comerciante, pois se instituiu no Título IV, Livro II, a
“execução por quantia certa contra devedor insolvente”, permitindo, assim a execução de uma
verdadeira falência civil, ficando assim pela primeira vez superado o tratamento discriminatório
dado aos não-comerciantes.
Para o Direito, diversas foram às causas para o superendividamento, uma delas oriundas dos
excessivos juros contratuais. A usura é vício ocorrente em todos os contratos comutativos, sempre
que, pelo rompimento da comutatividade, houver o enriquecimento de uma parte à custa do
empobrecimento da outra.
Neste sentido temos o ensinamento do jurista Orlando Gomes78:
A usura, sob todas as suas formas, está proibida. É o mútuo um dos contratos
mais propícios a essa prática, hoje punível. Até certo ponto vigorou o
princípio da liberdade da estipulação dos juros. Os abusos cometidos
77
Theodoro Júnior, Humberto. A Insolvência Civil: Execução por quantia certa contra devedor insolvente. 4ª
Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998. p 46.
78
Gomes, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 15ª ed., 1995, p. 321.
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inspiraram a política legislativa de repressão à usura, através de medidas,
dentre as quais se salientam a limitação das taxas dos juros convencionados
e a proibição do anatocismo ou capitalização dos juros. Funda-se a
condenação à usura no interesse social de proibir que se prevaleça alguém
das circunstâncias fortuitas para tirar proveito anormal. O abuso traz como
consequência a lesão, que é o prejuízo pecuniário nas relações jurídicas, de
uma das partes em proveito da outra parte.
A proteção da lesão está prevista na Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXXV: “A lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O Decreto nº. 22.626 de
07.04.33 chamado “Lei da Usura”. É notório que o anatocismo é uma realidade ainda nos dias de
hoje e este fator pode ser gerador de parcela de consumidores superendividados.
O Código Civil de 1916, mesmo entrando em vigor no século XX, obedece às ideias do
século anterior. Os pressupostos do pensamento liberal aparecem no sistema jurídico codificado
como foi estabelecido no Código Civil de 1916. O que destacou, dentre os vários pontos de
influência do liberalismo foi a chamada autonomia da vontade, a liberdade de contratar e fixar
cláusulas, o pacta sunt servanda, etc.
A nova Lei de Recuperação de Empresas e de Falência de 2005 não tratou do assunto. A
deficiência legislativa para a realidade social brasileira é preocupante.
Entretanto, os operadores do direito têm buscado no Código de Defesa do Consumidor certo
amparo ao hipossuficiente, assim como na doutrina e na jurisprudência. Desta forma, faz-se
necessário compreender o que é este Código e as bases que podem proteger os consumidores
superendividados.
Antes de percorremos as normas do Código de Defesa do Consumidor situaremos como o
direito vem enfrentando o fenômeno em massa do superendividamento.
3 – O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
O Código de Defesa do Consumidor chegou muito atrasado para a defesa do consumidor.
Passou-se um século inteiro aplicando as relações de consumo o Código Civil, lei que entrou em
vigor em 1917, fundada na tradição do direito civil europeu do século anterior. No entanto, durante
praticamente todo século XX no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para
resolver os problemas de consumo que surgiam e, por isso, o fizemos de forma equivocada.
A partir do período Pós-Revolução Industrial, com o crescimento populacional das
metrópoles, gerou-se aumento das demandas de produtos e, portanto, uma possibilidade de aumento
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da oferta. A indústria, em geral, passou a querer produzir mais para vender para mais pessoas.
Passou-se a pensar num modelo capaz de entregar, para um público maior, mais produtos e serviços.
Para isso, criou-se a chamada produção em série, “standartização” da produção, a homogeneização
da produção. Essa produção possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme
da oferta, atingindo, então, uma camada mais larga de pessoas. Este modelo de produção é um
modelo que deu certo, veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX. A partir da
Primeira Guerra Mundial teve um incremento e na Segunda Guerra Mundial se solidificou com a
sociedade de massa.
Nota-se que em 1890, nos EUA, país que domina o planeta do ponto de vista do capitalismo
contemporâneo, a proteção ao consumidor havia começado com a Lei Shermann, que é a Lei
Antitruste Americana, isso há um século antes do nosso Código de Defesa do Consumidor, numa
sociedade que se construía como uma sociedade capitalista de massa, já se tinha uma lei de proteção
ao consumidor.
O Código de proteção ao Consumidor Brasileiro trouxe um regramento de alta proteção ao
consumidor na sociedade capitalista contemporânea, com suas regras específicas contratuais,
direitos básicos do consumidor, a qualidade do produto ou serviço, da prevenção e da reparação dos
danos, da responsabilidade pelo fato ou vício do produto ou serviço, das práticas comerciais, a
oferta, a publicidade, das práticas abusivas, da proteção contratual, dos contratos de adesão, entre
outras.
Suas normas, de ordem pública, isto é, a tutela desses direitos, constituem preceito
obrigatório, de sorte que o juiz deve apreciar de ofício qualquer questão relativa à relação de
consumo, independente do requerimento das partes, ou seja, prevalecerá sobre todas as demais
normas anteriores que com ela colidirem. Tal ocorre em razão do caráter social da norma, alicerçada
a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil – a dignidade da pessoa humana.
No Brasil, antes do Código de Defesa do Consumidor, havia um esforço da jurisprudência no
sentido de mitigar o rigor do nosso Código Civil e o apego desconhecido da doutrina a certos
princípios que, diante da sociedade de produção e consumo em massa, gritavam por reforma.
Entretanto, com a sua entrada no ordenamento jurídico, os operadores do direito têm buscado nesta
lei, o amparo ao superendividado, assim como na doutrina e na jurisprudência.
O Código de Defesa do Consumidor iniciou seu artigo definindo os sujeitos da relação
processual – consumidor e fornecedor. Em conformidade ao tema do trabalho superendividamento,
mencionaremos quem é o consumidor direto, mostrando apenas que há uma extensão neste conceito,
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mas citaremos apenas o descrito no artigo 2: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que
adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.
Para ser consumidor, o Código diz que tem que haver a aquisição do produto ou serviço e o
sujeito deve adquiri-lo como destinatário final. Se quem adquiriu o fez para o ciclo de produção, não
será considerado consumidor. Essa aquisição pode ser onerosa ou gratuita e a utilização estende-se a
quem utiliza e não tenha adquirido.
O Código, quando descreve o consumidor, estende à Pessoa Jurídica, dizendo que esta pode
ser consumidora em determinada situação, entretanto, neste trabalho, a pesquisa não foi estendida
para as Pessoas Jurídicas. Só a título de conhecimento, Pessoa Jurídica pode ser consumidora, desde
que não adquira ou o utilize para seu ciclo de produção. Referindo-se consumidor, Pessoa Jurídica
terá, também, que adquirir, em caráter de destinatária final do bem ou serviço adquirido.
O Código também coloca como consumidor a coletividade de pessoas e as vítimas de
acidente de consumo, mesmo que não possam ser identificadas e desde que tenham de alguma
maneira, participado da relação de consumo. Apenas citamos os artigos 29 e 17 para demonstrar a
extensão que o Código trouxe em seu bojo de quem considera consumidores, vejamos:
Artigo 17 - Para efeito dessa Seção, equiparam-se aos consumidores todas as
vítimas do evento.
São aquelas que mesmo não tendo sido ainda consumidoras diretas, foram atingidas pelo
evento danoso.
Artigo 29 – Para os fins deste capítulo e do seguinte, equiparam-se aos
consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas
nele previstas.
Deste ponto em diante, descreveremos artigos do Código de Defesa do Consumidor que são
bases para o amparo dos sujeitos superendividados.
No capítulo II, o Código trata da Política Nacional de Relação de Consumo, vejamos o artigo
4:
A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o
atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade,
saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de
sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de
consumo, atendidos os seguintes princípios:
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I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de
consumo;
IV – educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos
seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;
Veja que, como Política Nacional das Relações de Consumo, o Código reconhece a
vulnerabilidade do consumidor e a necessidade da educação para um consumo consciente, o direito
de informação para a melhoria da relação entre consumidores e fornecedores.
O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é a primeira medida de realização da
isonomia garantida constitucionalmente. Isto significa que o consumidor é a parte mais fraca da
relação de consumo. Essa fragilidade é real e concreta e decorre de dois aspectos; um de ordem
técnica e outro de cunho econômico. O primeiro aspecto está ligado aos meios de produção, cujo
conhecimento é monopólio do fornecedor. O consumidor não dispõe de controle sobre os bens de
produção e, por conseguinte, deve se submeter ao poder dos titulares destes. É o fornecedor que
escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo
que é produzido. A escolha do consumidor já nasce reduzida. O consumidor só pode optar por
aquilo que existe e foi oferecido no mercado. A oferta é decidida unilateralmente pelo fornecedor,
visando seus interesses empresariais, que são, por evidente, a obtenção de lucro. E o segundo
aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, via de regra, o fornecedor
tem em relação ao consumidor. É fato que há consumidores com boa capacidade econômica, às
vezes até superior a pequenos fornecedores. Com o reconhecimento da vulnerabilidade, o Código
visa colocar em pé de igualdade consumidor e fornecedor.
É exatamente por isso que, dentre os direitos básicos do consumidor, está a facilitação de seu
acesso aos instrumentos de defesa, notadamente no âmbito coletivo, com o estabelecimento da
responsabilidade objetiva, aliada a inversão do ônus da prova. Tudo isso é para dar igualdade de
tratamento e equilíbrio às partes.
E como instrumento de ação, o artigo 5º dita, em seus incisos, formas de acesso do
consumidor à proteção de seus direitos. O Poder Público, visando dar cabal cumprimento à Política
Nacional das Relações de Consumo, estabelece os seguintes instrumentos:
Artigo 5º – Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo,
contará o Poder Público com os seguintes instrumentos, entre outros:
I – manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor
carente;
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II – instituição de Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor, no
âmbito do Ministério Público;
III – criação de delegacia de Polícia especializada no atendimento, de
consumidores vítimas de infrações penais de consumo;
IV – criação de Juizado Especial de Pequenas Causas e Varas Especializadas
para a solução de litígio de consumo;
V – concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de
Defesa do Consumidor;
Trata-se de uma “filosofia de defesa do consumidor” 79 que se funda, basicamente, em uma
diretriz que tem como alvo as boas relações de consumo. Tais instrumentos não são exclusivos uns
com os demais, mas alternativos, encarados como um leque de opções, que o consumidor deve
sempre ter em mãos e escolher o que esteja mais adequado com sua necessidade e em decorrência de
um impasse verificado em dada relação de consumo.
No caso da “assistência jurídica integral e gratuita para o consumidor carente” funda-se no
mandamento Constitucional, previsto no inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição da República,
segundo o qual “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recurso”.
E como Direito Básico do Consumidor, o artigo 6º elenca um rol de direitos. O legislador
procura proteger os mais fracos contra os mais poderosos. Hoje em dia é direito do consumidor: a
saúde, a segurança, o direito de defender-se contra publicidade enganosa e abusiva, o direito de
exigir as quantidades e qualidades prometidas e pactuadas; o direito de informação sobre produtos e
serviços e suas características; sobre o conteúdo dos contratos e a respeito do meio de proteção e
defesa; direito à liberdade de escolha e a igualdade de contratação; direito de intervir na fixação do
conteúdo do contrato; direito de não se submeter às cláusulas abusivas; o direito de reclamar
judicialmente pelo descumprimento ou cumprimento parcial ou defeituoso dos contratos; o direito a
indenização pelos danos e prejuízos sofridos, etc. Veja o que determina o artigo 6:
São direitos básicos do consumidor:
I – a proteção à vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por
práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou
nocivos;
II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e
serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;
79
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Forense Universitária Biblioteca Jurídica, 7 Ed. 2001, p. 93.
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III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços,
com especificação correta de quantidade, características, composição,
qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos
comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas
abusivas ou impostas no fornecimento de produto e serviço;
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as
tornem excessivamente onerosos;
VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais,
individuais e coletivo e difusos;
VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vista à
prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais,
coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica
aos necessitados;
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do
ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for
verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras
ordinárias de experiência;
IX – vetado;
X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral;
Este artigo está em consonância com a intangibilidade da dignidade da pessoa humana. Com
as condições expostas neste artigo, o consumidor passa a poder exercer um direito maior do que o
imposto pelo fornecedor, visando, desta forma, o equilíbrio dessa relação.
Passaremos agora a descrever sobre a responsabilidade objetiva, que trouxe maior
responsabilidade ao fornecedor face à Teoria do Risco de seu empreendimento.
O Código Civil de 1916 era essencialmente subjetivista, pois todo seu sistema estava
fundado na cláusula geral do artigo 159 – culpa provada. A ideia de culpa está visceralmente ligada
à responsabilidade, por isso que, de regra, ninguém pode merecer censura ou juízo de reprovação
sem que tenha faltado com o dever de cautela em seu agir. Daí ser a culpa, de acordo com a teoria
clássica, o principal pressuposto da responsabilidade civil subjetiva. Neste caso, a vítima só teria
reparação se provasse a culpa do agente, o que nem sempre é possível na sociedade moderna.
A abolição do elemento subjetivo da culpa na aferição da responsabilidade não significa
exclusão dos demais pressupostos, a saber: dano, defeito do produto, bem como a relação de
causalidade entre ambos. Juntamente com a responsabilidade objetiva está o pressuposto da boa-fé
objetiva, pois as partes devem ter uma conduta adequada, correta, leal e honesta nas relações sociais.
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A boa-fé representa o padrão ético de confiança e lealdade indispensável para a convivência social.
As partes devem agir com lealdade e confiança recíproca.
A boa-fé é necessária e essencial na relação consumerista, enfocando a subjetiva para
expressar sinônimo de sinceridade, de franqueza e mais largamente de lealdade, opondo-se a má-fé,
ao dolo, ao embuste ou a fraude. Por outro lado, no aspecto objetivo, pode-se fazer dela o
fundamento geral de um dever de assistência, de colaboração, de cooperação, de ajuda mútua.
Aplica-se na relação de consumo a responsabilidade objetiva, conforme se percebe no artigo
12 e 14:
Artigo 12 – O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro e
o importador respondem, independente da existência de culpa, pela
reparação dos danos causados aos consumidores por defeito decorrente de
projeto, fabricação, construção, montagem, formulas, manipulação,
apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
Artigo 14 – O fornecedor de serviço responde, independente da existência de
culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos
relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes
ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Independente da existência de culpa, haverá obrigação de reparar o dano quando observado o
nexo de causalidade entre o fato e o dano, aplicando a responsabilidade objetiva.
3.1 - DAS PRÁTICAS COMERCIAIS: DA OFERTA E DA PUBLICIDADE
A Constituição Federal, no capítulo da comunicação social (inciso II do § 3º do artigo 220),
referiu-se à publicidade de produtos e serviços e suas práticas. Essa garantia é um verdadeiro
corolário da norma prevista no artigo 5º, inciso IX, que consagra a liberdade de expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença. O que se pretende proteger é o meio pelo qual o direito individual constitucionalmente
garantido será difundido, por intermédio dos meios de comunicação de massa. Vejamos:
Artigo 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 3º – Compete à Lei Federal:
Inciso II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a
possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e
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televisão que contrariem o disposto no artigo 221 bem como da propaganda
de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio
ambiente.
Outro ponto que merece destaque é a oferta lançada no mercado de consumo. Dentre as
várias características desse modelo, o que mais se destaca é o fato de o produtor pensar e decidir
fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de
pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto e, depois, produzi-lo em série.
Esse modelo de produção industrial pressupõe planejamento estratégico unilateral do
fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador de serviços, etc. Esse planejamento tinha que
vir acompanhado de um modelo contratual. Assim, já no começo do século XX, o contrato era
planejado da mesma forma que a produção.
No direito privado há um convite à oferta; no direito do consumidor, a oferta vincula o
ofertante que fica obrigado a cumpri-la, ou seja, toda oferta relativa a produto e/ou serviço vincula o
fornecedor ofertante, obrigando o fornecimento do que oferecer.
A fase pré-contratual, não obstante o compromisso com ânimo definitivo, pode produzir
efeitos jurídicos quando se discute futura relação jurídica. Assim, a fragilidade do consumidor
manifesta-se com maior destaque em três momentos principais de sua existência no mercado: antes,
durante e após a contratação. Toda a vulnerabilidade do consumidor decorre direta ou indiretamente
do empreendimento contratual e toda proteção é ofertada na direção do contrato.
Vejamos o artigo 30:
Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por
qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produto e serviços
oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer, veicular ou dela
se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.
A oferta deve ter informação clara e precisa, quanto mais for evidente melhor o consumidor
exerce a sua livre escolha. Vejamos o artigo abaixo:
Artigo 31 – A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem
assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em linguagem
portuguesa sobre suas características, qualidade, quantidade, composição,
preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como
sobre os riscos que apresentam à saúde e à segurança dos consumidores.
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Em caso de descumprimento da oferta, o consumidor pode exigi-la por meio de execução
específica, forçada da obrigação de fazer, conforme artigo 35 do Código de Defesa do Consumidor:
Artigo 35 – Se o fornecedor de produto ou serviço recusar o cumprimento à
oferta, a apresentação ou publicidade, o consumidor poderá,
alternativamente e à sua livre escolha;
I – exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta,
apresentação ou publicidade;
II – aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;
III – rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente
antecipada, monetariamente atualizada e a perdas e danos;
O artigo 36 e 37 o Código de Defesa do Consumidor regulamentou sobre as propagandas,
inclusive expondo o que é uma propaganda enganosa e abusiva.
Artigo 36 – A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor,
fácil e imediatamente, a identifique como tal.
Artigo 37 – É proibida toda publicidade enganosa e abusiva:
§ 1º – É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de
caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro
modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a
respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades,
origem e preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
§ 2º – É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer
natureza, a que incite a violência, explore o medo ou a superstição, se
aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite
valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se
comportar de forma prejudicial ou perigosa à saúde ou segurança.
Ato contínuo, o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária é que declara que
seus preceitos têm de ser respeitados por todos que estiverem envolvidos na atividade publicitária,
tais como anunciantes, agência de publicidade, o veículo de divulgação, o publicitário, o jornalista e
qualquer outro profissional de comunicação envolvido no processo publicitário. Abaixo, seguem
alguns artigos que disciplinam uma publicidade, constantes deste Código regulamentador:
Artigo 1º – Todo anúncio deve ser respeitador e conformar-se às leis do país;
deve, ainda, ser honesto e verdadeiro.
Artigo 2º – Todo anúncio deve ser preparado com o devido senso de
responsabilidade social, evitando acentuar, de forma depreciativa,
diferenciações sociais decorrentes do maior ou menor poder aquisitivo dos
grupos a que se destina ou que possa eventualmente atingir.
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Artigo 3º – Todo anúncio deve ter presente a responsabilidade do
Anunciante, da Agência de Publicidade e do Veículo de Divulgação junto ao
Consumidor.
Artigo 4º – Todo anúncio deve respeitar os princípios de leal concorrência,
geralmente aceitos no mundo dos negócios.
Artigo 5º – Nenhum anúncio deve denegrir a atividade publicitária ou
desmerecer a confiança do público nos serviços que a publicidade presta à
economia como um todo e ao público em particular.
Artigo 6º – Toda publicidade deve estar em consonância com os objetivos do
desenvolvimento econômico, da educação e da cultura nacionais.
Artigo 7º – De vez que a publicidade exerce forte influência de ordem
cultural sobre grandes massas da população, este Código recomenda que os
anúncios sejam criados e produzidos por Agências e Profissionais sediados
no país – salvo impossibilidade devidamente comprovada e, ainda, que toda
publicidade seja agenciada por empresa aqui estabelecida.
Artigo 8º – O principal objetivo deste Código é a regulamentação das
normas éticas aplicáveis à publicidade e propaganda, assim entendidas como
atividades destinadas a estimular o consumo de bens e serviços, bem como
promover instituições, conceitos ou ideias.
Diante das condições legais para oferta, publicidade e propaganda de produto e serviço são
notórias o forte propósito alienatório com objetivo, condicionando o consumidor a adquirir, ter para
ser, sem ao menos despertar a este a sua responsabilidade na aquisição e uma educação para um
consumo consciente. O marketing é um fator de manipulação, ainda mais quando estamos diante de
sujeitos alienados.
Aquele que cede às demandas do mercado esquece de tal maneira o desejo que muitas vezes
acaba precisando de um analista para se separar dessa demanda. Como a publicidade não consegue
vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma dos prazeres: tome esse
refrigerante (recentemente uma empresa de refrigerante divulgou “tome felicidade”), vestir esse
tênis, usar essa camisa, comprar esse carro, “com isso você chega lá”, vá adquirindo ...
A Revista Le Monde80 destacou em sua reportagem, dois objetivos básicos da publicidade:
informar que determinado produto ou serviço existe com tais e tais qualidades e convencer o virtual
consumidor a adquiri-lo. O segundo é o mais importante e é nele que especialistas de marketing
queimam as pestanas. Mas vale notar que o primeiro, não raramente limita-se à mera informação de
que um produto existe, pois nada se diz respeito às suas qualidades.
80
Le Monde Diplomatique Brasil, Dezembro de 2008. Consumismo Infantil. Pesquisa realizada por Yves de La
Taille, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, p. 4.
55
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Pode-se esperar de um adulto que se tenha recurso intelectual e afetivo para resistir à
sedução publicitária, notadamente quando essas fogem totalmente a qualquer verossimilhança com a
vida real? Mas qual será o poder de resistência de um adulto a demanda?
Há, de certa forma, carência de critérios próprios para avaliar se cada objeto corresponde ao
que realmente se deseja; as vontades costumam ser fugazes e, logo, facilmente dirigidas por
especialistas em sedução. Aquilo que é intensamente querido num dado momento logo cai no
esquecimento trocando por outra coisa eleita como alvo prioritário do desejo momentâneo.
Na verdade, existe um verdadeiro exército simbólico que adentra as defesas psíquicas no
intuito de convencê-las a comprar isso ou aquilo. A educação para o consumo deveria ser
primordial. Preparar os consumidores para serem conscientes e mostrar sua responsabilidade na
aquisição. Fazer paulatinamente com que os sujeitos compreendam as relações de consumo, trabalho
e economia, para terem real consciência do valor das mercadorias e, também, para terem consciência
dos graves problemas de distribuição de renda, que dão o luxo a poucos e o lixo a muitos.
Mesmo diante de preceitos legais, o consumidor é atropelado por condicionamentos
irracionais, pois o objetivo maior sempre será o crescimento econômico.
3.2 - DAS PRÁTICAS ABUSIVAS
A lei apresentou um rol de condutas que é exemplificativo por apresentarem uma série de
ações, condutas ou cláusulas contratuais que violem direitos do consumidor. Essas práticas estão
expostas no artigo 39:
É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de
outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;
II – recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de
suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e
costumes;
III – enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer
produto, ou fornecer qualquer serviço;
IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista
sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus
produtos ou serviços;
V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
VI – executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização
expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores
entre as partes;
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VII – repassar informação depreciativa referente a ato praticado pelo
consumidor no exercício de seus direitos;
VIII – colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em
desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se
normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas
Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de
Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – CONMETRO;
IX – deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou
deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério;
X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços;
XI– aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou
contratualmente estabelecido; inciso XI com redação dada pela Medida
Provisória nº. 1.890-63, de 29 de junho de 1999.
XII – deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou
deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério.
As práticas acima expostas são diariamente realizadas por empresas, daí a norma vir para
proteção do consumidor que fica a mercê das práticas comerciais. Essas práticas fazem com que
consumidores sejam expostos diariamente e, em contrapartida, não há uma educação para o
consumo capaz de esclarecer, informar e educar para um consumo consciente.
3.3 - DA PROTEÇÃO CONTRATUAL
Os contratos de adesão, em particular, podem se tornar instrumentos eficazes nas mãos de
senhores feudais todo poderosos da indústria e do comércio, permitindo-lhes impor sua própria nova
ordem feudal e subjugando um grande número de vassalos.
O Instituto clássico de contenção dos abusos, criados pelo princípio da autonomia da vontade
não amparavam, em absoluto, o consumidor. Na fase da sociedade pessoal, antes do surgimento da
sociedade de consumo, na medida em que, de regra, só uma pequena parcela da população detinha
os meios de produção, é evidente que só uns poucos, de fato, contratavam repetidamente. E, para
esta minoria, os instrumentos tradicionais se mostravam eficazes, mesmo que não fossem para
impedir, mas ao menos para reparar os vícios da liberdade contratual.
A liberdade contratual, realmente deu azo a inúmeros abusos relacionados com o
discernimento do contratante débil, ora eram percalços oriundos da liberdade plena de um dos
contratantes e da ausência de liberdade de outro. Tudo a provocar discrepância entre a vontade real e
a vontade declarada do consumidor.
Quem planeja a oferta de um serviço ou de um produto qualquer, por exemplo, financeiro,
bancário, a ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o imprime e
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distribui milhões de vezes. Esse padrão passa a ser o modelo contratual que supõe que aquele que
produz um produto ou um serviço de massa, planeja um contrato de massa que veio a ser chamado
na Lei n. 8.078 de contrato de adesão, que, no Código, passou a ser regulado no artigo 54. Ele é de
adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir, ele não discute
cláusula nenhuma.
Com o aparecimento da sociedade de massa os partícipes no mercado se multiplicaram e os
contratos explodiram em quantidade. Na sociedade moderna o contrato deixou de ser um privilégio
da minoria e incorporou-se ao dia a dia do cidadão comum, em especial do consumidor.
Os contratos configuram verdadeiros negócios jurídicos, pois dependem do querer humano e
o consenso de vontade das partes, mas os efeitos a serem por ele produzidos serão aqueles eleitos
por quem o pratica.
O elemento básico que caracterizará a concepção tradicional do contrato, até os nossos dias,
é a vontade livre do indivíduo, definida, criando direitos e obrigações protegidos e reconhecidos
pelo Direito, daí dizer que está ligada a autonomia da vontade e ao seu reflexo da liberdade de
contratar, para enfim, tornar-se este vinculante e obrigatório. Somente a vontade livre e real isenta
de vícios ou defeitos, pode dar origem a um contrato válido, fonte de obrigação e de direitos.
Assim, a função da ciência do Direito será a de proteger a vontade criadora e de assegurar a
realização dos efeitos queridos pelas partes contratantes.
A Lei n. 8.078 rompe com o princípio do pacta sunt servanda ao reconhecer que, em matéria
de relação de consumo, vige a regra da oferta que vincula e os contratos são elaborados
unilateralmente ou nem sequer são apresentados. Vejamos o que falam os artigos da proteção
contratual:
Artigo 46 – Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão
os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar
conhecimento prévio de seu conteúdo ou se os respectivos instrumentos
forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e
alcance.
Art. 47 – As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais
favorável ao consumidor.
Art. 48 – As declarações de vontade constantes de escritos particulares,
recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam o
fornecedor, ensejando inclusive execução específica, nos termos do artigo 84
e parágrafos.
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Diante das práticas abusivas geradas na contratação, o Código de Defesa do Consumidor
reconhece as cláusulas abusivas eivadas de nulidades absolutas de pleno direito, fundadas no seu
artigo 1º que estabelece que as normas que regulam as relações de consumo são de ordem pública e
interesse social. Vejamos o rol do artigo 51.
São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao
fornecimento de produtos e serviços que:
I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor
por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem
renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o
fornecedor e o consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá ser
limitada, em situações justificáveis;
II – subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos
casos previstos neste Código;
III – transfiram responsabilidades a terceiros;
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boafé ou a equidade;
V – (Vetado.);
VI – estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;
VII – determinem a utilização compulsória de arbitragem;
VIII – imponham representante para concluir ou realizar outro negócio
jurídico pelo consumidor;
IX – deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora
obrigando o consumidor;
X – permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de
maneira unilateral;
XI – autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que
igual direito seja conferido ao consumidor;
XII – obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua
obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor;
XIII – autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a
qualidade do contrato, após sua celebração;
XIV – infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;
XV – estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor.
XVI – possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias
necessárias.
§ 1º – Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II – restrinjam direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do
contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual;
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III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se
a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras
circunstâncias peculiares ao caso.
§ 2º – A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato,
exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer
ônus excessivo a qualquer das partes.
§ 3º – (Vetado.)
§ 4º – É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente
requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser
declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto neste
Código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e
obrigações das partes.
Por serem nulas de pleno direito, há uma prerrogativa do consumidor de requerer em juízo
sua exclusão em alguns casos específicos.
O que se vê comumente é a aplicação de cláusulas nulas de pleno direito nos contratos de
adesão e o pior, muitos consumidores são “vítimas”, pois são facilmente seduzidos, passando a se
comprometerem com o que ali fica estipulado, sendo condicionado a uma obrigatoriedade do
cumprimento do contrato até seu termo final, mesmo que esteja eivado de vício de consentimento e
de informação.
3.4 - DO CONTRATO DE ADESÃO E DE CRÉDITO
Nos contratos de consumo, uma característica peculiar é a adesão. Não significa
manifestação de vontade ou decisão que implique concordância com o conteúdo das cláusulas
contratuais. Neste tipo de contrato não se discutem cláusulas e não há que se falar em pacta sunt
servanda. Não há acerto prévio entre as partes, discussão de cláusulas e redação de comum acordo.
O artigo 54 disciplina sobre os Contratos de Adesão:
Artigo 54 – Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido
aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo
fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou
modificar substancialmente seu conteúdo.
§ 1º – A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de
adesão do contrato.
§ 2º – Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que
alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no §
2º do artigo anterior.
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§ 3º – Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e
com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão
pelo consumidor.
§ 4º – As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor
deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil
compreensão.
§ 5º – (Vetado.)
O crédito vem sendo considerado pelos autores do Direito como o vilão do
superendividamento, sendo o responsável pelos crescentes casos que surgem a cada dia. No começo
do século XX, os Estados Unidos partiram vagarosamente no caminho para o superendividamento,
por meio do crédito de venda parcelada. Da mesma maneira a Europa começou a passar pelo mesmo
problema. Os consumidores ficaram amplamente entregues aos seus próprios dispositivos na escolha
do quantum de seus débitos.
Nos primeiros vinte e cinco anos do século XX, uma revisão das leis da Usura e o
crescimento da venda de mercadorias parceladas aos consumidores fizeram do crédito ao
consumidor um conceito aceitável economicamente e socialmente nos Estados Unidos da América.
Na Europa, as restrições diminuíram a onda de empréstimos ao consumidor, que crescia nos Estados
Unidos depois da Segunda Guerra Mundial.
A economia americana cedo compreendeu os efeitos positivos do crédito aos consumidores
no plano macroeconômico, pelo que baseou grande parte de seu crescimento na expansão do crédito
a particulares. Os Estados Unidos se tornaram uma grande potência mundial, no século XX, por
causa de sua sociedade de consumo, ou seja, de uma sociedade caracterizada pela aquisição e
utilização individuais de bens produzidos em massa.
O crédito é uma operação que permite a uma pessoa obter imediatamente uma prestação que
será paga mais tarde. Pode ser objeto dessa prestação uma soma em dinheiro, uma coisa ou um
serviço. Pouco importa que a prestação seja obtida por meio de um empréstimo, de uma venda, de
uma locação ou de um outro contrato. O que é essencial, o que distingue a operação de crédito de
uma operação à vista é o fracionamento no tempo. O fornecedor do crédito aceita esperar, um certo
tempo, para exigir o pagamento de seu credor.
A incitação ao crédito e ao superendividamento caracteriza a sociedade de consumo atual em
todos os sistemas de mercado do tipo capitalista, o que explica a internacionalidade dos problemas
daí decorrentes. Trata-se de um sistema que foi se impondo a tal ponto que, quem não pode ter
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acesso a ele, encontra-se praticamente impossibilitado ou, pelo menos, com sérias dificuldades para
melhorar seu conforto e desfrutar de bens e serviços cada vez mais generalizados.
A abertura do mercado de crédito ao consumidor introduziu um frenesi de competição entre
os fornecedores deste produto altamente rentável. A intensa pressão competitiva forçou as empresas
a fazer propaganda da estrutura de seus produtos para tirar vantagem – consciente ou inconsciente –
das poderosas forças competitivas, da parcialidade psicológica e da fraqueza de seus consumidores.
Para isto, há uma necessidade em conhecer o desejo dos consumidores ativos e como aliciálos, tornando-os fiéis aos produtos e serviços colocados no mercado de consumo. O consumo atual
preenche uma dupla função do ponto de vista da visão capitalista: satisfação de necessidades e
realização de desejos. Então, a publicidade passou a ser a aliada nesse crescimento econômico por
operar com o “desejo” do sujeito, na incitação ao consumo desenfreado. A fidelidade aos seus
produtos para que a venda não cesse de aumentar não mede a subjetividade do sujeito. O que
importa para esse imperativo capitalista é vender, sem medir os fins que possa levar ao sujeito.
Deve-se, contudo, destacar a importância do crédito ao consumo e os seus efeitos positivos,
pois permitem uma melhora no nível de vida da população, além de impulsionar o desenvolvimento
da atividade industrial.
Neste contexto, o crédito aos consumidores é apresentado como contribuição para a
realização pessoal, expressa simbolicamente por um nível de vida melhorado. Simultaneamente,
permite a criação de novas identidades culturais e de novas oportunidades de participação social,
distinta do sistema eleitoral e político.
O crédito passou a ser uma constante no primeiro ciclo de vida das famílias, quando estas
precedem à aquisição de equipamento indispensável à sua autonomia familiar e econômica, como
casa, automóvel, eletrodoméstico, mobiliário, computador. A aquisição de bens através do recurso
do crédito é o resultado de uma expansão e densificação das necessidades e das práticas de
consumo.
Claudia Lima Marques considera como a causa do superendividamento a facilitação ao
crédito. Frisa um fato que é realmente passível de acontecer: são os tão comuns casos dos riscos de
sobrevir um acontecimento da vida do devedor que o impeça de continuar a cumprir os seus
compromissos financeiros. Esse é o risco da expansão desse crescimento econômico e a facilitação
do crédito.
Se há diferença social é necessário atentar para um tratamento de forma humanizada,
atendendo ao princípio da dignidade da pessoa humana. Consumidores são hipossuficientes e
vulneráveis de conhecimentos sobre a vastidão de produtos, serviços e contratação, necessitando de
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uma proteção legal. O marketing deve ser consciente. A Política Nacional das Relações de consumo
devem massificar trabalhos em prol de uma educação para um consumo consciente.
4 – ENTENDIMENTO SOBRE O SUPERENDIVIDADO
Os artigos citados até agora estão diretamente ligados ao consumidor superendividados, ou
seja, para sua proteção nas práticas de consumo. Agora vamos ver como vem sendo dado o
tratamento aos superendividados, que buscam no Judiciário um caminho para voltar a exercer sua
cidadania e dignidade.
Para atender a demanda dos superendividados, o dever de cooperação visa evitar ruína nos
contratos cativos de longa duração, o que vale é a renegociação e atuação cooperativa nos
agravantes casos de inadimplência. A imposição do princípio da boa-fé objetiva às relações de
crédito com consumidores, leva à existência de um dever de cooperação dos fornecedores para
evitar a ruína dos consumidores.
No direito brasileiro, em face do Código de Defesa do Consumidor, parece ser possível
considerar a existência do dever de renegociação a favor do consumidor, pois tanto o artigo 6º,
inciso V, menciona o direito do consumidor de pedir a modificação do contrato em caso de
onerosidade excessiva, quanto os artigos 52 e 53 mencionam o direito à informação, ao pagamento
antecipado e à devolução das quantias pagas.
Logo, dizem Marques e Cavallazzi
81
, parece possível também no Brasil requerer a
antecipação dessa modificação e a cooperação do parceiro-fornecedor (dever de renegociação) para
a readaptação do contrato (princípio da boa-fé do artigo 4º, inciso III do CDC) e a sua manutenção
(artigo 51, § 2º do CDC).
Marques e Cavallazzi fizeram uma comparação com a doutrina alemã sobre o direito geral de
denúncia dos contratos cativos de longa duração que levam a parte mais fraca à ruína. Semelhante
direito poderia efetivamente ser extraído no ordenamento jurídico brasileiro com base nos artigos 6º,
inciso V e 53 do CDC, de forma a evitar a morte do consumidor e resolver, mesmo que de forma
indireta, os muitos problemas do superendividamento no país.
O direito de rescindir o contrato, mesmo inadimplente, é excepcional e só pode ser
concedido à parte mais fraca, o consumidor, como se retira dos artigos 54, § 2º, 51, inciso XI e § 2º,
52, § 2º, 53 e 6º, inciso V do CDC.
81
Marques, Claudia Lima; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:
Superendividamento e Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 269.
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Concluíram Marques e Cavallazzi que, se o consumidor no sistema do Código de Defesa do
Consumidor tem direito material à devolução razoável da parcelas pagas (artigo 53); tem direito de
escolher continuar a relação ou rescindí-la (artigo 54, § 2º, 51, inciso XI), tem o direito de requerer
ao juiz que modifique as cláusulas excessivamente onerosas por fatos supervenientes (artigo 6º,
inciso V) e o sistema determina a continuação dos contratos (artigo 51, § 2º), logo parece que o
consumidor tem o direito de propor a ação de rescisão e restituição das importâncias pagas, mesmo
que inadimplente ou em mora.
5 – JURISPRUDÊNCIAS
A jurisprudência do STJ tem sido sensível às causas de consumidores superendividados,
mesmo que já em estado de inadimplência, conseguem rescindir os contratos cativos de longa
duração, de forma a evitar sua ruína ou um superendividamento definitivo. Assim, desenvolveu-se
toda uma jurisprudência sobre o controle de dívidas novadas, pagas e confessadas, depois de
sumulada.
A Súmula 286 do STJ afirma: “A renegociação do contrato bancário ou a confissão de dívida
não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores”. A
Súmula 300 do STJ trata do tema e toma posição contrária aos interesses dos consumidores: “O
instrumento de confissão de dívida, ainda que originário de contrato de abertura de crédito, constitui
título executivo extrajudicial”.
A jurisprudência brasileira está consciente, ainda mais depois da entrada em vigor do Código
Civil de 2002, da função social dos contratos de consumo e da necessidade de tratar diferentemente
os contratos cativos de longa duração, como os de crédito e financiamento visando a aquisição de
produtos e serviços de consumo.
Frisou também a teoria do adimplemento substancial que reforça a ideia de que cabe apenas
ao consumidor rescindir o contrato ou mantê-lo e que a melhor conduta do fornecedor é renegociar
seus termos ou cooperar para que o consumidor possa adimpli-lo82. A ideia principal é possibilitar a
purga da mora pelo consumidor, isto é, que de inadimplente torne-se ele, com cooperação e boa-fé
do fornecedor, adimplente.
82
Marques, Claudia Lima; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:
Superendividamento e Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 274.
64
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Quanto ao concurso de credores previsto nos artigos 711 a 713 do CPC/1973, tal hierarquia
de credores tem como fim facilitar que os credores sejam pagos e não que o devedor, pessoa física,
alcance condição de pagar, assim como privilegia as garantias. Veja o que diz os referidos artigos,
localizados no Código de Processo Civil na Seção II, que trata do pagamento ao credor:
Artigo 711 – Concorrendo vários credores, o dinheiro ser-lhe-á distribuído e
entregue consoante a ordem das respectivas prelações; não havendo título
legal à preferência, receberá em primeiro lugar o credor que promoveu a
execução, cabendo aos demais concorrentes direito sobre a importância
restante, observada a anterioridade de casa penhora.
Artigo 713 – Findo o debate, o juiz proferirá a sentença.
O Código de Defesa do Consumidor brasileiro realmente impõe a transparência (artigo 4º,
caput), o princípio da boa-fé objetiva (artigo 4, inciso III) e a ativa proteção do consumidor com
base na boa-fé de condutas (artigo 51, inciso IV e § 1º) e na interpretação dos contratos conforme a
confiança despertada (artigo 30, 34, 35, 47 e 48 do CDC).
Da mesma forma, o novo Código Civil cria deveres com base na boa-fé (artigo 422), impõe
limites (artigo 187) e uma interpretação guiada por essa boa-fé objetiva (artigo 113).
Artigo 422 – Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do
contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.
Artigo 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Artigo 113 – Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boafé e os usos do lugar de sua celebração.
Indiscutível que a boa-fé, a do Código de Defesa do Consumidor e a do Código Civil de
2002, aplica-se aos contratos de financiamento de cartão de crédito, de pagamento parcelado com
crédito anexo e de crédito ao consumidor.
Em matéria de financiamento e crédito ao consumidor, a informação faz parte da
transparência mínima. Toda informação deve ser fornecida ao consumidor de forma completa e
clara antes da celebração do contrato, de modo que lhe permita prévia análise antes de se obrigar. E
continua, assim terá condições de determinar o custo do crédito, comparar as vantagens e
desvantagens em relação ao pagamento à vista ou em relação ao custo de outros financiamentos
65
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oferecidos no mercado 83. No entanto, usam-se as condições de pagamento como forma de atrair
novos clientes num ambiente competitivo, bem como para desenvolver uma relação comercial de
longo prazo com os atuais clientes. Estão obrigados não somente a informar como também a
aconselhar o consumidor, evitando que assuma um crédito que não terá condições de pagar.
Hoje a primeira opção para evitar a ruína do parceiro contratual de boa-fé que sofre um
acidente da vida seria permitir a rescisão ou o fim do vínculo a favor do inadimplemento mais
vulnerável. Assim, dizem Marques e Cavallazzi, beneficiamos o inadimplente consumidor pessoa
física, evitando que aquela dívida se torne uma dívida impagável, dívidas de escravidão, evitando
assim o superendividamento.
O artigo 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor prevê a nulidade absoluta das
cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor
em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”. A boa-fé objetiva
é um parâmetro objetivo e genérico geral de atuação do homem médio, do bom pai de família que
agira de maneira normal e razoável naquela situação analisada. O julgador valora a atuação,
decidindo se está ultrapassando ou não a razoabilidade, os limites impostos por esta boa-fé objetiva
qualificada, que é a de consumo.
Há uma função de correção e de adaptação em caso de mudança das circunstâncias, a
permitir que o julgador adapte e modifique os conteúdos do contrato para que o vínculo permaneça
apesar da quebra da base objetiva do negócio 84.
Outro ponto de relevância para Marques e Cavallazzi85, em caso de prevenção é a
informação detalhada ao consumidor, oriunda de um dever de boa-fé das partes contratantes, de
informar e esclarecer o leigo sobre os riscos do crédito e o comprometimento futuro de sua renda.
No artigo 52 do CDC, o fornecedor deverá informar prévia e adequadamente o consumidor
sobre todos os elementos do contrato de crédito antes de concluí-lo, em especial o preço, as
condições, montante de juros, acréscimos legais, número e periodicidade das prestações bem como a
soma total a pagar com ou sem financiamento.
6 – ESTUDOS NA ÁREA DO DIREITO
83
Marques, Claudia Lima; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:
Superendividamento e Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 198.
84
Marques, Claudia Lima; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direito do Consumidor Endividado:
Superendividamento e Crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 281.
85
Ibidem, p. 286.
66
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Neste item do trabalho foi colocada a descrição do fenômeno por alguns autores. Isso nos
mostrará como os estudiosos vêm se posicionando frente ao fenômeno.
Iniciaremos por Catarina Frade e Sara Magalhães86 e o desenvolvimento de sua pesquisa no
livro “Direito do consumidor superendividado”, onde abordaram o Sobreendividamento, a outra face
do crédito, com estudo de direito comparado.
As autoras consideraram que o consumo atual preenche uma dupla função: satisfação de
necessidades e realização de desejos. Apontaram que o crédito aos consumidores contribui para a
realização pessoal e expressa, simbolicamente, um nível de vida melhorado. Simultaneamente, a
concessão do crédito permite a criação de novas identidades culturais e de novas oportunidades de
participação social, distintas do sistema eleitoral e político, dando origem ao que Cross designa por
“democracia do gasto” 87.
A aquisição de bens através do recurso do crédito resulta de uma expansão e densificação das
necessidades e das práticas de consumo. O crédito está hoje fortemente associado a esses novos
padrões de consumo, que resultam das interações das necessidades individuais com o meio social.
A adoção de determinadas práticas de consumo está relacionada com as percepções, que os
indivíduos têm acerca do que é ou não valorizado pelo grupo social no qual eles acreditam ou
aspiram estar incluídos. Os indivíduos fazem, possuem e adquirem aquilo que é entendido como
adequado a fazer, ter ou comprar pelos outros com os quais cada indivíduo se identifica. Assim, o
comportamento dos outros constitui um termo de comparação, informando ao sujeito sobre o que
deve ou não ser feito, ajudando-o a decidir.
Na vivência social dos indivíduos, esses consumos podem assumir-se como centrais. De um
ponto de vista subjetivo, a sua não realização pode acarretar prejuízos relacionados, por exemplo,
com a não inclusão num círculo social com repercussões diretas no bem-estar psicológico. Assim,
um indivíduo que se encontre inserido num contexto social em que a manifestação de bens materiais
seja valorizada e não tiver recursos suficientes que lhe permitam a aquisição desse tipo de bens,
encontra no crédito uma via para alcançar esse reconhecimento social.
No entanto, há sempre o risco de algo correr mal, de sobrevir um acontecimento na vida de
um devedor que o impeça de continuar a cumprir os seus compromissos financeiros. Nesta situação,
o sobreendividamento ou insolvência torna-se inevitável.
86
Ibidem, p. 287.
Marques, Claudia Lima. Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direitos do consumidor
Supeendividamento e Crédito, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 24.
87
67
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endividado:
Para as autoras, a gestão desse novo risco representa um desafio regulatório que tem forçado
vários sistemas jurídicos europeus não só a adotar um conjunto de medidas de prevenção e de
tratamento, mas, também, uma regulação eficaz que não pode prescindir de uma avaliação profunda
do problema.
Silvio Javier Battello88 faz uma comparação empírica: a oferta do crédito para o consumo
aumentou significativamente, assim como os prazos para o pagamento dos empréstimos ou
financiamento de bens. Em qualquer jornal do Brasil, encontraremos oferta de produtos, tais como
casas, carro, cursos de capacitação, computadores, eletrodomésticos, etc., e tudo para ser pago em
suaves parcelas de 6, 12 ou 24 meses. Hoje se fala em ainda mais parcelas, “mais facilidades para
aquisição”.
Essa situação facilita o superendividamento, colocando o consumidor à beira da exclusão
social. Na maioria dos casos, o superendividamento não se deve a uma única causa, já que o devedor
deve fazer frente a um conjunto de obrigações derivadas de aquisição de bens e serviços da primeira
necessidade, créditos hipotecários, carros, móveis, etc. e, inclusive, decorrentes do abusivo e
incorreto uso do cartão de crédito. Somam-se, ainda, causas não econômicas, tais como falta de
informação e educação dos consumidores, rupturas familiares, acidentes ou enfermidades crônicas.
Geraldo de Faria Martins da Costa, autor do livro “Superendividamento – a proteção do
Consumidor de Crédito em Direito Comparado Brasileiro e Francês”, também participou desse
trabalho falando sobre Superendividamento: solidariedade e boa-fé.
A informação e o respeito ao consumidor devem vir na frente, mas não é isso que acontece,
pois o ato do consumismo contribui enormemente para o crescimento econômico do país. Por
exemplo, no Brasil, as ofertas de crédito, em geral, omitem a informação sobre a taxa efetiva anual
de juros (artigo 52, inciso II do CDC), o que é abusivo e eivado de omissão ao consumidor.
O autor se baseou no Direito Comparado, especialmente no Direito Francês, normas
específicas que irão proteger o consumidor contra os graves perigos do crédito ao consumo. Citou a
Lei francesa mais importante sobre a proteção do consumidor de crédito n. 78-22, de 10.01.1978,
denominada Loi Scrivener que constitui uma verdadeira carta de crédito ao consumidor.
Com base no Direito Francês, descreveu a luta contra a exclusão social. Como modelo de
referência para uma legislação específica como necessária ao Brasil direcionada aos
superendividados, destacou regras específicas da legislação francesa, como instituição de prazo
obrigatório de reflexão de sete dias, acompanhado da adoção de um formalismo protetor da oferta de
88
Ibidem,p. 26.
68
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crédito, que deve ser escrita em formulários-tipos destacáveis para facilitar o exercício do direito de
comparação e escolha e retratação, ou seja, o consumidor recebe as ofertas por escrito contendo
informações sobre a identidade do credor, sobre o produto financiado, o preço total a pagar com
financiamento, o preço à vista, sobre a taxa anual efetiva global (TAEG) do crédito e sobre o
montante e o número das prestações; a interdependência do contrato de consumo principal e do
contrato de crédito é instituída por lei, ou seja, a expectativa legítima do consumidor é protegida,
levando-se em conta a unidade econômica da operação, pois ele adere, muitas vezes sem saber, a um
conjunto de contratos organizados pelos profissionais – vendedor e organismos financeiros; além
disso, o regime de proteção do devedor é estendido ao fiador de maneira peculiar pelo direito
francês.
Em 1989, a Loi Neiertz instituiu um regime para disciplinar a situação do
superendividamento, criando comissões compostas por representantes do Estado, cuja finalidade é
conciliar o devedor, pessoa física, em situação de superendividamento com o conjunto de seus
credores, visando a elaboração de um plano de pagamento das dívidas, podendo conter
reescalonamento dos pagamentos, remissão de dívida, redução ou supressão de taxas de juros,
consolidação ou substituição de garantias. O plano pode estabelecer a obrigação do devedor em
abster-se de atos que agravem sua insolvabilidade. A comissão pode solicitar ao juiz competente a
suspensão de ações de execução. Não sendo a conciliação bem sucedida, a comissão elaborará
recomendações de medidas que podem ir até a remissão da dívida, considerando-se que, em
princípio, os fornecedores de crédito devem ser prudentes e vigilantes na concessão dos
empréstimos.
O regime francês não parou de evoluir mediante várias reformas legislativas provocadas pela
realidade social. Na reforma de 1995, o legislador percebeu que, mais do que regulamentar o
problema, era preciso cuidar do superendividado, passando a ser titulado de “tratamento das
situações de superendividamento”, o título específico do Code de la consommation, além de
modificar a dinâmica dos procedimentos.
E, mais adiante, a reforma mais importante foi a trazida no bojo da lei de luta contra as
exclusões. A alínea 1 de seu artigo declara:
... a luta contra as exclusões é imperativo nacional fundado sobre o respeito
da igual dignidade de todos os seres humanos e uma propriedade dos
conjuntos das políticas públicas da nação. A ligação da luta contra as
exclusões ao princípio da salvaguarda da dignidade da pessoa humana marca
uma nítida opção em favor de uma concepção larga da humanidade do
homem. O ser humano supõe não estar alojado de maneira semelhante a um
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animal, pode se vestir, se alimentar, se cuidar bem, pode comunicar, fundar
sua família, educar seus filhos, posto que a necessidade de defender a
humanidade do homem constitui doravante uma exigência jurídica específica
e explícita, esta salvaguarda deve concernir tudo o que faz com que uma
existência seja humana.
A invocação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana justifica as qualidades de
imperativo nacional e de prioridade do conjunto das políticas públicas atribuídas à luta contra as
exclusões. A defesa da humanidade do homem constitui, por essência, um projeto coletivo, pois a
dignidade concerne cada um no que ele tem de mais essencial e mais comum com os outros homens.
Por isso, a lei atribui aos atores sociais, públicos e privados, empresas, organizações profissionais,
aos cidadãos, a missão de contribuir na luta contra as exclusões.
Bottello considerou importante, no modelo francês, a obrigação de informar e aconselhar,
verbos que se baseiam na confiança necessária depositada pelo consumidor no profissional que
detém os conhecimentos técnicos da operação de crédito ofertada, sendo que duas características
marcam o correto cumprimento desses deveres anexos à veracidade e à lealdade. É, por isso, que a
todo fornecedor de crédito é imposta uma obrigação primária de não enganar o consumidor.
O fornecedor de crédito deve não somente transmitir as informações de alta tenacidade que
ele possui. Deve, também, proceder a um trabalho de exploração prévia das informações primárias,
a fim de obter um produto final utilizável pelo credor das informações. As informações tratadas
devem ser oferecidas de forma didática, facilmente compreensível pelo não-profissional.
Em relação à obrigação de renegociar a dívida, Bottello acompanha Claudia Lima Marques,
que diz que no Direito Brasileiro, em face do CDC parece também ser possível considerar-se a
existência deste dever de renegociação a favor do consumidor, pois tanto o artigo 6, inciso V,
menciona o Direito do Consumidor de pedir a modificação do contrato em caso de onerosidade
excessiva, quanto nos artigos 52 e 53 menciona o direito de informação ao pagamento antecipado e
devolução de quantias pagas. Logo, há possibilidade no Brasil de requerer a antecipação desta
modificação e cooperação do parceiro fornecedor para readaptação do contrato e sua manutenção.
A jurisprudência do STJ tem sido sensível a esta necessidade subjetiva do consumidor,
mesmo que já em estado de inadimplência, de conseguir rescindir o contrato cativo de longa
duração, de forma a evitar sua ruína ou o superendividamento definitivo, em especial em contratos
de compromissos de compra e venda de imóveis89.
89
Marques, Claudia Lima. Prefácio. In: Costa, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento – A proteção
do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: RT, 2002. p. 23-24.
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Se observar o fato por um ângulo individualista, a questão do consumidor superendividado é
tida como um problema pessoal e até moral muitas vezes. Ou seja, por causas pessoais, internas, o
consumidor não pagou em tempo hábil a sua dívida. Ele deve ser uma pessoa descontrolada, um
esbanjador, dissipador, gastador, um perdulário ou um mau caráter. A solução para o problema é
simplesmente a execução.
É muito fácil esquecer que o produto ou serviço e o próprio crédito, utilizado como
argumento publicitário, foram ofertados por meio de poderosos aparatos de marketing. Recentes
publicidades veiculadas nacionalmente pela televisão, pelos jornais e revistas de grande circulação,
oferecem crédito aos aposentados através do crédito consignado, pensionistas do INSS, servidores
públicos, que concorrem a sorteios de “casas com carro na garagem”.
Concluindo, Bottello considera que o problema social do superendividamento chega forte
nos tribunais brasileiros, especialmente no TJRJ. O fato trata de questão humanitária e diz respeito à
dignidade da pessoa do consumidor.
Em continuidade à pesquisa, trouxe o trabalho realizado pelas Juízas, Clarissa Costa de Lima
e Karen Rick Danilevicz Bertoncello, através de um Projeto Piloto, onde abordaram o tratamento do
crédito ao consumidor na América Latina90. Para elas, o crédito também foi o tema central da
pesquisa, como causa do superendividamento.
A incitação ao crédito e ao endividamento caracteriza a sociedade de consumo atual em
todos os seus sistemas de mercado do tipo capitalista, o que explica a internacionalidade dos
problemas daí decorrentes.
Reconhecem a importância do crédito ao consumo e seus efeitos positivos, pois permite
melhorar o nível de vida da população, além de impulsionar o desenvolvimento da atividade
industrial, o que tem convertido num direito social semelhante ao acesso a empregos, moradia,
serviços médicos, entre outros, mas observa o lado negativo do crédito, destacando os problemas de
ordem social, aumento da exclusão dos mais pobres e econômicos, aumento da inadimplência, taxa
de juros, se o fato da legislação não destinar uma proteção especial ao consumidor vulnerável.
Acrescentaram, ainda, que o consumidor pode ter mais afinidade com os desejos e
necessidades do que propriamente com a vontade de consumir.
A livre escolha do consumidor está submetida a uma certa pressão, na medida em que o
crédito ao consumo, por sua virtualidade em diferir o pagamento, age como um meio de seduzir o
consumidor. Os próprios fornecedores utilizam as condições de pagamento como forma de atrair
90
Trabalho apresentado no 10º Congresso Internacional de Derecho Del Consumidor, Lima, Peru.
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novos clientes num ambiente competitivo, bem como para desenvolver uma relação comercial de
longo prazo com os atuais clientes. Desta forma, estão obrigados não somente a informar como,
também, aconselhar o consumidor, evitando com que assuma um crédito que não terá condição de
reembolsar, o que de fato não acontece.
Embora se possa afirmar que as leis de proteção ao consumidor constituam um avanço
inequívoco na defesa de seus interesses, a realidade demonstra sua ineficácia para conter o
crescimento do número de consumidores superendividados que, em razão das mais variadas causas,
não têm condição de reembolsar o crédito contraído.
A própria visão econômica sobre a preservação do funcionamento eficaz do mercado
perpassa pela garantia desempenhada pelo direito do consumidor ao assegurar que este expresse
suas escolhas de forma livre e clara, a partir do fornecimento de informação precisa e exata do bem
ou serviço objeto da contratação. Não é suficiente que o fornecedor passe a informação mínima
exigida pela lei, é necessário que avalie o máximo de informações absorvíveis pelo consumidor de
crédito e o limite e número de cláusulas no contrato, uma vez que a desinformação também pode
resultar da falta de clareza no conteúdo ou da multiplicidade de informações prestadas.
O desenvolvimento da informação e da autonomia da vontade é imprescindível para
assegurar a integridade do consentimento do consumidor e, consequentemente, prevenirem o
superendividamento.
Essa dimensão socioeconômica do superendividamento identifica que a manutenção do
mercado, com a crescente produção de bens de serviço e de informação, dependerá da saúde
financeira deste consumidor e de sua reinserção no ciclo de produção, o que só é possível por meio
da tutela jurídica específica destinada a prevenir e a solucionar as situações de endividamento.
As magistradas foram precursoras no Projeto Piloto de tratamento da situação do
Superendividamento de Consumidores, que prevê a conciliação por meio da justiça entre
consumidores inadimplentes e credores. O projeto tem por objetivo a reinserção social do
consumidor superendividado ao encontrar uma solução alternativa para problemas atuais e fazer
cumprir o que está previsto na Constituição Federal, no que se refere à busca de uma sociedade justa
e solidária. O devedor precisa encontrar apoio para ser reinserido na sociedade, diz a juíza Karen
Bertoncello.
Baseado no modelo francês, as magistradas traçaram bases para a sua execução: o
diagnóstico feito por meio de uma pesquisa respondida em formulário obrigatório e a prevenção e
tratamento do problema. O devedor que se propõe a participar do projeto precisa responder com
veracidade as questões que constam no formulário, tem de participar de uma audiência coletiva e
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assumir o compromisso, em caso de conciliação, a não voltar a comprometer a renda familiar com
novas dívidas. Isso porque, uma vez que faça o novo parcelamento, o nome é automaticamente
retirado dos órgãos de restrição ao crédito. Para tanto, o consumidor superendividado participa de
uma conciliação paraprocessual ou processual, obtida em audiência de renegociação da totalidade de
seus credores.
As audiências conjuntas com os credores têm surtido resultados positivos, pois os credores
tomam consciência do nível de endividamento de seus devedores e acabam sensibilizando-se para a
realização de acordos, pois o credor vê com bons olhos o esforço do consumidor ao tentar negociar
suas dívidas para honrar seus compromissos. As audiências são presididas pelo juiz de Direito, que
renegocia com cada credor, na mesma solenidade, a partir das condições pessoais do
superendividado e respeitando a preservação de seu mínimo vital.
Numa segunda fase do projeto, contempla-se a criação de oficinas de educação ao crédito, a
serem realizadas através de parcerias entre o Centro de Pesquisa de Direito do Consumidor da
AJURIS, coordenado pelas subscritoras deste relatório e o Núcleo sobre o Superendividamento o
PPGDir da UFRGS, coordenado pela Profª Claudia Lima Marques.
A oficina tem caráter interdisciplinar porque envolverá as áreas do direito, educação,
informática, psicologia, economia e serviço social e terá como público alvo os consumidores que
recorrerem ao tratamento do superendividamento, bem como seus familiares, a fim de prevenir os
efeitos nefastos deste fenômeno de exclusão social e capacitá-los como “agentes de consumo
consciente”.
O trabalho realizado por Claudia Lima Marques e Rosangela Lunardelli Cavallazzi foi
analisar o tema do superendividamento e do crescente crédito ao consumidor de forma isenta, como
ele está situado em nossa sociedade, um fenômeno social e jurídico importante, que pode ou não ser
consequência de políticas públicas e da mudança dos mercados financeiros, que levam à chamada
“democratização do crédito” e à consolidação de uma “sociedade do endividamento” também no
Brasil.
Os indivíduos fazem, possuem e adquirem aquilo que é entendido como adequado fazer, ter
ou comprar pelos outros com os quais cada indivíduo se identifica. Assim, o comportamento dos
outros constitui um termo de comparação para o indivíduo, informando-o sobre o que deve ou não
ser feito, ajudando-o a decidir91. Certos tipos de consumo não podem ser descontextualizados ou
mesmo conotados como supérfluos na medida em que não constam da lista das prioridades
91
Marques, Claudia Lima. Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor Endividado:
Superendividamento e Crédito, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 25.
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orgânicas elementares do indivíduo. Na vivência social dos indivíduos, esse consumo pode assumir
um lugar central. De um ponto de vista subjetivo, a sua não realização pode acarretar prejuízos
relacionados, por exemplo, com a não inclusão num círculo social com repercussão direta no bem
estar psicológico. Assim, um indivíduo que se encontre inserido num contexto social em que a
manifestação de bens materiais seja valorizada e não tiver recursos suficientes que lhe permitam a
aquisição desse tipo de bens, encontra no crédito uma via para alcançar esse reconhecimento social.
A autora abordou em um item do seu trabalho os valores, atitudes e comportamentos dos
superendividados e aí nos foi possível perceber a aplicabilidade da Psicanálise. Colocou que os
padrões de consumo dos superendividados refletem um estilo de vida predominantemente urbano,
onde uma enorme acessibilidade a diversos tipos de bens e serviços se combina com uma pressão
social forte no sentido da sua aquisição. A proximidade e a proliferação dos locais de compra
também exercem um efeito de atração e sedução dos consumidores, funcionando como incentivo à
aquisição continuada e à produção de novas necessidades92.
As autoras ouviram alguns sujeitos superendividados, e a impressão que ficou no discurso de
todos os entrevistados foi uma enorme confusão e falta de clareza discursiva, combinada com uma
certa apatia na voz e nos movimentos, choro frequente e uma expressão de cansaço e desânimo.
Quase todos procuravam justificar-se, evidenciando claramente sentimentos de culpa e de vergonha.
Esses sentimentos, porém, surgiram no meio de uma convicção mais ou menos consolidada de que
tinham o direito a serem ajudados porque nunca procuraram defraudar ninguém, nomeadamente os
credores93.
Observou a notória dificuldade encontrada em precisar datas da contratação do crédito e
valores, tornava-se difícil compreender a sequência cronológica e a lógica causal entre os vários
acontecimentos pessoais e o momento econômico-financeiro, pois muitos sobreendividados eram
incapazes de ter essa leitura estruturada. Tudo parecia vago, distante, intemporal e de contornos
imprecisos. A generalidade dos sobreendividados mostrava, por isso, uma enorme fragilidade
emocional e uma oscilação notável entre desalento e sentimento de fracasso, por um lado, e uma
certa esperança de recuperação da normalidade e do controle, por outro. Uma segunda constatação é
a de culpa e da vergonha que sentem em relação aos filhos. Essa culpa resultante de uma sensação
de fracasso na liderança de uma vida familiar estável e equilibrada, o que até pode resultar em
separação.
92
Marques, Claudia Lima. Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor Endividado:
Superendividamento e Crédito, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 26.
93
Ibidem, p. 27.
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Diante desse diagnóstico, algumas estratégias para enfrentamento do problema são colocadas
pelas autoras para lidar como superendividamento, que são: auto-mobilização, que parte da
iniciativa do indivíduo; mobilização solidária, pedido de ajuda a rede de familiares e a mobilização
institucional, onde os indivíduos procuram a proteção estatal para ultrapassar esta fase na história de
sua vida.
Esses incidentes levam os diversos problemas sociais do sujeito, que pode resultar de falta de
atenção no trabalho, preocupações diárias na busca de solução dos problemas, desemprego,
instabilidade na relação familiar, etc.
Mesmo que, por vezes, muitos procurem transferir toda a responsabilidade da situação para
terceiros – credores, Estado, sociedade, empregadores, mercado – é a si que acabam por atribuir a
culpa principal, ainda que o façam de forma velada e inconsciente.
A psicanálise poderia contribuir esclarecendo melhor como o modelo capitalista do consumo
compulsivo afeta as subjetividades. Que relação poderia se estabelecer entre a dívida, necessidade,
demanda e desejo, que são noções de psicanálise? O Direito menciona “dignidade da pessoa
humana”, o “ser humano”, a “pessoa”, a “personalidade”, o “cidadão”, etc. Que relação há entre
estas expressões e o sujeito da psicanálise?
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CAPITULO III – A PSICANÁLISE E A ÉTICA DO DESEJO
Este capítulo busca evidenciar a contribuição da Psicanálise para uma crítica da sociedade de
consumo, tendo em vista sua repercussão sobre a subjetividade.
Na primeira parte, trazemos uma exposição sobre a razão cartesiana; em seguida, falamos de
Freud e a desconstrução de sua lógica com uma outra, a do inconsciente. No segundo item,
iniciaremos com o “retorno” de Lacan a Freud, particularmente com a noção de inconsciente, para
no logo em seguida trazermos as noções de necessidade, demanda e desejo, cruciais para este
trabalho.
Assim, abordaremos o sujeito na concepção da psicanálise e a ética do desejo. Julgamos que
estas ideias podem favorecer uma melhor compreensão do superendividamento no capitalismo, tanto
do lado da sociedade que “força” o consumo, como do lado do consumidor que fica assujeitado à
sua demanda.
1 – FREUD E A DESCOBERTA DO INCONSCIENTE
Conhecer a natureza dos homens e do Universo foi uma das manifestações do desejo de
Descartes. Ainda jovem, percebeu, através dos conhecimentos adquiridos ao longo de seus estudos,
que havia ali uma cultura sem fundamentos, vazia de interesses para a vida.
Seu objetivo passou, então, a ser o de procurar por um conhecimento que ele podia encontrar
dentro de si mesmo, fundado na capacidade humana de pensar que, como acreditava, desprezava os
sentidos.
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Estava convencido de que a razão seria o único meio de se chegar a um conhecimento
seguro. Não se poderia confiar sempre no que se lê nos livros e artigos e não se poderia confiar,
principalmente, no que os nossos sentidos nos dizem. A razão seria a única fonte segura de
conhecimento.
Passou a ter a missão de unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases seguras,
construindo um edifício plenamente iluminado pela verdade e feito de certezas racionais94.
Foi então que Descartes iniciou na matemática, que exibia uma construção sólida e clara, que
a todos se impunha como força de demonstrações incontestáveis e acaba por atravessar incólume a
crise de pensamentos instaurados pelos novos ventos da Renascença.
Para se chegar a um conhecimento seguro sobre a natureza da vida, sua primeira afirmativa é
que o nosso ponto de partida deveria ser duvidar de tudo. Não podíamos confiar nem mesmo no que
nos diziam os nossos sentidos. Afinal, podia ser que eles nos enganassem o tempo todo.
Assim, passa a duvidar até mesmo das ideias claras e distintas que o espírito
espontaneamente admite como evidentes, o que Descartes chamou de “gênio maligno”. Da dúvida
permitiu extrair um núcleo de certeza: se duvido, penso.
Se da máxima incerteza desponta uma primeira certeza – “Se duvido, penso” – esta é ainda,
uma certeza a respeito da própria subjetividade – “penso”. Esta dinâmica leva ao “Cogito: Penso,
logo existo” 95. Surge assim, depois da dúvida, uma primeira certeza sobre um existente – “existo”.
Toda existência do Eu aparece clara como absolutamente dependente do pensamento: “Se
deixasse de pensar, deixaria totalmente de existir”.
A enorme importância do Cogito na construção do cartesianismo é de duplo sentido: por um
lado, tudo o que for afirmado deverá ser feito como a evidência plena do tipo “penso, existo”. Por
outro lado, o Cogito significa o encontro pelo pensamento de algo que subsiste. O desdobramento
natural do “penso, logo existo” é: existo como coisa pensante. Do pensamento ao ser que pensa,
chega-se à distinção entre a subjetividade e a objetividade96.
Ele não apenas entende que é um Eu pensante, mas entende, ao mesmo tempo, que este Eu
pensante é mais real do que o mundo físico que percebemos através de nossos sentidos.
94
Descartes, René. Os pensadores. Editora Nova Cultura Ltda., uma divisão do Círculo do Livro Ltda. Fundador
Victor Civita (1907-1990), 1996, p. 5.
95
Descartes, René. Os pensadores Descartes. Editora Nova Cultura Ltda., uma divisão do Círculo do Livro Ltda.
Fundador Victor Civita (1907-1990), 1996, p. 17.
96
Gerbase, Jairo. Os paradigmas da Psicanálise.1a ed. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico,
2008, p. 10.
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Mais tarde, Freud dirá que a dúvida de Descartes assinala a presença da formação do
inconsciente. É nesse lugar da resistência da qual a dúvida é o índice que se manifesta o sujeito, ou
seja, no campo do inconsciente como pensamento ausente97.
Em continuidade, para Descartes, a noção de um ser perfeito deveria vir de outro ser perfeito,
a existência de Deus. Então, procura provar a existência de Deus como fundamento da objetividade.
Para Descartes a existência de Deus é algo tão evidente quanto o fato de que alguém que pensa ser
“um ser”.
Surgirá essa ideia porque Deus existiria e justificaria sua existência na mente humana,
passando a mostrar a relação res infinita (Deus) e a res cogitans (o pensamento). A bondade de
Deus impede a sustentação da hipótese do “gênio maligno” e justifica o otimismo científico e a
própria crença na razão.
Pela primeira vez na filosofia, o discurso do saber se volta para o agente do saber, permitindo
tomá-lo, ele próprio, como questão de saber. Não se tratava apenas de situar os seres, de pensá-los
através de uma ontologia, de uma metafísica, mas de colocar em questão o próprio pensar sobre o
ser, que se torna, assim, também pensável98.
Para Elia, a aparição do sujeito no cenário do pensamento se fez através da angústia e da
incerteza em relação ao que se dera até então como um mundo mais ou menos compreensível para o
entendimento do homem. Não se trata de afirmar que não tenha havido crises no pensamento até
esse momento, mas de saber discernir a magnitude dessa crise em particular – o advento da ciência
moderna e sua separação da filosofia – e fazer a verificação precisa de seu valor de corte maior:
Descartes inaugurou um tempo moderno, ou seja, a descoberta da certeza de si, de uma consciência
reflexiva.
A humanidade precisaria esperar mais três séculos por Freud e a Psicanálise para dispor de
elementos que lhe permitissem entender a relação entre essas duas formas de emergência: a do
sujeito e a da angústia, a ponto de poder enunciar que essa relação é de equivalência: a emergência
da angústia e a emergência do sujeito99.
Na pesquisa e trabalho analítico desenvolvido, Freud descobriu que o homem é regido por
forças que escapam a consciência, algo que diferencia o ser humano da espécie animal, descobriu o
inconsciente.
97
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008,
p. 12.
98
99
Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2 Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 13.
Ibidem.
78
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O inconsciente acha-se numa relação de distanciamento essencial com o fenômeno da
consciência e esse distanciamento deve ser marcado no nível da subjetividade. Mas a subjetividade
daquele que procura conhecer é a consciência. E é difícil ver como o inconsciente poderia, nessas
condições, dar-se numa evidência100.
Daí descentrar a razão: a existência do pensamento inconsciente, operando continuamente,
redimensiona de modo radical o Cogito cartesiano. Como sustentar que “penso, logo sou”, se há
algo que pensa em mim e, mais do que isso, trama à minha revelia? Logo, eu não penso e sim sou
pensado...?, ou seja, o inconsciente é a Outra cena que revela que o ser humano não possui domínio
de si mesmo 101?
Para Descartes o pensamento define, portanto, o ser substancializando o sujeito; para a
psicanálise o sujeito não tem substância e seu ser está fora do suposto pensamento consciente – lá
onde se encontra a pulsão sexual, articulação da pulsão com o registro do significante102, lembrança
apagada, significante que falta, vazio de representação onde se manifesta o desejo. O Inconsciente
nos ensina a seguinte proposição: penso logo desejo, pois a cogitação inconsciente presentifica o
desejo sexual, indestrutível, inominável, sempre desejo de outra coisa, mas o pensamento não o
define pois não há representação própria para o desejo, já que o sujeito não tem substância, é vazio,
falta, se não deixaria de ser desejo103.
Para a filosofia cartesiana, o sujeito é uno, inteiro, identificável, enquanto para a psicanálise
não é identificável, mas sujeito a identificação, estando longe de ser unificado.
Se os procedimentos cartesiano e freudiano convergem no sentido de definir o sujeito pela
razão, eles divergem em relação à substância: para Descartes, o sujeito é uma coisa pensante,
enquanto que, para a Psicanálise, o sujeito, sem substância, manifesta-se na hesitação, na dúvida
entre isto e aquilo. Descartes parte do pensamento e chega à existência; Freud parte do pensamento
inconsciente e chega ao desejo 104.
Segundo Bruce Fink105, o sujeito sob o enfoque de Lacan, pode “ter” pensamentos ou ser,
mas nunca ambos ao mesmo tempo. Ele é forçado a escolher um ou outro, virando ao avesso o
100
Juranville, Alain. Lacan e a Filosofia. Jorge Zahar,, Campo Freudiano no Brasil, Rio de Janeiro, p. 21.
Jorge, Marco Antonio Coutinho, Ferreira, Nadiá Paulo. Freud, criador da Psicanálise. 2 Ed., Rio de Janeiro:
Jorge, Zahar, 2005, p. 7.
102
Lacan, Jaques. Os quarto conceitos fundamentais da Psicanálise. Seminário 11 (1963-64). Rio de Janeiro.
Jorge Zahar Editora, 1997.
103
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2008, p. 13.
104
Ibidem, p. 14.
105
Fink, Bruce. O sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo; tradução Maria de Lourdes Sette Câmara;
consultoria Mirian Aparecida Nogueira Lima. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 65.
101
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sujeito de Descartes, isto porque, do ponto de vista de Lacan sobre o pensamento, assim como o de
Freud, gira em torno do pensamento inconsciente, não do consciente estudado por Descartes, o
filósofo. O pensamento consciente está ligado à racionalização.
O sujeito de Descartes é visto como o senhor de seu próprio pensamento, sendo o autor de
suas próprias ideias e, portanto, não teme afirmar “Eu penso”. Esse sujeito cartesiano é caracterizado
pelo que Lacan chama de “falso ser” no Seminário 15 106, o pensamento do Eu é mera racionalização
consciente. Já o Cogito lacaniano opõe o “penso onde não sou” do sujeito do inconsciente ao “sou
onde não penso” fora do significante, lá onde o sujeito busca seu ser para-além da linguagem107.
O termo “inconsciente”, quando empregado antes de Freud, era utilizado para identificar
aquilo que não era consciente, mas jamais para designar um sistema psíquico distinto dos demais e
dotado de atividade própria.
Freud deu ao termo inconsciente um sentido novo, legitimado com base em suas teorias, isto
é, através de observações do que “tropeça”, escapa, cambaleia, falha em todos nós, quebrando, de
uma maneira incompreensível, a continuidade lógica do pensamento e dos comportamentos da vida
cotidiana. Isto pode ser observado através de manifestações vindas dos lapsos, atos falhos, sonhos,
esquecimentos e do sintoma. Todos obedecem a processos lógicos da linguagem, mas de uma outra
lógica que não a cartesiana.
O texto “O Inconsciente” (1915) assinala que é nas lacunas das manifestações conscientes
que temos de procurar o caminho do inconsciente. Falar do inconsciente freudiano é apontar o que
ele não é, ou então marcar a sua diferença com relação àquela concepção subjetiva dominante até
Freud.
A presunção de uma dimensão psíquica inconsciente mostra-se ainda mais justificada, na
medida em que os dados lacunares da consciência supõem um mais-além psíquico capaz de explicálo.
Longe de serem totalmente explicitados pela lógica da racionalidade psicológica, os atos
conscientes permanecem em Freud, como que animados por outras iniciativas latentes não
imediatamente identificadas por pensamentos, cuja origem e elaboração permanecem desconhecidas
porque nos são ocultas. Essas hipóteses sobre o inconsciente também permitem compreender certos
processos patológicos irracionais, tão frequentes quanto cotidianos, ligados à existência do sujeito.
Apud Fink, Bruce. O sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo; tradução Maria de Lourdes Sette Câmara;
consultoria Mirian Aparecida Nogueira Lima. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 65.
107
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2008, p. 15.
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Desta forma, Freud propõe a constituição do aparelho psíquico por um processo de
estratificação. O material se rearranja de tempos em tempos e naturalmente, como uma
complexidade da constituição do sujeito que, de pequeno animalzinho humano, pode vir a se tornar
sujeito do inconsciente. Poder vir a se tornar um sujeito implica não um destino certo, mas uma
conquista na organização do aparelho psíquico.
O inconsciente para Freud é constituído de linguagem e pulsões. A representação seria aquilo
que do objeto vem se inscrever nos “sistemas mnêmicos”. A representação é organizada segundo as
possibilidades dos significantes enquanto tal108.
A representação para Freud é linguagem, supõe relação com o outro na e pela linguagem e
através dela. Este pensamento remete ao que Lacan define como “o lugar do Outro” – O grande
Outro – definido como sistema de elementos significantes ao qual o sujeito é submetido desde o
começo.
Através da experiência Psicanalítica, uma vez colocada em operação com a instalação do
dispositivo freudiano da associação livre, produzem-se as condições de emergência do sujeito do
inconsciente, justamente através da repetição na fala e da transferência com o analista e criou-se as
condições de produção da chamada formação do inconsciente – atos falhos, lapsos, sonhos, sintoma
e chistes – modalidade de emergência do sujeito109, sendo a palavra o veículo de acesso ao
inconsciente.
Como veremos mais adiante, para Lacan o inconsciente é estruturado como uma linguagem,
daí destacarmos a importância da palavra. É por meio da palavra que temos acesso à formação do
inconsciente. Toda palavra carrega em si uma intenção inconsciente.
Conforme Elia, desqualificar a fala do sujeito equivale, portanto, a criar as condições de
desqualificação, de ausência de qualidades, que pavimentam as vias de acesso ao inconsciente pela
fala, pelo discurso concreto do sujeito. Desqualificar a fala do sujeito é equivalente a “qualificar” o
sujeito do inconsciente como “um sujeito sem qualidades” e esta é a única forma de se criar um
acesso, precisamente pela via da fala, para que o sujeito do inconsciente possa emergir através dela.
Daí o uso da palavra de modo a que esta se torne a via de acesso à cena do inconsciente, na qual o
sujeito “sem qualidades” poderá emergir. As qualidades são geradoras de seus sintomas, que são
decifrados num trabalho de análise.
Apud Jacques, Lacan. Seminário 7, 1991, p.80. Borges, Sonia. O quebra cabeça. A alfabetização depois de
Lacan. Ed. da UCG, p.104.
109
Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2 Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 16.
108
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O sonho, o chiste, a piada, o lapso, o esquecimento de nome, o ato falho, o sintoma têm em
comum proverem do mesmo lugar, a saber, dessa parte do discurso que falta à disposição do sujeito
para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente110.
O que interessa à Psicanálise é o fato de que o homem fala. Ele não tem acesso direto a seus
objetos; ele encontra, de preferência, sua satisfação nas entrelinhas, na própria cadeia significante,
nos lapsos, atos falhos, sintomas, etc. Há um sujeito barrado pelo fato de que fala que se vê
representado por um significante junto a outro significante, o que não acontece sem a queda de um
objeto111. E para compreensão destes conceitos será necessário entender como se operam os
indicativos da formação do inconsciente: atos falhos, chiste, sonho e sintoma.
Os atos falhos apresentam-se sob a forma de lapso, falsa leitura, falsa audição, incapacidade
de encontrar um objeto, perdas, certos erros. Trata-se de um ato em que o corpo está em jogo num
dado instante ou de um ato de fala ou escrita substituído por outro; assim, substituídos, desviados ou
invertidos, omitidos, esses atos têm duplamente uma função de linguagem: assinala em primeiro
lugar a revelação de um desejo inconsciente e, ao mesmo tempo, atestam um inconsciente
estruturado como uma linguagem (condensação e deslocamento, metáfora e metonímia) e podem,
portanto, ser decifrados como uma mensagem.
O ato falho tem um papel decisivo em relação a certas representações capazes de perturbar o
equilíbrio psíquico do sujeito. Um exemplo de ato falho: uma jovem, ao conversar com suas amigas
sobre o quanto custava fazer as unhas no local onde residia disse: “Ah, lá com apenas dez reais se
faz pai e mãe”. Houve um tropeço linguístico. O que deveria ter sido dito era pé e mão.
Algumas falhas no dizer parecem indiciar o momento exato de sua enunciação, algo da
ordem do “desejo”, da subjetividade de seu enunciador que queria dizer uma coisa, mas acaba
dizendo outra. Uma divisão cuja enunciação pode ser facilmente nomeada como “ato falho”, uma
fala tropeçada, truncada que, a despeito das intenções do sujeito, vem de um Outro lugar, do lugar
de um sujeito constitutivamente clivado e heterogêneo.
A psicanálise se interessa precisamente pelo tropeço naquilo que ele pode revelar do desejo
do sujeito inconsciente. Então, se a fala pode trazer à tona esse sujeito, que se esconde pela via do
recalque, nada mais justo do que buscar no funcionamento da linguagem a expressão de sua
manifestação.
110
Dicionário de Psicanálise, Roland Chemama, p. 81. J. Lacan, Escritos, 1965.
Ricardo Goldemberg (org) André Soulix. [et al] tradução Telma Correa Nóbrega Queiroz, Ricardo
Goldemberg e Marcela Antero. Goza! Capitalismo, globalização e Psicanálise. Salvador, BA. A’lgama, 1977, p. 31.
111
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A título de esclarecimento, Garcia-Rosa112 explica o recalque, dizendo que um determinado
processo mental pertencente ao Inconsciente procura acesso à consciência em busca de satisfação.
No entanto, a censura que opera na passagem do Inconsciente para o Pré-consciente/Consciente
opõe-se violentamente a esse propósito, pois a satisfação do desejo inconsciente, que em si mesma
provocaria
prazer,
provocaria
também
desprazer
relativo
às
exigências
do
Pré-
Consciente/Consciente. Por essa razão, o desejo tem de permanecer inconsciente, podendo retornar
sob a forma de sintoma.
No chiste há uma relação combinatória com o humor. Pode-se tornar tolerável a verdade
inconsciente que nele se revela. Serve até de descarga preliminar de prazer, captando e desviando a
alteração consciente. O efeito do chiste leva a isolar o automatismo psíquico Pré-consciente do
Inconsciente que, com a autorização do sujeito, ao qual tem que consentir com o chiste para que ele
exista, se confessa aí como verdade a se calar.
O chiste emana a diferença de investimento liberado quando duas representações são
comparadas; esse excedente vai, então, se ligar ao que nos havia feito perder a experiência da
realidade. É preciso, ainda, haver simetria entre, de um lado, o dispêndio psíquico requerido para
uma representação e, de outro, o conteúdo representado. Há em cena a armadilha do desejo, a ilusão
de uma solidez imaginária que possa, não obstante, responder a demanda.
O sonho é a via régia para o inconsciente, pois representa a realização de um desejo
recalcado. Se um desejo foi expulso da consciência, no sonho ele só pode reaparecer sob a forma de
disfarce, o que faz com que o sujeito não reconheça o que não quer saber. Uma linguagem cifrada
exige decifração e não visa comunicar nada a ninguém113.
No sonho referimos-nos a algo inteiramente diferente: a fantasia, própria do estado de vigília,
ou ainda, um desejo consciente, por vezes a uma utopia, desvaneio, ilusão, desejo. Trata-se de uma
experiência singular e, como tal, irreproduzível, ainda que certos roteiros ou conteúdos oníricos se
repitam no curso de um longo período, ou mesmo, ao longo de uma vida.
Os sonhos podem ser contados, esquecidos, reconstituídos. Eles acontecem ao sonhador
como acontecem ao indivíduo desperto, com múltiplos eventos que o impressionam, que o abalam e
que modificam mais ou menos o curso de sua existência. Podemos ter a tentação de interromper aí o
paralelo e de opor, quanto ao resto, a irrealidade dos episódios oníricos à realidade das experiências
112
Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Jorge Zahar, 8 Ed. Rio de Janeiro, p. 91.
Jorge, Marco Antonio Coutinho, Ferreira, Nadiá Paulo. Freud, criador da Psicanálise. 2 Ed., Rio de Janeiro:
Jorge, Zahar, 2005, p. 23.
113
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que se ordenam numa história individual, material e socialmente situada. Os únicos pontos comuns
se resumiriam, então, no caráter singular, memorável e relatável desses acontecimentos passados.
Trata-se de uma efetividade do acontecimento, bem diferente daquela do pensamento ou do
sentimento presente, daquela da fala viva que evolui ao se endereçar ao outro e mesmo daquela que
reconhecemos nessas cenas íntimas, imprecisamente chamadas de sonhos ou fantasias diurnas.
O sonho está no limite entre o psíquico e o somático, numa região cotidianamente
atravessada, em que se efetua a retirada dos investimentos – Pré-consciente e Consciente – de todas
as representações de objeto, para que se bloqueie o sistema de referências que, no estado de vigília,
põe em conexão o corpo vivo e o mundo ambiente.
Freud observa que o sonho nos mostra o homem, na medida em que ele não dorme, mas,
apesar disso, ele não pode deixar de nos revelar, ao mesmo tempo, característica do próprio sonho.
Essa ideia de um sonhador que não dorme, quando precisa justamente dormir para sonhar e quando
se supõe que seu Eu deseje antes de tudo prolongar seu sono, servindo-se do sonho como guardião
contra os assaltos pulsionais que o poderiam interromper.
Há um trabalho a ser feito pelo mecanismo do sonho, que são os mesmos que regem o
funcionamento do inconsciente: condensação e deslocamento. A função é distorcer o desejo
recalcado, burlando desta forma a censura114.
A condensação tem como principal atributo a síntese. Eis o motivo de Freud chamar
atenção para o fato de que os sonhos apresentam-se breves, concisos e lacônicos em comparação
com a série de pensamentos oníricos revelados em sua interpretação. O relato de um sonho de
apenas um parágrafo pode ter várias páginas de interpretação. O deslocamento se caracteriza por
uma transferência de intensidades psíquicas. Um elemento sem valor psíquico retira a atenção de
outro verdadeiramente importante em relação ao desejo do sujeito 115.
O inconsciente é uma instância que trabalha em nós, produzindo seus efeitos. Como
exemplo disso, podemos dizer que, para a consciência, um charuto só pode ser um charuto. Sua
lógica de funcionamento não admite facilmente que possamos conceber que o charuto seja um
guarda-chuva, pois existe uma incompatibilidade entre essas idéias. Do ponto de vista do trabalho
inconsciente, uma ideia pode associar-se a outra, transferindo-lhe a sua carga representacional, de
modo que se pode sonhar que um charuto é um guarda-chuva, pois não há contradição, nem
negação, nem tempo na lógica inconsciente.
114
Jorge, Marco Antonio Coutinho, Ferreira, Nadiá Paulo. Freud, criador da Psicanálise. 2 Ed., Rio de Janeiro:
Jorge, Zahar Ed., 2005, p. 23.
115
Ibidem, p. 24.
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O sintoma foi a primeira formação do inconsciente a ser descoberta por Freud, que se viu
diante de um enigma moderno por excelência – o poder da fala. Freud começou pelo sintoma,
especulando a seu respeito, à maneira de um filósofo. Daí viu-se diante de um enigma moderno por
excelência em sua época, a histeria, o limite do poder da fala e, portanto, da captação de si mesmo e
do objeto.
Em “O mal-estar na cultura”, Freud destaca a incapacidade do homem de ter acesso a uma
sexualidade que seja menos incerta, ambígua e conflituosa. O lugar do sintoma se vê assim
deslocado para interagir a respeito das condições gerais de nosso acesso ao sexo116.
Se o inconsciente é efeito de linguagem e o tratamento não dispõe de outros meios além dos
da fala, convém reconhecer as propriedades físicas da linguagem e o poder de determinar nosso
destino, sintomático em todos os casos.
Não se deve atacar o sintoma, mas abordá-lo como uma manifestação subjetiva, o que
significa acolhê-lo para que possa ser desdobrado e decifrado, fazendo aí emergir um sujeito.
Tratar o sintoma é fazer com que ele se transforme no sentido temporal para o próprio
sujeito, no intuito de deixar de ser sintoma do momento, de se concluir em sua incapacidade de lidar
de outra forma com o gozo para transformar-se em um enigma do tempo para compreender, ou seja,
transformar sintoma resposta em sintoma pergunta.
A tendência psicanalítica presente desde Freud de operar no ponto exato de contato entre
estruturas da subjetividade e modos de interação social é exigência resultante da certeza de que um
campo é sempre exposição sintomática do outro e de que, se a cura sempre obedece à
particularidade do caso, ela não pode, no entanto, deixar de levar o sujeito a reconfigurar seus
vínculos com a ordem sócio-simbólica117.
O sintoma pretende dizer a verdade que o constitui e, em consequência, a ação a operar
consiste em acolher essa “verdade que quer dizer-se”118, que pretende articular-se na palavra, sua
única possibilidade. O sintoma exige um trabalho, pois não está dado que o sintoma possa dizer, de
fato, a dita verdade. Há que lhe extrair os restos da verdade que escapam ao saber e falam no
sintoma.
Desde a psicanálise, ao menos lacaniana, os sintomas contemporâneos desvelam igualmente
hoje, que o enigma para o ser humano segue sendo seu ser de desejo, efeitos de seu ser de
116
117
118
Kaufmann, Pierre .Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Por, 1996, p. 478.
http://www.geocities.com/vladimirsafatle/vladi118.htm?200929.
Lacan, Jacques. Seminário 16: De otro al outro. Clase 4. Encontro Internancional Paris, 2006, p. 63.
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linguagem, condições que articulam a diferença entre a demanda de amor e a satisfação via objeto
de desejo119.
Segundo Safatle120, nenhuma perspectiva sociológica pode abrir mão de uma análise das
disposições subjetivas que implicam na compreensão da maneira com que os sujeitos investem
libidinalmente os vínculos sociais mobilizando, com isso, representações imaginárias e expectativas
de satisfação que muitas vezes acabam por inverter o sentido de determinações normativas que
visam racionalizar tais vínculos.
O desejo é sempre enigmático e por isso mesmo ele apela ao saber, constituindo, assim, o
sujeito articulado a um desejo de saber121.
O inconsciente é uma lei de articulação da linguagem e não a coisa ou o lugar onde essa
articulação se dá. O que define, portanto, o inconsciente não são os seus conteúdos, mas o modo
segundo o qual ele opera, impondo a esses conteúdos uma determinada forma.
O inconsciente é uma lei de articulação da linguagem e não a coisa ou o lugar onde essa
articulação se dá. O que define, portanto, o inconsciente não são os seus conteúdos, mas o modo
segundo o qual ele opera, impondo a esses conteúdos uma determinada forma.
Desta forma, o sujeito sente-se como que atropelado por um outro sujeito que ele
desconhece, mas que se impõe à sua fala, produzindo trocas de nomes e esquecimentos cujo sentido
lhe escapa.
Em relação a essa duplicidade de sujeitos, Freud declara, na introdução de seu artigo sobre o
inconsciente, que “todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei ligar ao
resto de minha vida mental devem ser julgados como se pertencessem a outrem122”.
Esse outro sujeito é o sujeito do inconsciente, do qual temos algumas indicações seguras se
observarmos os fenômenos lacunares acima referidos. E que é construído na medida em que está
engajado num jogo de símbolos, num mundo simbólico, onde o homem é um sujeito descentrado.
De fato, só há o inconsciente se houver o simbólico. O recalcamento produz o inconsciente e
isso só ocorre por exigência do simbólico. O acesso ao simbólico é, portanto, a condição para a
constituição do inconsciente e, evidentemente, também do Consciente. É através do simbólico que o
119
Ibidem, p. 64.
http://www.geocities.com/vladimirsafatle/vladi118.htm?200929.
121
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.,
2008, p. 19.
122
Sigmund, Freud. O inconsciente (1915), in ESB, Rio de Janeiro, Imago, Vol. XIV, 1975, p. 195.
120
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indivíduo constitui seus modos de objetivação, sua percepção, seu discurso. O simbólico é o
mediador da realidade e, ao mesmo tempo, o que constitui o indivíduo como humano123.
Nota-se que, como já descrevemos, Inconsciente e Consciente se formam por efeito de um
mesmo ato e não o segundo como um epifenômeno do primeiro. É a aquisição da linguagem que
permite o acesso ao simbólico e a consequente clivagem da subjetividade.
Toda produção do campo do sentido é da ordem simbólica, seja ela falada ou não. Um gesto,
uma expressão do rosto, do corpo, uma dança, um desenho, tanto quanto uma narrativa oral são
produções simbólicas, regidas pelo significante, e assim, ditas verbais, por estarem na dependência
do significante e não por serem expressas na via oral124.
Segundo Elia, de todas as formas pelas quais a estrutura simbólica, significante, da
linguagem pode se atualizar em um ser falante, a fala é a única que permite, por seu modo
encadeado, como discurso desdobrado no tempo em uma sequência de palavras, que o plano
significante seja destacável da significação.
Pode-se dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, por elementos
materiais simbólicos. Os significantes são engendradores do sentido, que não portam em si o sentido
constituído, mas que se definem como constituintes do sentido, daí dizer, significante o que faz
significar125.
Cada sistema possui uma estrutura própria, de tal modo que as características que
encontramos em um deles não são encontradas no outro. Cada um dos sistemas possui um modo
próprio de funcionamento que Freud denominou processo primário e processo secundário.
O processo primário (sistema Ics) é caracterizado por dois mecanismos básicos, como dito
anteriormente, que são o deslocamento e a condensação. No processo primário, a energia psíquica
tende a se escoar livremente, passando de uma representação para outra, procurando a descarga da
maneira mais rápida e direta possível, enquanto no processo secundário (Pcs/Cs) essa descarga é
retardada de maneira a possibilitar um escoamento controlado126.
Isso faz com que, no processo secundário, as representações sejam investidas de forma mais
estável, enquanto no processo primário há um deslizar contínuo do investimento de uma
representação para a outra, o que lhe confere o caráter aparentemente absurdo que se manifesta, por
123
124
125
126
Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 8 Ed., p. 184.
Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 22.
Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2 Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., 2007, p. 23.
Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 8 Ed., p. 182.
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exemplo, nos sonhos. A condensação e o deslocamento não são apenas mecanismos da elaboração
onírica, mas sim os “marcos distintivos do assim denominado processo psíquico primário127”.
Os processos primário e secundário são, ainda, respectivamente, correlativos do princípio de
prazer e do princípio de realidade, isto é, enquanto os processos Ics procuram a satisfação pelo
caminho mais curto e direto, os processos Cs, regulados pelo princípio de realidade, são obrigados a
desvios e adiamentos na procura de satisfação.
Freud assinala, ainda, como característica do sistema Ics a ausência da temporalidade. O
inconsciente é intemporal, seus conteúdos não somente não estão ordenados no tempo, como não
sofrem a ação desgastante deste. A temporalidade é exclusiva do sistema Pcs/Cs128.
É o próprio inconsciente que é estruturado, segundo os mecanismos da condensação e do
deslocamento, mecanismo esses que Lacan, seguindo Jakobson, vai interpretar como análogos às
figuras linguísticas da metáfora e da metonímia, para firmar em seguida que “o inconsciente é
estruturado como uma linguagem”.
No item seguinte, veremos como estas ideias são desenvolvidas por Lacan, tendo em vista
abordar o desejo como análogo ao sujeito no campo da Psicanálise.
2 - O INCONSCIENTE ESTRUTURADO COMO UMA LINGUAGEM
Neste capítulo, destacaremos, inicialmente, a ideia lacaniana de inconsciente estruturado
como uma linguagem. Estas ideias servirão de suporte para introduzirmos o pensamento de Lacan
sobre a relação necessidade, demanda e desejo, tema central do trabalho.
Lacan teve como ponto central de seu pensamento ser o simbólico o que concede o papel de
constituinte do sujeito humano. Como já comentamos anteriormente, a função simbólica é aquela
através da qual o indivíduo constitui seus modos de objetivação, sua percepção, seu discurso. O
simbólico é o mediador da construção da realidade e, ao mesmo tempo, o que constitui o indivíduo
como indivíduo humano129.
Este ponto é fundamental, pois Lacan, em seus estudos, dá ênfase à importância da
linguagem como lugar de acesso do homem ao simbólico, possibilitando-lhe conferir ao mundo um
universo de significações. Para melhor compreender a constituição do sujeito, precisamos adentrar
127
128
129
Freud, Sigmund. “A dinâmica da transferência” (1912). ESB. Vol. XII, Rio de Janeiro, Imago, 1976.
Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente,Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 8 Ed. p. 183.
Garcia-Rosa Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 8 Ed. , p. 184.
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ao estudo que Lacan fez, buscando na Lingüística a base de sua fundamentação de que o
Inconsciente é estruturado como linguagem.
Fato notório, o bebê quando nasce é intermediado pela linguagem, para que possa manter sua
existência. Não é possível o ser falante experimentar a realidade fora do campo da linguagem.
A linguagem teria para o homem a mesma função que tem uma ponte a ligar dois pontos
separados por um abismo. Haveria uma falha constitutiva a separar o homem do mundo e a
linguagem seria responsável por tentar superar. Desta forma, compreende-se a linguagem como
fundadora da realidade do inconsciente.
Uma das fontes teóricas do pensamento de Lacan sobre o inconsciente é a Linguística de
Ferdinand de Saussure, tal como foi exposta por seus alunos sob o título de “Curso de Linguística
Geral(1969)130”. Uma das decorrências das reflexões do eminente linguista acerca da noção de
língua é que ela é um sistema de relações.
Veremos adiante o pensamento de Saussure e a base de fundamentação de Lacan para se
chegar à conclusão de que “o Inconsciente é estruturado como linguagem”. A maioria de nós,
falantes, não imagina que, sempre que falamos, todo um sistema entra em funcionamento. Segundo
Saussure, a língua é um sistema particular, cujas unidades são constituídas a partir das relações e
não o inverso; relações que, ao serem estabelecidas, produzem unidades linguísticas, logo, a questão
é saber o que mobiliza essas relações e como elas podem produzir sentido.
A linguagem é tradicionalmente concebida como constituída de signos que exprimem
significações na medida em que a significação e o signo estão intrinsecamente ligados ao mundo131.
A ideia central de Saussure, com a qual funda a Linguística é o conceito de signo como uma
unidade composta de duas partes, tal como uma moeda é composta de cara e coroa: o significado e o
significante.
Para Saussure, o signo não é a união de uma coisa e um nome, mas união de um conceito e
uma imagem acústica (ou impressão psíquica do som), ou seja, Saussure chamou as unidades
linguísticas de signo, os quais são formados pela associação do significado com o significante, não
sendo apreensíveis fora desse sistema, o que significa dizer que os signos só têm existência por meio
da relação recíproca que mantém entre si, donde provém a possibilidade de significação. Saussure,
então, aponta os dois Princípios referentes ao signo Linguístico: Arbitrariedade e Linearidade132.
130
131
132
Ibidem, p. 184.
Juranville, Alain. Lacan e a Filosofia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. Campo Freudiano do Brasil, p. 22.
Garcia-Rosa Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, 8ª Ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 184.
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Na arbitragem do signo inexiste relação de necessidade entre um significado e um
significante. Não há nada que una, de maneira necessária, o significado árvore à sequência de sons
que lhe serve de significante. O mesmo significado árvore pode ser representado pelo significante
arbor, arbre, tree ou baum. Não se deve levar a supor que ele dependa da livre escolha de quem
fala, mas sim que ele é imotivado, que não mantenha nenhum laço natural com a realidade.
Na linearidade do significante, Saussurre coloca que, por oposição aos significantes visuais,
que podem se organizar simultaneamente em várias dimensões, os significantes acústicos dispõem
apenas da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após o outro, formando uma cadeia. Ao
apontar o significante sobre o significado, tem-se a ideia isolada das coisas, mas Saussure
acrescentar a isto a noção de valor quando destaca que o signo tem relação com outros signos da
língua.
A significação do signo não se esgota no isolamento dessa relação, ela também é função da
relação que o signo mantém com os outros signos da língua. É, a esse outro aspecto do signo, que
Saussure se refere quando coloca o conceito de valor, introduzindo uma nova dimensão no signo
linguístico, deixando de ser visto apenas como uma relação entre significado e significante e passa a
ser considerado também como um termo no interior de um sistema, como a significação resultante
da relação entre significado e significante indicada por uma flecha vertical133. Assim, o valor de
qualquer termo que seja está determinado por aquilo que o rodeia.
A noção de valor, que implica a de relação, é proposta por Saussure para explicar de que
forma organizam-se as unidades linguísticas no sistema.
É na composição do sistema de linguagem que se constituirá o valor de um signo numa
cadeia de significantes para se obter a significação, não só privilegiando o significante em
detrimento do significado, mas, também, fazendo questão de diferenciar o significante da imagem
acústica, colocando que o significante em sua essência não é, de modo algum, fônico, mas sim
incorpóreo, constituído não por sua substância material, mas unicamente pelas diferenças que
separam sua imagem acústica de todas as outras134. E é a posição do signo no sistema de linguagem
que vai constituir o valor dele como um elemento de significação.
Ao introduzir a noção de valor, Saussure não faz dela o elemento constituinte central da
significação, nem tampouco elimina a relação isolada entre o significado e significante. Para ele,
apesar da significação, local de um elemento numa frase, ser dada pela sua relação com outros
133
Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, 8ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 185.
Saussure, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral; organizado pro Chares Bally e Albert Sechehager.
Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Editora Cultrix. p. 137/8.
134
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elementos desta, a relação significado e significante continua a gozar de relativa autonomia, tal
como é indicada pela elipse que cerca o algoritmo inicial.
Independentemente do peso dado à noção de valor, numa frase correlacionada entre
significante e significado, sempre haverá a autonomia destes.
A resultante disso é que o sentido ou qualquer unidade de significação é obtido sempre “só
depois”, isto é, o valor se fixa a posteriori, a partir dos operadores metonímico e metafórico que
mobilizam significantes, dando a eles valores muitas vezes insuspeitados para o próprio sujeito. Isso
exige que a noção de signo linguístico, tal como proposto por Saussure seja reinterpretada e é o que
Lacan faz.
Lacan recorre à categoria do significante – imagem material acústica – de Saussure, a qual se
associa conceito – ideia – como significado, na constituição do signo linguístico composto de duas
partes, significante e significado.
Assim, buscou na Linguística de Saussure a fonte de seus estudos, mas o fez de forma
diferenciada do próprio autor, colocando que o significante é que se sobrepõe ao significado. Ao
subverter essa associação – significante/significado – Lacan confere a primazia ao primeiro –
significante – na produção do segundo, onde significante prevalece sobre o significado que lhe é
secundário e se produz somente a partir da articulação dos significantes. Procedendo assim, Lacan
encontra o suporte metodológico necessário para uma teoria do Inconsciente.
Garcia-Rosa, com base no texto “A instância da letra no inconsciente”, diz que Lacan declara
que o momento constituinte de uma ciência é analisado por um algoritmo e que, no caso da
Linguística, esse algoritmo é S/s, onde “S” é o Significante e “s” o significado, ambos separados
pela barra.
Se para Saussure o signo continua uma unidade formada pelo significado e pelo Significante,
marcado pelo caráter indissolúvel de suas partes componentes, para Lacan, a barra indica duas
ordens distintas, interpondo-se entre ambas uma barreira resistente à significação. Assim, ficou
quebrada a unidade do signo defendida por Saussure. A cadeia Significante é ela própria, a
produtora dos significados. E é ela que vai fornecer o substrato topológico ao signo lacaniano,
impondo que nenhum Significante possa pensar fora de sua relação com os demais.
Se as palavras estivessem encarregadas de representar os conceitos dados, cada uma delas
teria, de uma língua para a outra, correspondentes exatos para o sentido, mas não ocorre assim135.
135
Saussure, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral; organizado pro Chares Bally e Albert Sechehager.
Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix. p. 135.
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O que faz parte da própria estrutura do Significante é a conexão com outros Significantes
formando uma cadeia: o Significante como tal não se refere a nada, a não ser que se refira a um
discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como liame. Só
pode haver articulação entre os Significantes porque eles podem ser reduzidos a puros elementos
diferenciais.
Vejamos um exemplo para observar como o valor de um termo somente se estabelece ao
término de uma proferição: “há cinco velas... no mar... do meu solitário... coração”. Não é difícil
observar que o sentido de “vela” fica em suspenso até que se pontue o que se está dizendo. Isto é, ao
fechar o enunciado como o “coração”, a palavra “vela”, que poderia ser “vela de aniversário”, “vela
de carro”, “vela de barco”, passa a valer “morte” ou “perda” de entes queridos.
Essa relação passa a ser nomeada por Lacan de operação metonímia, em virtude de seu
caráter de contiguidade, marcado tanto pela linearidade, quanto pelo “efeito retroativo”, impedindo
que tomemos a palavra “vela” como tendo um único significado ou um sentido previamente
estabelecido antes de sua proferição.
A ordem do significado é efeito da cadeia do Significante e, justamente por isto, é na cadeia
do Significante que o sentido insiste. A significação não está, portanto, em nenhum elemento
particular da cadeia.
Mas, o deslizamento incessante do significado sob o significante, por ação do inconsciente,
não quer dizer que não haja a prevalência de um sentido em jogo. Lacan faz questão de pontuar que
seria um erro pensar que a significação reina irrestritamente para-além, pois o Significante, por sua
natureza, sempre se antecipa ao sentido, desdobrando como que adiante dele sua dimensão.
É precisamente no significável que se engendra a paixão pelo significado. A fascinação por
certas metáforas cristaliza o sentido, emperrando o deslocamento metonímico dos Significantes na
cadeia.
Segundo Lacan, do congelamento do Significante nasce não só a paixão pelo sentido que,
inevitavelmente, surge sob a forma de um bem como ideal, mas também o aprisionamento do sujeito
retirado desse sentido cristalizado, obstaculizando o processo de significação e a posição deste em
relação ao desejo.
A articulação Significante não se produz sozinha, é necessário que haja um sujeito. O
Significante só pode passar para o plano da significação porque há um sujeito operando a cadeia do
Significante.
Saussure, destacando significado do significante, considera que haverá uma relação
biunívoca e isolada dos signos, ou seja, a relação biunívoca entre significante e significado irá
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procurar as leis que dariam conta da articulação entre duas instâncias e, se nada incorrer, a
arbitrariedade passa a ser um dos princípios que rege o signo linguístico. Lacan diferencia desse
posicionamento, afirmando que a oposição entre os significantes é que produzirá a diferenciação
entre os significados, destacando que o significante não tem por função representar o significado,
mas que ele precede e determina o significado.
Garcia-Rosa destaca claramente a retomada de Lacan no campo da linguística para definir de
forma mais precisa e possível o sujeito. Percebe que o conjunto de significantes usados na fala oral e
escrita não dá conta de todas as partes do discurso. Existe uma variedade enorme de formas para se
dizer a mesma coisa. Após as digressões gramaticais em torno do discurso, Lacan percebe que o
sujeito do enunciado é o sujeito consciente do enunciado.
Quando falamos, dizemos mais do que pensamos dizer. Existe no que dizemos um sentido
manifesto e um latente, ou seja, nas entrelinhas do que falamos insiste um sentido Outro, indicando
a existência de um saber estranho e familiar.
Segundo Elia136, a fala, por ser uma cadeia de palavras, permite que se opere o divórcio entre
significante e significado, necessário para evidenciar a primazia material do esqueleto significante
sobre o revestimento muscular que são as significações produzidas pelo primeiro. Esse divórcio
evidencia que significante e significado não vieram ao mundo casados, e que sequer se casaram, mas
que é no interjogo de significantes que os significados se produzem.
Lacan dá aos conceitos da linguística um significado, a partir da indicação de Freud ao tomar
os sonhos como um texto. O significante, na versão de Lacan, remete sempre a outro significante,
em cujo intervalo se localiza o sujeito. A ideia é a de que o significante representa o sujeito do
inconsciente para outro significante, sendo que o sujeito não se apresenta na própria cadeia
significante ou discurso manifesto, e sim nos intervalos dessa cadeia, sentido latente para Freud.
Para Lacan, o inconsciente não é uma instância, mas um discurso divorciado do consciente.
O sujeito fica caracterizado pela relação da cadeia de significantes, contrapondo um ao outro
significante, sendo considerado um ser de letra, um sujeito da linguagem esvaziada de substância
psicológica.
Apliquemos a essas condições estruturais o processo de constituição do sujeito para que
possamos recorrer à situação concreta, através da qual o ser humano chega ao mundo e se insere na
ordem humana que o espera, que não apenas precede sua chegada, como também terá criado as
condições de possibilidade de sua inserção nesta ordem.
136
Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2 Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., 2007, p. 22.
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Para a Psicanálise, o sujeito só pode se constituir em um ser que pertence à espécie humana
pela entrada em uma ordem social a partir da família ou de seus substitutos sociais e jurídicos. Sem
isso, ele não só não se tornará humano como tampouco se manterá vivo. Sem a ordem familiar e
social, o ser da espécie humana morrerá.
Assim, o inconsciente emerge nas palavras estruturadas como linguagem.
3 - NECESSIDADE, DEMANDA E DESEJO
O desejo é um dos pontos centrais da Teoria Psicanalítica e ele não tem nada haver com a
questão da necessidade, sentido que habitualmente utilizamos.
A necessidade, tal como o desejo, implica em uma tensão interna que impele o organismo
numa determinada direção. A diferença fundamental entre ambos está pautada no fato de a
necessidade ser uma tensão de ordem física, biológica que encontra sua satisfação através de uma
ação específica que permite a redução desta tensão, enquanto que o desejo implica uma relação com
um objeto para sempre perdido.
A necessidade implica satisfação; o desejo jamais é satisfeito. O desejo pode realizar-se em
objetos, mas não se satisfaz com esses objetos. O desejo implica um desvio ou uma perversão da
ordem natural, o que torna impossível sua compreensão a partir de uma redução à ordem biológica.
Garcia-Rosa137 explica que a relação do desejo com o objeto é, na Teoria Psicanalítica,
diferente em tudo daquela que caracteriza a relação da necessidade com o objeto numa teoria
biológica. O objeto do desejo é uma falta e não algo que propiciará uma satisfação. Ele é marcado
por uma perversidade essencial que consiste no gozo do desejo enquanto desejo. A estrutura do
desejo implica essencialmente nessa inacessibilidade do objeto e é precisamente isso que o torna
indestrutível.
Freud nos fala do modelo de constituição do desejo com base na primeira experiência de
satisfação. Um bebê recém-nascido, premido pela fome, chora, esperneia e agita os braços numa
tentativa inútil de afastar o estímulo causador da insatisfação. Neste momento inaugura a sua
existência. A intervenção da mãe oferecendo-lhe o seio tem como efeito a redução da tensão,
decorrente da necessidade e uma consequente experiência de satisfação. Daí por diante, uma
imagem mnêmica permanecerá associada ao traço de memória da excitação produzida pela
necessidade, de tal forma que, na vez seguinte em que essa necessidade emerge, surgirá
Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 145. Apud
Sigmud, Freud. A interpretação dos sonhos (1900), in ESB, Vol. IV e V, Ed. Imago, Rio de Janeiro, p. 602.
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imediatamente um impulso psíquico que procurará recatexias à imagem mnemônica da percepção e
reevocará a própria percepção, isto é, restabelecerá a situação de satisfação original. Um impulso
dessa espécie é o que chamamos de desejo138.
O que caracteriza esse desejo para Freud é esse impulso para produzir alucinatoriamente uma
satisfação original, isto é, um retorno a algo que já não é mais um objeto perdido e cuja presença é
marcada pela falta, daí dizer que o desejo é a presença de uma ausência, a nostalgia do objeto
perdido.
A Psicanálise pensa o sujeito em sua raiz como social, ou seja, a constituição do sujeito está
totalmente atravessada pelo social sendo essencial para a constituição do sujeito do inconsciente.
Segundo Elia139, quando um bebê aparece na cena do mundo, o primeiro fato a se considerar
como ponto prévio de seu percurso na direção de se tornar um sujeito é que ele é um locus de uma
imperiosa necessidade de sobrevivência.
Muito antes de o bebê nascer, ou seja, de um ser humano surgir na cena do mundo com a
possibilidade de se tornar um sujeito, o campo em que ele aparecerá já se encontra estruturado,
constituído, ordenado.
O sujeito só pode se constituir em um ser que pertence à espécie humana ao entrar numa
ordem social a partir da família ou de seus substitutos sociais e jurídicos. Sem isso ele não só se
tornará humano como tampouco se manterá vivo. A essa condição Freud deu o nome de desamparo
fundamental do ser humano, que exige a intervenção de um adulto próximo que perpetre uma ação
específica, necessária à sobrevivência do ser humano desamparado.
Mas, a necessidade é uma condição animal, do plano natural, biológico. Ao encontrar a
satisfação, através de uma ação específica que impele o organismo numa determinada direção, há
uma baixa da tensão que gerou a necessidade. Nenhum ser humano tem a possibilidade de
experimentá-la como tal. Não é possível o ser falante experimentar a realidade fora do campo da
linguagem, ou seja, o que quer que seja a necessidade ela só pode ser experimentada pelo sujeito
fragmentada pelo Significante.
Para a Psicanálise, a necessidade não faz parte da história do sujeito, este tempo da
necessidade é mítico. Se nascemos com necessidades, nunca a experimentamos pura ou diretamente,
138
139
Ibidem, p. 602.
Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 44.
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ou seja, sem a mediação da linguagem140. Não se reconduz o sujeito ao plano do inatismo pelo viés
de suas necessidades vitais. Quando o bebê nasce já há a intermediação da linguagem para atender a
ação específica de sobrevivência a fim de que ele mantenha sua existência.
A psicanálise não desconsidera que tenhamos um organismo e que este é regido por leis
naturais e biológicas, nem afirma que as vicissitudes deste organismo não afetam o sujeito. No
entanto, a experiência que temos do nosso organismo, de suas exigências, proezas, debilidades ou
doenças, nós só a temos através do campo da significação, do sentido, ou seja, pelo fato de que, por
sermos falantes, somos marcados pela linguagem, pelo significante, mesmo no mais extremo nível
de intimidade que possamos estabelecer com nosso órgão e com nosso corpo.
Incidentalmente, a mediação do significante faz com que experimentemos nossa condição
orgânica não como um todo, não no peso de uma unidade vital, em bloco, mas por fragmentos,
pedaços, com os quais sonhamos, imaginamos, fantasiamos, enfim, representamos para nós mesmos.
Contudo, esta condição de necessidade, mesmo excluída do processo de sua constituição,
deixará marcas no sujeito. Não diretamente como dissemos, mas como uma herança a ser retomada
posteriormente e ressignificada pelo sujeito, fazendo uso do significante por isso.
O sujeito vive num mundo em que suas necessidades são reduzidas ao valor de troca. O seio
e o excremento, como objetos de necessidade, entram no jogo da linguagem não como objetos e sim
como significantes: eles são “objetos significantes”.
Mas nem tudo está dentro dos significantes: o que está “alienado as necessidades, constitui
recalque originário por não poder hipoteticamente articular-se na demanda, aparecendo, porém, num
rebento, que é aquilo que se apresenta no homem com o desejo141”.
Tem-se, assim, a indicação do desejo fora do significante. E Lacan dá a seguinte imagem
dessa relação: “o desejo se esboça na margem onde a demanda se rasga da necessidade142”.
Conclui-se, desta forma, que quando o sujeito nasce ele perde a essência da necessidade pela
introdução do Significante que atende sua demanda de sobrevivência.
A satisfação da necessidade vital de sobrevivência é perdida como natural, com a introdução
da linguagem. Há o registro da representação dessa experiência, onde o objeto da necessidade passa
a objeto de desejo. O psiquismo procura reencontrar o objeto como foi registrado. Essa busca é o
desejo.
140
Ibidem, p. 45.
Lacan, Jacques. A significação do falo. Escritos, 1998, p. 697.
142
Lacan, Jacques. A direção do tratamento e os Princípios de seu poder. Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1988, p. 828.
141
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Freud demarcou o surgimento do sujeito em sua dependência do Outro e da linguagem. A
mãe ocupa este lugar do Outro e representa a cultura e ainda exerce a função de despertar seus
desejos. Já Lacan propõe a categoria de Outro para designar não apenas o adulto próximo de que
fala Freud, mas também a ordem que este adulto encarna para o ser recém-aparecido na cena de um
mundo já humano, social e cultural143.
Para Elia, este Outro designa a função de cuidar do bebê e também toda uma ordem
simbólica que a mãe introduz no seu ato de cuidar. O Outro é o esqueleto material e simbólico dessa
ordem, sua estrutura significante, o que permite, portanto, dizer que a ordem do Outro, que a mãe
encarna para o bebê, é uma ordem significante e não significativa144.
O que chega ao bebê é um conjunto de marcas materiais e simbólicas – significantes –
introduzidas pelo Outro materno, que suscitarão, no corpo do bebê, um ato de resposta que se chama
sujeito.
Assim, Freud passou a considerar as relações que um indivíduo tem com o Outro como
fenômeno social, reconhecendo este Outro como peça fundamental na constituição da subjetividade,
uma vez que acumula a função de transmitir a cultura e a linguagem que o determina
simbolicamente. E é este primeiro Outro que constitui o sujeito e o insere no campo social. Freud
afirma que o indivíduo irá se posicionar de acordo com as leis que o marcam.
Conforme Quinet145, o desejo do homem é constituído, formado, a partir e através do desejo
do Outro. “O desejo do homem é o desejo do Outro”, assim já dizia Lacan. Este é um tema
hegeliano que Lacan tomou emprestado da leitura de Kojève da Fenomenologia do Espírito,
sobretudo da dialética do senhor e do escravo, no que diz respeito a teoria do desejo.
Antes de adentrarmos ao desejo sob o enfoque dado pela psicanálise, veremos a concepção
da fenomenologia hegeliana no livro “Freud e o Inconsciente” de Garcia-Rosa.
Fenomenologia hegeliana nada mais é do que a descrição que tem a historia do homem
seguida pela consciência até chegar a autoconsciência.
Num primeiro momento, o homem é consciente, ou seja, consciência do mundo exterior. Em
seguida, o homem aparece como um para-si, autoconsciência, ou seja, consciência de si mesmo e
também consciência do outro como um para-si. É na realização entre dois para-si que o desejo se
143
Elia, Luciano. O conceito do sujeito. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., 2007, p. 39.
Ibidem, p. 40.
145
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008, p. 91.
144
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constitui como desejo humano. Num terceiro momento, vem a razão: o homem como em-si e parasi146.
O que interessa para a explicação do desejo em Hegel é a passagem da consciência para a
autoconsciência, passagem esta feita pelo Desejo.
Essa consciência é a maneira de interação do homem no mundo exterior. A certeza que essa
consciência oferece não é a verdade, é abstrata na medida em que nem mesmo constitui ainda um
sujeito. O que se revela é o objeto e não o sujeito147.
O sujeito surgirá somente a partir do desejo. É pela ação de assimilar o objeto que o homem
se vê como oposto ao mundo exterior.
O desejo é um vazio que será preenchido pela transformação e assimilação do objeto.
Se o desejo estiver voltado para um objeto natural, uma coisa, o Eu produzido por sua
satisfação jamais se constituirá como autoconsciência, permanecerá ao nível de um sentimento de
si148.
O desejo só será humano quando se dirigir para um objeto não-natural, caso contrário, ele
permanecerá sendo um desejo natural e o Eu continuará também sendo natural, isto é, animal149.
Assim sendo, para que o desejo se torne humano, ele só pode ter por objeto um outro desejo,
conforme reconhecido por Lacan.
Desejar o desejo do outro, eis o que caracteriza o Eu como Eu humano. O desejo humano
pode desejar um objeto desde que este objeto esteja mediatizado pelo desejo do Outro.
Todo desejo humano é um desejo de valor. O que o desejo humano deseja é ser reconhecido
como desejo e para que o outro reconheça meu desejo, ele tem de se submeter aos valores que meu
desejo representa, ou seja, só posso afirmar o meu desejo na medida em que nego o desejo do outro
e tento impor a este outro meu próprio desejo. Ocorre que este outro, enquanto desejo humano,
também procura fazer o mesmo comigo150.
O encontro de dois desejos é o confronto de duas afirmações que procuram através da
negação do outro (transformação e assimilação) o reconhecimento.
Trata-se assim, de uma luta na qual um dos dois desejos terá de ser destruído, pois
reconhecer o desejo do outro é fazer seu o valor que o desejo do outro representa. Nessa luta cada
146
147
148
149
150
Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 140.
Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 141.
Ibidem, p. 142.
Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 142.
Ibidem, p. 144.
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um dos indivíduos arrisca a própria vida pelo reconhecimento, todavia, os adversários precisam
permanecer vivos. A morte tornaria impossível o reconhecimento151.
Assim, para que o vencedor seja reconhecido pelo outro, é imprescindível que o outro
permaneça vivo. Isso só é possível se o perdedor, não querendo morrer, aceita ser submetido e,
nessa medida, reconheça o vencedor como seu Senhor, reconhecendo-se a si mesmo como
Escravo152.
O desejo (inconsciente) revelou que a razão é menos poderosa do que se suponha, pois a
consciência é, em grande parte, dirigida e controlada nas forças profundas e desconhecidas. Essa
noção pôs em dúvida a crença na qual a verdade habita a consciência.
Freud acentua: “A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor da sua
própria casa, mas também esta reduzido a contentar-se com informações raras e fragmentadas
daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida psíquica”153.
Conforme Garcia-Roza, o homem como consciência é dotado de um “desejo”. Esse “desejo”
importa reconhecimento que leva a uma ação que dará origem a autoconsciência. Antes de ter
constituído o Eu através da palavra, a autoconsciência estava instalada na certeza do cogito. Essa
certeza é subjetiva e se ela não quiser permanecer prisioneira da própria subjetividade, necessitará
objetivar-se pelo reconhecimento154.
A autoconsciência só existe enquanto reconhecida, daí a luta que vai caracterizar a chamada
“dialética” do senhor e do escravo.
Este desejo é formulado inicialmente em termos de desejo de reconhecimento pelo outro,
como vimos, na dialética do senhor e do escravo. Foi um apólogo construído por Hegel para ilustrar
como o homem, definido pela consciência que tem de si mesmo, se constitui, como é estabelecida a
dissimetria entre o Senhor e o Escravo e como se daria a saída dessa situação155.
Quinet escreveu de forma clara essa concepção no qual buscamos para esclarecer a formação
do desejo. A dependência do sujeito em relação ao outro é encontrada desde a primeira fase da
dialética do senhor e do escravo que, de fato, se chama “independência e dependência da
consciência de si; dominação e servidão”. A consciência de si é em si e é para si, quando e porque
151
Ibidem, p. 143.
Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 143.
153
Freud, Sigmund. Em As cinco lições sobre a Psicanálise, vol. XVI, das obras completas, Rio de Janeiro,
Imago, 1988, p. 15.
154
Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 8 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 143.
155
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 Ed. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,
2008, p. 91.
152
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ela é em si e para si para uma outra consciência de si, isto é, ela só existe (ou é) enquanto ser
reconhecido, conforme vimos anteriormente156.
O homem contemplando uma coisa, um objeto, é absorvido pela coisa e se esquece, ele não
pensa nem em seu ato de contemplar nem em seu eu. Ele pensa na coisa e não esta ai para dizer
“eu”, pois a contemplação revela o objeto, mas não o próprio sujeito. O que chama o sujeito a si
mesmo, fazendo-o sair dessa contemplação é o desejo que para Hegel é um desejo consciente que
lhe permite designar-se como um sujeito dentro desse ato de contemplação da coisa.
Quinet fazendo um contraponto com a diferenciação entre desejo e necessidade, explica que:
o desejo animal ou natural é algo que equivale à necessidade, na medida em que o desejo animal é o
desejo da coisa, conferindo-lhe o sentimento de si. O desejo da coisa é necessário, mas não
suficiente para constituir o que é propriamente humano, que não é o sentimento de si, mas a
consciência de si. O eu animal tem o desejo imediato da coisa e este o leva a satisfazê-lo pela
negação da própria coisa, ele nega a coisa destruindo-a, por exemplo, comendo-a.
O desejo, para que seja humano, deve incidir sobre um objeto que não seja um objeto natural
e sim um objeto que ultrapasse a realidade dada. Segundo Hegel, a única coisa que ultrapassa a
realidade humana é o desejo, pois o desejo, antes mesmo da satisfação, é um vazio, um vazio irreal,
um nada revelado157.
O desejo humano, para se constituir como tal, é um desejo que incide sobre um objeto. O
“desejo” animal incide sobre um objeto, sobre a coisa e o desejo humano incide sobre um outro
desejo. É um desejo de desejo. O desejo que incide de forma imediata sobre um objeto natural só se
torna humano quando é mediatizado pelo desejo do Outro. Tanto o “desejo” animal quanto o desejo
humano tendem a se satisfazer, porém o desejo humano se nutre de desejos e o “desejo” animal de
objetos da realidade158.
Todos os desejos animais se detêm diante de um desejo humano que só é averiguado
enquanto tal quando o sujeito arrisca a sua vida em função do seu desejo. Trata-se de uma luta de
prestígio com o outro em vista do reconhecimento de seu desejo, o que leva o humano a arriscar a
própria vida. O resultado dessa luta introduz na dialética da constituição da consciência de si a
dissimetria entre o senhor e o escravo: o senhor é o senhor porque arriscou a sua vida e o escravo
não159.
156
Ibidem
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008, p. 92.
158
Ibidem.
159
Ibidem.
157
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Assim, desejar um desejo é querer deter o valor desejado pelo desejo do outro. Desejar o
desejo do outro é desejar que o valor que sou ou que represento seja o valor desejado pelo outro.
Quero que ele reconheça meu valor como se fosse o seu; quero que ele reconheça o meu valor como
um valor seu; quero que ele me reconheça como um valor autônomo. Todo desejo humano para
Hegel é, portanto, desejo de reconhecimento. O desejo humano é gerador da consciência de si e o é
em função desse desejo de reconhecimento160.
A diferença entre Hegel e Lacan no que diz respeito ao desejo é que, se para Hegel o desejo
do homem é o desejo do outro (com minúscula), para Lacan o desejo do homem é o desejo do Outro
(com maiúscula). Em Hegel, meu desejo depende do outro como desejante e como consciência,
estando, como desejo interessado numa luta de prestígio com o outro para ser por ele reconhecido.
Para Hegel, o outro é aquele que esta presente e que me vê e contra quem eu luto. Para Lacan, o
Outro se apresenta como inconsistência e inconsciência. O inconsciente é o discurso do Outro. É
justamente por existir uma falta inscrita no Outro que o Outro diz respeito ao desejo do sujeito, pois
é ao nível do que falta no Outro que sou levado a buscar aquilo que me falta, o que me falta como
objeto do meu desejo. O Outro para Lacan é o lugar de significantes, mas também o lugar onde se
institui o Outro da falta, pois falta o significante que o definiria como uma totalidade161.
O inconsciente como discurso do Outro é constituído pela cadeia significante por onde
circula o desejo inconsciente; esse Outro é o lugar da fala, da Outra Cena, segundo Freud162.
No que diz respeito à função do reconhecimento em relação ao desejo, Lacan o articula ao
nível da fala, na dimensão em que o desejo do sujeito é autêntico no plano simbólico. No seminário
1, em relação ao registro simbólico, o desejo é situado como devendo ser reconhecido e nomeado,
ou seja, ele pode ser dito como desejo de alguma coisa. No seminário 2, apesar de encontrarmos a
função do reconhecimento ligada ao desejo, Lacan aponta que o “desejo é desejo de nada, é desejo
de nada nomeável”. Por trás daquilo que se pode nomear do desejo, encontra-se o que há de mais
inominável: a morte, que aparece então como o que do desejo não tem nome163.
Desta forma, Quinet escreveu em seu livro “A descoberta do inconsciente: do desejo ao
sintoma”, de forma bem clara a concepção que Lacan buscou da teoria do desejo em Hegel, o que
nos permitiu encontrar no ensino de Lacan a função de reconhecimento ligada inicialmente ao
160
161
Ibidem.
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008,
p. 92.
162
163
Ibidem
Ibidem, p. 94.
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desejo dentro de uma concepção hegeliana. Mas tarde ela passou a dar lugar ao desejo de
reconhecimento como uma modalidade de demanda, como veremos adiante.
Lacan desvinculará completamente o desejo da função de reconhecimento, pois o desejo não
pede para ser reconhecido nem o sujeito quer reconhecer o desejo, este pode ser apreendido apenas
na interpretação. O desejo está sempre em alteridade em relação ao sujeito, furtando-se, esquivandose, pois se encontra no lugar do Outro.
Para Sadala164, a entrada do sujeito na cultura é efeito do estabelecimento de uma lei
simbólica que o constitui o sujeito do desejo. O sujeito da psicanálise não é natural, é uma
construção, que, segundo a autora, se faz através das articulações com o social. E o que caracteriza o
desejo é a presença de uma ausência. O desejo é o objeto perdido. O desejo requer o ato constitutivo
do sujeito para se fazer como falta. É a falta fundante deste, um “buraco” em nossa alma. Essa falta
é que nos faz sujeito da cultura. Carregamos o vazio da natureza assassinada.
O sujeito é desejo. A existência do sujeito é correlativa à insistência da cadeia significante do
Inconsciente, porém como exterior a ela: é uma ex-sistência. Desejo, logo ex-sisto.
No texto A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud desvela as leis do Inconsciente, fazendo
emergir o sujeito do desejo como sujeito determinado pelas leis da linguagem, ou seja, por leis em
que as palavras são tratadas como sinais sonoros, significantes, sem significados, por onde desliza o
desejo. O significado dela, na verdade, o desejo, tão fugaz quanto ao sujeito que aí se manifesta. O
sintoma nos indica que o passado é atual e o desejo eterno dói165.
O sintoma, portanto, é uma metáfora onde se presentifica a articulação da lei como desejo,
desejo que aí se manifesta em suas impossibilidades. Lá onde está o sintoma, está o sujeito166.
O sujeito da psicanálise é trágico porque está marcada pela determinação a que está
submetido e que torna seu destino inelutável, preso às suas determinações e está a elas condenado,
mesmo no exercício da sua liberdade que é a insistência no seu desejo.
Lacan diz que o trágico do sujeito é que, na exigência ética de não ceder de seu desejo, de
não aceitar abrir mão dele, ele acaba sempre traído, não cede, malgrado à traição, e segue solitário
até a morte, não se dobrando ao bem-estar egoico ou ao princípio do prazer167.
164
Sadala, M.G.S. No avesso da comun(ic)ação – para uma ética do dizer. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2001. Tese
(Doutorado em Comunicação) Universidade Federal do Rio de Janeiro.
165
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,, 2008,
p. 16-7.
166
Ibidem, p. 19.
167
Pacheco, Orlandina Mc de Assis. Sujeito e Singularidade. Ascensão, crise e recuperação do sujeito. 1ª ed. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 72.
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O sujeito é dividido entre o eu e o inconsciente, entre um sentido inevitavelmente falso e o
funcionamento automático da linguagem, cadeia significante no inconsciente168. O sujeito para a
Psicanálise é essa lembrança apagada, esse significante que falta, esse vazio de representação em
que se manifesta o desejo, ou seja, não há representação própria para o desejo169.
O desejo é o resto da operação de subtração da demanda à necessidade. É articulado no
inconsciente e por isso não é articulável pelo sujeito. O objeto da causa do desejo é o objeto a –
faltoso – que impulsionará o sujeito para buscar sua satisfação (irrealizável).
Segundo Garcia-Roza, o sujeito não tem substância, não é o eu, aquilo que apresento ao
outro. O que o sujeito apresenta é seu eu-ideal, auto-retrato pintado, segundo as línguas mestras das
ideias daqueles que constituíram os Outros primordiais em sua existência. Imagem pintada com as
tintas do desejo dos ancestrais, que vão compor os matizes de seu eu pela via da linguagem,
constituindo, assim, o eu como um retrato falado170.
No livro “A descoberta do inconsciente: do sintoma ao desejo”, Quinet coloca que o sujeito
não é o homem, e sim a mente suscetível de estar doente ou saudável. A existência do sujeito é
correlativa à insistência da cadeia significantes do inconsciente171.
No campo da Psicanálise, o desejo portanto, não é o mesmo entendido pela biologia, não o é
como satisfação de uma necessidade, mas um desejo desnaturalizado e lançado na ordem simbólica.
E ele só pode ser pensado na sua relação com o desejo do Outro, e aquilo para o qual ele aponta não
é objeto empiricamente considerado, mas uma falta172.
Elia chama atenção para o fato de que só por uma falta no nível do ser, do ser vivo natural,
que o sujeito tem a condição de emergir como tal. Isto significa que esta falta fundadora do sujeito
não se produz por si mesmo ou por algum processo natural e tampouco cultural, já que a cultura
carece tanto quanto o sujeito de uma teoria que possa explicar, no plano estrutural, sua constituição
e seus processos, mas requer falta. Trata-se de uma condição que comporta algo de paradoxal: a
falta é fundante do sujeito, mas, em contrapartida, requer o ato do sujeito para se fundar como falta.
Só há falta no nível do ser se houver sujeito e, concomitantemente, o sujeito é correlato ativo da
falta. E é esta falta o que nos faz sujeitos da cultura173.
168
Fink, Bruce. O sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo; tradução Maria de Lourdes Sette Câmara;
consultoria Mirian Aparecida Nogueira Lima. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., 1998, p. 67.
169
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008,
p. 13.
170
Ibidem, p. 15.
171
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008,
p. 16.
172
Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. 8ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1999. p. 139.
173
Elia, Luciano. O Conceito de sujeito. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 49.
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A descoberta freudiana do inconsciente é a de que ele tem leis e comporta desejos sobre o
qual nem sempre o sujeito quer saber174. Esse desejo, portanto, alçado à categoria de referencial
central da teoria psicanalítica, nada tem a ver com a concepção naturalista ou biológica de
necessidade.
A própria variabilidade do objeto já assinala o seu caráter de representante do objeto perdido.
O objeto do desejo não é uma coisa concreta que se oferece ao sujeito, ele não é da ordem das
coisas, mas da ordem do simbólico. O desejo desliza por contiguidade numa série interminável, na
qual cada objeto funciona como significante para um significado que, ao ser atingido, transforma-se
em novo significante e, assim sucessivamente, numa procura que nunca terá um fim porque o objeto
último a ser encontrado é o objeto perdido para sempre. Toda satisfação obtida coloca
imediatamente uma insatisfação, que mantém o deslizamento constante do desejo nessa rede sem
fim de significantes175.
O desejo, com efeito, se coloca de objeto em objeto sem nenhum respeito pelo que seria uma
orientação “natural”. E, mesmo se Freud isola alguns termos que serão investidos de um valor
particular para o sujeito, estes, a nível inconsciente, podem se equivaler. O desejo é inconsciente e
não pode ser controlado176.
A demanda do sujeito provém do Outro, sendo datada do lugar do Outro, lugar originalmente
ocupado pela mãe e o desejo é articulado através da demanda, transparecendo na enunciação dos
significantes.
A demanda é portanto aquilo que se enuncia na cadeia de significantes, onde se articula o
desejo como efeito metonímico, na medida em que este passa de um para um outro significante
rolando como um dado lançado na fala. De palavra em palavra temos o desejo como efeito
metonímico da demanda177.
Não há sujeito único, unidade original e fonte irredutível do desejo, que se desconhecem em
parte, mas dois sujeitos: o sujeito do enunciado e o da enunciação. O sujeito do enunciado é o
sujeito social, portanto do discurso manifesto, sujeito às leis do processo secundário, porém
desconhecedor do sujeito da enunciação e do conteúdo da mensagem. O sujeito da enunciação é, por
174
Quinet, Antonio. A descoberta do Inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.
21.
175
Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, 8 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 145.
Goldemberg , Ricardo. Goza! Capitalismo, globalização e Psicanálise. Salvador: A’lgama, 1977, p. 27.
177
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 Ed. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,
2008, p. 96.
176
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sua vez, excêntrico em relação ao sujeito do enunciado. Ele não é expresso ou significado no
enunciado, mas recalcado e inconsciente178.
São, portanto, dois sujeitos que estão em jogo: aquele que enuncia a mensagem (sujeito do
enunciado) e aquele outro ligado aos elementos significantes do inconsciente (sujeito da
enunciação), excêntrico em relação ao primeiro. A prática psicanalítica se propõe a tornar explícito
o sujeito da enunciação, partindo do sujeito do enunciado. Por quê? Porque se trata da emergência
do sujeito que não cede de seu desejo.
Assim, a demanda está para o enunciado como o desejo está para enunciação. O enunciado
de uma fala é da ordem da demanda, mas é em sua enunciação, na modalização do dito, sua
entonação, suas pausas, sua cadência, sua rapidez ou sua lentidão, na ênfase ou na elipse de suas
palavras que rola o desejo179.
A demanda de sarar, a demanda de interpretação, do que fazer, enfim, todas as demandas
desse tipo, que são demandas de alguma coisa, referem-se estruturalmente à demanda intransitiva,
que no fundo é uma demanda de amor. A demanda é incondicional, não trazendo nenhuma
possibilidade de negociação, nem admitindo condição alguma e tampouco comporta um objeto,
como é o caso da necessidade. É demanda de presença ou de ausência, como podemos verificar na
relação primordial do sujeito com a mãe, pois esta, no lugar do Outro, tem o privilégio de satisfazer
as necessidades e também de privar delas as crianças. A demanda que a criança faz ao Outro
materno se situa o nível daquilo que o Outro não tem, isto é, do seu amor, na medida em que “amar
é dar o que não se tem”, segundo definição de Lacan. Quando a mãe dá aquilo que tem, aquilo que
pode oferecer não se trata de prova de amor, ou seja, trata-se efetivamente de demanda de amor por
onde circula o desejo como desejo de outra coisa180.
Desta forma, a demanda do sujeito se constitui, portanto, a partir da demanda ao Outro e da
demanda do Outro. Essa demanda do Outro é incondicional e o sujeito diante dela se vê assujeitado.
O desejo, mais propriamente, a ética do desejo, é o que vai permitir ao sujeito destacar-se, desligarse do Outro, ele derruba o incondicional da demanda do Outro, o desejo é portanto uma defesa
contra a demanda do Outro, e que demanda é esta? É a de que o sujeito lhe dê o complemento que
178
Garcia-Rosa Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Ed. Jorge Zahar, 8 Ed. Rio de Janeiro, 1999, p. 150.
Quinet, Antonio. A descoberta do Inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2008, p. 90.
180
Quinet, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma, 3 Ed. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,
2008, p. 96.
179
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lhe falta, o falo181. E de que se trata no capitalismo como vimos no primeiro capítulo, de tratar a
subjetividade como mercadoria.
Veja-se que numa análise não se trata de saber o que o sujeito demanda, mas sua relação com
a demanda inconsciente do Outro, sendo que o desejo, por ser vinculado à lei, é aquilo pelo qual o
sujeito se situa em relação a ela podendo inclusive dizer-lhe não. O desejo se apóia na lei que o
constitui e com a qual está estruturalmente associado para derrubar o incondicional da demanda do
Outro, colocando-se, para o sujeito, como condição absoluta.
Lacan, sobre a relação da demanda do sujeito, diz: “o que esta em questão nada mais é que a
emergência da manifestação do desejo do sujeito” (...) “A demanda não é explícita”(...) “Ela é oculta
para o sujeito, ela é como algo que deve ser interpretado. É aí que reside a ambiguidade”182.
O querer da demanda nos apresenta um sujeito, o sujeito desejante.
Segundo Quinet, apesar de não se inscrever no significante, o desejo só pode ser inferido a
partir da demanda, que se manifesta em cada fala. E esta, na medida em que é constituída pelos
significantes emitidos pelo sujeito, tem apenas um significado: o desejo, que é causado pelo objeto
a. Trata-se do desejo como vetor, que se presentifica articulado através dos significantes da
demanda.
4 – ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO OU É POSSÍVEL RESISTIR AO CONSUMISMO?
Lacan avança na teoria do desejo elaborando as noções de alienação e separação. O desejo
freudiano, assinalado por Lacan, é de que ele escapa à síntese do Eu. O Eu não é uma realidade
original, fonte substancial do desejo, mas algo que emerge a partir de um determinado momento
como operador das resistências e somente podendo ser pensado por referência a um Outro. O Eu não
pode ser pensado de forma unitária, nem tampouco pode ser identificado ao sujeito; ele é um termo
verbal cujo uso é apreendido numa certa referência ao Outro, como escreveu Lacan. O Eu surge
somente através da linguagem e por referência ao Tu. Ele é caracterizado por um desconhecimento
dos desejos do sujeito e não aquilo que se apresenta como fonte última dos desejos183. É por
referência ao Outro que o sujeito se constitui como um Eu184.
Nessa primeira fase de constituição do desejo, ele ainda não se reconhece como tal. É no
Outro ou pelo Outro que esse reconhecimento vai se fazer numa relação dual especular que o aliena
181
182
183
184
Ibidem, p. 97.
Lacan, Jacques. Livro 8. A transferência. 1960/61, p. 198.
Garcia-Rosa, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, 8ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 146.
Ibidem, p. 205.
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nesse Outro, ou seja, na relação do sujeito com o Outro, interferindo na subjetividade do sujeito. O
destino do ser falante é se alienar ao outro. A separação dessa alienação requer o ato de
esclarecimento e vontade.
De um lado o sujeito está dividido e do outro há a cadeia significante. O outro não é nada a
não ser significante e o sujeito precisa entrar nessa cadeia para se constituir, alienando-se.
A relação do sujeito com o Outro é trazer dele significante. O significante é o que apresenta
o sujeito para outro significante. O sujeito petrifica num significante ou desliza nos sentidos, o que
está ligado à condição humana de vacilação, que é a nossa tragédia. Desde sempre somos alienados
à linguagem, passando a ser sujeito dividido, que é e não é ao mesmo tempo e que fala e desfala o
tempo todo.
No momento em que o sujeito se identifica com um significante, petrifica-o, alienando-o. Ele
se associa a este significante e segue sua vida toda alienado a ele. Petrificado, o sujeito perde a
oportunidade de ter outros significantes, o que seria necessário despetrificar para fazer deslizar os
sentidos. Sempre haverá uma possibilidade de escolha do sujeito, ou seja, sua responsabilização.
Como vimos, pelo fato do sujeito nascer no campo do Outro, este nascerá com significante e
será dividido. O sujeito do inconsciente esta sobre este significante que desenvolve suas redes,
cadeias e sua história.
Para Lacan, o sujeito é esse surgimento que, justo antes, como sujeito, não era nada, mas que
apenas aparecido, se coaduna em significantes185.
E nesse caminho, é preciso que o Outro organize e ordene o mundo imaginário no qual o
sujeito se aliena para remetê-lo a ordem simbólica. Através do Outro da linguagem se dará a
identificação do sujeito sendo-lhe permitido, desta forma, incluir-se na ordem simbólica. Alienar-se
no significante é a única maneira de entrarmos no mundo.
Podemos dizer que a alienação consiste na causa do sujeito pelo desejo do Outro que
precedeu seu nascimento. Na alienação, há uma “escolha forçada” que descarta o ser para o sujeito,
instituindo em seu lugar a ordem simbólica e relegando o sujeito a mera existência como um
marcador de lugar dentro dessa ordem. Não é isto que o consumismo denuncia?
A alienação reside nessa entrada no campo do Outro. O significante advém do campo do
Outro e marca o sujeito, mas o sujeito marcado pelo significante, petrificado sob o significante.
Assim, ou você é representado pelo significante ou você não é sujeito.
185
O Seminário, livro 11: os quatro conceitos de Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 194.
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O sujeito petrificado pelo significante é um sujeito que não faz qualquer pergunta. A
definição mais simples de um sujeito petrificado é a daquele que não se questiona sobre si mesmo.
Recusa-se mesmo a pensar sobre si.
Colette Soler, nos explica em seu artigo “O sujeito e o Outro”:
“O Outro precede o sujeito como lugar da linguagem – o Outro que fala
precede o sujeito e fala sobre o sujeito antes de seu nascimento. Assim, o
Outro é a primeira causa do sujeito. O sujeito não é uma substância; o
sujeito é um efeito de significante. O fato de não existir sujeito não quer
dizer que não exista nada, porque pode existir um ser vivo, mas este ser
vivo se torna um sujeito somente quando um significante o representa.
Logo, antes do surgimento do significante, o sujeito é nada186”.
O sujeito tem uma só escolha, entre petrificar-se num significante ou deslizar no sentido.
Poderá haver a separação quando terminar a circularidade da relação do sujeito com o
Outro. O sujeito encontra-se no desejo do Outro sua equivalência como sujeito do inconsciente e
descobre que o Outro é barrado, que nele também há falta.
O sujeito encontra uma falta no Outro que ele também tem. Lacan diz que uma falta cobre a
outra187. As dialéticas dos objetos do desejo esta aí, no que ela faz a junção do desejo do sujeito com
o desejo do Outro.
A separação consiste na tentativa por parte do sujeito alienado de lidar com esse desejo do
Outro na maneira como ele se manifesta no mundo do sujeito. Este é o ponto da teoria que mais
interessa ao nosso trabalho. Mesmo submetidos aos ditames do capitalismo, à sua força que tudo
invade, é possível se separar?
Na separação há idéias de justaposição de duas faltas. O Outro materno precisa mostrar
algum sinal de incompletude para a separação se concretizar e para o sujeito vir a ser como sujeito
barrado. Tanto o sujeito quanto o Outro estão excluídos. O ser do sujeito deve advir, de certa forma,
de fora, “como conseqüência em nem um, nem outro”188.
O Outro materno aprisiona-se como sujeito desejante, faltante e alienado, ou seja, que
também se sujeitou a ação da divisão da linguagem. O sujeito tenta preencher na separação a falta
do Outro materno, de forma que possa alinhar e conjugar essas duas faltas. Todavia, esse momento é
186
Soler, Colette. O sujeito e o Outro I e II. In: Feldestein, R; Fink, B; Jaanus, M. Para ler o Seminário 11 de
Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 52-57.
187
O Seminário, livro 11: os quatro conceitos de Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 194.
188
Ibidem, p. 200.
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irrealizável. A criança não poderá monopolizar por completo o espaço do desejo da mãe. O sujeito é
impedido ou barrado de tomar por completo o espaço do desejo.
Segundo Lacan, pela separação o sujeito pensa o ponto fraco da articulação significante, no
que ela é de essência alienante. É no intervalo entre esses dois significantes que aparece o desejo,
estrutura mais radical da cadeia significante é o lugar freqüentado pela metonímia, veículo do
desejo. Daí a metonímia esta ligada a falta-a-ser e remeter a essa divisão do sujeito.
A falta-a-ser é própria da alienação e é reencontrada na operação de separação. É na
separação que intervém a instancia da castração.
A alienação é o destino. Nenhum sujeito falante pode evitar a alienação. É um destino
ligado à fala. Mas a separação não é destino, é escolha. A separação é algo que pode ou não estar
presente. Portanto, se há uma generalização do consumismo, isto também deve ser atribuído, parte
da responsabilidade, ao sujeito que se deixa superendividar. Podemos pensar naquele que não se
deixa atrair pelos falsos prazeres do consumismo, como um “sujeito da enunciação”, um sujeito que
tenha voz, que não foi calado pelos interesses vigentes do mercado.
O desejo de reconhecimento é um dos motivos para o sujeito contrair dívidas. Isto porque o
desejo humano, para se constituir enquanto tal, é um desejo que incide sobre um desejo189.
O desejo se apóia na lei que o constitui e com a qual está estruturalmente associado para
derrubar o incondicional da demanda do Outro, colocando-se, para o sujeito, como condição
absoluta.
Lacan chega a identificar essa posição do sujeito em relação à demanda inconsciente com a
posição incestuosa, o sujeito devendo escolher entre a demanda e o desejo, ou seja, entre o ser e o
ter: ser o falo ou entrar na dialética do ter ou não ter. Para não dar aqui o que ele tem (o falo), ele dá
o que não tem: o seu amor. O sujeito tende, portanto, a dar como resposta ao significante da falta no
Outro, promovendo assim sua saída da submissão à demanda do Outro190.
O desejo, ao se apresentar como pergunta, faz surgir para o sujeito algo que o faz questionarse, pois o desejo é um enigma, nunca se reduzindo a um objeto, a não ser de forma imaginária.
Nessa série de respostas têm-se os ideais que o sujeito constitui para si – casar, ter filhos, ser
engenheiro, advogado, ser rico, ser inteligente, ser cortês...
189
O Seminário, livro 11: os quatro conceitos de Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 92.
Quinet, Antonio. A descoberta do Inconsciente: do desejo ao sintoma. 3 Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2008, p. 98.
190
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Estas noções – necessidade, demanda e desejo – podem nos ajudar a apreender melhor o que
é o consumismo a que muitos se escravizam, atendendo ao princípio básico da sociedade capitalista,
ou seja, à ordem: “compre”!
No entanto, essas idéias , alienação e separação nos permitem pensar o sujeito que, ainda que
submetido à lógica capitalista que rege o pensamento contemporâneo, pode escapar desta alienação,
ainda que este processo, em um primeiro tempo lhe seja constitutivo.
No Seminário 17, O avesso da Psicanálise, Lacan já nos fala de tais objetos feitos para causar
o desejo nomeando-os de latusas. Este mercado de latusas é uma das causas atuais do mal-estar na
cultura. No entanto, a psicanálise nos ensina que o sujeito pode responder a ele de várias maneiras,
resta-lhe sempre um espaço de escolha que remete a ética do desejo. Há casos de consumo marcado
por um gozo que aprisiona o sujeito numa teia embaraçosa, dentre eles os compradores compulsivos
a que nos referimos e há quem recuse o convite, afrouxando seu laço coma dominação do mercado,
evitando cair na trama do Outro191.
Segundo Sadala192, o consumismo, estatuto de parceiro dos sintomas contemporâneos, pode
ser situado numa dimensão de gozo que toma uma forma particular em cada sujeito. A insistência
em consumir pode, por exemplo, testemunhar a supremacia do ter sobre o ser. O sujeito passa a
querer ter para ser, demonstrando assim, a sua alienação ao desejo do outro.
A insatisfação insuportável resultante do reencontro fracassado com o objeto leva o sujeito a
acreditar na fantasia dos shoppings centers, em busca da satisfação completa. Como diz Lacan em
“O avesso da Psicanálise”, em todas as esquinas, atrás de todas as vitrines encontram-se esses
objetos feitos para causar o desejo. E se o sujeito aceita as ilusões impostas pelo Amo
Contemporâneo, aprisiona-se facilmente às ofertas do consumo193.
A ilusão do consumo fundamenta-se numa forma agradável de cumprir o que é condicionado
pelo mercado como as obrigações sociais, sendo, portanto, opostas à ética da psicanálise – não
ceder de seu desejo. Curar-se do consumismo é curar-se da voz imperativa do Outro. O
consumismo, como sintoma contemporâneo, convoca o sujeito apenas como consumidor e não
como sujeito do desejo194.
191
Sadala, Glória. Artigo: consumo: parceiro nos sintomas contemporâneos. Trabalho apresentado no X Encontro
do campo Freudiano. Barcelona/Espanha, p. 66.
192
Ibidem.
193
Ibidem.
194
Sadala, Glória. Artigo: consumo: parceiro nos sintomas contemporâneos. Trabalho apresentado no X Encontro
do campo Freudiano. Barcelona/Espanha, p. 66.
110
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Como vimos em Bauman, a sociedade de hoje determina que a liberdade do consumidor diz
respeito a sua satisfação com suas multiplicidades de possibilidades, todavia, o imperativo é de que
a liberdade somente pode durar enquanto permanecer irrealizada.
O valor supremo da sociedade de consumidores é a promessa de uma vida feliz. O consumo
torna-se a medida de uma vida bem sucedida, rompendo com a ética do desejo.
Há, na sociedade de consumo uma promessa de satisfazer o desejo humano. Quanto mais se
anula um sujeito, maior o lucro no mercado.
Não há uma real capacidade de analisar, pensar e questionar. O mercado não se importa com
essa questão. O que interessa é condicionar o cliente a busca da satisfação. O que se pretende é que
os experimentos consumistas tenham sido verdadeiros e totalmente realizados.
Como vimos é exatamente a não-satisfação dos desejos que constitui o verdadeiro volante da
economia para o consumidor. O domínio sobre a realidade da vida dos consumidores é condição
necessária para que a sociedade de consumidores funcione de modo adequado e se mantenha.
E assim, a tutela das situações existenciais, impõe direitos frente aos tribunais, tornando
necessário a reconstrução do ordenamento jurídico civil através de uma definição qualitativa do
valor a vida a ser então considerado.
Conhecer a constituição do desejo, ou seja, a possibilidade de escolha do sujeito, além do
papel que aí exerce o inconsciente, é a contribuição que a Psicanálise pode dar para as pesquisas que
vêm sendo feitas sobre um novo ordenamento jurídico quanto ao superendividamento esclarecer a
questão da demanda pelo consumismo.
Lacan trouxe a ética do desejo como fundamento de um sujeito que não deve se assujeitar as
demandas do mercado e como conscientizar um sujeito face as suas rupturas e diante de uma
sociedade que lhe oferece uma resposta que não terá solução?
A psicanálise oferece ao sujeito o dispositivo analítico que, através da fala, em associação
livre, pode colocar seu desejo em causa, libertando-se das ilusões e apagando os efeitos da
massificação produzida pela máquina do consumo de nosso tempo. A psicanálise aponta na direção
avessa ao consumo, que vem trazendo como consequência, o consumo próprio da subjetividade, ou
seja, a destruição ou o apagamento do desejo do sujeito.
111
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CONCLUSÃO
Em seu texto “O mal-estar na civilização” (1930), Freud aborda inicialmente a questão do
objetivo da vida humana. Apresenta a felicidade como resposta à pergunta sobre o que os homens
pedem da vida e aponta fontes de constante sofrimento para o homem: a hiperpotência da natureza, a
fragilidade de nosso corpo e a infelicidade provocada pelas relações que mantemos com nossos
semelhantes.
Segundo Freud, o ponto de partida de importantes distúrbios patológicos, está no fato de que,
diante da realidade, temos que nos capacitar para a defesa das sensações de desprazer que realmente
sentimos ou pelas quais somos ameaçados. Assim, para desviar certas excitações desagradáveis, o
ego não pode utilizar senão dos métodos que utiliza contra o desprazer oriundo do exterior195.
195
Freud, Sigmund. O mal estar na civilização (1856-1939): Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu: Rio de
Janeiro. Imago Ed., 1997, p. 9.
112
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Freud anteviu, assim que a ciência e a tecnologia não são capazes de dar conta do mal-estar
inerente ao homem. De maneira oposta, na busca de garantir o seu domínio sobre a natureza e seu
poder em relação a seus pares, os homens se transformam em novos “deuses”.
Diz Freud: O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? Obter felicidade, querem
ser felizes e assim permanecer? Ou seja, visam ausência de sofrimento e desprazer e por outro lado,
gozam da experiência de intensos sentimentos de prazer196.
E continua dizendo que o que decide o propósito da vida é simplesmente o prazer. O
princípio do prazer domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Nossa
possibilidade de felicidade sempre é registrada por nossa própria constituição.
A satisfação da pulsão equivale para nós à felicidade. Um grande sofrimento surge em nós
caso o mundo externo nos deixe definhar, caso se recuse a satisfazer nossas demandas197.
Freud conclui, contudo, que o programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos
impõe não pode ser realizado, contudo, não devemos, ou seja, na verdade não podemos abandonar
nosso esforço de aproximarmos dessa consecução de uma maneira ou outra. Todo homem tem que
descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo 198.
E Freud acrescenta dizendo que qualquer escolha levada ao extremo condena o indivíduo a
ser exposto a perigos que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre
inadequada e assim, a sabedoria popular nos aconselha a não buscar a totalidade de nossa felicidade
numa só aspiração199 .
A civilização não trouxe a felicidade almejada, como discutimos antes. O progresso
acelerado do capitalismo e suas permanentes atualizações levam o sujeito a viver no imediatismo, na
pressa, na transitoriedade e na imprevisibilidade. Esquece-se das questões fundamentais de sua vida,
principalmente da investigação do seu próprio desejo como uma questão da ética.
A sociedade de consumo e a lógica capitalista, antes de mais nada excluem as diferenças, via
regis da subjetividade. Prometem a felicidade àqueles que seguirem suas normas, sendo a mais
importante delas, o consumismo, através dos quais o sujeito se vê forçado a consumir aquilo que, às
vezes, nem mesmo deseja.
Freud considera “prazer barato” os recursos científicos trazidos pela civilização, pois toda
essa evolução não é capaz de fazer com que possamos sentir confortáveis na civilização atual.
196
Ibidem, p. 24.
Ibidem, p. 27.
198
Ibidem, p.33.
199
Freud, Sigmund. O mal estar na civilização (1856-1939): Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu: Rio de
Janeiro. Imago Ed., 1997, p. 34.
197
113
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Por ser a felicidade algo essencialmente subjetivo, o método que devemos utilizar para
examinar as coisas variam subjetivamente de vez que coloca nosso próprio estado mental no lugar
de quaisquer outro por mais desconhecido que eles possam ser200.
Destituído de sua subjetividade, o sujeito se encontra submerso no imperativo da igualdade,
sem espaço para a diferença, promovido pelo discurso da complementaridade que exclui a falta. A
psicanálise argumenta que o sujeito não cessa de buscar o objeto da completude, mas sabe-se que
este é mítico e estará para sempre perdido. Nota-se, então, que o mercado de consumo vale-se desta
condição do sujeito e apresenta de forma crescente seus produtos como objetos capazes de
preencher a falta constitutiva de todo sujeito. São renovados, na atualidade, incessantemente, meios
que supostamente preencham o vazio.
Mas sabemos também que a falta é, por outro lado, o motor para que o sujeito possa
constituir-se como sujeito do desejo.
O sujeito se aliena ao Outro do mercado de consumo e precisa se separar com a introdução
da função do pai que efetuará o corte.
O ideal cultural alienado ao consumo propõe a obturação da falta. O objeto de consumo se
oferece como primeiro objeto de satisfação, como promessa de presença sem corte. A proposta é
oferecer todo tipo de objetos para obturar os buracos de sentidos, seja psicofarmacos, objetos de
consumo, etc.
O Outro como o lugar em que se situa a cadeia significante comanda tudo que vai poder
presentificar o sujeito. Essa ligação do Outro e o sujeito é uma alienação: o sujeito só pode ser
reconhecido no lugar do Outro. Não há meios de definir o sujeito como consciência de si201.
Como foi dito, no próprio momento em que o sujeito se identifica com o significante do
Outro fica petrificado. Por exemplo, um “menino mau” é representado como um “menino mau” em
relação ao ideal de sua mãe. Logo, “menino mau” funciona para o sujeito como uma linha mestra
durante toda a vida deste. Ele é definido como se estivesse morto ou como se lhe faltasse a parte
viva de seu ser que contém seu gozo.
Mas, na primeira falta, quando o sujeito é definido por um significante mestre, uma parte do
sujeito é deixada de fora da definição total. Mesmo que ele seja um “menino mau”, ele também é
outras coisas.
200
Ibidem, p. 40.
201
Seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise / Richard Felds-tein, Bruce Fink,
Maire Jaanus (orgs.); tradução: Dulce Duque Estrada; revisão técnica: Sandra Grostein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
1997, Alienação e separação, Eric Laurent, p. 35.
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Assim, a união do sujeito com o Outro deixa uma perda: se o sujeito tenta encontrar-se no
Outro só pode encontrar-se no Outro como uma parte perdida.
O sujeito é fundamentalmente um objeto do gozo do Outro, e seu primeiro status é ser uma
parte perdida desse Outro. Aquilo que ele foi, como tal, no desejo do Outro, não apenas no nível
simbólico do desejo, mas como substancia real envolvida no gozo é a identificação completa. Ele só
pode tentar recuperá-lo ou identificá-lo dentro do desenvolvimento da cadeia de significantes202.
O sujeito consumista é alienado ao gozo do Outro. Esse sujeito passa a ser objeto de gozo
desse grande Outro. E se consome, atendendo a demanda do grande Outro. Há uma alienação ao
objeto de gozo do grande Outro.
O consumismo pode ser um sintoma do sujeito que fica alienado a demanda do Outro do
capitalismo. Somente através da análise, até poderá se chegar a esta conclusão sobre o
comportamento compulsivo de determinado sujeito.
O que acontece é que significantes são os objetos, produtos e serviços, criados para
satisfazer um desejo que jamais será satisfeito, ilusão de uma falsa felicidade e impulso na demanda
de repetição de novos significantes impostos pelo mercado capitalista para que o sujeito se sinta
reconhecido, um ciclo vicioso que aliena sua própria subjetividade.
A separação é necessária. Deve haver a vontade do sujeito de tirar-se do outro, de safar-se do
outro, deixar de ser objeto de seu gozo. A separação é o contrário da paixão pela ignorância, vontade
de saber, responsabilizar-se. A presença do desejo na fala é a presença do que falta para se produzir
significados. Através da fala há uma demanda nem sempre identificável.
Para se escapar da função de ser objeto do Outro, a vontade de não ignorar é imprescindível.
Não se pode ignorar que se está no jogo do Outro.
Entre o sujeito e o grande Outro existe uma interseção que é um lugar de falta. O sujeito
experimenta o Outro incompleto pela falta. É este aspecto do pensamento de Lacan que
consideramos de crucial importância para este trabalho, pois nos dá subsídio para nossa reflexão
sobre a alienação dos sujeitos ao Outro - do capitalismo, da propaganda, da ciência... em uma
alienação que leva um indivíduo a se endividar. Quando isso ocorre, o sujeito não distingue mais o
que é necessidade, demanda do Outro ou desejo.
202
Ibidem, p. 44.
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Assim, com um cartão de crédito podemos buscar satisfazer incessante e imediatamente
todos os nossos supostos desejos203, permitindo muitas vezes o sujeito se superendividar. Mas a falta
continuará pulsando.
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Trabalho apresentado no 10º Congresso Internacional de Derecho Del Consumidor, Lima, Peru.
PRODUTO
A intenção é desenvolver uma série de pesquisas visando a contribuição da psicanálise ao universo
jurídico diante do fenômeno do superendividamento. Demonstrar a questão do desejo sendo
manipulado pelo mundo capitalista.
Será produzido dois produtos: o primeiro, artigo sobre a subjetividade como mercadoria e o outro
será o desenvolvimento e a publicação de um livro composto por seis capítulos de diversos autores
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sobre temas multidisciplinares no formato digital e em papel integrando diversas áreas do
conhecimento.
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